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DOSSIÊ RELAÇÕESREVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 20: 13-23 JUN.

2003
INTERNACIONAIS

GLOBALIZAÇÃO E
MACROSSOCIOLOGIA HISTÓRICA1

Giovanni Arrighi
The Johns Hopkins University

RESUMO

O artigo discute como o fenômeno que se convencionou chamar de “globalização” afetou e afeta dois
ramos da Macrossociologia Histórica – a Sociologia Histórica e Comparativa (SHC) e a Economia
Política dos Sistemas-Mundo (EPSM) –, ao mesmo tempo em que procura determinar os limites da
própria “globalização”. Inicialmente, indica-se que a globalização representa a constituição de um
sistema econômico mundial, em detrimento dos estados nacionais – o que reforçaria a EPSM e debilitaria
a SHC. Em seguida, procura-se indicar que as características da “globalização” justificam sua novidade:
a partir de uma perspectiva de longa duração, considera-se que estamos em um período de expansão
das relações econômicas em nível mundial, da mesma forma como em outras ocasiões no passado. O
artigo se encerra considerando que muitas das limitações da SHC e da EPSM devem-se à centralidade
que conferem ao construto caracteristicamente ocidental do Estado-nação, embora a atual onda de
globalização deva muito de sua importância à atividade de países não-ocidentais, em especial os do
Leste Asiático.
PALAVRAS-CHAVE: globalização; macrossociologia histórica; sistema-mundo; teorias sociais.

I. A GLOBALIZAÇÃO E SEUS CONTEÚDOS fonte de confusão no estudo da política econômica


global era o uso persistente do termo “imperialismo”
A história continuamente desordena o quadro
para designar tendências que eram substancial-
conceitual e as especulações teóricas com as quais
mente diferentes daquelas identificadas pelas
nos empenhamos em compreender o passado e
teorias clássicas do imperialismo, tanto a liberal
prognosticar o futuro do mundo em que vivemos.
como a marxista. Em uma crítica desse uso ana-
Em nossa tentativa de lidar com o “caos de julga-
crônico do termo, enfatizei como o estabelecimento
mentos existenciais” (na frase de Max Weber)
da hegemonia dos Estados Unidos depois da
engendrado por eventos e processos que desafiam
Segunda Guerra Mundial erodiu o verdadeiro
nossa compreensão do mundo, tendemos, em geral,
explicandum das teorias clássicas do imperialismo,
a negar ou a exagerar a novidade do que está
qual seja, a tendência da competição intercapitalista
ocorrendo. A recusa leva a mudanças no significado
transformar-se num estado aberto e generalizado
habitual das palavras; os exageros conduzem à
de guerra. A crescente tendência dos processos
cunhagem de novas palavras com significados
de acumulação de capital organizarem-se em
incertos. De qualquer modos, para parafrasear John
corporações multinacionais solapou o caráter
Ruggie (1994, p. 553), “tempos de mudança também
isolado e mutuamente exclusivo dos estados-nação
são tempos de confusão”.
que as teorias clássicas do imperialismo tinham
Há cerca de vinte ou trinta anos, a principal como premissa. Longe de conduzir os estados
capitalistas avançados a um processo de guerra
1 Publicado originalmente em Abu-Lughod (2000). Uma aberta e generalizada, pode-se esperar que essa
versão anterior deste artigo foi apresentado na Conferência tendência conduza-os rumo ao que o fundador das
da American Sociological Association-International teorias liberais do imperialismo, John Hobson,
Sociological Association, North American Conference, chamou de “federação experimental e progressiva”
“Millennial Milestone. The Heritage and Future of (ARRIGHI, 1978, p. 148ss.).
Sociology”, realizada em Toronto (Canadá), em agosto de
1997. Tradução: Marco Antonio Acco. Revisão técnica: João Vinte anos após isso ter sido escrito, o termo
Feres Jr. e Gustavo Biscaia de Lacerda. “imperialismo”, para todo propósito prático,

Recebido em 18 de setembro de 2002. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 20, p. 13-23, jun. 2003
Aceito em 17 de outubro de 2002.
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desapareceu do discurso sócio-científico, e o acompanhada pela ressurreição paralela das doutri-


problema não é mais o de uma teoria que perdeu nas largamente desacreditadas do mercado auto-
seu explicandum. Antes, ele é o problema de um regulado – que Karl Polanyi (1957, cap. 12-13), de
explicandum mal-definido (“globalização”), em modo muito sagaz, chamou de “credo liberal”. Com
busca de teorias capazes de dar sentido a tudo a expansão desse credo, os esforços vigorosos dos
aquilo que nos vem à mente com o uso desse termo. governos para regular a produção e a distribuição
Dado um significado incerto, essa busca deve da moeda global aplacaram-se, adicionando um
começar com um inventário dos processos que se novo momentum à desregulação e à reintegração
apresentam sob o nome de “globalização” e que global dos mercados financeiros. O sistema finan-
efetivamente merecem nossa atenção. ceiro que emergiu como um resultado dessa dupla
ressurreição não foi, de fato, mais “global” do que
Dentre esses processos, o mais amplamente
o precedente sistema de Bretton Woods. O termo
reconhecido é aquele a que me refiro em minha
globalização foi então introduzido primeiramente
crítica epistemológica das teorias do imperialismo:
para denotar “uma mudança de um sistema global
o crescente número e variedade de corporações
(hierarquicamente organizado e amplamente
cujas atividades de busca do lucro não são contidas
controlado politicamente pelos Estados Unidos)
pelas fronteiras dos estados nacionais. A idéia de
para um outro sistema mais descentralizado e
que a emergência de um sistema de corporações
coordenado pelo mercado, tornando as condições
multinacionais debilita o poder dos estados – não
financeiras do capitalismo largamente mais voláteis
apenas dos estados menores e mais fracos que
e instáveis” (HARVEY, 1995, p. 8).
nunca tiveram muito poder, mas também dos
estados grandes e fortes – tem circulado com David Harvey confessa que em seus momentos
freqüência desde que Charles Kindleberger (1969, de maior ceticismo ficou se perguntando se “a
cap. 6) declarou que essa emergência transformou imprensa financeira [...] induziu-nos [...] a acreditar
o Estado-nação em “uma unidade simplesmente na ‘globalização’ como algo novo, quando ela nada
econômica”. Somente cerca de vinte anos depois, mais era do que um truque promocional para fazer
contudo, é que essa idéia, assim como outras, foi um ajuste necessário no sistema financeiro inter-
reciclada sob o novo nome de globalização. nacional da melhor maneira” (ibidem). Truque ou
não, a idéia da globalização foi, desde o início,
O que aconteceu nesses vinte anos é que o
articulada com a idéia da intensa competição
crescimento do sistema de corporações multina-
interestatal pelos capitais crescentemente voláteis,
cionais detonou outros dois processos, que adqui-
e a conseqüente subordinação rígida da maior parte
riram relevância por si próprios, e que deram cre-
dos estados (inclusive dos Estados Unidos) aos
dibilidade à idéia de que existe somente um
ditames das agências capitalistas privadas. Globa-
“mercado econômico global” único e indivisível .
lização pode ser um termo enganoso utilizado para
O primeiro desses processos tornou-se conhecido
denotar a mudança de um sistema financeiro glo-
como “globalização financeira” e o outro corres-
bal controlado por uma hierarquia de agências
pondeu à revivificação das doutrinas neo-utili-
governamentais lideradas pelos Estados Unidos
taristas do Estado mínimo. Em decorrência da
para um sistema financeiro igualmente global, no
Grande Depressão dos anos 1930 e da Segunda
qual os governos têm pouco controle sobre suas
Guerra Mundial, os mercados financeiros tornaram-
finanças e competem duramente entre si para obter
se nacionalmente segmentados e regulamentados
favores e assistência do capital controlado privada-
pelo poder público nacional. A expressão “globa-
mente. Mas, independentemente de querermos ou
lização financeira” passou a ser utilizada para
não conservar o termo, dificilmente poderemos dar
denotar o processo de reintegração desses merca-
sentido ao que aconteceu no mundo nos últimos
dos num mercado global único e amplamente
vinte ou trinta anos sem darmos muita atenção a
desregulado. Como um resultado dessas reinte-
essa mudança em andamento.
gração e desregulação, o segmento financeiro
privado global – as “altas finanças”, com era Toda essa atenção é justificada tendo em vista
conhecido no século XIX – “como uma Fênix, o fato de que a mudança tem sido associada a dois
renasceu das cinzas [...] voou e elevou-se a novas ou três outros eventos que marcaram nossa época:
alturas do poder e influência nos assuntos das a repentina derrocada da União Soviética como uma
nações” (COHEN, 1996, p. 268). das duas superpotências militares globais, e –
embora mais gradual, mas mesmo assim extraordi-
Essa ressurreição das altas finanças globais foi

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nariamente rápida – a ascensão do Leste Asiático analisá-los em busca de generalizações sobre suas
como uma potência industrial e financeira de propriedades e de princípios de variação entre casos
significado global. Tomados conjuntamente, os em diferentes espaços e períodos. Em contraste,
dois eventos provêem evidência adicional em apoio os intelectuais da EPSM tomaram tipicamente os
à percepção de que as fontes de riqueza, status e sistemas de estados agrupados por uma única divi-
poder no mundo contemporâneo estão passando são de trabalho como sua unidade privilegiada de
por algumas mudanças fundamentais. análise, e procuraram analisá-los em busca de gene-
ralizações sobre interdependências entre os compo-
De um lado, o colapso repentino da União
nentes de um sistema e de princípios de variação
Soviética demonstrou, para além de qualquer
entre condições sistêmicas em diferentes espaços
dúvida, o que já estava implícito no movimento
e tempos. Muito poucos indivíduos cruzaram as
largamente mais gradual e limitado de enfra-
fronteiras metodológicas. Em geral, os principais
quecimento dos Estados Unidos na esfera finan-
conceitos das duas macrossociologias históricas
ceira, ou seja, o quão vulneráveis se tornaram
desenvolveram-se quase em completo isolamento,
mesmo os maiores complexos industrial-militares
e sem muita consciência do fato de que diferentes
na história mundial diante das forças da integração
problemas requerem diferentes unidades de análise.
econômica global. De outro lado, a despeito dos
recentes reveses, a extraordinária expansão econô- À primeira vista, pode parecer que a globalização
mica da Ásia Oriental tem demonstrado que as forças tem desafiado mais fundamentalmente a Sociologia
de integração global não necessariamente enfra- Histórica Comparativa do que a Economia Política
quecem os estados e que os estados que têm dos sistemas-mundo. Não estaria a globalização
experimentado maior fortalecimento não se ajustam dissolvendo a coerência e a independência dos
à imagem predominante dos estados-nação. Alguns Estados, premissas básicas da macrossociologia
são cidades-Estado – um é soberano (Singapura) e da SHC? Não estaria ela trazendo à atenção de
outro é semi-soberano (Hong Kong). Outros são todos a interconexão transnacional dos processos
protetorados militares semi-soberanos dos Estados de formação do Estado e de acumulação de capital,
Unidos – Japão, Coréia do Sul e Taiwan –, como sobre as quais a macrossociologia da EPSM
Bruce Cuming caracterizou-os. E nenhum deles têm fundamenta-se?
maior relevância militar, além de serem distantes
Compreensivelmente, os intelectuais da EPSM
dos tradicionais centros do mundo Ocidental.
não se constrangem ao fazer assertivas do seguinte
Novamente, “globalização” pode ser uma designa-
tipo “hoje em dia, as expressões ‘economia mundial’,
ção incorreta para os que está ocorrendo. Mas a
‘mercado mundial’, e mesmo ‘sistemas- mundo’ são
mudança expressiva que o uso do termo pretende
lugares comuns, aparecendo igualmente nas con-
expressar apresenta sérios desafios para os modos
versas de políticos, comentaristas dos meios de
estabelecidos de pensar o mundo.
comunicação e de trabalhadores desempregados.
II. A MACROSSOCIOLOGIA HISTÓRICA EN- Mas poucos sabem que as fontes mais importantes
CONTRA A GLOBALIZAÇÃO dessas frases ligam-se ao trabalho iniciado por
sociólogos no começo dos anos 1970 [...]. Esses
No mesmo período em que a globalização
sociólogos [do sistema-mundo] não apenas fizeram
transformou o mundo, a macrossociologia norte-
perceber a natureza global das redes econômicas
americana foi transformada pela emergência de duas
vinte anos antes que tais redes adentrassem o
novas escolas de pensamento, uma organizada
discurso popular, mas também notaram que muitas
primeiramente na seção Sociologia Histórica e
dessas redes estão presentes nos últimos 500 anos
Comparativa (doravante SHC), e a outra na seção
da história. Ao longo desse tempo, os povos do
Economia Política dos Sistemas-Mundo (doravan-
globo tornaram-se interligados numa unidade inte-
te EPSM), da Associação Americana de Sociologia.
grada: o ‘sistema mundial’ moderno” (CHASE-
As duas escolas buscam mobilizar o conhecimento
DUNN & GRIMES, 1995, p. 387-388; cf. também
histórico para a solução de problemas macro-socio-
FRIEDMAN, 1996, p. 319).
lógicos, mas divergem radicalmente no modo como
definem seus campos de estudo. Compreensivelmente, os intelectuais do SHC
são mais relutantes em reconhecer os problemas
Sob o mote “trazendo o Estado de volta”, os
que a globalização coloca para sua unidade privi-
intelectuais da SHC tomaram os estados como suas
legiada de análise. Ao revisitar o campo de análise
unidades privilegiadas de análise, e procuraram

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comparativa das revoluções sociais quinze anos zação política e econômica ocorreram dessa
após a publicação de seu influente estudo sobre o maneira. Primeiro, no século XIII, quando a
assunto, Theda Skocpol (1994) não menciona a formação do Império Mongol criou as condições
globalização como um movimento que está criando para a emergência do sistema de comércio mundial
(ou não) problemas para o método de análise cen- afro-euroasiático, analisado em detalhe por Janet
trado no Estado, do qual ela tem sido um dos mais Abu-Lughod (1989). Segundo, no século XVI,
vigorosos defensores. Peter Evans, outro proe- “quando a expansão comercial e militar européia
minente intelectual dessa corrente teórica, con- ligou o Oceano Índico ao Caribe por meio de uma
frontou o revigoramento das teorias neo-utili- densa rede de trocas e de dominação”. E, terceiro,
taristas do Estado mínimo, mas somente para reiterar no século XIX, “quando um impulso imperialista
a centralidade do Estado no desenvolvimento eco- colocou 4/5 dos territórios mundiais sob o domínio
nômico e na análise macro-sociológica (EVANS, dos povos europeus” (TILLY, 1995b, p. 1-2).
1995; KOHLI, 1995).
Tilly prossegue em sua argumentação e
Ambas as teses – a de que a globalização tem relaciona nove itens que lhe parecem indicar fortes
demonstrado a validade da macrossociologia da evidências circunstanciais de que podemos estar
EPSM, ou a de que ela não tem minado a validade no meio de uma nova onda de globalização. Em sua
da macrossociologia da SHC – são, em muitos subseqüente discussão a respeito dos efeitos
sentidos, justificadas. Não obstante, cada uma dessa nova onda sobre os direitos dos trabalha-
dessas teses também foi contestada dentro da dores, ele compara o impacto sobre as capacidades
própria escola que a formulou. Longe de saudar a que os estados detêm na presente onda com as
popularidade da terminologia dos sistemas-mundo, que os estados detinham na anterior. Durante a
Immanuel Wallerstein advertiu seus colegas da onda do século XIX, isso é, a partir de 1850, os
macrossociologia da Economia Política dos Siste- estados (na verdade, os estados da Europa e outros
mas-Mundo que essa apropriação semântica, estados ocidentais nos quais a argumentação de
quando feita “para outros propósitos, efetivamente Tilly baseia-se) adquiriram instrumentos efetivos
opostos [àqueles da análise dos sistemas-mundo] de promoção da inovação tecnológica, emprego,
[...] pode provocar sérias confusões no público aca- investimento e oferta de moeda, agindo mais
dêmico geral, e, ainda pior, pode levar-nos à con- vigorosamente no monitoramento e controle da
fusão, minando nossa capacidade de perseguir as acumulação, movimento e transferência de capital,
tarefas a que nos propomos” (WALLERSTEIN, mercadorias, pessoas e idéias no interior e através
1998, p. 108). Charles Tilly, de sua parte, advertiu das fronteiras nacionais. Na presente onda, entre-
seus colegas da macrossociologia da Sociologia tanto, os estados estão perdendo a capacidade de
Histórica e Comparativa que a globalização esta- monitorar e controlar tais estoques e fluxos, e, em
belece uma séria ameaça ao seu método privilegiado conseqüência, de adotar políticas sociais efetivas.
de análise porque “o sistema de estados distintos, “Corporações multinacionais, sindicatos de bancos
delimitados e soberanos, que tem há tempos servido internacionais e grandes organizações criminosas,
como seu fundamento implícito, está desinte- assim como tratados multinacionais, como a União
grando-se rapidamente” (TILLY, 1995a, p. 3-4). Européia, estão coordenando algumas dessas
mudanças” (idem, p. 14-18).
Mais importante ainda, como um recente
debate entre Tilly e Wallerstein demonstra, cada Em sua resposta, Wallerstein argumenta não ter
variante da macrossociologia histórica tem seus maiores discordâncias a respeito do quadro geral
próprios pontos cegos e também aspectos que descrito por Tilly, exceto no que se refere a duas
lançam luz no reconhecimento da globalização questões. Primeiro, ele rejeita a idéia de que “a
como um problema macro-sociológico digno de ascensão de organizações supranacionais pode-
atenção. No artigo em que incitou o debate, Tilly rosas, que não correspondem apenas às corpo-
define a globalização como “um aumento na rações transnacionais, está na origem do declínio
abrangência geográfica das interações sociais do Estado forte”. Em sua concepção, organizações
localmente relevantes, especialmente quando esse supranacionais poderosas como o FMI existem
aumento estende uma proporção significante de porque estados poderosos dão-lhes apoio. Mais
todas as interações entre as fronteiras internacionais importante, “as corporações transnacionais man-
e intercontinentais”. Ele sugere que, ao longo do têm atualmente a mesma posição estrutural em
último milênio, pelo menos três ondas de globali- relação aos estados como fizeram todas suas

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predecessoras globais, de Fuggers, passando pela abranja séculos e não apenas décadas. Essa con-
Companhia Holandesa das Índias Orientais aos cordância constitui em si uma importante base
industriais de Manchester no século XIX. Todas comum sobre a qual as duas variantes da ma-
precisam dos estados e combatem os estados. As crossociologia histórica podem juntar forças para
corporações transnacionais precisam dos estados conferir sentido à atual onda de globalização.
para garantir seus esforços globais para a obtenção
Igualmente promissora é a reversão dos papéis
do monopólio, e, conseqüentemente, de taxas de
evidenciados por este debate. Tilly, cuja ma-
lucro elevadas, como também para ajudá-las a limitar
crossociologia histórica tem sido diretamente
as demandas dos trabalhadores. Elas combatem os
baseada nos estados nacionais como unidades
estados na medida em que esses agem como prote-
privilegiadas de análise, toma as instituições emer-
tores de interesses antiquados ou respondem posi-
gentes do capitalismo mundial tão seriamente a
tivamente às pressões dos trabalhadores. No to-
ponto de descartar a importância continuada dos
cante a essa relação, não vejo nada de fundamen-
estados nacionais como agentes dinamizadores do
talmente novo em 1994, em relação a 1894, 1794, ou
mundo contemporâneo. Wallerstein, cuja ma-
mesmo de 1594. Sim, hoje existem aparelhos de fax,
crossociologia histórica tem sido diretamente
que são mais rápidos que as linhas telegráficas ou
assentada no sistema capitalista mundial como
mensageiros. Mas o processo econômico básico
unidade privilegiada de análise, sustenta a impor-
permanece o mesmo. [...] O que tem mudado nos
tância continuada dos estados nacionais a ponto
últimos tempos não é a economia do sistema-mundo
de desconsiderar a novidade das instituições emer-
mas a sua política” (Wallerstein apud TILLY, 1995b,
gentes do capitalismo mundial. Não devemos
p. 24-25).
exagerar essa inversão, pois Charles Tilly há muito
Isso conduz Wallerstein à sua segunda discor- tempo já está ciente da importância do capitalismo
dância principal com Tilly. Segundo Wallerstein, a mundial nos processos de constituição dos estados
redução do Estado iniciada por Thatcher e Reagan e Wallerstein sempre atribuiu relevância aos esta-
não foi uma reação à decrescente efetividade da dos nacionais na formação e expansão do capita-
ação estatal num contexto de proliferação de orga- lismo mundial – diga-se de passagem, uma impor-
nizações supranacionais e transnacionais, como tância maior da que, penso eu, os estados merecem.
argumenta Tilly. Antes, foi uma reação à “crescente Dado isso, a inversão pode ainda ser tomada como
efetividade da redistribuição induzida pelo Estado evidência de uma brecha potencial na barreira
que visou a tentar diminuir o Estado e deslegitimar metodológica que há tempos mantém distantes os
a redistribuição. [...] Isso aconteceu não por que intelectuais da Sociologia Histórica e Comparativa
os estados estavam desperdiçando dinheiro, mas de seus colegas da Economia Política dos Sistemas-
sim porque eles estavam simplesmente gastando Mundo.
muito”. E eles gastavam muito porque “as de-
III. DANDO SENTIDO À GLOBALIZAÇÃO
mandas combinadas do Terceiro Mundo (relati-
vamente pouco por pessoa, mas para muitas pes- Ao procurar dar sentido à globalização e obter
soas) e da classe trabalhadora ocidental (relati- algum discernimento sobre os possíveis e prová-
vamente poucas pessoas, mas um apreciável mon- veis resultados dos processos e eventos inter-rela-
tante por pessoa)” excedeu em muito o que o capi- cionados que seguem sob este nome, precisamos
talismo mundial poderia prover (idem, p. 25-26). reconhecer três coisas. Primeiro precisamos iden-
tificar o que é verdadeiramente novo na presente
Como veremos na próxima seção, a primeira
onda de globalização em relação às ondas ante-
discordância de Wallerstein com Tilly identifica
riores. Segundo, precisamos saber se as novidades
formulações teóricas que a EPSM precisa repensar,
genuínas, se existem, podem ser inscritas em algum
enquanto a segunda aponta para uma direção em
padrão evolutivo detectado na seqüência das
que a SHC é quem tem mais a repensar. Antes de
ondas de globalização. E, finalmente, precisamos
fazer essa exposição, contudo, que me seja permitido
descobrir se e como as novidades que não são aí
mencionar que esses desacordos emergem no con-
devidamente inscritas podem levar a um afasta-
texto de uma concordância básica sobre a avaliação
mento dos padrões de recorrência e evolução verifi-
de que a globalização não é um fenômeno sem
cados no passado.
precedentes como vários observadores pensam, e
de que uma compreensão dos seus significados e Em minha tentativa de resposta a essas ques-
perspectivas requer um horizonte temporal que tões, enfocarei três problemas que me parecem rogar

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por uma reavaliação profunda dos elementos de se lucrativa pela intensificação da competição
cada uma ou de ambas as variantes da macrosso- interestatal pelo capital volátil. Exceto com relação
ciologia histórica. As duas primeiras questões cor- à escala e ao escopo da competição e à velocidade
respondem às discordâncias entre Wallerstein e dos meios técnicos utilizados nas transações, o
Tilly – isto é, primeiro, se a posição estrutural das processo político-econômico básico a esse respeito
organizações privadas líderes do capitalismo mun- é o mesmo no final do século XX como era um,
dial em relação aos estados é, hoje em dia, a mesma dois, três, quatro, ou mesmo seis séculos atrás.
daquela observada desde o século XVI e, segundo,
Expansões financeiras, contudo, não são a
se a verdadeira novidade da atual onda de globa-
expressão de uma relação estrutural invariável entre
lização é a dificuldade que as instituições domi-
estados e capital. Ao contrário, elas sinalizam o
nantes do capitalismo mundial enfrentam para aco-
início de uma reestruturação fundamental dessa
modar as demandas combinadas do Terceiro Mun-
relação. Elas são, nas palavras de Fernand Braudel,
do e das classes trabalhadoras do Ocidente. A ter-
um “sinal do outono” dos principais desenvolvi-
ceira questão aparece apenas de maneira marginal
mentos capitalistas (BRAUDEL, 1984, p. 246). Elas
na contribuição de Tilly à controvérsia, e está au-
correspondem à “estação” em que as organizações
sente da resposta de Wallerstein, mas é prova-
centrais líderes do capitalismo mundial colhem os
velmente a mais importante: trata-se da questão
frutos da sua liderança e, ao mesmo tempo, come-
estabelecida pelo aparente deslocamento do epi-
çam a ser deslocadas dos altos comandos do capi-
centro da economia global para o Leste Asiático,
talismo mundial por uma nova liderança. Assim,
onde, conforme a lista de Tilly, ele manteve-se
durante a expansão financeira liderada por Gênova
durante a primeira onda de globalização.
na segunda metade do século XVI, cidades-Estado
Para resolver a primeira questão, os macro- como Veneza e empresas transnacionais dispersa-
sociólogos da EPSM devem estar preparados para ram-se na medida em que Gênova foi perdendo
repensar aquilo que muitos deles consideram a gradualmente sua centra))lidade nos processos de
quintessência da teoria dos sistemas-mundo, qual acumulação de capital em escala mundial. Com o
seja, a idéia de que, a despeito de sua extraordinária passar do tempo, seu lugar foi tomado por um pro-
expansão geográfica, as estruturas do sistema capi- toestado-nação (as Províncias Unidas) e as suas
talista mundial permanecem mais ou menos as mes- empresas autorizadas perderam a posição central
mas desde foram inicialmente identificadas no “lon- no curso da expansão financeira liderada pela
go” século XVI. Essa foi uma hipótese de trabalho Holanda no século XVIII. O Estado-nação britânico
bastante útil nos estágios de formação da ma- tornou-se, então, o novo centro organizador, cons-
crossociologia da EPSM. Contudo, quanto mais tituído por um império formal e suas redes informais
trabalho com ela, mais me convenço de que não se de negócios de abrangência mundial. Mas, assim
sustenta perante a evidência empírico-histórica e, que essas instituições governamentais e empresa-
ainda pior, impede-nos de chegar ao coração da riais experimentaram seu próprio apogeu durante
dinâmica capitalista, tanto no passado quanto no a expansão financeira conduzida pela Grã-Bretanha,
presente. no final do século XIX e início do século XX, elas
também começaram a ser deslocadas do comando
Como argumentei e documentei em outra opor-
do capitalismo mundial pelos Estados Unidos, com
tunidade (ARRIGHI, 1994), podemos detectar de
sua panóplia de corporações multinacionais e sua
fato um padrão de recorrência nas relações Estado-
rede de longo alcance de bases militares quase-
capital desde os estágios iniciais de formação do
permanentes (ARRIGHI, 1994, p. 13-16, 74-84,
sistema capitalista mundial até o presente. Esse
235-238, 330-331).
padrão consiste nas recorrentes expansões finan-
ceiras, no curso das quais as organizações capita- Nessa seqüência, a recorrente emergência de
listas líderes em cada período tendem a retirar uma novos complexos de agências governamentais e
crescente proporção das entradas de recursos do empresariais líderes que são mais poderosas, militar
seu fluxo de caixa das operações de comércio e e financeiramente, do que os complexos que elas
produção e passam a reorientar suas atividades superam constitui o aspecto central da expansão
para operações de crédito, empréstimo e especu- do capitalismo mundial, desde o seu modesto início
lação. Em todas as expansões financeiras – da na Europa, no final do período medieval, até os
Florença renascentista à Era Reagan – a guinada dias atuais, com suas dimensões completamente
do comércio e da produção para as finanças tornou- globalizadas. A emergência das corporações multi-

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nacionais como componentes centrais do comparavelmente maior devido à sua transterrito-


complexo norte-americano tem sido parte desse rialidade e à especialização funcional em uma eco-
padrão. Mas a questão estabelecida por Tilly é se, nomia mundial grandemente expandida. Além dis-
no curso atual de expansão financeira liderada so, seu número cresceu muito rapidamente nos
pelos Estados Unidos, elas têm-se tornado uma últimos anos – de acordo com algumas estimati-
força que mina ao invés de fornecer apoio à vas, de cerca de 10 000 nos anos 1980 para mais
capacidade do Estado, inclusive à norte-americana. de 30 000 no início dos anos 1990 (STOPFORD
& DUNNING, 1983, p. 3; IKEDA, 1996, p. 48).
A maneira mais adequada de se esclarecer essa
Originalmente, essa nova espécie de corporação
questão é por meio de uma comparação entre as
de negócios desempenhou um papel na
corporações multinacionais e seus antepassados
manutenção e expansão do poder global dos
mais próximos na história capitalista, as companhias
Estados Unidos que não foi diferente daquele
licenciadas de capital aberto [joint-stock chartered
desempenhado pelas companhias autorizadas nos
companies] dos séculos XVII e XVIII. Nessa
séculos XVII e XVIII em relação aos poderes
comparação, duas diferenças são imediatamente
britânico e holandês (GILPIN, 1975, p. 141-142).
aparentes. Primeiro, enquanto as companhias
Contudo, sua proliferação logo se voltou contra o
licenciadas de capital aberto eram organizações
poderio norte-americano. Isso aconteceu
meio privadas, meio governamentais, especializadas
exatamente quando o governo norte-americano
territorialmente na monopolização de oportunida-
mais necessitou de “cortar” o domínio que as
des comerciais no mundo não-europeu, que defen-
empresas multinacionais tinham estabelecido sobre
diam os interesses dos governos que as licen-
as rendas e os recursos estrangeiros – neste
ciavam, as corporações multinacionais são orga-
período, ou seja, quando a crise fiscal do “Estado
nizações estritamente privadas que se especializam
de guerra-bem estar” norte-americano tornou-se
funcionalmente em operações através das fronteiras
crítica sob o impacto da guerra do Vietnã e do
dos estados soberanos. Segundo, enquanto as
movimento pelos direitos civis nos Estados
companhias licenciadas de capital aberto depen-
Unidos. Na medida em que a crise aprofundou-
diam para a sua existência de privilégios comerciais
se, uma proporção crescente dos recursos obtidos
exclusivos assegurados por seus governos metro-
no exterior pelas corporações norte-americanas
politanos, as corporações multinacionais têm se
migrou para mercados monetários off-shore
estabelecido e reproduzido primariamente com base
(“paraísos fiscais”), ao invés de serem repatriadas,
na competitividade das suas hierarquias gerenciais.
precipitando o colapso do sistema de Bretton
Tomadas conjuntamente, essas duas diferenças Woods controlado pelos Estados Unidos (ARRI-
moldaram o desenvolvimento de dois tipos de capi- GHI, 1994, p. 300-308).
talismo corporativo ao longo de duas sendas opos-
Em resumo, matizando Wallerstein, existem
tas, na medida em que se consideram suas respec-
inúmeras evidências para sustentar a argumentação
tivas relações com os estados ocidentais. Em decor-
desenvolvida por Tilly de que a expansão em
rência da sua exclusividade e especialização terri-
andamento do número e da variedade das corpora-
torial, o número de companhias licenciadas de capi-
ções multinacionais constitui uma novidade nas
tal aberto viáveis de qualquer nacionalidade sempre
relações Estado-capital. Se as corporações multi-
foi pequeno (provavelmente não mais do que uma
nacionais “necessitam” ou não dos estados como
dúzia, em qualquer período considerado), e todas
as suas predecessoras (em muitos aspectos elas
foram e mantiveram-se como um instrumento dos
indubitavelmente necessitam), o resultado não-
estados europeus no mundo não-europeu, em um
intencional de sua proliferação é o enfraque-
período em que os estados europeus eram ainda
cimento dos estados do Ocidente, em nítido con-
fracos para os padrões globais. Embora a maioria
traste com o seu fortalecimento antes e durante a
delas não tenha conseguido realizar muito, a he-
onda de globalização do século XIX. Não obstante,
rança imperial deixada pela Companhia Inglesa das
não se pode deduzir disso que tal enfraquecimento
Índias Orientais, por exemplo, tornou-se um fator
tem sido a principal força por trás da ofensiva contra
decisivo na expansão global da Grã-Bretanha e no
os direitos dos trabalhadores iniciada com a rea-
domínio ocidental no século XIX.
bilitação das doutrinas neo-utilitaristas e do Estado
O número de corporações multinacionais que mínimo promovida por Thatcher e Reagan. Ao
operam sob a hegemonia norte-americana é in- contrário, sobre essa segunda questão é a argu-

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GLOBALIZAÇÃO E MACROSSOCIOLOGIA HISTÓRICA

mentação de Tilly, antes que a de Wallerstein, que TEIN, 1989).


não resiste à crítica empírico-histórica, e é a ma-
Finalmente, a despeito de sua retórica de estado
crossociologia da Sociologia Histórica e Compara-
minimalista, a resposta de Thatcher e Reagan à
tiva, antes que a da Economia Política dos sistemas-
crise dos anos 1970 não foi a de “diminuir o Esta-
mundo, que tem mais coisas a repensar. A mim pa-
do” em reação à “efetividade declinante da ação
rece que existem três principais considerações que
estatal”, como argumenta Tilly. Longe do encolhi-
inclinam a balança das evidências contra Tilly.
mento, o governo norte-americano sob o comando
Primeiro, a revivificação das doutrinas neo- de Reagan acumulou um déficit nacional maior
utilitaristas não pode ser atribuída a uma inovação do que em qualquer outro período da história
do final do século XX precisamente porque ela é norte-americana, e é esse déficit, mais do que qual-
uma revivificação. Ainda mais, ela é uma revi- quer outra coisa, que hoje em dia ata as mãos do
vificação de doutrinas que inicialmente se tornaram governo norte-americano, interna e globalmente.
hegemônicas no mundo ocidental na segunda A principal investida na resposta da dupla
metade do século XIX – em um período em que, Thatcher-Reagan foi fazer uso de um Estado
pelo próprio relato de Tilly, os estados ocidentais inchado para esvaziar o poder social dos
experimentavam um fortalecimento e não um enfra- trabalhadores do Primeiro Mundo e dos povos do
quecimento. E, por fim, há cem anos essas doutrinas Terceiro Mundo, numa tentativa de reconquistar
não foram – e tampouco os trabalhadores perce- a confiança e o apoio de um capital crescentemente
beram-nas desta forma – um ataque aos seus direi- transnacional e volátil. A tentativa foi largamente
tos e à suas condições de vida, como evidenciado bem-sucedida, mas ao custo de uma cisão maior
pelo apoio que a classe trabalhadora britânica deu que a deixada pela ordem mundial da Guerra Fria.
ao livre-comércio unilateral da Grã-Bretanha. Tal cisão incluiu a proliferação de formas de guerra
Claramente, ou o credo neoliberal revivido nos anos envolvendo forças outras que as disciplinadas
1980 significa algo completamente diferente do que forças armadas nacionais – uma proliferação que
significou cem anos atrás, ou a revivificação não Tilly corretamente identifica entre os mais
pode ser atribuída às circunstâncias históricas (um importantes sinais do enfraquecimento geral da
enfraquecimento dos estados ocidentais) que hoje capacidade do Estado (ARRIGHI, 1994, Epilogue;
são o oposto do que elas foram há um século. TILLY, 1995b, p. 17-18).
Segundo, o fluxo maciço de capitais para os Em suma, a ofensiva contra os direitos dos
mercados financeiros extraterritoriais que, no final trabalhadores que tem caracterizado a presente onda
dos anos 1960, iniciou a desintegração do sistema de globalização está enraizada em circunstâncias
de Bretton Woods controlado pelos Estados Uni- históricas mundiais que são radicalmente diferentes
dos, aconteceu num contexto de demandas cres- daquelas da onda de globalização do século XIX.
centes por elevado consumo de massa no Primeiro Embora a presença de um número amplo e crescente
Mundo e por autodeterminação nacional e desen- de tipos variados de corporações multinacionais
volvimento no Terceiro Mundo. Ao liderar o fluxo, constitua uma das circunstâncias diferentes, não é
as corporações multinacionais expressavam um essa a diferença que induz à ofensiva. Com o
voto de não-confiança na capacidade dos Estados objetivo de entender essa ofensiva e suas conse-
Unidos e de seus aliados europeus para evitar que qüências prospectivas, devemos enfocar as dife-
essas demandas combinadas minassem seriamente renças nas relações de poder não entre os estados
a lucratividade de suas operações globais. O resul- e o capital, mas entre os estados ocidentais e os
tado não-intencional desse voto de desconfiança povos não-ocidentais. Devemos enfocar o fato de
foi um enfraquecimento ainda maior daquela capa- que na onda de globalização do século XIX, o poder
cidade e uma conseqüente percepção generalizada dos estados ocidentais em relação aos povos não-
de que a ordem mundial norte-americana estava ocidentais era alto e ainda ascendente, enquanto
numa crise séria. Na maior parte dos anos 1970, na presente onda ele é menor e declinante.
contudo, a força dominante na dinâmica da crise
Essa é uma diferença para que a ma-
continuaram sendo os movimentos sociais do Pri-
crossociologia SHC não está bem preparada para
meiro e do Terceiro Mundos, que procuraram liberar-
lidar, a não ser que esteja disposta a fazer sua
se das promessas de um New Deal global, implícito
própria parcela de reformulação. Todo o seu
na ordem mundial norte-americana (cf. ARRIGHI,
programa de pesquisa tem sido construído sobre a
1982; 1994; ARRIGHI, HOPKINS & WALLERS-
premissa de que os estados – inclusive, e espe-

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 20: 13-23 JUN. 2003

cialmente, os estados europeus, que têm cons- O que aconteceu desde então é que os estados
tituído o seu objeto de interesse predominante – europeus conquistaram gradualmente o mundo e
são unidades distintas e delimitadas, cujas pro- transformaram-no num sistema novo, denso e
priedades são primeiramente determinadas pelo que fortemente centrado na Europa. Embora o centro
acontece no interior deles ou, no máximo, por sua desse sistema expansivo tenha “migrado” de país
competição mútua. Embora útil para a identificação para país e finalmente para a América do Norte,
das propriedades comuns e das variações entre os “ele permaneceu dentro de uma zona cultural
estados em diferentes espaços e períodos, essa comum, que excluiu os poderes africanos, latino-
premissa tem tornado a macrossociologia da SHC americanos e asiáticos. E mesmo que as instituições
alheia a dois dos fatos mais fundamentais da for- econômicas e políticas do centro passaram por
mação dos estados na Era Moderna: primeiro, que transformações significativas, elas permaneceram
em toda a era moderna as relações de poder dentro dentro de uma tradição culturalmente ocidental”.
e entre os estados ocidentais têm sido comple- As Ciências Sociais têm sido parte dessa tradição
tamente moldadas pelas relações de poder entre os e tornaram-se tão obcecadas em “estudar a persis-
estados ocidentais e o mundo não-ocidental, e, tência e evolução do sistema mundial ‘moderno’
segundo, aquilo em que os estados, ocidentais e que estamos despreparados para compreender que
não-ocidentais, têm se tornado é, em grande aquilo que nós percebemos pode ser sua ruptura
medida, o resultado de um processo da violenta ou, pelo menos, sua transformação radical” (ABU-
conquista do mundo pelos estados europeus. Esse LUGHOD, 1990, p. 281-282).
processo materializou-se de forma mais evidente
A percepção de que algo radical pode estar
na segunda e terceira ondas de globalização,
acontecendo nessa direção é obscurecido pelo fato
conforme descritas por Tilly, e a sua reversão é
de que “muitas das colônias antigas da Europa na
responsável pelas especificidades mais importantes
África e no Oriente Médio, depois de conquistar
da presente onda. Como podemos fazer alguma
sua independência na esteira da Segunda Guerra
idéia da onda de globalização liderada pela Grã-
Mundial, foram verdadeiramente degradadas dentro
Bretanha no século XIX sem enfocarmos a relação
do sistema mundial” (ABU-LUGHOD, 1989, p. 370).
entre a Grã-Bretanha e o seu Império Indiano? E, ao
Depois que isso foi escrito, a percepção tornou-se
contrário, será que muitos dos problemas enfren-
ainda mais turva pelo autoproclamado “triunfo do
tados pelos Estados Unidos na atual onda de glo-
Ocidente” na Guerra Fria – uma assertiva que
balização não decorrem do fato de que, diferen-
esquece que a União das Repúblicas Socialistas
temente da Grã-Bretanha na onda de globalização
Soviéticas não foi menos integrante da tradição
do século XIX, os EUA não dispõem de um Império
cultural ocidental que os Estados Unidos da Amé-
Indiano para cobrir seus déficits no balanço de
rica, e que a Guerra Fria foi primeiramente uma
pagamentos e para fornecer a mão-de-obra militar
guerra civil ocidental. Contudo, como previamente
de que necessita para policiar o mundo?
indicado, o esvaziamento do poder de muitos
IV. EPÍLOGO estados não-ocidentais, e a maior concentração de
recursos de poder no Ocidente histórico, tem sido
Permitam-me concluir indicando uma questão
acompanhado pelo fortalecimento econômico de
final que o debate entre Tilly e Wallerstein não
estados muito distantes dos centros de poder tra-
estabeleceu, mas que é provavelmente a questão
dicionais do Ocidente, numa escala sem preceden-
mais crítica para uma adequada compreensão das
tes na Era Moderna. Esse fortalecimento está ainda
conseqüências prospectivas da atual onda de glo-
cercado por muitas incertezas, como evidenciado
balização. Essa questão aparece com destaque no
pela crise financeira em andamento na Ásia Oriental.
recente livro de André Gunder Frank (1998), e foi
Contudo, crises desse tipo têm sido típicas em to-
abordada primeiramente dentro da macrossocio-
dos os centros emergentes do capitalismo mundial,
logia da EPSM por Janet Abu-Lughod em seu es-
incluindo os Estados Unidos durante e depois da
tudo sobre aquela que na relação de Tilly é a primeira
crise de 1929-1931 (ARRIGHI & SILVER, 1999).
onda de globalização do milênio passado. Nas
páginas conclusivas de seu livro, a autora sugere Como a própria Abu-Lughod sugere, apesar de
que a onda de globalização do século XIII, vaga e embrionária, essa mudança pode bem ser um sinal
tênue como foi, pode ser tão importante para a de que “as antigas vantagens que sustentam a
compreensão do nosso futuro como aquilo que a hegemonia do Ocidente estão se dissipando”
sucedeu (ABU-LUGHOD, 1989, p. 369-372). (ABU-LUGHOD, 1989, p. 370-371). Embora a

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GLOBALIZAÇÃO E MACROSSOCIOLOGIA HISTÓRICA

centralização dos meios de destruição em massa (ARRIGHI, 1994, Epilogue). Nessas circunstân-
nas mãos dos Estados Unidos seja algo sem cias, para parafrasear Adu-Lughod (1989, p. 371),
precedentes, os Estados Unidos não dispõe nem é realmente difícil imaginar que a era da hegemonia
dos recursos humanos nem dos financeiros para ocidental será superada por uma nova forma de
traduzir essa centralização em poder global. Embora conquista do mundo. Nesta era, na verdade, parece
nenhum dos estados do Leste Asiático (que tiveram mais provável “que haverá um retorno a um balanço
um magnífico crescimento sob o escudo da hege- relativo dos centros múltiplos exibidos no sistema
monia norte-americana) pode, mesmo que remo- mundial do século XIII”. Tal retorno inevitavel-
tamente, desafiar militarmente os Estados Unidos, mente deverá requerer “uma mudança para dife-
tampouco algum deles está preparado para “assinar rentes regras do jogo, ou ao menos um fim das
um cheque em branco”, de não-interferência no regras que a Europa introduziu no século XVI”.
derramamento de sangue, para assegurar a conti-
As duas variantes da macrossociologia históri-
nuação da supremacia militar norte-americana.
ca têm, na verdade, pouco a dizer sobre como es-
Ao invés de testemunharmos a costumeira fu- sas regras podem vir a se implantar e sobre como
são de uma ordem superior de poder militar e finan- acompanhar o processo que pode torná-las reali-
ceiro que tem caracterizado todas as substituições dade. Suspeito que isso acontece porque ambas
de uma liderança por outra nos altos comandos do as variantes têm procurado encaixar a atual
capitalismo mundial, nós estamos assistindo a uma ascensão do Leste Asiático em construtos teóricos
cisão que deixa o poder militar altamente concen- mal elaborados para esse propósito. Talvez o tempo
trado nas mãos de um país ocidental hegemônico conduza-nos a uma estratégia oposta, que é a de
decadente e que concentra o poder financeiro glo- repensar esses construtos à luz do recentramento
bal nas mãos dos países do Leste Asiático da economia global no Leste Asiático.

Giovanni Arrighi (arrighi@jhu.edu; http://www.soc.jhu.edu/people/Arrighi) é Professor do Departamento


de Sociologia na The Johns Hopkins University. É autor, entre outros livros, de A ilusão do desenvolvimento
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