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Procura-Se Um Presidente PDF
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questões brasileiras
PROCURA-SE UM PRESIDENTE
Dependência virtual e extremismo de Bolsonaro precipitam corrida política no campo da direita
MIGUEL LAGO
Ao normalizar a extrema direita, Bolsonaro desloca o centro de gravidade da política. A extrema direita purista se torna
direita, a direita mais contundente se torna centro, e o centro se torna esquerda. O radicalismo de Bolsonaro contribui para
dar aparência de moderação e pragmatismo a um grupo profundamente ideológico como o MBL CREDITO: ROBERTO
NEGREIROS_2019
J
air Bolsonaro é um fenômeno tecnopolítico. Ele é produto da
dinâmica das redes sociais, onde o brasileiro gasta boa parte do seu
dia, consumindo e compartilhando informações. O Brasil é a segunda
nação a passar mais tempo conectada, em média nove horas por dia. Não
por acaso, o país foi de certa forma pioneiro no uso da tecnologia em uma
eleição, a ponto de invalidar determinantes clássicos, como tempo de
televisão, financiamento, estrutura partidária, palanques estaduais ou
memória eleitoral (experiência passada que marcou o eleitorado). O
candidato do PSL tinha míseros segundos, um partido nanico, poucos
recursos declarados, palanques frágeis e não havia governado antes.
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Nos primeiros meses de governo ficou claro que a lógica do perfil nas
redes sociais está vencendo de goleada. Não à toa, pois ela explica o
bolsonarismo em todos os seus aspectos: o tipo de base social, os
formatos de mobilização, a formação ideológica, o perfil social de seus
aliados. Tudo isso está condicionado pelas novas formas de interação das
redes sociais. Manter o perfil ativo é fundamental para manter a base fiel
conectada e motivada. Como explica Marcos Nobre, em artigo publicado
nesta revista (“A revolta conservadora”, piauí_147, dezembro), o capitão
reformado precisa do caos para poder governar, pois sua estratégia é
governar para “uma base social e eleitoral que não é maioria, mas é
grande o suficiente para sustentar um governo. Algo entre 30% e 40% do
eleitorado. Tornar essa base fiel é fundamental para manter o poder”.
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V
ale complementar essa análise com os estudos de Paolo Gerbaudo,
professor do King’s College, de Londres, sobre populismo e redes
sociais. Segundo ele, a arquitetura das redes sociais – a maneira
como são desenhadas – propicia o desenvolvimento de lideranças
populistas e de mensagens sensacionalistas. A visualização da
informação é prioritariamente definida pelo número de interações que a
publicação gerou nos primeiros minutos seguintes à postagem. Ou seja,
ela favorece o compartilhamento de conteúdo inflamável. Por isso,
muitas celebridades das redes são originalmente trolls: perfis que adotam
um comportamento que viola regras básicas de convivência. Um
governante que queira se manter “ultrarrelevante” nas redes sociais
precisa gerar grande número de reações às suas postagens.
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A
té mesmo na escolha dos nomes ditos “técnicos”, a lógica do perfil
virtual predomina sobre a do presidente. O principal nome do
governo Bolsonaro é um empresário bem-sucedido sem nenhuma
experiência no setor público, mas que manteve uma colaboração regular,
como colunista, no jornal O Globo. O ministro da Economia não foi
escolhido por aquilo que fez como quadro técnico, mas por sua
capacidade de expressar e articular sua opinião.
Opiniões são importantes, mas para fazer política pública é preciso ação.
Na era digital, contudo, a opinião predomina sobre a ação. Passamos a
viver no reino das opiniões: todos têm alguma opinião formada sobre
tudo e se sentem na obrigação de opinar sobre qualquer coisa. Esse
fenômeno é consequência direta da hiperconectividade e, em particular,
do modelo de negócios das empresas detentoras de redes sociais: a venda
de dados de usuários para marketing. A fim de obter um perfil completo
e apurado de cada usuário, é preciso estimulá-lo a revelar suas
preferências sobre o maior número possível de temas. Ao opinar sobre
tudo, do nazismo à Fórmula 1, o usuário contribui para a captura mais
precisa de dados pelas empresas.
Com isso, tudo se tornou opinião e se confunde com ela, numa arena em
que não existem hierarquias. A análise política de um especialista
equivale à opinião de qualquer pessoa que nunca abriu um livro sobre
política. Trata-se de uma perversão do direito à liberdade de expressão:
muito embora cada um tenha o direito de opinar sobre o que quiser, e
uma opinião não se sobreponha à outra, nem tudo é da ordem da
opinião. Análises, pesquisas e evidências são de outra esfera. Não se
questiona o resultado de uma pesquisa científica dizendo simplesmente
que não se concorda com ela, mas analisando sua metodologia ou
apresentando uma pesquisa sobre o mesmo tema que possa colocar em
xeque as conclusões.
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Aqui, não se trata dos excluídos do sistema, dos pobres, mas dos
incluídos que perderam: os perdedores da meritocracia. Não daqueles
que, por causa do racismo e do classismo estruturais do Brasil, não
puderam sequer sonhar em competir. Mas daqueles que, em um país
desigual, tinham o privilégio de poder competir, e ainda assim perderam.
É a essa franja da população que a nova extrema direita se dirige. O
americano Steve Bannon, estrategista dessa corrente ideológica, resume
bem esse sentimento quando define o capitalismo global como um
regime socialista para ricos e pobres. Segundo ele, os mais ricos e os mais
pobres, além de não pagarem imposto (o que é uma falácia, pelo menos
no que diz respeito aos mais pobres), são subsidiados pelo Estado, seja
por meio de políticas redistributivas (no caso dos pobres), seja via auxílio
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direto em caso de falência (no dos ricos), segundo a máxima do too big to
fail [grande demais para quebrar]. Enquanto isso, a franja média,
chamada por Bannon de little people [povinho], que trabalha e paga seus
impostos, não teria apoio algum do Estado.
S
e, de um lado, a hiperconectividade equaliza todos na opinião e
abre uma brecha para a ascensão social dos perdedores da
meritocracia, por outro molda a ideologia ainda em formação.
Talvez por prezar a honra da direita e do conservadorismo, eu não
consiga concordar com os analistas que qualificam o governo e o
movimento que o elegeu “de direita” ou “conservador”. O
conservadorismo de verdade zela pelo fortalecimento da autoridade, da
hierarquia, da excelência e da tradição. E basta olhar atentamente para as
propostas políticas do bolsonarismo para ver que ele é anticonservador.
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A
sociedade hiperconectada é parte fundamental do perfil Bolsonaro:
é daí que provêm argumentos, ideias, informações, apoios e alianças
dele. Por essa razão, Bolsonaro estará sempre condenado a priorizar
o perfil, em detrimento da função de presidente. E é nessa brecha – que o
capitão reformado não consegue tapar – que emerge gradualmente uma
oposição latente mas vigorosa ao seu governo.
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Caso essa nova direita legitimista não eleja o próximo presidente francês,
é muito provável que alguém que se posicione entre ela e a extrema
direita chegue lá. Para Lilla, Marion Maréchal, ex-deputada e neta do
polêmico político de extrema direita Jean-Marie Le Pen, é a mais bem
posicionada para ocupar esse lugar. A extrema direita na França é
tradicionalmente antielitista e anticlerical. Maréchal tem se aproximado
dos católicos e é muito mais amável com as elites tradicionais,
diferentemente de sua tia, Marine Le Pen.
J
á no Brasil, ninguém é mais sectário do que Bolsonaro, sentado na
extrema direita com seus filhos e o astrólogo Olavo de Carvalho. Sua
estratégia é extremamente arriscada e atende mais uma vez à lógica
do perfil virtual. O digital influencer Bolsonaro pretende ter hegemonia
completa sobre suas hordas cibernéticas e não quer dividir atenção ou
pactuar com possíveis concorrentes. Ele busca fidelizar os 30% do
eleitorado, uma base em si mesma diversa, como apontou Marcos Nobre:
“Nunca antes tinham confluído para uma única candidatura presidencial,
como ocorreu com a do capitão reformado do Exército, as figuras do
‘lava-jatismo’, do antipetismo, do antissistema, do voto nulo, do
abstencionismo, do conservadorismo de costumes, do desejo de ‘lei &
ordem’.” O perfil virtual quer converter em likes e seguidores os votos
recebidos pelo presidente no primeiro turno das eleições de 2018.
Pretende com isso estabelecer contato direto com sua base social
ampliada e servir como única fonte de informação, como único validador
da verdade.
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E
m cem dias de governo, Bolsonaro não se deslocou para o que
chamamos de direita bonapartista. Construir uma eventual direita
desse tipo seria muito mais realista e factível do que a estratégia
adotada até o momento por Bolsonaro. A direita bonapartista teria muito
mais chances de atrair para si a direita conservadora evangélica, a direita
liberal e as forças da direita tradicional (o antigo PFL), assim como uma
parcela da extrema direita. Mas Bolsonaro simplesmente se recusa a fazer
isso. Com o vácuo por ele criado, já existe quem queira ocupar esse lugar.
Penso, por exemplo, no Movimento Brasil Livre, protagonista das
manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff, que foi se
radicalizando e caminhou na direção da extrema direita, mobilizando-se
em peso pela eleição de Bolsonaro. Neste ano, entretanto, uma vez que
alguns de seus membros agora ocupam cargos legislativos, a entidade
reduziu seus flertes com Bolsonaro para se posicionar cada vez mais
nesse terreno vago entre a direita tradicional e a extrema direita. O MBL
continua apoiando o governo, mas vai construindo pouco a pouco uma
narrativa de diferenciação importante.
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O
governador de São Paulo, João Doria, é, dentre todas as lideranças
políticas, o mais bem posicionado para nadar de braçada na
avenida que Bolsonaro vai abrindo e que o mbl enuncia. Doria
mantém ativo o vínculo com o discurso de extrema direita, que ajudou a
elegê-lo. Em sua entrevista ao programa Roda Viva, em meados de abril,
deu mostras disso. Defendeu a atuação brutal da Polícia Militar, ao
mesmo tempo que condenou o armamento da população. Exibiu um
antipetismo visceral e violento e também marcou sua diferença com
relação a Bolsonaro, afirmando o óbvio ululante: houve um golpe militar
em 1964, e o que se seguiu foi uma ditadura. De quebra, fez acenos ao
centro, elogiando Fernando Henrique Cardoso. Sua atuação como
governante reflete esse deslocamento: montou um secretariado com
vários técnicos. Apesar de não ser um digital influencer como Bolsonaro,
tem grande familiaridade com as redes e cerca de 5 milhões de
seguidores nas três principais plataformas. Doria sabe manejar seu lado
perfil virtual e seu lado governador.
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