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Título original: PHILOSOPHIE DE L' AMOUR


Copyright © Livraria Martins Fontes Ed itora Ltda., São Paulo , 1993,
para a presente edição
SUMÁR IO
1 ~ edição brasileira: março de 1993

Tradução: Luís Eduardo de Lima Brandão


Revisão da tradução: Paulo Neves
Revisão tipográfica:
Maurício Balthazar Leal Algum as reflexões sobre a prostituição no presente
Flora Maria de Campos Fernandes
e no futu ro (1892) . .... .... .... .. ... .... .. ... . . . ... .. . , 1
Produção gráfica: Geraldo Alves Sobre a sociologia da família ( 1895) . .. ........ .. • 19
Composição: Ademilde L. da Silva
O papel do dinheiro n as relações entre os sexos
Capa - Proj eto: Alexandre Martins Fontes - fragm ento de uma filosofia do dinheiro (1898) 41'
Cultura feminina (1 902) . .. .. .. .. . .. .. .. .. .. .. .. . .. . 67"
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Psicologia d o coquétism o (1909) .. .. .. .. .. .. . .. . .. 934".:
(Ciimara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Fragmento sobre o am or (escr'itos póstumos) . . -=-1 1y .._
Simmel, Georg, 1858-1 9 18. F ragm en tos e aforism os .. .. . .. .... .. .. ... .. ... .. .. .. -. 1 7~
Filosofia do amor / Georg Simmel ; [tradução Luís
Eduardo de Lima Brandão : revisão da trad ução Paulo Posfácio à memória de G. Sim mel (G. Lukács,
Neves!. - São Paulo : Martins Fontes, 1993 . - (Coleção
tó picos) 1918) ... ..... ·· ···· ·· ·. .. . . . . . . . . . . . .. .. .. . . .. .. . . .. . . . . . . 201
..!SBN 85-336-0 162-X
1. Amor 1. Título. II. Série. Notas . . . . ... .. . .. . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . .. . . . . .. . . . . .. . . . . .. 211
93-0648 CDD- 128.4
Índices para catálogo sistemático:
1. Amor : Antropo logia fil osófi ca 128 .4

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•111 t 'u1m•lholro Ramalho, 330/ 340 - Tel. : 239-3677
11112' 000 - Siio Paulo - SP - Brasil
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ALGUMAS REFLEXOES SOBRE
A PROSTITUIÇAO NO PRESENTE l
E NO FUTURO (1892)
r
;

A in dignação moral que a "boa sociedade" mani- ..


festa cm relação à prostitu ição é, sob muitos aspectos,
matéria de ceticismo. Com o se a p rostitu ição não fosse
a conseqüência inevitável de um estado de coisas que
essa "boa socied ade", j u stamente, im põe ao conjunto
ela popu lação! Como se fosse a vo ntade absolu tamente
J ivre das m ulheres prostituir-se, como se fosse uma d i-
v1·rsão para elas! C laro , e ntre a pri111cira vez e 111 que
o infortúnio, a solid ão sc 111 recursos, a ;111 sê 11ci a d <' al -
g11111a l'du cacJ w 111orn l, o u a i11d;i o 11i;1 u 1·x1·n1plo d o ;1111-
bicntl' incil.a111 11111;1 rn oc;r1 n s1• 11t'1 ·rc•c·c·r por di nh eiro e,
por outro lado. a i1 1d('sn itívd 111 is~ ria 1·111 q11l' , ck ordi-
niírio, s11.1t.ir 11·i1 .i sc· 1•1H·1•11.i , 1 1111 o, c'llt 1,. <'ssc·s d o is ex-
l 1n1111M, 1•x i11tr· 1111 11w ior p111ll' do ll'lllJ>O 11111 período de
p1'. 11.1·1 1• d rH pt 1•1111 1p 1~ 1 H1) M, 1s H q 1w p11·(0 1· quão bre-
v1· ! N11rln 111; 1i Hl11l1m d n qw• d1:1n111r d l' '' g-arntas de vida
nl1·g11"' t'HHllH i11l(·li :t.t'N 11 i.11 11 r;1s 1· 1·1111·11(ln por aí que
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FILOSOFIA DO AMOR ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A PROSTITUIÇÃO 3

1'11111 vive111 ele tivamente para a alegria: talvez para a ale- pre têm razão , e a lei tão cruel que quer que se dê a
J.ll'i:i alheia, mas não decerto para a d~las. Ou acaso se quem possui e que se tome de quem nada tem não co-
n H i 111<1 que seja uma delícia, noite após noite, em qual- nhece executara mais severa do que a " haa. gacjedadt" .
q11e r tempo - calor , chuva ou frio-, bater pernas pe- Esta, que em toda parte só enforca os ladrõezinhos, tam-
lns ru as para oferecer uma presa e servir de mecanismo bém só despeja toda a sua indignação virtuosa sobre po-
c,jiiculató rio ao primeiro indivíduo que aparecer, por bres mulheres de ruat mostrando pudor apen_as em fun-
mais repugnante que seja? Acaso se crê realmente que ção da condição melhor ou pior das prostitutas! Isso por-
1ai vida, ameaçada de um lado pelas doenças mais in- que a sociedade vê no infeliz seu inimigo - e não está

l
l'cctas, de outro pela miséria e pela fome, e em terceiro errada nisso. Porque esse infeliz, o indivíduo desfavo-
lu gar pela polícia, acaso se crê que essa vida possa mes- recido por culpa sua ou não, sobre o qual pesa um juízo
1110 ser escolhida com esse livre-arbítrio que seria a úni- de ex;clusão eqüitativo ou não ;_será responsabilizado pela
ca coisa ajustificar, em contrapartida, a indignação mo- coletividade por não ter obtido m elhor posição em seu
ral? Sem dúvida, a prostituição superior , fora de con- se i~ Ele a detestará, e ela o detestará em troca, lançan-
trole, se vê melhor aquinhoada por mais tempo. Se a do-o mais baixo ainda. Do mesmo modo que o feliz pos-
mulher for bonita e conhecer um pouco a arte da recu- suidor recebe em acréscimo, além dos beneficias dire-
sa, se ademais fizer teatro, então pode escolher os can- tos da sua situação, u m prêmio de felicidade devido ao
didatos e mesmo as pulseiras de brilhantes. À parte o fato de a sociedade respeitá-lo, elevá-lo ao pináculo e
fato de que a queda é, de ordinário, mais grave quando conceder-lhe por toda parte a prioridade, também o in-
a interessad a não tem mais à sua disposição os encantos feliz será, em acréscimo, punido por sua desgraça, por-
q ue lhe permitiam comprar a vid~ in dulci jubilo, a so- que a sociedade trata-o como seu inimigo nato. 'Pode-se '\
ciedade se m ostra curiosamente muito mais indulgente observar todos os dias que o abastado escorraça o m e n- (.
para com essa prostituição mais refinada (por certo ca- d igo com cólera, CQa:.i.o~m erro moral ser polí>r8)
paz de se arranjar globalmente bem melhor do que a •.çmno.•s.e.is_so.jlwilira..~e..-p.oi,:t. a indignação virtuosa.' Nes-
prostituição de rua e de bordel) do que para com a pros- te caso, como é freqüente ,' a má consciência que.; o rico
tituição de baixo nível , a qual, no entanto - supondo- se nte face ao pobre esconde-se..: atrás da más an1 ele um a
sc que haja pecado nisso-, é muito m ais !>ancionada legitimidade m oral de maneira tão contínua, co111 pseu-
pela miséria de sua existência do que a primeira. A atriz, do-razões tão pcrr.mptórias , que a pr6pria v~! i111a acaba
que nada tem de mais moral do que a mulher de rua acredilnndo .'~ di~ T ·1H; a qu~· a 11 Ít' dn ck esta belece as-
e, talvez, até se revele bem m ais calculista e vampires- si111 n u juí~o e no !ratanwnto que reserva à prosti tuição
('<I , é recebida nos salões de que a prostituta de calçada .· elegm1tt' t' n proslilui<;tlU 1UÍ1i •dtv1:l (' \1111 dos exemplos
se ria expulsa por cães. As pessoas felizes, de fato, sem- mais e:; ·lar n :dcm!fi, ou innis rt:n ehrosos , da eqüidade
FILOSOFIA DO AMOR ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A PROSTITUIÇÃO 5

dessa sociedade, que torna o desgraçado cada vez mais Tudo isso só é possível se ainda não há economia
desgraçado, perseguindo-o por causa da sua desgraça, monetária estabelecida de maneira permanenté1'orque
com o se se tratasse de algum pecado cometido contra assim que o c!i.fili~eir~tema. a,,rnç.Wda de.~t.od!à~ as ma.:..
el~!Talvez o faça por uma obscura antecipação, a sa- tras...coisas - uma infinidade de objetos extremamente
ber: ele poderia ter a forte tentação de cometer , de fato, dife'rentes podendo se obter em troca, dele - ele mostra
um pecado contra ela.j uma ausência de cqr t: de q~alidade que, em certo sen- .......
Esse tipo de relação autoriza-nos designa r a prosti- tido, desvaloriza.tudo aquilo de que é o equivalente:Q ..(
tuição - tão antiga, porém, quanto a história da civili- di~l?-_eiro f a cois~ m ais impessoal que existe na vida prá-
zação - como um produto, em sua essência atual, de tica; _como taJ, é d~ todo inadequ ado a servir de meio z
uJ
nossas condições sociais. As culturas num estágio infe- de troca contra um valor tão pessoal quan to a entrega :.)
rior não vêem nada de chocan te na prostituição, o que de iima mulher. /Se, todavia, desempenha esse papel, <
é bastante compreensível , porque ela não tem para es- rebaixá a seu nível essa realidade individual de valor es- 'J
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tas a nocividade social que possui num estàdo de coisas pecífico , provando então à interessada que ela não põe
mais evoluído~'Entre os lídios da Antiguidade, segundo sua propriedade m ais pessoal acima desse meio de tro- )
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H eródoto, as moças se ofereciam por dinheiro, para for- ca , que equivale igualmente a milhares de outras coisas tO
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mar um dote; em muitas partes da África, o mesmo cos- de menor preço. Onde o dinheiro ainda não constitui
tume prevalece ainda hoje e não debilita o respeito de- a medida de quase todos os valores da existência na mes-
vido às m oças - entre as quais encontram-se, não ra- ma medida que entre nós, portanto quando ainda é al-
ro, as princesas reais - , como tampouco impede-as de go mais raro e menos usado, a c'.!ssão do bem pessoal
se casarem e se tornarem mulheres absolutamente hon- em troca dele n ão é tão degradaute. Ao q).ie· se acres-
rada.S'~ Temos aí, bem forjado , resquício de um estado' centa o seguinte: quanto m ais as mulheres se encontram
antigo da sexualidade ainda não regulamentado, a idéia ' numa posição inferior, mais perman'.~cy:fu ligadas ao ti-
de que cada mulher pertence, de fato, à etnia em sua ( po genérico ~ menos se IT}.'fnifesta essa ljfespr?por?ã~ ~ntre
globalidade e, portanto, de certa forma subtrai-se a uma a mercadoria e o preço."Í'ií~s culturas mais pnm1t1~
obrigação social casando-se com um só e único homem; onde as mulheres em particular são ainda menos indi-
pdo menos ela deve, até suas bodas, cumprir essa obri- vidualizadas, a dignidade humana não sofre tanto com
gação entregando-se a qualquer um. E essa conduta se o fato de que elas se entregam contra µm valor tão pou-
eleva tão alto na ordem moral, que até se vê aparecer co individual quanto o dinheiro~'Mas_ em condições mais
umn prostituição cultual - uma entrega de si cuja ren- evoluídas, como as nossas, onde o dinheiro torna-se c?
da •crt'\ 1 de fa to, destinada ao tesouro do templo, como d a vez mais impessoal ·por podermos comprar cada vez
•trabRo relata acerca das m oças da Babilônia. mais coisas com ele, enquanto os hurnanos, por sua vez,
() FILOSOFIA DO AMOR ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A PROSTITUIÇÃO 7

lor11a1n-se cada vez mais pessoais, a aquisição desse bem cada vez mais intransponível entre o possuidor e a pes-
tão íntimo mediante moeda parece cada vez m ais indigna soa obrigada a deixar-se comprar, é a sífilis moral que
e fo rnece uma das causas essenciais da arrogância dos decorre da prostituição e que, corno a sífilis propriamente
capitalistas, do abismo vertiginoso que se abre entre a dita, acaba infectando também os indivíduos não dire-
posse e a ofert~?O bem próprio da pessoa humana, o tamente envolvidos nessa causa primeira .
mais sagrado de todos , só deveria poder ser obtido na E ssas reflexões indicam o único ponto de vista a par-
medida em que quem o procurasse cedesse, por sua vez, tir do qual a prostituição pode ser corretamente julgada
sua pessoa _e seus valores mais íntimo~- como sucede tanto quanto ao presente, como quanto ao futuro, asa-
no verdadeiro casamento. Se é notório, porém, que basta /" ber: no contexto da situação social e cultural global. Se
dar dinheiro para consumir tal bem, ver-se-á então, lo- a considerarmos isoladamente e não a seguirmos até suas
gicamente, instalar-se, face aos não possuidores que en- raízes, que se estendem por toda a superfície do solo em
tregam tudo a tão vil preço, o desprezo e a ignorância que se edifica a sociedade, correremos o perigo de avaliá-
do valor pessoal, e isso não sem uma ingenuidade de la a partir d e uma "moral absoluta" e, assim, julgá-la
parte das classes superiores que muitas vezes nos su r- sem compreendê-la, seja banalmente, seja sem eqüida-
preende , ou melhor, que não nos surpreende mais. Co- de.1A necessidade da prostituição nas culturas de nível
mo, com demasiada freqüência, a distância entre os de mais elevado baseia-se na defasagem temporal entre o
cima e os de baixo afunda cada vez mais os de baixo início da maturidade sexual e a maturidade intelectual,
e também rebaixa moralmente os de cima, e corno a es- econômica e psicológica do homem. Porque esta última,
cravidão degrada não 'só o escravo mas também seu amo, com razão r é exigida antes que. a sociedade autorize o
(

assim a désproporçãr, entre a m ercadoria e o preço, ates- homem a fundar seu próprio lar:: Contudo , a luta acir-
lad a em nossos dia~ pela prostituição, significa a depra- rada pela existência não cessa de adiar a independência
vação não só daqu,elas que se entregam desse modo , mas econômica. As complicadas exigências da técnica pro-
La rn bém daqueles)que disso aproveitam.1 C a da vez que fissional e da arte de viver proporcionam cada vez mais
11111 homem compra urna mulher por dinheiro, vai-se um tarde a plen a formação do espírito ; o caráter deve se im-
pouco do respeito devido à essência human a; e , nas clas- por através das dificuldad es sempre crescentes d as si-
1w11 l'icas, on de tal prática é cotidia na, é esse fato , sem lua1;(>cs, d as tentações, das experiên cias, para que se lhe
e1(1viria, 11m a poderosa alavanca da presunção que a posse pORliA confi a r a responsabilidade de outras existências,

dn d i11l1ciro gcra,~dessa m or tal ilusão a respeito de si que 11 t' d tH ' IH,'I o rias crian ças .' Assim, o momento em que um

lrv11 n Jll'nR:1r que tal haver confere à personalidade co- 11111111•111 pnd<' legiti ma men te po ssu ir uma m ulher é re-
11111 tul u111 pn::<;o qu a lq uer, ou um sentido interior . E s- l t11 d m l11111di. vez 111n i s e, como a consti tuição física ain -
1rn t11tul dl'f'1w111:11
) ío de valores, que cava u m abism o rl 11 11 !'111 11• 111 l11pto11 o ·ssc estado de co isas, despcrla nd o
FILOSOFIA DO AMOR ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A PROSTITUIÇÃO 9

:tliús o instinto sexual com um a precocidade bem pouco - a despeito de um conteúdo absolutamente divergen-
111u<lada, é fatal que um aumento de cultura acarrete uma te - , determina o nível da existência global, impondo
necessidade maior de prostituição . P odemos deixar de por si mesmo R. mais estreito limite a seu s atrativos e
lado aqui a questão de saber se um aumento da morali- suas liberdades~ Do mesmo modo que o desempenho téc-
dade n ão estaria em condições de reprim ir as pulsões nico e científico relacionado ao trabalhador n ão pode se
pré-n upciais, porque, justamente , nada caminha nesse red uzir ao fato de que este lhe custa sofrimentos no mo-
sentido por en quanto, e porque querem os contar ape- mento, m as encerra im plicitam ente su a formação ante-
nas com fatos. As associações pró-moralidade pretendem, rior e todo o seu passado, também há no serviço das pros-
por certo, que tal repressão seria não só possível como titutas todas as su as conseqü ên cias e conexões, a atitu-
de glob al e o futuro global do p restador do serviço, que
desej ável, no interesse d a saúdt/ Contudo, de q ue ma-
se acham n uma relação tão necessária com o serviço
neira a natureza seria indulgente o bastante para auto-
.( quanto o passado acima mencionado)'o falso individua-
rizar que se desdenhe impunemente tão forte instinto,
lismo, que destaca o indivíd uo de seus bens sociais para
simplesmente porque as contingências da cultura não lhe
considerá-lo "em si", isola igualmente seu serviço dos
permitem satisfazer-se com toda a legitimidade? Em su-
vínculos que tem com o resto de su a vida e desconhece
ma, uma necessidade dç pessoas aptas a satisfazê-lo existe
V , que a sociedade, parecendo não pedir mais que o sacri-
na sociedade. P or outro lado, esta se dá conta de tudo
fíco dos serviços isolados, exige de fato, tanto do minei-
o q ue perde com essas vidas jogad as fora e não ignora ro quanto de inúmeras outras p essoas, o sacrifício de sua
cm absoluto que essas mulheres são pura e simplesmente vida inteira. O trabalh ador d a m in a de arsênico ou de
massacradas, vítimas das pulsões alheias\\ É, pois, mui- uma fábrica de espelhos, em suma, de toda empresa que
to bonito que a " boa" sociedade tenha semelhantes sen- apresente um perigo im ediato ou uma ameaça de into-
Li mentos; no entanto, é b astante estranho que ela seja xicação lenta, acaso não representa puros sacrifícios que
f'ão sensível sobre esse ponto e mostre uma con sciência a sociedade impõe a outros, ou , digamos, a si mesma,
moral tão delicada em i;i.lome das vítimas que su a pró- para sua própria conservação? E eia os reclama ou os
e .
pria conservação cu sta!tAcaso ela não delega, sem ou- 1ornecc scrn llC comover com isso .( · or que, cntao,
- -
nao
tm formal idade, milhares de trabalhadores às m inas, sacrificaria algu ns m ilhares de moçu8 para possibilita r
tle111tinando-os a uma existência que m al vê o sol e que, no11 homr.n• nlu cll•Ado11 uma vida 11cxuw normal c pro-
dh• l\f)ÓI! dia, ano após ano, é sacrificada em relação à LCl(tlr tt11lm a r.n•tlctnô~ d1111 ou tra• mulhcrc~"ISerá q u e
1DC1ledade - aparentemente o sacrifício de serviços bem n nrrf'1111lrhade ou o lmpul10 de µo ..uir í!11pelho11 Reria mais
nldo•, na realidade o sacrifício de uma vida inteira?·, ~ \.trl(tmtc qu~" nC1<·~11ltlAtif! 1uual, mBill importa nte que
• 111ul o 11 ·rviço, tal como no caso das prostitu tas 1tn? Arho nohr!' e mnrnl nlu ver com ilungue· frio mo-
1() FILOSOFIA DO AMOR ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A PROSTITUIÇÃO 11

~· 1 1 s la n ~·adas na perdição , na ruína exterior e interior; que essa facilidade exterior não leve a alianças estabele-
111as seja-se então conseqüente o bastante par a se indig- cidas apressada e frivolamente; e, muito embora uma
n·ir também com esses outros sacrifícios, muitas vezes educação m elh orada possa acelerar a vinda dessa m a-
' 1
bem mais c ruéis ~ P ois é uma medida estranhamente de- 1uridad~ um fato a ela se opõe: o aperfeiçoame nto das
sigual a que se a plica aí, conquanto as razões dessa de- espécies na natureza, e também do homem, supõe um
sigualdade tampouco sejam difíceis de detectar. 'Elas re- re tardamento de toda evolução, pois os filhos de pais de-
sidem, de um lado, em que não se gosta de confessar 111asiado jovens são débeis ou degenerados.' Ora, dado
abertamente a necessidade da prostituição n o atual es- que as impulsões poligâmicas se encontram na nature-
tado de coisas; de outro, em que se repugna igualmente '.l.a masculina, o casamento monogâmico exige, inclusi-
considerar a existência de ditos trabalhadores como um Vl: depois da supressão de todas as dificuldades econô-
. ').., d d~ .
sacrifício n a e pela sociedade . Essas uas ten encias, mais
.
111i cas e visto unicamente como uma instituição erótico-
a dificuldade de reconhecer a identidade d a forma a tra- 111 oral, um tipo de homem que tenha tido a oportunida-
vés da diversidade imen sa dos casos em matéria de con- dl' ele se examinar e se conhecer, n ão um adolescente
teúdo e de moral, fazem que a identidade de comporta- <· 111 flor , ainda que, por certo, 'nele também se agitem
mento social em relação às duas categorias sej a rejeita- cin plena força as pulsões carnai~-· Se, de u m lado, n ão
da ao invisível. 1w pock a11lori~ar este último a ligar-se a uma mulher
\ Num ponto, não há ilusão alguma a se ter: e~~uant~ p um o 1Tslo da vida, de ou tro n ão se poderia recusar-
o casamento existir, a prostituição também ex1st1rf\ E lhc a exp ressão de seus instintos naturais.
só com o amor plenamente livre, quando caducar a opo- Mas como deverá satisfazê-los? Só restam duas for-
sição entre legitimidade e ilegitimidade, que não se pre- 111 1111 possíve is.' Seja a qu e encontramos em muitos po-
cisará mais de pessoas especiais dedicadas à satisfação VUll wi1nili vus, c111 que as mulhe res têm, antes do casa-
sexual do gênero masculinqj Para não ser contraído le- 11w111 0 , 11 t!RC'olh a ple n amt: ntt: livre de sua vida arnoro-
vianamente, com risco de perder ambas as partes, oca- 1m, HCtn li •r ' til ii11p ·dido i;, n n1 rx l ·rio r 11 c in in1 c rior-
Hatnento monogâmico com obrigação de fidelidade - lllf' nl M, dr <'0111r11lr 11 1wf{11i r um c11H11 n1cn10 111o nogl\.111 i-
pel o menos diante de si mesmo - deverá ser realizado 11i; 1ü •i11 11 pr111oll 11 l~· 0 1 qur d1'11IH 11 11 i111\•li·1111wn lt' p il rn
num a idade em qu e o instinto sexual já se m anifesta há r11r llm 1 r11111 p1'~1u 111 11, JI fün d1• rfüprn1111r tndn N11s dc-
t1nos. Sem dúvida, numa sociedade socialista, o limite 1111d1 Nl111t11H11111·1 1111 p1l111rirn111111Hl hllld111lt•.1Q.uan-
do casamento será abaixad o, dado que o indivíduo ver- lfl m1l1 lfl 1lt11N111V11lvr r 11r npr1 lrli.1111 11 h1111111n lclnd<", mais
llo ~ ttliviado da preocupação econômica ind ividual pa- Ili' imllvhhudlHm "" tt'h11;õ1•• rn!lr h u 11 w11 1 e mulhe r;
11\ rnn 1n mulher e os filhos; mas dever-se-ia , então, exigir j111f11m11nt11, q111m1l11 11 1 n10111trntn 11 n1111t' lh,r rnais por
111111111 11111i1t ce ita maturidade por outro lado, a fim de ~111111111t 11u UM l\Ru , 11111i. 1q.JUUNHI' nn rli mpuliH puramente

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l 'L FILOSOFIA DO AMOR ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A PROSTITUIÇÃO 13

i 111 nior , a ausência de freios que o precede não lhe for- tituição do casamento, se, portanto, admite-se que este
111TcrfÍ. mais a base para se edificar. N essas circunstân- só poderia ser contraído bastante tempo depois da ma-
<'i:is 111a is grosseiras, em que não existem ainda as m ais 1uridade sexu al dos homens, e se, enfim , quer-se que
l'kvadas inter-relações psíquicas en tre os sexos, a vida os instintos n ão sejam reprimidos (quando mais não fosse
;1 11tc r ior da mulher pode permanecer indifere nte em re- po r ser isso impossível), sem tampouco pôr à disposição
lação a o casamento; porém, quanto mais o casamento de les a totalidade das moças, daí decorre que se impõe
se interioriza e se personaliza, mais se complica o salto 11111 a reforma da prostituição, e que seria perfeitamente
que leva da poliandria a ele. Sem dúvida, isso também inju sto fazer as moças su b metidas a semelhante exigên-
vale aparentemente p ara o homem , mas esse fato n ão l' Ía social arcarem com o ôn us disso . Ora, ta socied ade
o im pedirá, como não impedirá a mulher , de satisfazer l>11 q{uesa faz exatamente assim, as prostitutas são os bo-
a ntes do casamento seus instintos físicos, visto que es- cll's 1'xpiatórios que se punem pelos pecados cometidos
ta, pelo seu caráter sexual psicofísico, chega à m aturi- pdos home n s da " boa sociedade" .' É como se uma cu-
dade nupcial antes do homem e pode, por con seguinte, 1iww dcf'o1·mação ética oferecesse uma expiação à má
casar-se antes dele; os motivos econômicos não se opo- n11 1sciê 11cia social, fazendo a sociedade rejeitar cada vez
rão mais a isso, como hoje em dia, e portanto todo o 111 11i11 ;i s vít iu ias de seu s pecados, su bm ergindo-as numa •
problema desaparecerá mais ou menos para elas . ~n­ d1•Hn 101·11 lização cada vez maior: ela se arroga o direito
qu anto o amor livre não se generalizar, sempre será pre- dr l l'11tf1- las corno criminosas . ! É um caráter constante
C'Íso certo número de mulheres para preencher a função d1• IHlt11m 1mc ied ack cob rar as mais elevadas exigências,
das atuais prostitutas.' Que não h averá m ais prostitutas 1111 11111 tfri11 de lirmC'za de caráter e de resistência às ten-
a pa rtir do momento em que não forem vítimas da m i- f 111,111•1e 1 111 rri1111111c11ll' daqueles a quem ela mais pr iva das
séria, é uma objeção evidente, m as não de u ma solidez 111111ll~nrrc d n lllOl'll lid ndc r.la pede ao proletário famin-
a toda prova. Porque as n ecessidades sociais suficiente- 111 11111111 11,"IH' llo 1w lu pro pricdnrlc de o ut rcm do que aos
nt<·11tc fortes criam quem delas se encarregue, a todo e l 1111 íl1" tlu U11l1rn 011110" pll1i11t1'11Hda n obreza ; e exige cio
q1ialquer preço . A s finalidades sociais proporcionam-se 1u.l11tlh ml111 11111u 1111111 1111111• llt ll!l Himpl il'id11dv 111(ixim as,
os 6rgãos de que carecem , n ão só quebrando exterior- m1u1t1tl11 Ih" ptlr 111lltll1111111111·11t r dl1111tr d 1111 nl hn~ ti f ' 11·
m (' nti> as resistên cias individuais, m as também superan- t ht U df l11th1111• •tllt' t' lr lr1 r 111 lq11r1 t' l'j «111 se
do HH 110 interior das próprias pessoas. !I odavia, a con- lhf nH,11 ttttll M( 1i111it11tltd11d1 d1111 plt11!1it u -
dl1, n nrcess{tria , indispen sável, para que a prostituição • tfllllqu r 11111111 • "" Ht11 l11, Hc•111 pcn -
• • rl r tuC' num a socied ade verdadeiramente huma_na é,
-~..-·-.maii tül1t U 111&rn 11 1 hiído su·
11r 111 tl1 vlrl11 11l' 11hu rna, q ue se eleve a posição das pros-
mil du l lllf 1'11111 11q11l'h1 (j\l(! se
tllllt 11• M1•, por 11rn lado, adere-se firmemente à ins- MM•1111~• hlllnhulu 1111 111 11 •• 111 ,1 Em su-
FILOSOHA DO AMOR ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A PROSTITUIÇÃO 15

11 1<1, ('la impõe o dever de m aneira tanto mais estrita tirão medir o valor destes, se conce bermos o efeito de
qu anto mais torna seu exercício complicado. Uma or- t semelhantes situações sobre nós mesmos; ora, somos pro-
g-an ização social mais moral mudará as coisas . Ela re- dutos do passado tal como este foi até aqui, e todo 0 nosso
rnnhecerá que não se tem o direito de dar a quem quer mod? d e ~en.tir ~ determinado por circunstâncias que se
que seja a ocasião de sentir-se inimigo da sociedade; m os- r:1º~1~carao m te1ramente em seguida. A posição da pros-
trará q ue, inúmeras vezes, longe da sanção seguir o de- li tu:çao depende dos sen timentos sociais que ela desperta
lito, foi a sociedade que começou por punir, provocan- • e n ~o ~odemos saber em que m edida a eliminação do
cio assim o delito; e quando admit ir que existe em seu cap1tahsmo e de suas conseqüências os alterará., Con-
8Cio algo como a prostituição - a qual será necessária q11 a nto se,possa dar por certo o fim do atual d-e sprezo
enquanto a sociedade se ativer ao casamento m onogâ- pt:la~~ de~a1das e_de sua exclusão, que acarretam por uma
mico - deverá elevar a posição social desse gênero de lt'rri vel m teraçao su a desmoralização sempre cresceu-
1nulheres , p ara eliminar desta forma o aspecto nocivo ' l' , ( · provável que 'a mulher que viver de maneira mo-

do fenômeno. Porque, se a prostituição é um mal se- • l llJg"i'l 111 ica despertará, enquanto subsistir o casam ento

cundário, os fenômenos secundários qu e dela decorrem 111011og-âinico, o sentimento de um valor pessoal mais ele-
por su a vez - desm oralização, depravação geral das ,vudo (!ll l' <_> da mulher que se entregar a vários homen s; .
mentalidades, criminalidade das prostitutas - represen- I', 1111 111ccf 1da cm que o casamento é o objetivo definiti-
tam os piores males, mas não lhe são necessariamente Vtl !111 rt•l;1çilo entre os sexos, a prostituição continuará
vinculados, porque procedem hoje apen as de sua posi- li ~f' I' H <!lllid a co111 0 um m al necessário~t.É esta a conse-
<;ão excepcional, devida ao regime exclusivo d a circula- q (I 111 ln cio conflit o <~ 11 tre as exigências d a maturidade
l,' :ÍO monetária, à arrogância dos possidentes em relação • • 1llll e' llH 1·xil{ilncias da mat11 ridacle nupcial, conseqüên-
i\ oferta e ao farisaísmo de nossa sociedade. Quando, 11111 11 10 cnrl'l ll(; tr (lf{irn 11 fl.o pode ser suprimido, mas ape-
vít i11 1as das circunstâncias, as prostitutas não tiverem IHlll Hlr n1111d11 , < ' Onl 1111to q1w se vt~ <llll 8 uas vítimas não
mais de pagar pelos pecados alheios, n ão serão mais ten- 111111 11 1 1111111 11111111l1111 eh• 1m1 l'1To i ncli v iflt111J, n 1;1s co111o o l>-
tmlas a me recer essa punição de certa forma a posteriori l• 11111 d r 11111 r 11n H1u l11l,t\"'I
pnr st·11 s próprios pecados. .1.. 1111tl11, l111ln• r'IOh lll 111111dd1• 111~ Mr11 HC'I' 1) rnocli li-
O qu e complica a construção do futuro, a esse res- •.... •um• tlH 111111lli.Rr11 lir1 d t11 l1111 d11 nt1111111ltun1;ílo
prltri rnnrn a q ualquer outro, é o fato de que podemos mud1u 111111111111111 ''"" ,,. 1111tlh1•1""· 111111 -
11111l111 11pcnas com a atual constituição fisiológica da hu- -•111
.,...... mtt•hlfttll , .... "ti 1 n 101111rntu 1111
1111mltl111 lt'. K<> poderemos apreciar a dose de prazer e d e • 1,U li• lt111111 111!1, dt• llllPI!' q 11e
111111 lt11t nt o e , clt• modo geral, as reações físicas que d e- tftl d ht1 IH illll1 1il1 l11c lc•ic pmve-
11111r1 í\11d1111 1·~ t 1 Hlos cll' coisas por vir e que n os permi- 1111 tht f hfllltttltt 111~11 .. 1111 d l dntSt'

..
FILOSOFIA DO AMOR AL GUMAS REFLEXÕES SOBRE A PROSTITUIÇÃO 17

p1·:1'.l.o. Mas, e se esse desenvolvimento individual mais tos da constituição social, mudanças que contribuem de
precoce não fosse mais que a conseqüência do não- maneira decisiva para modelar as relações entre os se-
1
dvscn volvimen to da espécie? Através de toda a nature- xos . Devemos considerar como ideal últi mo de toda es-
'.l.a, vemos os seres se desenvolverem tanto menos de- sa evolução a adaptação harmoniosa da formação físico-
pressa e alcançarem tanto mais tarde o ápice da sua for- sensível e da formação espiritual-caracterológica, tornan-
mação quanto mais mostram nobreza e perfeição e ocu- do ambas indissociáveis no tempo daí em diante . Se, nas
pa m na escala geral uma posição mais elevada;\os ani- culturas menos elevadas, a m aturidade ele fato sobre-
mais inferiores são os primeiros a se formarem comple- vém simultaneamente desse duplo ponto de vista, e se
tamente . Talvez a opressão da mulher, que a fez apare- neles p ortanto a regulação das relações entre os sexos
cer dur; nte milênios co~r"-meiiõs desenvolvido, te- é simples, a cultura evoluída, ao contrário, dissociou os
nha tido essa conseqüência; quanto menos numerosas dois aspectos, criando com isso as dificuldades existen-
as exigências a que um organismo dado deve respon- lcs nessas relações. É uma tarefa da n ossa organização
der, mais simples as funções para as quais ele deve se de eficácia sempre crescente , re-harmonizar os aspec~
for mar e mais rápido seu acabamentç} Ora, se agora de- los e m questão num nível superior, em conformidade
saparecer a pressão exercida s.o bre as mulheres, de sor- ('U m as grandes regras da evolução, que, em seu auge, ,.
te que sejam chamadas a abandonar seu estado menor r·o ni freqüência espiritualiza, completa, reproduz n o es-
para confirmar sua força específica , para desenvolver 1ad o purificado as formas de sua realidade primeira no
suas disposições mais diversas, pode ser que também se n;l;iclo nascente.
elimine essa diferença em relação aos homens e que so-
brevenha nelas, então, tão tarde quanto neles, o prazo
d a maturidade individual\. para elas também , nesse ca-
so, a fo rmação do espírito e do caráter requerida pelo
rn:sam ento durará muito mais tempo do que a das fun-
ções e das pulsões psicológicas . Como essas últimas pro-
n1rnrão se exprimir, as mulheres ver-se-ão postas , por
Hll f\ vez, d ia n te ·da alternativa entre a ascese e a satisfa-
~ 1 o ffo ica a n tes do casamento. A s conseqüências de tal
il'lrntldn<lc de condições para ambos os sexos são incal-
i 11l.1vt•l11, a n ão ser que n os percamos em fantásticas co-

l{ ll111, 11r11; 110 111os pouquíssimo capazes de abraçar com o


11l11t11 Hll 11111d11 n ç ns simultâneas em todos os demais pon-
l
'

SOBRE A SOCIOLOGIA DA FAMÍLIA


(1895)

As novas ciências que entram em cena gozam de



uma vantagem duvidosa: a de terem a oferecer u m re-
fúgio pro_yisório para todos os problemas possíveis que
estão no ar, pouco fáceis de abrigar ; Suas fronteiras ine-
vitavelmente desprovidas de precisão e defesa.atraem to-
dos os sem-pátria, até que seu crescimento expulse de
novo, pouco a pouco , os elementos inconvenientes e os
rech ace para trás de b arreiras por certo decepcionantes,
mas por isso mesmo aptas a prevenir futuras decepções.
"Assim, mal a massa confusa de problemas que acossa-
vam a nova ciência da sociologia começa a se esclare-
cer, esta põe-se a n ão mais conceder sem escolha o di-
re ito de asilo em seu seio e, conqu anto n ão se deixe de
contestar a forma mais precisa que seguem os contor-
nos de seu domínio, aparecem por toda parte sérios es-
1,orços c1.cnt1' (-1cos para d etermmar
. . !'m h as.
tais ')íp or um mo-
20 FILOSOFIA DO AMOR SOBRE A SOCIOLOGIA DA FAMÍLIA (1895) 21

11 1c11to, a sociologia pareceu ser _a fórmula mágica que minar com precisão sua essência própria e sua força,
prometia a solução de -todos os enigma~, tanto da histó- baseando-nos na influência que ela exerce em matéria
ria corno da vida prática, tanto da moral como da esté- de relações matrimoniais e de parentesco; enfim,\.9 ca-
tica, tanto da religião como da política, e ainda é bas- samento e a família conju gam, apesar de sua estrutura
lantc comum assim considerá-Ia, por exemplo, na Fran- simplíssima, um sem-número de interesses bastante di-
ça. Na Alemanha e na América do Norte, porém, nas- versos - eróticos ou econ ômicos, religiosos ou sociais,
ceram essas teorias mais modestas, que renu nciam are- interesses de poder ou de desenvolvimento individual - ,
capitular numa só e única ciência o conhecimento de tudo mostrando com isso, por meio de u m exemplo tr anspa-
o que já esteve em j ogo no âmbito de uma sociedade . rente, como todos esses momentos, em sua combinação
<..l Elas compreendem a nova ciência como um ramo da psi- e na preponderância alternada de um ou outro, _atuam.
cologia, daquela que trata dos processos psíquicos oca- sobre a vida dos !J.<?.1!1~!1~ j!:Lnto~.:. É a partir desses p~~­
sionados no indivíduo pelo social e expressos em termos tos de ~ista que quero expor aqui alguns fatos e algu-
sociais, seja como a ciência dos pressupostos comuns a mas reflexões que decorrem das pesqu isas e das análi-
todos os conhecimentos relativos à sociedade, seja co- ses sociopsicológicas mais recentes no domínio da his-
mo a filosofia do devir social, seja enfim como o estudo
dos termos em que os h omens se socializam e que mos-
tória da família.
A hipótese histórica que primeiro vem ao espírito
.
tram a mesma essência e a mesma evolução através de é a de quetá casamento emana de um estado em que
toda a multiplicidade dos objetivos e dos conteúdos em as relações entre homem e mulher não conheciam mais
to rno dos q uais se cristalizam as sociedades '.' i regras que as existentes entre os animais e, portanto,
Para todas essas finalidades m ais bem delimitadas mudavam arbitrariament~'"J1As disposições fixas, as nor-
ria sociologia, a h istória da família oferece u m material mas lim itativas aparecem-nos, a princípio, como está-
de particular importância ~ Porque tem os aí uma socia- gios ulteriores de evoluções que começaram por um caos
lir.a<,:ão de um pequeno número d e pessoas, qu e se re- absurdo, e é assim que as relaçõ~s definidas, d uradou-
produz no seio de cada grupo mais vasto exatamente sob ras, que designamos com o casamento e família, pare-
1\ lnci;ma forma e que emana de interesses simples, aces- ciam-nos poder resultar tão-somente da disciplina social,
11fvci11 a cada um - portanto, um fenômeno facilmente da busca comprovada da eficácia; pois somos obrigados
rnnh ·cível por todos esses motivo;:"\ T emos, ademais, a considerar como o mínimo do casamento essa relação
uma extraordinária mul.tipl~c~~as,_&!:!!ias familiares entre o homem e a mulher que vai além do nascimento
Afl dlvõr8os níveis de cultura, e como a famíli~:ein' do filho e em que se exerce em comum uma previdên-
1 um ngru pamento duradouro, apesar de todas as cia vi~1 E~a concepção que indu z a uma ausência do
A~ÕllH das outras formas de vida, podemos exa- casamento, originalmente, encontrou seu principal apoio
FILOSOFIA DO A MOR SOBRE A SOCIOLOGIA DA FAMÍLIA (1895) 23

no que se chamou de matriarcado . Há algumas décadas, Esse argumento maior, que depõe a favor da au-
como se sabe, descobriu-se que entre numerosos povos sência inicial de qualquer relação individual e duradoura
naturais, e provavelmente também nos primelrp s está- entre homen s e mulheres, m ostra-se assim caduco. D e
gios por que passaram os povos hoje civilizados,\!\ão era resto, oferece-se aqui uma visão interessante sobre o sen-
o pai, mas a mãe que constituía o centro da famíli~ Mes- tido de todas essas reconstituições de estados anteriores
1
mo onde o casamento já existe,- a criança perten ce com a partir dos mais tardio; . Baseando-se nos efeitos do ciú-
freqüência não à etnia do pai , mas à da mãe; o pai não me, um pesquisador é, por exemplo, levado a construir
é tido como parente da criança e esta, por sua vez , não a necessidade de um estado originário de liberdade com-
herda do pai, mas do irmão da mãe. Era deveras tenta- "'~ . , . . ~
pleta e de promiscuidade. Porque se, desde o m1c10, ti-) ,
dor explicar essa estranha relação como uma conseqüência vesse existido uma propriedade privada das mulheres,
e um resíduo de estados anteriores, em que o pai em ge- nenhuma formação tribal , nenhuma organização teriam
ral não era conhecido, porque não existia laço _nu2cial sido possíveis: os sen timentos ciumentos dos homens te-
definido e a comunidaqe das mulheres era o regime do- riam sufocado em germe toda vida coletiva próxima, toda
minante. Ora, descobriu-se recentemente que , em vá- associação cooperativ~~Para que se chegue a uma vida
rios grupos de povos, são justamente as frações na base assim, à con stituição de grupos m aiores e mais duradou- •
da escala que adotam o patriarcado e conhecem a des- ros , precisa-se supor uma tolerância recíproca dos ho-
cendência e a herança em linha paterna, enquanto as mais mens adultos, uma au sência de ciúme, isto é, portanto,
evoluídas têm a sucessão em linha materna, que deve ter relações sem limites entre cada hom em e cad a mulher .
se fixado no grau mais baixo e , em seguida, dele se afas- / O utro estudioso conclui rigorosamente o inverso : é jus-
tado. Entre os índios de estágio mais evoluído, que, quan- tamente no seio das situações que acabamos d~ ·1
citar que
do da chegada dos europeus, já cultivavam os cereais e o ciúme devia se desenvolver continuamente. Enquan-
possuíam uma sólida organização social, é sempre a as- to n ão h á relações regulamentadas entre os sexos , pre-
cendência feminina que prevalece; entre os índios do es- tende ele, o homem tem uma propriedade exclusiva de
tágio inferior, a que faltam ambas, é a masculina. Ames- sua companheira, que está fora de cogitação para os ou-
ma relação exatamente se encontra entre os aborígines tros, e a luta pelas mulheres - visto que elas não são
da Austrália; e mais: parece estabelecido que o patriarca- todas igualmente desejáveis - é obrigatoriamente a fonte
do era, lá, a primeira forma de família existente e que a de constantes querelas entre os indivíduos m asculinos.
p11rlir dele desenvolveu-se, por motivos ainda desconhe- • • Foi preciso , a princípio , que suas relações com as mu-
1 ldott, a sucessão em linha m aterna, isto é, a filiação da lheres fossem preservadas pelo isolamento, fossem ga-
11 lnncn ~tribo da mãe, se bem que, no caso, não se trate rantidas, e que a propriedade das mulheres fosse limi -
1lr 1 u1111111idade de mulheres, nem de paternidade incerta. tada, sem dúvida, mas em compensação protegida cm
Ffl OSOFl!I t>O llMON SOBRE A SOCI OLOGIA DA FAMÍLIA (1895) 25

1•r l11çãn a ou 1rn homem , para que se pudesse alca n ~·a r n ão indica necessariamente qualque r parentesco , mas
u paz uo seio de um grúpo e , deste modo, as organiza- a penas uma d iferença de idade , do m esm o modo que,
ções 111ais vastas e mais viáveit Esses d ois fatos - a sa- en tre nós, tais usos lingüísticos permanecem em voga.
ber , q ue te mos tais organ izações diante dos olhos e , por O aborígine da Austrália divide o curso d a vida, para

11 ns dos ou troJ -
- -
outro lado, qu e o sentimento do ciúme afasta os homens
- - .. - -------
levam , pois, um à conclusão de que,
cada um, em três fases: a crian ça, o jovem, o velho (ou
a,iovem , a velha). Originalmen te, essa estratificação por
11 0 início da evolução , só podia reinar um estado de coi- ge rações determinou exclusivamente a expressão do pa-
sas sem regras, o outro, um estado d e coisas regrado. n :n tesco para as pessoas ; em outras palavras, os m em -
Fundou -se outra prova dà ausência original das re- bros d a camada m ais antiga eram indistintamente de-
lações conju gais bem definidas no fato de que, entre mui- s ig nados com o " pais" ou " m ães" da camad a mais j o-
los povos , design a-se o sobrinho e a sobrinha da m es- vc111 , os d a su perior como avós d a recen te. A s ex pres-
llla ma neira que o filho e a filha , ou ainda o primo e sÕC's pai ou m ãe , filho ou filha , não significam, pois , em
a p rima da m esma m aneira que o irm ão e a irmã. Essas ubsol u to, a relação fi siológica de parentesco san guíneo
denominações só podem aparecer no caso em que cada cpw nós associamos ao termo correspondente , mas uni-
mulher tivesse uma relação conju gal com todos os h o- ' t1111 t· 11tc as distinções entre j ovens e velhos . \Todavia , ..
lllens de seu grupo, portanto também com seus próp rios o r111 stra li ano conhece com bastante exatidão sua m ãe
irmãos; o pai e o irmão d a mãe e, por con seguinte ; ' o 1• Ht' u ve rd adeiro pai, sem possuir vocábulo especial pa-
filho e o sobrinho, eram nessas condições freqüentem ente i 11 d isl i11 gui-los idealmente d os outros m em bros da m es-
idênticos, ou , pelo m enos, não se podiam distinguir~ 1°Ain­ 11 111 !'nmad a . A que ponto faltam, aqui , d e fato, o con-
da que tal est ado de coisas não fosse m ais encontrável 1 1 ltu · o léxico , m as não a capacidade real de efetu ar
cm parte alguma hoj e em dia, essa d enominação de- 11 d i111i nçfio, prova-o um fenômeno: muitas etni~_sequer

monstra ria , no entanto, que deve ter existido outrora; 1 111 111u te rmo especial para o pai e outro para a_mãe;
porq ue sem elhantes sistem as de nomes jamais surgiriam Nt• q 1wrr ín assina lar a diferença dos sexos n o âmbito d~
sen ão para exprimir situ ações reais, continuando porém Ml' 1'11 ~· no nnre rio r , são obrigados a acrescentar a palavra
a sobrevive r depois de ter perdido qualquer sentido desde ~ 111111111 111 011111u llie r à expressão comum para ambos. P or-
há muito por causa da evolução subseqüente destas. Ora : 11rn1 11 , n o 11<· pode prete nder aqui que a falta de uma
llH.:smo essa demon_stração de um comunismo conJu-gal ll lll PM•I o cl it1tin1 a assinale uma impossibilidade ou uma
original revd ou-se insuficiente , sobretud; depois -que co- Au111'111 ln d disti11ção , com o não se pode ria d eduzir / d a
nhercmos ln elhor a situ ação dos abo rígines d a Au strá- ti 1lw 1 uu~ o indi fltinta de todos os homens m a is velhos
liu ' pu<lt·111 os deduzir, desse conh ecime n to , que a de- ln l r 11111 1 d1 • pai, q ue há um não-conhecimento efeti-
1rnm Íl1<1çHO d e filho ou pai, en tre os povos prim itivos, VU uu 1u 111·1 llll' rl n pni ~, po rt anto , com un ism o co nj ugal.
SOBRE A SOCIOLOGIA DA FAMÍLIA (1895) 27
FILOSOFIA DO AMOR

é vedada · à grande massa · T am b,em apohand . · ' ·


Nenhum fato constatável n os obriga, pois, a fazer cm circunstâncias be . . na so existe
m especiais por e 1
o casamento monogâm ico - ou , em geral, toda forma planos do Tibete ond d 'fi ' xemp o, nos alti-
t.ão grande que ; c e a 1 iculdade de se alimentar é
definida de casam en to, regida pelo costu me e pela lei • . asamento parece, para os hom
- suceder a um estado primitivo de total au sência de L m compromisso pesado e difícil d d e~s,
regras. AÜcontrário, é possí~el que o ser h umano, do so , eles partilham esse ( d , ,e .mo o que, por is-
bé m que a maiori·a d ar o entre van os. D igamos tam-
mesmo modo que muitos anim ais, em particular .ª maio- os casos de por d ·
se não uma forma d ian na revelaram-
ria dos pássaros, seja monógamo p or n atureza e só te- e casamento p · .
nha chegado a u ma liberdade de relações sem.entraves, um monocasamento Gomm 'lf ropnamen~e dito, mas
à poliandria ou à poligamia, em virtude de circunstân- Rcmelhantes formas tamb' 1l ~~12-~ <l}!fE-_nt~~. l.Ao lado de
. em existem m ·t ·
cias especiais, como ocorrem em todos os domínios pa- l11 1slas, por exemplo e m as variedades
tos" que se puderam sbses casamentos ditos , 'três quar-
ra modificar ou desgarrar as aspirações naturais"".. Mui- o servar numa t ·b , b
ta~~afavor dessa hipótese. Pri- au contrair matrimoA .
. mo, a moça se e
n o ara e. Nela,
m eiro, uma arbitrariedade total,' sem nenhuma regra, fi. el ao esposo certo nu' mero d-e d ias - -po··
- ompromete
- - - - - a ser .
na relação entre o homem e a m ulher, não é observada .iunlc descreve de ma . -b r ~emana. Um via-
neira astante d 'd
em n enhum povo conhecid o d a terra; e, onde a arbitra- l}rcsentes de . iverti a como os
. casamento do noivo são ex . d
riedade existe parcialmente, as cu riosas contradições que pA1 s da noiva e a p · , . . amma os pelos
' nncip10 conside d - · ·
su rgem então indicam que não se deve considerá-la co- •u11t.cs que não se pod , ra os tao ms1gnifi-
humanidad~.
. e prometer em tro · .
mo uma fase universalmente válida da Há, dias de fidelidade p ca mais que d01s
or semana até q fi
por exemplo, alguns povos natu rais em que as moças clc um regateio a ssaz . 'd ue, en im, depois
'A apaixon a 0 a sog .
conhecem uma liberd ade absoluta e até gozam de uma _11rm11 la salutar· "M' h filh , , ra pronuncia a
l, . . m a i a te sera fiel se d
consideração particular quando possuem inúmeros na- çn, q u mta e sexta 1" . O u t ra lOrma
.e •
mista ' gun · ,a, ter-
morados, o que provaria a força de seus encantos, ao los ·asa1ncn tos tempor'anos . d os mu çul e const1..tmda pe-
passo que permanecem totalm ente fiéis a seu esposo a l'flHftrncntns legais d d manos xutas. São
, epen entes de consid -
partir do momento em que contraem casamento . Há ou- ~'111tu11, Ilias apenas por um . eraçoes pres-
tros povos dos quais se rela ta exatamente o contrário: r lrln , indo de uma ho 99prazo p reviamente estabele-
ra a anos Os filh d
castidade mais estrita das moças e gosto pela aventura 111r11lo, plenamen te rec h ºd .
t.1 f on eci os em direito - - 1
.1 ?s e tal casa-
Hrn 1 limite entre as mulheres. Que a poligamia não possa 111 1 lllôl! quan to os de
1 .
m, hft urna fo rma b1·
um casamento por t d
d
, sao 'dtao
1
e-
11<'1' urn a forma típica de casamento, decorre de um sim- n zarra e casament
o a a vi a . En-
plr111'1110 : por toda parte, há mais ou menos tantas mu- · rf1l11n11 dn. /\uslrftli a de cond'içao - b astante o entre
inferioos abo-
llll'rr11 q11nntos são os h omens, a posse de várias mulhe- Jjtr11t•nt111110 111c11t a neam ent e o grau d e evoluçãor,mais qu e
r • ~ 11rmp1.. , pois, apenas o privilégio de alguns, mas "'
FILOSOFIA DO AMOR SOBRE A SOCIOLOGIA DA FAMÍLIA (1895) 29
bilixo de nossa espécie. Suas tribos são, em su a mai~­ cm relação à primeira . A posição do primus inter p ares
r ia , divididas em classes m atrimoniais. Entre os kami- q ue a mulher principal assume na poligamia, evolui d~
laro i, por exemplo, há duas classes: nu.ma delas, os ho- ordinário , como em geral é próprio dessa posição, ~ara
mens chamam-se jppai e as mulheres Jpatta; na o~tra'. a do primus simplesm ente: acontece que também os fi-
os homens, cubbi, e as mulheres, cubbota. Ora, umjppai lho~ das mulheres secundárias consideram a esposa su-
tem 0 direito de se casar exclusivamente com uma cu~­ p: n or como sua verdadeira mãe. Quanto m ais a posi-
bota e um cubbi com uma jpatta, e o casamento do pn- çao dessa mulher adquire importância, mais a das ou -
meir~ com uma jpatta, ainda que esta não tenha nenh~ tras mulheres é rebaixada, a té esse processo sociológico
vínculo de sangue com ele, é terminantemente p r01.b i- de separação levar a que não reste m ais que uma espo-
do. Em compensação , porém , ele é tido como potencial- s~ no casamento, tornando-se então ilegítimas ou proi-
mente casado, de certa forma , com todas as cubbotas l)l(fas todas as relações secundárias com outras mulhe-
existentes; e se , numa aldeia bem distante , ele en con- res . Assim, poder-se-ia muito bem conceber essas rela-
trar uma que nunca vira antes é natural pa~a am.b~s que ções de um outro tipo como etapas intermediárias, diante
estab.rleçam uma relação conjugal, por ma~s fugidia que uns q uais o instinto monógam o dominaria tanto as pre-
sej a~ Todas essas múltiplas formas de relaçao entre o ho- l't:dentes como as seguintes. Este seria apenas um dos •
mem e a mulher se caracterizam como o resultado de r fts<>s freqüentes em que o mais alto grau de desenvol-
circunstâncias históricas particulares e nenhuma nos. re- vin1ento reproduz a forma do mais baixo, m as purifica-
vela um "estado original" a que conduziria algum m s- d1t, garantida, aperfeiçoada. Í>ito isso, essa indubitável
tinto natural , a ser pressuposto regula: rr:ente ~or toda 1 llljibilidade ainda n ão é, decerto, uma probabilidade.
part~'. /No entanto, se tal estado deve existir, entao a m o- O que se me revela como tal , no caso, é antes a idéia
nogamia não é absolutamente menos atestada que a au- ti que à diversidade infinita das formas de casamento
sencia de re gra. Melhor , o casame~to te~d: por toda 1nmbé m correspond<(. uma diversidade das disposições
parte a evoluir d a poligamia e da pohandna a m onoga- f' inHtin tos originais~ Do mesmo modo que, no interior
mi ã . D as duas primeiras formas, relata-se qu~s: geral- dr u1n rneio social idêntico, os i11divfduos, ap esar de to-
men te que uma das mulheres ocupa ~ma posiçao legal clu n igtr aldade das cirr11n11tfl nr i11H cxlcrio refi, IH' ompor-
mi h abi tualmente dirigente entre as diversas es?os~s .d e 111111 a esse respeito dn 111111wlrn 11111111 d ivrnm pOHH fv c l
urn homem - a primeira · · d esp osada , ou a m ais distm- 1or xi111 indo na turr:1.111 l'f'1nlut1u11cutl! 1111111~1(1111111" cuu:
' "· mi ri favo ri ta. P or esse motivo , as mulheres ~ 1111lra11 rc11olutn111r nco pulf1amu, t Aml~tn w111poH inrr i-
11111 riwrnplo, esforçam-se me · 1us1ve
· para comprar
, . uma l CIH pndr 111 lr 1· 111u1trado, dtad o lnfc.:111 clt1 1111 11 1·volu ·
lt'l\1111111r r1 posa para seus homens c?m s~as propnas ~co­ ~11u, l11111ln101 opo1ta1 1 tn, 1tAdu1 upu110 1~. Nestu
ft(tntllUI, df' f'n to, esta últim a tem a situaçao de uma cnada 11111111 «'Ili muhu nu fPltllll1, • n11111uu 1111111 d oei li -
:rn FILOSOFIA DO AMOR SOBRE A SOCIOLOGIA DA FAMÍLIA (1895)
31

cladc errônea em relação à pulsão unitária de nosso pen- não é, ~or~anto, como se acreditou, o anonimato do pai,
samento querer con struir, a qualquer preço, sob a di- m~s ~ ~n?~c:_rença quanto à_ su~_identidade no sentido
versidade dos fenômenos históricos, um mesmo come- fis1olC!s:!-C_ç:>. Vou citar alguns exemplos contundentes para
ço pré-histórico. ~o,st~ar a que ponto a noção de pai p ode ser puramente
.1und1ca, de todo estranha à questão do vínculo sanguí-
neo. i Em alguns povos, os meninos impúberes são noi-
II vos de moças adultas que, até a m aturidade dos primei-
ros, têm relações com outros homens, freqüentemente
Podem-se conceber como se quiser as relações pri- com o sogro. O s filhos dessas ligações são tidos então
mitivas de casamento e não-casamento. Em todo caso, sr.m ne~h ~~ p:o~le.ma, como filhos_ do menino, ' que é'
parece-m e incontestável que o núcleo fl.~ e~ t_o!"no _99 ~ propnetano JUnd1co da jovem mulher. Entre os ca-
quaj_a família cresceu não é a relação ;n.tJ:Lo h.Qm~l'll. ires, o filho herda mulheres de seu pai. Ele próprio não
e a mulher,_mas entre a mãe.e o fillw. E este o pólo es- HH toca,_ mas empresta-as a outros, e os filhos assim ge-
táv~l na seqüência de acontecimentos que assinala a vi- rudos sao seus filhos, isto é - reforçando ainda mais
da conjugal, ou ainda a relação por toda parte idêntica, li ·~n ce?ção em questão aqui - , são tidos como filhos
no essencial, enquanto a relaçã? entre os esposos é su s- do talec1do, como no casamento do 1evirato· e dado que
cetível de mutações infinitas. E por isso que, em inú- ltlda. propriedade deste Pé!SSa para o filho, ' 0 ; filhos su-
meros povos primitivos, a relação do pai de família com prnc11 ados também lhe pertenéem agora, no caso dire-
<os filhos não é em absoluto direta e baseada na n ature- l11111cnte, e não por algum ato de adoção ou reconheci-
za, como entre nós. O filho pertence à m ãe; e ao pai 1111'1\LO particular. No entanto, o caso mais notável é
0
unicamente na medida em que a mãe lhe pertence - lr 11t'> mcno, freqüente no seio das tribos primitivas, se-
do m esmo mod~qye os frutos da árvor~ pe_rtencem ao Mllltdo o qua l os homens se esforçam diretamente por
proprietário desta.M Causa ou conseqüência disso, encon- hurrr 11uas mulheres terem relações com 0 chefe, 0 sa-
tramos inúmeras vezes uma indiferen ça quase incom- llflttfufl• ou outros homens eminentes, porque crêem que
preensível a nossos olhos para com a identidade do ver- Dl f1lh1111 - que, nada obstante, são sempre seus_ her-
dadeiro pai físico da criança; desde que a mãe pertence llarlo "" rmin~ntcs qualidades de seu procriador, 0 que
a um homem determinado, o filho é dele, pou co impor- ler proveitoso pa ra eles e sua família . Portanto te-
ta que ele saiba, eventualmente, que n as veias dessa AtJlll um lllalulo de procriador claramente c~ns-
'
cnunça ""'-iD a1' a f requenc1a
n ão corre seu sangue. .. " . d o em- ... rico de conseqüências, tão nitidamente dissocia-
rn·~Rtim o C da troca de mulheres entre OS povos natu- p1tt11·11ltl11ck que nós, a cujos olhos a unidade dos
r1tiN, O riuc caracteriza as primeiras formas da família tn Jutrfliro, não somos m ais capazes de com ·
FILOSOFIA DO AMOR SOBRE A SOCIOLOGIA DA FAMÍLIA (1895) 33
<,,'
prccndê-lo. \A noção de pai teve de percorrer uma lon- te determinante das su as qualidades e do seu desenro-
ga evolução antes que seu sentido original, que incluía lar, não tinha originalmente nada a ver com ele; ao con-
apenas a posse do filho por meio da posse da mãe, se trário, as condições e conteúdos particulares do casamen-
tornasse o de uma relação direta e individual entre o pro- to decorreram de cau sas à parte, com muita freqüência
criador e o filho/ "> bastante exteriores, e fizeram nascer o amor, por su a
Essa evolução está ligada, provavelmente, à da pro- vez, como uma relação individual de coração. A princí-
.
pnedade ·
privada. t, C.Quando o h ornem a d qumu
· · e d eren-
e pio, a estrita monogamia no casamento deve-se tão-só
deu pela luta e o trabalho uma posse pessoal mais vas- à vitória do princípio democrático ./] á mencionei que,
ta, desejou deixá-la a um herdeiro de seu próprio san- em toda parte, a massa dos homens é reduzida de fato
gue. A h erança dos bens , creio eu, é a noção a partir a uma mulher única, justamente porque não há maior
da qual cresceu e fortaleceu-se a de uma transmissão do número de mulheres para cada um; portanto, quando
sangue, sob o aspecto aqui considerad~.1A paternidade a poligamia é igualmente autorizada pela lei, só a en-
não adquiriu demasiada importância enquanto não acar- con tramos de maneira regular como um privilégio de
retou conseqüências notáveis em matéria de proprieda- príncipes, de ricos, de personagens de algum modo emi-
de. Em compensação, assim que surge, esse interesse nentes. Ora, n a medida em que impõe direitos face aos
traz consigo a exigência de uma absoluta fidelidade con- poderosos, direitos não só políticos, mas também mo-
jugal da mulher, se bem que, manifestamente, a do ho- rais, a grande massa imprime às suas normas de vida
mem n ão tenha a mesma raiz e, na verdade, só alcan- próprias a marca de leis étnico-sociais a que são subme-
çará de maneira bem mais lenta o mesmo grau de ri- tidas igualmente aqueles que, a princípio, delas estavam
gor. Essa exigên cia em relação ao homem aparece pro- isentos. A monogamia, que tantos fatos etnológicos nos
vavelmente à medida que se desenvolve a igualdade entre apresentam como uma limitação exterior imposta a quem
homens e mulheres, igualdade em virtude da qual as res- não podia esperar m elhor sorte, torna-se, à medida que
trições a que as mulheres são submetidas também pare- aumenta o nivelamento social, um m andamento inte-
cem , para os homens, mandamentos da simples justi- rior, um mandamento moral para todos. Há nisso um
ça, mesmo se não vale para eles a causa real que os fez princípio de explicação idêntico àquele que permite in·
11urgi r para elas. terpretar o j ejum como um sinal de tristeza, corno j á
Todavia esse fator genético da fidelidade conjugal, acontece em muitos povos naturais. O m do d · que o
1rni1trnlmente entre muitos outros que agiram em con- espírito do falecido volte ihcitou º" pr6ximos a s conci-
Juntn !'oJn ele, sugere-nos o seguinte fato , que deve ser liarem com ele mcclinnt<' eopiu1a11 ofrrt'nda11 d · ulimcn -
lla&Jo por c:e.rto: o amor individual, que hoje, segundo ros. Mas , c.: omo otÍ víverr.N mm frtqüenciu ' t'[UTl r11ras-
1oplnll11 l(l' l'Ul , é o fundamento do matrimônio e a fon- sos , os 1mrrifYC'inA nu1 m1n11111 r111<rt1drnv11m por força
FILOSOFIA DO AMOR SOBRE A SOCIOLOGIA DA FAMÍLIA (1895) 35

l'ftr'Üt1cias, um jejum forçado que, por fim, pareceu uma do talvez tenha sido, a P!in0E_io, a maior so_ligez, a pos-
c:u11scqüência moral e religiosamente necessária de to- terior consist.ê nciª-_qu_e ª-§º-C.~d..<!d~ tirou de._yínculo _du-
do fa lecimento. Quando a monogamia se tornou uma radouros, um grupo cujos elementos estão reciprocamen-
forma permanente de casamento, somaram-se a ela, ade- te implicados em ligações firmes, em relações confiáveis,
mais, os sentimentos subjetivos , que resultam por toda em que um encontra no outro um apoio estável, fazen-
pa rte de situações estabelecidas desde há muito e que do que uma cadeia de deveres atravesse o conjunto do
atestam a adaptação dos indivíduos a estas. O que por círculo - tal grupo revelar-se-á, portanto, na luta pela
vezes ainda se diz hoje para justificar os casamentos de existência, mais consistente e mais resistente do que ou-
conveniência - a saber, que o amor viria com as núp- tro, cujos elementos não conhecem deveres mútuos, mas
cias - comporta uma indubitável verdade no caso da unicamente vínculos momentâneos, arbitrários, que não
evolução histórica de nossa espécie. Aqui produziu-se cessam de rebentar em todos os sentidos. Mas o princi-
uma inversão que a sociologia pode constatar em pon- pal objetivo social de um casamento sólido foi visivel-
tos tão numerosos quanto importantes: o que para a es- mente a melh.QL.assistênôg. fo.ruecida_àdi&ceml.ência, as-
pécie era uma causa, para o indivíduo é um efeito, e sistência que garante esta última e já leva no mundo ani-
vice-versa. A entrada em vigor do casamento monogâ- mal a relações de tipo conjugal. O c<l:~a~nto arn.u~a
mico, tal como decorria de circunstâncias econômicas m;p.a divi~_do tra_b alho e11tre homens_e, mulh~r:es que
e sociais, levou em geral ao sentimento específico de amor beneficia essencialmente os filhos: a mulher nutre os fi-
e de fidelidade por toda a vida; e agora, inversamente, lhos e o homem alimenta a mulher; ou então o homem
o nascimento de tal sentimento é o motivo para contrair traz os víveres e a mulher os prepara para ele e os fi-
matrimônio. lhos. O interesse conjunto ou concorrente dos pais para
É por semelhante inversão que se desenvolve a re- o bem-estar dos filhos torna necessariamente a geração
lação dos pais com sua descendência. Se todas as insti- seguinte mais forte física e intelectualmente do que se-
tuições públicas e permanentes decorrem de alguma fi- ria possível num grupo sem assistência comum dos pais ,
nalidade ou utilidade para o grupo social, também d e- logo, sem casamento. O casam ento cria assim, a longo
veremos perguntar: qual é, para sermos exatos , a fina- prazo, uma superioridade direta do grupo em relação
lidade origin<!_l.çlp casamento , isto é, da vida em comum a outro que ignore o casamento e em que a n ova gera-
dos pais após o n ascimento d e seus rebentos? O que in- ção continua abandonada às forças isoladas da mãe, ou
citou os seres humanos a estabelecerem alianças dura- a uma assistência comunista, desprovida de todo e qual-
douras, fontes de Qbriga_Ções, com freqüência restritiyas, quer interesse pessoal. Essa eficácia social d o casamen-
em vez de se limitarem a satisfazer momentaneamente to permite-nos compreender um caráter n otável de sua
sua paixão? A utilidade social que impeliu nesse senti- evolução . Nos povos mais diversos da terra, o casamento
:16 FILOSOFIA DO AMOU SOBRE A SOCIOLOGIA DA FAMÍLIA (1895) 37

s6 é tido como válido e contraído nas devidas form as a mas mais freqüentes sob as quais encontramos o casa-
partir do momento em que um filho nasce ou é <.:s pcra- mento nos estágios antigos da cultura é o casamento por
do. Em muitas etnias - na Ásia, na África e na Améri - compra. A mulher é, antes de mais nada, um animal
ca - a mulher fica em casa de seus pais até isso acon Lc- de trabalho, tanto quanto o escravo, e inclusive, no ní-
cer; nas Filipinas e em certo distrito do sul da Índia, não vel mais baixo de cultura, é a única com quem se possa
existe nenhum compromisso que preceda ao casamen- contar duradouramente. O desejo de conseguir uma for-
to; numa etnia da Senegâmbia, ao contrário, as bodas ça de trabalho é quase o único interesse propriamente
só são celebradas depois do noivado. Em suma, a ori- individual que leva o h om em primitivo ao casamento .
gem do casamento, assim relacionada à finalid ade so- Além disso, há apenas o desejo de ter filhos - que, de
cial qu e o faz existir por causa dos filhos, torna-o, na resto, não existe em toda parte. Um costum,e encontra-
evolução da nossa espécie, de que os povos primitivos do com freqüência mostra que esses dois dados são soli-
citados acima ainda ilustram o estágio em questão, um dários: quando a noiva foi paga a crédito, os filhos do
efeito da procriação da descendência. Do mesmo modo casamento pertencem aos pais desta até o valor total ser
que o amor foi conseqüência do casamento até o casa- saldado. A mulher é um objeto de valor econômico; é
mento se tornar uma conseqüência do amor, também por isso que seus p ais, que até então utilizavam sua for-
o amor ainda é uma conseqüência da procriação da no- ça de trabalho em seu benefício, não a abandonam a tro-
va geração até se instalar o estado de coisas inverso que co de nada, mas exigem uma estimativa aproximada do
hoje conhecemos. \Essas duas inversões revelam clara- capital que sua força de trabalho representa. A compra
mente que a evolução histórica, partindo do interesse da mulher indica, em primeiro lugar , a posição inferior
social e da norma social , conduz cada vez mais ao inte- que ela ocupa no casamento. O simples fato de sua venda
resse pelo indivíduo erigido em critério: o casamento re- significa, na maior parte dos casos, que ela não tem von-
presenta o interesse social face ao interesse individual tade própria e que seu s pais tratam-na como objeto; é
do amor e, no seio de outra categoria, a existência e a sob esse aspecto que ela entra no casamento. Trata-se,
assistência da nova geração representam o interesse so- pois, para o marido, de fazê-la trabalhar o mais possí-
cial face à questão pessoal do casamento. É por isso que , vel a fim de recuperar o preço pago por ela. Mas isso
nos estágios anteriores, os primeiros fatores citados são é apenas o aspecto exterior da forma dada ao casamen-
a causa dos últimos, enquanto nos estágios ulteriores a l o pelo processo de compra. O que adquiri com meu di-
relação de causalidade se inverte. 11l1ci ro , eu possuo inteiramente, de m aneira mais abso-
Outra evolução, que desemboca de maneira aná- lu1 ~1 do que qualquer posse que me tenha cabido por uma
loKa na inversão de seu ponto de partida, também con- livre vo ntade; semelhante aquisição, de todos os pontos
du ~ a que o amor resulte do casamento. Uma das for- d vi111a, comporta menos obrigações, impõe m enos de-

..
FILOSOFIA DO AMOR SOBRE A SOCIOLOGIA DA FAMÍLIA ( I895) 39

f'a~ncias . Isso n ão se revela tão abruptamente qu ando inferiores . As mulheres são, em geral, particularmente
o preço pago consiste em trabalhos pessoais do preten- maltratadas quando vendidas por dinheiro, sua posição
dente efetuados para os pais da noiva. Nesse caso , pelo se eleva com o desaparecimento dessa forma de casa-
menos , há uma prestação individual, um compromisso mento.
da personalidade, que deixa ao objeto assini ganho um C ontudo, a mesma forma de casam en to também
traço de valor próprio e, portanto, não o relega integral- de;envolverá necessariamente o efeito psicológico oposto.
mente à categoria de "coisa". É isso que se dá, ao con- Que as mulheres representam uma propriedade útil, que
trário, quando as mulheres são compradas por dinheiro s~jam feitos sacrifícios por elas, são dados que, no fim
ou por um valor diretamente conversível em moeda - das contas , revelam seu valor.~Por toda parte , j á disse-
gado, lenha , roupas. De todos os valores que a vida prá- ram, a posse gera o amor da posse. Fazem-se sacrifícios
tica elaborou, o dinheiro é o mais impessoal . Como serve pelo que se ama, mas, inverS-amente, também se ama
de equivalente para as coisas m ais opostas, ele perma- aquilo por que se fazem sacrifícios. Sendo o amor ma-
nece totalmente incolor, todos os valores pessoais, to- terno o motivo de inúmeras devoções, as aflições e as
das as individualizações da vida terminam com o dinhei- preocupações que as mães assumem vão ligá-las de ma-
ro, razão pela qual diz-se pertinentemente que, nas ques- neira ainda mais sólida a seu s filhos; compreende-se en-
tões de dinheiro, cessa todo sentimentalismo; ele não pos- tão que as crianças enfermas, ou desfavorecidas de al-
sui outras qualidades além da su a quantidade ; é por is- guma outra maneira, que exigem a maior abnegação da
so também que, à sua incomparável importância para mãe , costumam ser amadas por ela com a maior pai-
todas as exterioridades da vida, corresponde sua total xão . A Igreja nunca temeu pedir os m ais pesados sacri-
falta de relação com todos os valores interiores e pes- fícios pelo amor a Deus, sabendo bem que aderimos com
soais desta. Ora, essa essência do dinheiro influencia a maior firmeza e maior intimidade a um princípio quando
estimativa de todas as coisas que se adquirem por seu aceitamos fazer maiores sacrifícios em seu favor e nisso
intermédio . T udo que tem uma particularidade, uma investimos, por assim dizer, um capital mais elevado.
excelên cia bem definidas, subtraindo-se à apropriação Portanto, é psicologicamente verossímil que a compra
do primeiro que aparece, nós declaramos "inestimável". das mulheres, que, por um lado, as desclassificava a prin-
Se uma mulher se vender , seja no casamento com um cípio, deve justamente tê-las elevado, por outro lado,
homem que lhe é indiferente, seja sob formas mais fur- na estima dos homens. Pode ser até que esse momento
tivas, isso nos parecerá especialmente repugnante pela sociológico não esteja tão distante da família moderna.
razão le que o bem mais pessoal que o ser humano possa À posição relativamente boa da mulher no seio desta cor-
regnl11r é trocado, nesse caso, por um valor impessoal responde, dado o dever de manutenção por parte do ho-
como o di nheiro. Ora, o simétrico existe nos estágios mem, um sacrifício material deste último relativamen-
o /<l/,OSOF/11 !)()AMOR

h 111 111 111 111111 du q11 c o preço de compra das mu lheres


1111 111 i11 tl11H povnR ri ind a rudes. Mas dado que o dever
1 l1 1llfl io 111:tll:rial é repar tido, aqui, sobre o conjun-
1011
111 d 11 1•11 it11/lnci11, t' visto sobretudo que ele beneficia a
p1t'1p11 11 111ull1e r, e não, como antes, sua família (a tran-
11 1~ Mo ~ tl11cl;1, no caso, pelas épocas posteriores em que
llH p 11J.q deixavam o dinheiro da compra, à guisa de da-
li , w 6pria moça), acham-se justamente conservados
oH 11Hpectos do sacrifício aptos a aumentar o valor do que
O PAPEL DO DINH EIRO
Hl' f.(Ull h a com ele . O sacrifício feito para adquirir a mu- NAS R ELAÇÕES ENTRE OS SEXOS
lher , o qual, originalmente, exprimia e aumentava sua FRAGMENTO DE UMA FILOSOFIA
o pressão, su a exploração e sua reificação, j á continha
DO DINHEIRO (1898) l
a~s i111 o momento psicológico cujo desenvolvimento aca- lJ
i-
bado conduziu a uma mudança de avaliação direta da c
sua posição.

A etnologia mostra q ue a compra das mulheres não


se pratica exclusiva ou p rioritariam ente nos estágios in-
feriores d a evolução cultu ral. Um dos melhores especia-
listas n o assunto observa que os povos civilizados qu e
não conhecem o casamento por com pra pertencem, na
maioria das vezes, a raças especialmente rústicas. A com-
pra das mulheres tanto parece um fator de rebaixamen -
to no seio de uma condição su perior , como pode agir
como fator de elevação no seio de uma condição infe-
rior . Isso por duas. razões. P rimeiro, ela nunca ocorre,
a nosso conhecimento, no modo da economia individua-
lista. Ela é submetida a formas e fórmulas estritas, uo
respeito aos interesses familiares, a convenções preri111114
FILOSOFIA DO AMOR
42 O DINHEIRO NAS RELAÇÕES ENTRE OS SEXOS 43

1mbre a natureza e o montante do pagamento. Tod~ o hoje individualistas extremos que são, não obstante,
seu desenrolar tem um caráter eminentemente social. adeptos do socialismo na prática, . porque consideram-
Mencionarei apenas que o noivo tem muitas· vezes o di- no como a indispensável preparação, como a indispen-
reito de exigir, de cada membro da sua tribo, ~ma cota sável escola, por mais dura que seja, de um individua-
do preço da noiva e que essa contribuição muitas. vez:s lismo justo e puro. Assim, pois, a ordem relativamente
é distribuída na linhagem da moça. Mas a orgamzaçao fixa e o esquematismo algo exterior do casamento por
dos casamentos que vem à luz com a compra das mu- compra foram uma primeira tentativa, violentíssima,
lheres representa um imenso progresso diant: das ~on­ pouquíssimo individual, de dar às relações conjugais cer-
dições mais grosseiras do rapto nupcial, ou amda dian- ta expressão, tão adaptada a estágios ainda rústicos quan-
te dessas relações sexuais de todo primárias , que não co- to as formas de casamento mais individuais a tempos
nheciam, sem dúvida, a promiscuidade absoluta, mas mais evoluídos. A troca de mulheres, uma troca natu-
ignoravam, muito provavelmente t~bém, a firme re- ral em que poderíamos ver um primeiro grau da com-
ferência normativa que a compra socialmente regulada pra das mulheres, já adquire o mesmo sentido ante a
proporciona. A evolução da humani~ad~ ~emp~e atra: coesão social . Entre os narinyeri da Austrália, o casa-
vessa estágios em que a opressão da md1;idual1dade e mento legal propriamente dito se dá por troca das mu-
0 ponto de passagem obrigatório d~ s~u hvre desabr~­ lheres entre os homens. Quando, em vez disso, deter-
char posterior, em que a pura extenondade das condi- minada moça foge com o eleito de seu coração, n ão só
ções de vida se torna a escola da interioridade, em que é tida como socialmente inferior, como, além disso, perde
a violência da modelagem produz uma acumulação de o direito à proteção que lhe é devida pela horda em que
energia, destinada, em seguida, a gerar ~od~ a :s?eci~­ nasceu. Temos aí um fato que traduz claramente opa-
cidade pessoal. Do alto desse idea_l que, e a md1v1du~i­ pel social desse modo de casamento eminentemente pou-
dade plenamente desenvolvida, tais penod~s parecerao, co individual. A horda não protege mais a moça e rom-
é claro, grosseiros e indignos. Mas, para dizer a ver~a­ pe suas relações com ela, porque nenhuma contraparti-
de além de semear os germes positivos do progresso vm- da foi obtida por sua pessoa. ·
do~ro, já são em si uma manifestação do espírito ex~r­ Isso nos leva ao segundo fator de elevação cultu ral
cendo sua dominação organizadora sobre a maténa- ligado ao casamento por compra. Que as mulheres re-
prima das impressões flutilantes , uma aplicação das fi- presentam uma propriedade útil; que sejam feitos sa-
nalidades especificamente humanas, procurand? elas crifícios em vista da sua aquisição, são fatos que, no fim
próprias fixar suas normas de vida - do m?do mais bru- das contas, revelam seu valor. Por toda parte , como foi
tal exterior ou mesmo, estúpido que seja - , em vez dito, a posse gera o amor da posse. Fazem-se sacrifícios
de ' recebê-las das
' simples forças da natureza. E. xistem por aquilo que se ama, mas, inversamente, também se
FILOSOFIA DO AMOR O DINHEIRO NAS RELAÇÕES ENTRE OS SEXOS 45

ama aquilo por que se fizeram sacrifícios. Como o amor ma como de toda a sua família, a tal ponto que seu s pró-
materno é o móbil de inúmeras devoções, as aflições e prios filhos serão considerados bastardos e nada mais que
preocupações que as mães assumem vão ligá-las ainda lSSO.
mais solidamente aos filhos; compreende-se, então, que É capital aqui que as diferenças de preço - social-
as crianças doentes, ou desfavorecidas de ou tro modo, mente fixados ou estabelecidos por negociação indivi-
que exigem a maior abnegação da mãe, costumam ser dual - traduzem diferenças de valor entre as esposas.
amadas por ela com a maior paixão. A Igreja nunca te- Relata-se que as mulheres cafres não sentem em abso-
meu pedir os mais pesados sacrifícios pelo amor a Deus, luto sua venda como um aviltamento; ao contrário, a
sabendo bem que aderimos de maneira tanto mais fir- moça orgulha-se dela, pois qu anto mais bois e vacas cu s-
me e mais íntima a um princípio quanto mais elevado , tou , mais atribui valor a si mesma. Notar-se-á várias
por assim dizer, for o capital que n ele investim os. Por- vezes que uma categoria de objetos determinados ad-
tanto , embora a compra de mulheres exprima no ime- quire um valor mais consciente desde que cada um pe-
diato sua opressão, sua exploração, sua reificação, ain- ça para ser apreciado em particular, e que fortes dife-
da assim elas adquiriram valor com isso, primeiro para renças de preço façam sentir o valor sempre novo e sem-
o grupo parental que recebia o preço de sua venda, de- pre vivo; enquanto em outros estágios da avaliação, co-
pois para o marido, aos olhos de quem representavam mo vimos acerca do wergeld, a uniformidade da indeniza-
um sacrifício relativamente elevado, de modo que, em çilo é justamente o que aumenta o significado objetivo
seu próprio interesse, ele devia tratá-las com deferên- da contrapartida. Assim, a compra de mulheres com-
cia. Em relação às idéias avançadas, esse tratam ento ain- porta um primeiro meio, grosseiríssimo decerto, para
da é bastante miserável; ademais, os outros m omentos fuzcr sobressair o valor individu al de determinada mu-
degradantes que acompanham a compra das mulheres lher em particular, portanto também, de acordo com a
podem obstaculizar essa vantagem , a tal ponto que su a regro. psicológica mencionada acima, o valor das mu-
situação tornar-se-á o cúmulo da desolação e da servi- lhere11 cm geral. Como quer que seja, também em ma-
dão. Nem por isso deixa de ser verdade que essa com- t~riíl de aquiaição do mulheres o estágio maiAbaixo é
pra de mulheres deu uma expressão evidente e penetrante aquele cm que a tradlçlo flxa um preço uniforme para
ao fato de que têm um valor - isso num contexto psi- &odu, como em llpn1 povOI africano1.
cológico em que se paga por elas porque elas valem al- .._ com toda clareza
l(Uma coisa, e em que elas valem alguma coisa porque 1lmple1 c1p6·
18 paga por elas. É compreensível então que, em certas &ul, com wdail
U'lbo1 da América, a cessão de uma moça sem pagamento ••llnto por com-
1 com1iclerada um aviltamento grave, tanto dela mes- ..rle de povo~,
O DINHEIRO NAS RELAÇÕES ENTRE OS SEXOS 47
46 FILOSOFIA DO AMOR

sobretudo da Índia, corno infamante, enquanto em ou- mo, em. gera;,.ª dos seres mais fracos. Em meio aos po-
vos mais prox1mos da natureza vemos hoje em dia as
tros lugares é praticado, mas teme-se a palavra e apre-
senta-se o preço a pagar como um presente espontâneo duas fori::as c~e~istirem com freqüência. Esse fato pro-
va que nao ha diferença maior no tratamento das mu-
aos pais da noiva. Aqui se assinala a diferença entre o
lheres, se bem que , grosso modo, a oferta de um valor
dinheiro propriamente dito e as prestações de outra na-
t~o pessoal quanto a prestação de serviços põe necessa-
tureza. Diz-se dos lapões que eles dão as filhas contra
namente a mulher acima de uma escravidão, muito mais
presentes, mas julgam inconveniente receber dinheiro
que o faz sua compra a dinheiro ou valores substanciais.
por elas. Com respeito a todas as outras condições, tão
Mas a isso também se aplica o que podemos reparar em
complexas, de que a situação das mulheres depende, pa-
toda parte, a saber: a diminuição e o aviltamento do valor
rece que a compra monetária propriamente dita rebaixa-
hu?1~no assim adquirido são inversamente proporcio-
as muito mais que os presentes ou as prestações pessoais
nais as somas pagas . Porque, num nível muito elevado
do noivo aos pais da noiva. No presente, dado seu va-
o valor monetário possui uma raridade que lhe confer;
lor mais indeterminado, assim como sua escolha mais
uma cor mais individual , menos intercambiável, e que
individual - ainda que essa liberdade fosse recoberta
pela convenção social - , há algo mais pessoal do que por:anto faz dele um melhor equivalente dos valores pes-
soa~s . Entre os gregos da época heróica, há presentes ofe-
na soma de dinheiro com sua implacável objetividade.
Ademais, o presente realiza a junção com essa fórmula recidos pelo noivo ao pai da noiva, mas que não repre-
s:ntam uma verdadeira compra, ao passo que a situa-
mais evoluída que, por sua vez, leva ao dote, pelo qual
çao das mulheres é particularmente boa. Esses donati-
aos presentes do noivo.correspondem os dos pais da noi-
vos, sublinha-se, eram relativamente consideráveis. Por
va. Portanto, o poder absoluto de dispor da mulher é,
mais humilhante que pareça comprometer contra dinhei-
em princípio , quebrado, porque o valor recebido do ho-
mem comporta em si certa obrigação; já não é ele o único ro s~ja a interioridade do ser humano, ·seja a totalidade
a oferecer uma prestação, pois a outra parte também tem deste, o montante inabitual das somas em jogo poderá
no entanto criar, como provarão melhor ainda os exem-
um direito a exigir. Pretendeu-se também que a aquisi-
ção das mulheres por um trabalho representava uma for- plos seguintes, uma espécie de compensação tendo em
ma de casamento superior à compra direta. Parece, po- v.ista, em particular, a posição social do intercsHado. As-
rém, que se trata da forma mais antiga e menos civili- •tm, ficamo111bcndo que Eduardo II e Eduardo III en·
r.adn, o que não impediria em absoluto que fosse acom- lregavam 1eu1 amlp como rc1t•n1, enquanto e1•pernvam
panhnda de um melhor tratamento das mulheres. Por- papr o..._ 1 • lMOt o arcobl1po dn Can·
..,.... .Uante r.omo fil\nçn
"''' em Ai, a economia mais desenvolvida, de caráter
1tlrio, degradou muito a situação delas, bem co- _....,...,elo rol. A nii.gnltudc
FILOSOFIA DO AMOR O DIN HEIRO NAS RELAÇÕES ENTRE OS SEXOS 49

elas 11omas envolvidas preservava a priori da desclassifi- grau de independência e consideração junto aos homens.
cação as pessoas assim comprometidas por dinheiro, o
,. Ao que se soma o fato de, em condições primitivas, os
que não aconteceria no caso de bagatelas. filhos possuírem para o pai um valor econômico direto,
Do casam ento por compra, que sem dúvida pre- ao passo que , em condições superiores, constituem não
dom inou em determinado momento na maioria dos po- raro um fardo econômico. O proprietário inicial, o pai
vos, ao princípio oposto do dote, a passagem se deu pro- ou o clã, não tem a menor razão de abandonar tal valor
vavelmente como já foi indicado: os donativos do noivo a outrem sem uma compensação. Nesse estágio, a mu- .
foram entregues pelos pais da noiva a esta, a fim de lhe lher não se limita a ganhar sua própria subsistência, e
garantir certa independência econômica; o enxoval da o homem pode recuperar o preço pago por ela direta-
,i ovem esposa, dado pelos pais, subsistiu mais tarde e se mente do trabalho que ela fornece. Tudo muda quando
desenvolveu, mesmo quando desapareceu a cau sa ori- a economia perde seu caráter familiar e o consumo não
ginal, a soma paga pelo esposo. Não tem interesse ape- se limita mais ao que se produz para si mesm o. Vistos
gar-nos aqui a essa evolução mal conhecida. Todavia, do lar , os interesses econômicos cindem-se em duas di-
poderemos su stentar que o dote tende a se generalizar reções opostas, centrífuga e centrípeta. A oposição se de-
com o desenvolvimento da economia monetária. O que senvolve entre a produção mercantil e a economia do-
se encadeará como segue. Nas situações primitivas em méstica; su scitada pelo dinheiro, ela acentua a divisão
q ue reina a compra das mulheres, estas últimas não são do trabalho entre os sexos. Por causas fáceis de se com-
simples bestas de carga (continuarão a sê-lo em segui- preender, a atividade voltada para o interior cabe à mu-
da, em muitos casos), mas seu trabalho ainda não é ver- lher e a atividade voltada para o exterior ao homem, con-
dadeiramente '' doméstico' ', como será na economia mo- sistindo a primeira, cada vez mais, em utilizar e admi-
netária, onde consiste principalmente em gerir no lar nistrar os produtos da segunda. Assim , a mulher perde
o consumo dos rendimentos do homem. Nessas épocas o que seu valor econômico tem de substancial e de evi-
anteriores, a divisão do trabalho ainda não está muito dente, parece doravante mantidà pelo trabalho do ma-
avançada, as mulheres participam de forma m ais dire- rido. Não só, portanto, desaparece a razão de exigir e
ta da produção, apresentando portanto para seu proprie- de consentir um preço para sua compra, mas também
tário um valor econômico mais tangível. Essa conexão ela representa, pelo menos de um ponto de vista gros-
HC fo rtalece eventualmente até uma época bastante tar- seiro, um fardo que o homem assume e com que tem
din. Enquanto Macaulay via n a execu ção dos grandes de se preocupar. O dote encontra nisso seu fundamen -
trnbalhos agrícolas pelas mulheres na Escócia um esta- to; portanto, ele aumentará tanto mais q uanto mais se
do d<' atraso bárbaro do sexo feminino , um especialista dissociarem as esferas de atividade m asculina e femini-
no " llHU nlo sublinhava que elas obtinham com isso certo na no sentido acima indicado. N um povo como os ju-
50 FILOSOFIA DO AMOR O DIN HEIRO NAS RELAÇÕES ENTRE OS SEXOS 51

de us, em que , em conseqüência de um temperam ento noivo destinados à compra da mulher, ou à própria m u-
1
m ais instável e de outros fatores, os homens eram bas- lher , inclusive o presente de núpcias e o pretium virgini-
tante móveis e as mulheres, por uma correlação neces-
' tatis , podem se apresentar e se apresentam de fato como
sária, mais estritamente limitadas ao lar, encontramos presentes em _espécie ou em dinheiro, o comércio não
a prescrição legal do d ote desde antes do pleno desen- conjugal acompanhado de pagamento requer, em geral,
volvimento da economia monetária, que leva, de seu la- a forma monetária. Só semelhante transação corresponde
do, ao mesmo resultado. Só esta última permite à pro- bem a essa r elação estabelecida, permite uma adequa-
dução conhecer a técnica objetiva, a expansão, a rique- ção muito melhor a ela do que a oferta de qualquer ou-
za relacional e, ao mesmo tempo, a divisão unilateral tro objeto qualificado, ao qual permanece facilmente vin-
do trabalho, que cindem o estado de indiferença primi- culado-, por seu conteúdo, sua escolha e seu u so-,
tivo entre interesses domésticos e interesses lucrativos, o toque da pessoa que faz a oferta . Ao desejo que cul-
requerendo portanto agentes individuais difere ntes no mina de imediato e que expira não menos depressa, tão
caso dos primeiros e dos segundos. Entre o homem e bem servido pela prostituição, só convém o equivalente
a mulher, a escolha não deixa margem a dúvidas, e não monetário, que não estabelece compromisso algum e per-
é menos claro que o preço da noiva, cuja força produti- manece, em princípio, disponível e bem-vindo a todo
va o homem comprava, deve ser então substituído pelo instante. Tratando-se d as relações inter-humanas, que
dote, que compensa a m anutenção da esposa não pro- buscam pela essência a duração, assim com o a verdade
dutiva, ou que concede a esta independência e segurança interior das forças de ligação (ver, por exem plo, a rela-
junto ao marido que ganha sua vida. ção amorosa autêntica, por mais pronta que esteja a
A es~reita conexão, no seio da economia monetá- desfazer-se) , o dinheiro nunca poderá ser um m ediador
ria , entre o dote e o regime geral da vida - que r se tra- adequado; mas, tratan do-se do prazer venal, que recu -
te de garantir a sorte do homem, quer d a mulher - ex- sa toda relação para lá do instante e da pulsão sexual ,
pli ca bastante bem por que, finalmente, na Grécia co- esse mesmo dinheiro, por se destacar inteiramente da
mo cm R oma, o dote se torna o critério da esposa legí- personalidade, uma vez pago, e por romper radicalmente
tima por oposição à concubina . De fato, a concubina com toda outra espécie de con seqüência, é a prestação
nã.o conhece outra exigência com respeito ao homem, mais perfeita , tanto de um pon to de vista real como sim-
d · 1110do que ele não precisa ser compensado do que quer bólico : pagar em dinheiro é terminar radicalmente com
que seja, nem ela ser garantida contra uma promessa tudo, assim como com a prostituta depois da satisfação.
11 o 111 a11tida. Eis o que leva à prostituição, própria pa- Na prostituição, a relação intersexos, reduzida sem equí-
1.1 lnn nr um a nova luz sobre o papel d o dinheiro na re- vocos ao ato sensual, vê-se rebaixada a seu pu ro con-
ltt~ 1 11 1•111 rc os sexos. Enquanto todos os donativos do te údo genérico; ela consiste no que cada exemplar da
52 FILOSOFIA DO AMOR O DINHEIRO NAS RELAÇÕES ENTRE OS SEXOS 53

espécie pode fazer e sentir, e no que possibilita o en con- tir não parece concordar muito com o fato sublinhado
tro de personalidades opostas sob outros aspectos, pa- acima, a saber: a relação sensual entre os sexos é de es-
recendo assim abolir todas as diferenças individuais. O sência puramente genérica, de modo que nela , realida-
dinheiro é, pois, a contrapartida econômica desse mo- de absolutamente geral, e além disso comum a nós e ao
do de relação, dado que ele também representa o tipo reino animal, se aboliria toda personalidade , toda inte-
genérico dos valores econômicos, o que é comum a to- rioridade própria. Se os homens se mostram tão propen-
dos os valores particulares. sos a falar de mulheres " no plural", a pô-las no mesmo
Eis como o terrível aviltamento da prostituição en- saco para julgá-las em bloco, uma das razões disso é com
contra em seu equivalente monetário sua expressão mais certeza a seguinte: o que nas mulheres interessa parti-
nítida. O nível inferior da dignidade humana é alcan- cularmente aos homens de sensualidade grosseira é o que
çado quando, por uma retribuição tão anônima, tão ex- elas têm de semelhante, da costureira à princesa. Pare-
terior e tão objetiva, uma mulher concede o que ela pos- ce, pois, excluído atribuir um valor pessoal a essa fun-
sui de mais íntimo e mais pessoal e que não deveria sa- ção, tendo as demais funções a mesma generalidade. Co-
crificar a não ser por um impulso totalmente individual, mer e beber, as atividades fisiológicas, ou mesmo psi-
contrabalançado por uma doação não menos individual cológicas, o instinto de conservação tanto quanto as fun-
do homem - por mais diferente que deva ser o sentido ções tipicamente lógicas, nunca são associadas de ma-
desta doação em relação à da mulher. Sentimos aqui a
neira solidária à personalidade como tal, e nunca se sen-
mais total e penosa disparidade entre a prestação e sua
tirá que alguém, exercendo ou apresentando o que tem
contrapartida; ou antes: o aviltamento da prostituição
indistintamente em comum com todos, exprime ou ce-
se deve justamente ao fato de que ela degrada a posse
de o que tem de mais íntimo, de mais essencial , de mais
mais pessoal, mais "reservada" da mulher, a tal ponto
global. Ora, a doação sexual da mulher comporta, ine-
que o valor rriais neutro e mais anônimo é tido como
gavelmente, tal anomalia. Esse ato totalmente genéri-
seu equivalente adequado. Dito isso, a definição da pros-
co, idêntico em todas as camadas da humanidade, tam-
tituição como retribuição monetária se choca com algu-
mas considerações inversas, a serem desenvolvidas pa- bém é de fato experimentado - num aspecto , em todo
ra lançar plena luz sobre esse significado do dinheiro. caso - como um ato eminentemente pessoal, que com-
promete sua interioridade . Uma explicação seria que as
mulheres são ainda mais imersas na e11pécie que os ho-
' II mens, conhecendo estes últimos uma diB·rcnciação e uma
individualização mais extremas. Di11r10 rcsultnria, em pri-
O r nráte r totalmente pessoal, intimam ente indivi- meiro lugar, que o ele rnont u gont"rioo e u elemento pes-
chall, do q~1e tl doação sexual da mulher deveria se reves- soal coincidiriam melhor n tts mulheres. Se, de fato, elas
!14 FILOSOFIA DO AMOR
O DIN HEIRO NAS RELAÇÕES EN TRE OS SEXOS 55
eslão ligadas m ais estreita e intensamente que os homens
de modo diferente as multas que o noivo ou a noiva de-
ao fundo primordial , obscuro, da natureza , então o es-
vem pagar em caso de ruptura unilateral do noivado .
sencial de sua personalidade está ancorado de m aneira
Assim, entre os bakaks, ela deve pagar cinco florins e
ainda mais sólida também nessas funções eminentemente
ele dez; entre os habitantes de Benkulen, o noivo que
naturais e universais que garantem a unidade da espé-
não respeita o contrato, quarenta florins, a noiva ape-
cie. E, em segundo lugar, resultará ainda que a homo-
nas dez. O sentido e os efeitos que a sociedade vincula
geneidade do sexo feminino - em virtude da qual o que
à relação sensual entre o homem e a mulher pressupõem
todas as mulheres têm em comum se distingue menos
portanto, também, que esta última ponha na troca to-
claramente do que cada uma é para si - deverá refletir-
do o seu eu com todos os seus valores, e o primeiro,
se na maior homogeneidade de seu ser individual. A ex- ' ,
nada mais que uma parte da sua personalidade. E por
periência p arece confirmar que as forças, as qualidades
isso que a moça que comete fal ta perd e a sua " h onra "·
.,
e as impulsões singulares das mulheres , do ponto de vista
por isso também o adultério da mulher é condenado mais
p sicológico, estão ligadas de maneira mais imediata e
gravemente que o do homem, parecendo-se admitir q~e
mais íntima do que nos homens, cujos traços caracte-
as ocasionais extravagâncias deste, puramente sen su ais,
rísticos se desenvolverão com mais autonomia, perma-
pelo menos ainda podem se conciliar com a fidelida?e
necendo portanto o devir e o destino de cada um deles
conjugal , no que esta tem de íntimo e essencial; por is-
bastante independentes do que são no conjunto dos ou-
so, enfim, a prostituta é irremediavelmente rebaixada,
tros. A essência da mulher - assim, pelo menos, será
enquanto o pai libertino, pelos demais aspectos da su a
resumida a opinião geral a seu respeito - vive muito
personalidade, será sempre capaz de safar-se do atolei-
mais sob o signo de um' 'ou tudo, ou nada'' , suas incli-
ro e conquistar uma posição social. Portanto, no ato pu-
n ações e suas atividades são melhor integradas, a tota-
ramente sen su al que define a prostituição, o homem só
lidade de seu ser se subleva mais facilmente do que no
compromete o mínimo do seu eu, já a mulher compro-
homem a partir de um só ponto, afetos, volições e pen-
m ete o máximo - não, é claro, cada vez em particular,
samentos incluídos. Se assim é, e staremos relativamen -
mas no geral. Um tipo de relação que permite compreen-
te fundados ao supor que a mulher, pela oferta dessa
der o p roxe netismo t ão bem quanto os casos de lesbia-
função central, dessa parte de seu eu, dá toda a sua pes-
nismo entre as prostitutas, considerados freqüentes: como
ROa com mais integridade , com menos reserva do que
tiram forçosamente de suas relações com os homens, em
o ho mem , mais diferenciado, o faz nessa ocasião . D es-
que estes não põem sua plena e inteira humanidade, tão-
ci~ 0 11 stágios ainda bastante inocentes da relação ho-
só um vazio e uma insatisfação terríveis, elas procuram
mum/mulher, impõe-se entre os parceiros essa dispari-
um complemento através de relações que, ao menos, ain-
~e df' p1tp6is; mesmo os povos primitivos normatizam
da concernem a alguns outros aspectos dessa m Am l\ h11 ·
1
1

FILOSOFIA DO AMOR O DINHEIRO NAS RELAÇÕES ENTRE OS SEXOS 57

ruanidade . Assim, pois, nem a idéia de que o ato sexual borough , dizia-se que seu sucesso com as mulheres vi-
é algo genérico e anônimo, nem o fato de o homem, visto nha de que ele aceitava dinheiro da parte delas. A su-
do exterior, dele participar tanto quanto a mulher po- perioridade , logo notada , de quem dá o dinheiro sobre
dem alterar o estado de coisas afirmado mais acima, a quem o recebe , superioridade que se torna a m ais terrí-
saber: o comprometimento da mulher é infinitamente vel distância social no caso da prostituição, proporcio-
_J
na à mulher, nesse exemplo inverso, o contentam ento
mais pessoal, mais essencial, mais globalmente envol-
de ver depender dela o homem que ela estava habitua-
<
vente para o eu do que o do homem , e portanto o equi- °'
l-
valente m onetário é o menos apropriado , o menos ade- da a olhar de baixo. zUJ
quado que se possa imaginar, a oferta de dinheiro e sua Eis-nos porém, agora, diante de um fenômeno sur- u
aceitação são o pior: reba ixamento da personalidade fe- preendente: cm inúmeras civilizações m ais primitivas,
minina . O aviltamento pela prostituição ainda não de- a prostituição não é vista, em absoluto, como degrad ante <
u
ou desmoralizante. Relata-se que , na Ásia , outrora, as u.I
corre, tomado em si, de seu caráter poliândrico , do fato i-

de que a mulher se dê a vários homens; aliás, a polian- mulheres de todas as classes se prostituíam para adqui- o
rir o preço de um enxoval ou de uma oferenda ao te- .....1
dria não raro proporciona à mulher uma preponderân- ~

cia bastante nítida, por exemplo na Índia, no grupo de souro do templo, como ouvimos dizer ainda hoje de cer- iii
posição relativamente elevada dos negros. Em outras pa- tas tribos negras para o primeiro desses motivos. Essas
lavras, a única coisa que conta no caso não é que a pros- mulheres, inclusive muitas vezes as princesas, nada per-
tituição signifique poliandria, mas poliginia. Em toda dem então da estima pública, e sua vida conjugal em
parte , esta deprecia incomparavelmente o valor próprio seguida não sofre nenhum preconceito com o caso. Es-
da mulher , que perde seu valor de raridade. Do exte- se abismo em relação a nosso modo de sentir significa
rior, a prostituição conjuga poliandria e poliginia. Mas que ambos os fatores - a honra sexual da mulher e o
a vantagem constante de quem dá o dinheiro em rela- dinheiro - acham-se, aí, numa relação fundamental-
ção à quele que dá a mercadoria acarreta que só a poli- mente diferente. Se a situação da prostituição se assina-
ginia, que concede a o homem uma formidável prepon- la entre nós pelo abismo intransponível entre os dois va-
derância, d etermina o caráter da prostituição. M esmo lores, por su a total incomensurabilidade, esses valores
cm circ unstâncias que nada têm a ver com a prostitui- não poderão deixar de se aproximar em condições que
çilo, as mulheres de ordinário acham penoso e degra- geram outra visão da prostituição. Isso deve ser posto
d&nte receber dinheiro de seus amantes , ao passo que, cm paralelo com os resultados a que levou a evolução
com freqüência, essa impressão não se estende a outros do wergeld, a multa m on etá ria por homicídio. A valori-
llDJ1to11 oferecidos; em compensação, elas terão prazer zação crescente da alma humana e a desvalorização pa-
•d~açlo em da r dinheiro a esses am antes. D e M arl- ralela do dinheiro se conjugaram para tornar o wergeld
5ll FILOSOFIA DO AMOR O DINHEIRO NAS RELAÇÕES ENTRE OS SEXOS 59

impossível. O mesmo processo de diferenciação que con- III


fere ao indivíduo sua tonalidade particular , seu aspecto
relativamente incomparável, faz do dinheiro o critério No vasto conjunto de reflexões sobre o "casamen-
e o equivalente de objetos tão opostos, que a indiferen- to por dinheiro" ligado ao que precede, três considera-
ça e a objetividade daí resultantes revelam-no cada vez ções parecem-me importantes com respeito à evolução
mais inapto a contrabalançar os valores pessoais. Essa semântica do dinheiro, aqui em quest_ã o.
desproporção entre a mercadoria e o preço a pagar, que-' Em primeiro lugar, os casamentos que obedecem
proporciona seu caráter à prostituição em nossa cultu - apenas à motivação econômica não só sempre existiram,
ra, não é a mesma no seio de sociedades menos evoluí- em toda época e todo estágio de civilização, como tam-
das. Quando os viajantes relatam que, em numerosíssi- bém se encontram com maior freqüência no seio dos gru-
mas tribos primitivas, as mulheres apresentam uma no- pos menos evoluídos, nas situações mais primitivas, onde
tável similitude corporal e, com freqüência, também in- não provocam, de ordinário, nenhuma espécie de escân-
telectual com os homens, acaso não falta justamente a dalo. A perda da dignidade pessoal que hoje decorre dos
essas mulheres a diferenciação que proporciona às mu- casamentos que não são fruto da inclinação individual
lheres mais civilizadas, à sua honra sexual, um valor não - perda tal, que parece um dever de conveniência lan-
substituível por dinheiro, mesmo quando elas aparecem, çar um véu sobre a motivação econômica - não é sen-
confrontadas aos homens do mesmo meio, menos diferencia- tida em condições culturais mais simples. A causa de se-
das, mais arraigadas no tipo genérico? A apreciação da melhante evolução é que a individualização crescente tor-
prostituição mostra, assim, exatamente a mesma evo- na cada vez mais contraditórias e aviltantes as relações
lução que podemos constatar no caso da penitência ecle- puramente individuais estabelecidas por motivos que não
siástica e da multa do sangue: nas épocas ditas primiti- os puramente individuais. Numa sociedade de elemen-
vas, a totalidade do ser humano, incluídos os valores in- tos bem pouco diferenciados, também pode ser relati-
teriores, tem um caráter relativamente pouco individual; vamente indiferente conhecer os casais que se formam
já o dinheiro, vista a sua raridade, seu uso restrito, tem - indiferente com respeito à vida conjugal, mas tam-
um caráter relativamente mais individual. Uma evolu- bém aos filhos que nascem. De fato, quando globalmente
ção divergente vai tornar impossível compensar o pri- concordam no seio do grupo as constituições físicas, os
meiro pelo segundo, ou então, quando subsiste tal pos- estados de saúde, os temperamentos, as formas e orien-
•lbilidade, como com a prostituição, daí resulta uma ter- tações de vida, tanto interiores como exteriores, o êxito
rfvel desvalorização da personalidade. du dellccndência não depende de uma seleção tão deli-
Cfttla do casal parental chamado a combinar e se com-
pltltnr, qua nto a que uma sociedade altamente diferen-
flO FILOSOFIA DO AMOR O DINHEIRO NAS RELAÇÕES ENTRE OS SEXOS 61

rlnda rl'qucr. E é perfeitamente natural e útil deixar ou- certo, tanto p~.fi.a como goligiilja, mas, dada a he-
ll' llH 111 0 1iva\;Ões, além da pura inclinação individual, de- gemonia social do homem, só se manifestarão ativamente
lcrmina rcm a opção conjugal. Esta última, em contra- os efeitos da poliginia, isto é, do fator desmoralizador
pnrtida , deveria sobressair-se no seio de uma sociedade para a mulher . Acaso não parece que o casamento por
basl ante individualizada, onde se tornam cada vez mais dinheiro deva sempre degradar interiormente, como uma
raros os indivíduos que se harmonizam. Ora, n ão temos prostituição crônica, a parte movida pelo dinheiro, quer
aciui nenhum outro critério e nenhum outro sinal além se trate do h omem, quer da mulher? Mas isso não acon-
da inclinação mútua no que ela tem de instintivo.Já que tece normalmente. No casamento, a mulher na m aio-
a felicidade estritamente pessoal é um interesse que os es- ria das vezes envolve a totalidade de seus interesses e
posos têm de acertar sozinhos, não haveria razão impe- de sua energia; ela compromete sua personalidade, cen-
rativa para simular oficialmente, com tal aplicação, a mo- tro e periferia , integralmente, enquanto o homem casa-
1,
tivação erótica em questão, se a sociedade atual não fosse do não só vê os costumes concederem-lhe uma liberda-
obrigada a insistir sobre a dominação exclusiva destapa- de de movimento muito maior, como também não traz
ra o êxito da descendência. O casamento por dinheiro cria, de saída à relação conjugal o essencial da sua per sonali-
de saída, um estado de pan-mesclagem - de acoplamento dade, ocupado por sua profissão. Tal como se apresen-
sem combinação, em detrimento das qualidades indivi- ta a relação entre os sexos na nossa cultura, o homem
duais - , em que a biologia vê a cau sa da degeneração que se casa por dinheiro se vende menos que a mulher
m ais imediata e m ais funesta para as espécies. A união no caso análogo . Pertencendo mais ao homem do que
do casal é determinada, aí, por um fator absolutamente este a ela , a mulher corre maiores riscos contraindo um
estranho aos fins genéricos, do mesmo modo que as con- casamento sem amor. Portanto, como a construção psi-
siderações de dinheiro separam com bastante freqüência cológica deve paliar aqui às insuficiências d a experiên-
os seres feitos para se pertencerem, e devemos ver nesse cia empírica, sou levado a crer que o casamento por di-
tipo de casamento uma causa de decadência, ao passo que, nheiro desenvolve principalmente suas conseqüências
na mesma medida, a diferenciação mais acentuada dos mais trágicas - sobretudo se envolver naturezas mais
indivíduos não cessa de aumentar a importância da esco- finas - onde a mulher é comprada. Nesse caso, como

llha segundo as afinidades individuais. Nesse caso tam-


bém, pois, é a maior individualização no seio do grupo
que torna o dinheiro cada vez mais inapto a servir de me- jl
em inúmeros outros, as relações instauradas pelo dinhei-
ro têm a particularidade de que a preponderância even -
t ual de uma das partes será, por conseguinte, explora-
diador das relações puramente individuais. da ao máximo, e até mesmo acentuada a fundo. É, a
Em segundo lugar, ressurge aí, numa forma bastante priori, a tendência de toda relação semelhante. A situa-
modificada, a observação sobre a prostituição: esta é, por ção do primus inter pares logo se torna a do primus puro
62 FILOSOFIA DO AMOR O DIN HEIRO NAS RELAÇÕES ENTRE OS SEXOS 63

e simples; o avanço adquirido em qualquer domínio não diferenciado que seja, um correspondente no seio do ou-
é mais que a etapa que permite ir mais longe ainda, apro- tro sexo em que ele se completa e encontraria o cônjuge
fundar o abismo; a obtenção de posições privilegiadas " que lhe convém" . O único obstáculo é a dificuldade
revela-se ainda mais cômoda, se já se está em posição de se encontrar, para esses predestinados. O absurdo da
mais elevada; em suma, as relações de superioridade se sorte humana não pode se revelar de modo mais trági-
desenvolvem, de costume, em proporções crescentes, e co do que no celibato ou no casamento infeliz de dois
a "acumulação do capital" é um caso decorrente de uma estranhos que só precisariam se conhecer para obter um
norma bastante geral, que se aplica também a todas as do outro o máximo de felicidade. O aperfeiçoamento de-
esferas de poder estranhas à economia. Mas estas últi- finitivo do anúncio matrimonial racionalizaria, sem dú-
mas respeitam, sob vários aspectos, certas precauções, vida nenhuma, o acaso cego dessas relações, e tem-se
comportam certos contrapesos que freiam a avalancha com tal sistema um dos maiores fatores de civilização,
das superioridades; assim se dá com os costumes, a pie- pelo qual o indivíduo se dá uma oportunidade infinita-
. dade, o direito e os limites atribuídos à expansão dopo- mente mais elevada de satisfazer de maneira adequada
derio pela natureza intrínseca dos interesses envolvidos. seus desejos do que se estiver reduzido a descobrir seu
Vista a sua docilidade, sua total ausência de qualidade, objeto diretamente, pela mais pura das contingências.
o dinheiro é o menos apto a deter tal tendência. Por is- A maior individualização das necessidades torna o anún-
so, quando parte de um interesse financeiro, uma rela- cio matrimonial rigorosamente necessário, pois permi-
ção em que a vantagem e a supremacia se encontram te a extensão da oferta. Se, no entanto, ele permanece
a priori de um só lado se desenvolverá na direção dada - fora de questão nas camadas sociais feitas de personali-
mantendo-se iguais todas as demais circunstâncias - de dades mais diferenciadas, as quais, em princípio, deve-
maneira bem mais ampla, radical e decisiva do que se riam ser mais tributárias dele, essa aversão precisa ter
outras motivações, concretamente determinadas e de- uma razão bastante positiva. Se examinarmos os anún-
terminantes, estivessem em sua base. cios publicados, observaremos que a situação de fortu-
Em terceiro lugar, o casamento por dinheiro reve- na dos indivíduos que pedem ou são pedidos é sua mo-
la claramente seu caráter através de um fenômeno bem tivação central , por mais que esteja mascarada. Que há
particular: o anúncio matrimonial. O fato de este ser de mais compreensível, de resto? Nenhuma outra qua-
de uso tão restrito , limitado à classe média, poderia pa- lidade pessoal se presta a uma definição precisa ou con-
recer surpreendente e lamentável. Porque, apesar de toda vincente . Nem o aspecto ou o caráter, nem o grau de
1 lndividualização das personalidades modernas aqui ob- amabilidade ou de intelectualidade descrevem-se tão fa-
rvada, apesar de toda a dificuldade da opção conju- ,&lm1ntc para deixar uma imagem inequívoca, suscitan·
' uo da{ decorre, ainda há para cada ser, por mais o lncore11e individual. A única coisa que, cm todos
1:

64 FILOSOFIA DO AMOR O DINHEIRO NAS RELAÇÕES ENTRE OS SEXOS 65

os casos, pode ser definida com inteira certeza é a situa- gem bem situado, que se podia notoriamente possuir por
ção financeira das pessoas, e a faculdade humana de re- d 100.000 ou 200.000 francos. Nesse episódio, por certo
presentação tende inevitavelmente a privilegiar, entre baseado num fato histórico, ele conta primeiro que a mu-
as múltiplas determinações de um objeto, as que podem lher em questão freqüentava os círculos mais distintos
ser indicadas ou conhecidas com uma justeza e uma exa- e, em seguida, que seus amantes conhecidos como tais
tidão máximas, como sendo a primeira e a principal. desfrutavam um insigne renome na " sociedade" . A cor-
Essa vantagem específica, quase metodológica, da for- tesã que se ven de a alto preço ganha com isso um "va-
tuna monetária torna o anúncio matrimonial impossí- lor de raridade'', não só porque as coisas com valor de
vel para as classes que teriam a mais urgente n ecessida- raridade alcançam u m preço elevado, mas também, in-
de dele, porque então traria a confissão do puro e sim- versamente, porque têm valor de raridade as coisas que
ples interesse financeiro. alcançam um preço elevado p or alguma outra razão, ain-
Também no seio da prostituição , impõe-se o fato da que o capricho da moda. Como muitos outros obje-
de que o dinheiro, além de certa quantidade, não é mais tos, os favores de muitas cortesãs foram apreciados e dis-
nem indigno, nem inapto para compensar os valores in- putados por muitos por causa das somas consideráveis
dividuais. O desgosto da "boa" sociedade moderna para que ela teve a coragem de exigir. A justiça inglesa deve
com a prostituta ficará melhor evidenciado se esta se mos- partir de uma base análoga, quando concede uma in-
trar mais lamentável e mais miserável; ele se atenua com denização financeira ao marido de uma mulher seduzi-
o aumento do preço pedido à clientela, até o ponto de da. Nad a repu gnaria mais nosso sentimento do que tal
determinada atriz, notoriamente mantida por um mi- procedimento , que rebaixa o marido a um papel de cáf-
lionário , ser recebida com freqüência nos salões, embo- ten. Mas a tarifa de ditas sentenças bate recordes. C o-
ra esse gênero de mulher seja, sem dúvida, muito mais nheço um caso em que a mulher tinha relações com vá-
vampiresco e mentiroso, muito mais intimamente cor- rios homens; cada u m foi condenado a pagar 50.000 mar-
rupto do que muitas mulheres da rua. Já h á nisso um cos ao marido. Parece que, também aqui, quis-se com -
fenômeno de ordem geral: deixam-se soltos os grandes pensar pela elevação da soma a baixeza do princípio,
ladrões e enforcam-se os pequenos; ou, ainda, todo êxi- a saber: a tradução em dinheiro de semelhante valor.
to considerável, qualquer que seja seu domínio ou seu
conteúdo, suscita certo respeito. Dito isso, a razão maior,
profunda, é que o preço de venda, ao alcançar uma al-
tura exorbitante, poupa ao objeto da transação o avilta-
mento que decorre da sua venda. Numa descrição do
SUlll.lo Império, Zola evoca a esposa de um persona-
CULTURA FEMININA
(1902)

Se, na vida histórica de nossa· espécie, temos o di-


reito de ver produtos e valores que representam outra
coisa que os indivíduos e encontram seu sentido em ou-
tra parte que não nestes últimos; se, portanto, podemos
classificar os movimentos e as obras, as instituições e os
pensamentos, con forme sirvam a uma soma definida de
indivíduos e vivam para eles, ou, ao contrário, confor-
me digam algo além do bem-estar ou do mal-estar dos
sujeitos , então o movimento das mulheres, ao que pa-
rece, recusa todo significado que u ltrapasse as pessoas
como tais, sua felicidade, sua formação, sua liberdade.
Naturalmente , ele não visa indivíduos determinados,
porque é à totalidade das mulheres que deve se abrir um
estágio superior da existencia. Neste caso, por~m. trata-
se sempre de bens peuoais, mesmo 1e podem consistir
numa nova dignidade ou cm novo1 deverei. A luta se
trava, pois, em favor de particular11, ainda que sejam
milhões, e nio cm bcnefYclo do algo que 1upcraria cm
68 FILOSOFIA DO AMOR CULTURA FEMININA 69

si toda esfera individual ou pessoal. E por mais que a gião, os móveis e os trajes regionais são modelos forja-
tônica sej a os interesses da sociedade em seu conjunto dos, que podem ser adotados ou desprezados, de certa
(aprofundam ento e aperfeiçoamento do casamento e da forma à disposição dos indivíduos, aos quais ultrapas-
educação dos filhos com o pleno desenvolvimento inte- sam, porém, por seu significado interno fat ual - resul-
lectual e a plena independência econômica das mulhe- tados objetivados d a atividade cultural fornecida até en-
res; seleção mais rigorosa dos melhores em todos os se- r tão, e normas das atividades futuras. O valor ideal de
tores pela multiplicação das candidaturas), não vejo uma obra de arte ou de uma regra moral, de u ma idéia
levantar-se em parte alguma a questão do valor cultu- religiosa ou de uma forma.de mandamento, de um prin-
ral suprapessoal e supra-social desse movimento, a ques- cípio jurídico ou de uma con statação científica, n ão de-
tão de suas energias propriamente criadoras, capazes de pende, quanto aos ganhos e perdas, da freqüên cia ou
aumentar o fundo dos valores espirituais. da raridade com que tudo isso integre em si o m aterial
Não quero que o problema de saber o que é a cul- con tingente da vida; ao passo que, do ponto de vista do
tura em si venha misturar no debate su as obscuridades interesse individual ou social, só se reveste de uma im-
e suas con trovérsias. Mas, como quer que se exprima portância decisiva justamente o quantas vezes do valor sin-
sua essência geral, não se poderá ignorar que a cultura gu~ar. Essa oposição revela claramente a nova proble-
se particulariza em dois significados bem distintos. Em mática relativa ao movimento das mulheres. O signifi-
primeiro lugar, figura certo estado da formação ou da cado cultural objetivo deste último só poderia ser o de
atividade, do saber ou da beleza, da felicidade ou da mo_: que as mulheres preenchem por sua -vez, cer to número
ralidade nos indivíduos. Sua realidade eficiente vive nas de vezes, as formas de existên cia e de prestação até en-
almas singulares, e a quantidade maior ou menor de seu s tão reservadas aos h omens . A questão será, ao contrá-
bens nestas constitui, cada vez, a síntese da sua existên- ,,./ rio: vão n ascer de semelhante movimento p roduções in-
eia histórica. Mas a linguagem, com uma enorme pro- teiramente novas, qualitativamente distintas das prece-
fundidade, chama essa cultura dos sujeitos de participa- dentes e que não se limitem a multiplicar as antigas? O
ção nos ditos bens, como se houvesse não sei onde um reino dos conteúdos de cultura será objetivamente am-
estoque impessoal, de que o indivíduo é chamado a con- pliado com isso? N ão se vai se contentar com copiar,
1111mi r uma parte fortuita e variável, sem que o fundo vai-se inventar? Essa questão, que não tem diretamen-
Hlobal seja comprometido com isso. D e fato, o que se te significado nem pessoal, nem social, nem ético na
p111 h• r hnmar de cultura objetiva permanece, em seu con- acepção tradicional do termo, pode muito bem ser con-
1t•1'11l11, plenamente independente da intensidade e da fre- siderada puramente acadêmica e tida como uma preo·
<10~111 1.1 eh· suas manifestações nos indivíduos: a língua cupação ulterior, dada a urgência premente dos intrrc11s1·~
u dh1 ito , 0 11 costumes e a arte, as profissões e a reli- então excluídos. Mas os que se preocupa m 11 Üo 116 <.:0 111
70 FILOSOFIA DO AMOR CULTURA FEMININA 71

os humanos, mas com o homem em geral, não só com como se o masculino j á fosse em si sinônimo de valoro-
o uso das coisas, mas com as próprias coisas, não só com so; mas há nisso também um fato histórico, a saber , que
a torrente agitada da ação e do sofrimento, m as com o nossa cultura, nascida do espírito e do labor dos homens,
sentido atemporal de suas formas, estes verão n as res- só é verdadeiramente adaptada à capacidade de produ-
postas dadas o significado último do movimento das mu- ção masculina. Não penso unicamente, aqui, na quan-
lheres, movimento que influenciará o futuro de nossa tidade superior das forças requeridas, na ordem física
espécie de maneira mais profunda do que a própria ques- ou talvez, igualmente, psíquica ; se só se tratasse delas,
tão operária. esse desprezo de princípio não colocaria um enigma in-
Para abraçar as condições e as conseqüências des- solúvel. Todavia são, de fato, as diferenças qualitativas
sa problemática, é preciso tomar consciência de que a entre os sexos que aí atuam. Porque a natureza de nos-
cultura da humanidade não é , em suma, nada assexua- so trabalho cultural, e não só sua quantidade, se dirige
da, não reside numa faculdade pura além do homem e especialmente a energias masculinas, a sentimentos mas-
da mulher. Ao contrário, essa cultura, que é a nossa, culinos, a uma intelectualidade masculina. Darei alguns
se revela inteiramente masculina, com exceção de raros exemplos bastante díspares . Em toda legislação e, em
domínios. A indú stria e a arte, o comércio e a ciência, certo grau, também em toda jurisprudência, atuam con-
a administração civil e a religião foram criação do ho- juntamente um sentimento fundamental de eqüidade,
mem , e não só apresentam um caráter objetivamente uma preocupação instintiva ou deliberadamente social
m asculino, como, ademais, requerem, para a sua efe- de eficácia e uma lógica objetiva sistemática. Ora, a ma-
tuação repetida sem cessar, forças especificamente mas- neira e a dosagem segundo as quais se mistura m esses
culinas. A bela idéia de uma civilização humana que não elementos seguramente divergiriam muito do que se ob-
se inquiete com uma partilha homem/mulher n ão é his- té m atualmente, se o direito das mulheres estivesse es-
toricam ente realizada, a crença que se pode ter n ela de- tabelecido e aplicado. A freqüente oposição destas às nor-
co rre desse mesmo sentimento que conhece .apenas uma mas e sentenças jurídicas não significa sempre, longe dis-
pa lavra para o homem e o ser humano em tão numero- so, uma hostilidade em relação ao direito em geral, mas
sas línguas. E sse traço masculino dos próprios elemen- sim ao direito masculino, o único em nossa posse, que
tos objetivos da cultura explica por que, em todos os do- nos parece ser, portanto, o direito puro e simples. Cer-
rn!nios, atribui-se às realizações insuficientes a denomi- tos ofícios, como a marcenaria e a tapeçaria, são obri-
nnçiio rcbaixadora de " feminina", enquanto não se sa- gatoriamente tidos como masculinos, apesar de impli·
ht1rlil logiar melhor o desempenho de uma mulher se- carcm todo tipo de atividades que as mulheres pode riam
nl u ijU !llificando-o de "absolutamente viril". Isso não muito bem exercer. Só que a divisão e a composição do·
lllrurrt< npnna:-i do orgulho do sexo masculino, que faz rninantc:i e.lo trabalho ligaram-nos a operações bcrn l~I ·
l
72 FILOSOFIA DO A M OR CULTURA FEMIN INA 73

re ren tes, que exigem a força física do homem. Em vir- reconciliação ela simboliza, baseia-se nessa un idade, nes-
tude dessa constelação histórica, mas evidente men te de sa solidariedade imediata, orgânica, enlrc a pessoa e cada
modo nenhum necessária , os ofícios em questão assu- uma de suas manifestações, em su ma, na indi visibili -
miram a marca do trabalho cultural exclusivamente mas- dade do eu , que só conhece um " ou tudo, ou nada".
culino. De modo bem geral: a especialização q ue caracte- A maravilhosa relação que a alma femi nina ainda pa re-
riza em si nossas profissões e nossa cultura é, de cabo ce manter com a unidade intacta da natureza e que cri a
a rabo , masculina em sua essência. Longe de se reduzir a distinção entre a fórmula global de su ~ existência e
...
a um dado puramente exterior, só é possível, de fato, a do homem multicindido, diferenciado, dissolvendo-se 'f
pela mais profunda especificidade psicológica do espíri- no seio da objetividade, essa fabulosa relação separa-a, L
to masculino: a tendência exacerbada aos trabalhos ra- justamente, também do que é o trabalho de nossa cul- (.

dicalmente unilaterais, que se diferenciam da persona- tura, o qual se baseia na especialização fatual. Ora, por
lidade global , a tal ponto que a atividade objetivamente mais que se abram agora para as mulheres todos os ofí-
l
especializada, de um lado, e a subjetividade, de outro, cios masculinos precisamente desse tipo, não só elas per- ~
(
levam cada uma su a própria vida, se assim posso dizer. dem a criatividade de seu próprio trabalho cultural, sen-
Toda divisão do trabalho bastante avançada significa que do submetidas então a um esquema de diferenciação que
o suj eito se separa de seu trabalho, o qual se integra en- não deixa as forças mais profundas de seu ser se expri-
tão num contexto objetivo, em que se dobra às exigên - mirem; não só elas repetem sempre, com respeito ao in-
cias de uma totalidade impessoal, enquanto os interes- teresse cultural objetivo, o j á dado, mas também fazem-
ses subjetivos e os movimentos interiores do ser huma- no com meios de certa forma inoperantes, pois n ão se
no constituem, por sua vez, um mundo próprio e pros- amoldam às formas que se oferecem assim às suas for-
seguem de certa forma uma existência privada. Se essa ças. E isso não porque essas forças seriam dem asiado
possibilidade psicológica não subsistisse, nossa cultura, pequenas, mas porque seu modo de exercício não entra
construída sobre a mais extrema divisão do trabalho, se- nas categorias de nosso trabalho cultural. Já encontra-
ria não só insuportável, mas a priori impossível. Ora, pa- mos agora fenômenos sim ilares num grande número de
rece que a diferença mais marcante entre o espírito mas- homens. A mistura das classes, a vida moderna com seus
·u li 11 0 e o espírito feminino reside nisso, e que este últi- milhares de estímulos e de potencialidades criaram ou
mo nHo pode existir, pelo menos a nível do tipo , com levaram à consciência uma profusão de aptidões origi-
1'1 1' 1111·1lia nlc dissociação entre o desempenho singular e nais, a que n ão correspondem mais as profissões dadas.
11 1 11 dl)l tido de seus centros afetivos e sensíveis. Toda As constelações e orientações do talento intrínseco mul-
tt p111l1111cl11 beleza da essência feminina, que lhe dá pree- tiplicaram-se mais depressa do que as possibilidn<k 11 <k
111111 ~ 111 111 Hobr · o ·spírito masculino, cuja libertação e exercê-lo nas profissões . Há uma quantidade cndn v1.-•z
FILOSOFIA DO AMOR CULTURA FEMININA 75

maior de homens cujas disposições os levam a flutuar geral, as associações operárias comb atiam com o m ais
entre vários ofícios e não se arraigar em nenhum deles , vivo afinco a utilização da força d e trabalho feminina
e que, de um lado, não assumem a forma de vida que na indústria. Algumas uniões operárias, por exemplo os
a profissão abraçada oferece, enquanto, de outro, amea- tecelões ou os chapeleiros, encontra ram então u ma saí-
çam explodir os limites desta. Tanto mais graves serão, da introduzindo uma lista padrão de salários p ara todas
então, as distorções entre as profissões historicamente as funções parciais do trabalho fabril, mesmo os m ais
dadas, logo masculinas, e essa alma feminina, com o rit- ínfimos. Essas funções são retribuídas em plena igual-
mo , o modo de desempenho , a tensão volitiva e afetiva dade, quer sejam exercidas por homens, quer por mu-
que lhe pertencem! lheres. Nasceu assim quase automaticamente a divisão
O verdadeiro problema cultural que colocamos as- do trabalho em virtude da qual as mulheres monopoli-
sim (produzirá a liberdade que as mulheres buscam no- zaram, de certa forma, as funções adequadas a suas for-
vas qualidades culturais?) só encontrará resposta posi- ças físicas e à sua habilidade, deixando aos homens as
tiva mediante uma nova partilha das profissões ou me- que convinham às capacidades destes. Isso cria, em pri-
diante uma nova modulação destas, fazendo não que as meiro lugar, uma real igualdade objetiva, porque, se as
mulheres se tornem cientistas ou técnicas, médicas ou m ulheres podem fornecer o trabalho masculino, elas ga-
artistas no sentido em que os homens o são, m as que nha m, então, exatamente o mesmo que os homens e,
realizem trabalhos que eles são incapazes de realizar. em segundo lugar, a concorrência é suprimida pela di-
Trata-se, em primeiro lugar, de estabelecer uma outra visão do trabalho supracitada. O melhor conhecedor da
divisão do trabalho, de redistribuir os trabalhos globais situação criada para os operários da indústria inglesa for-
de uma profissão dada, de reunir depois os elementos m ula o seguinte juízo : "Enquanto se trata de um tra-
especificamente adaptados ao modo de trabalho femi- balho manual, as mulheres formam uma classe p articu-
nino para constituir esses ofícios parciais , singulares, di- lar de operários, tendo cap acidad es e necessidades dife-
feren ciados. Não se obteria, assim, apenas um aperfei- rentes d as dos homen s. Para man ter os dois sexos no
çoamen to e um enriquecimento extraordinários d e to- m smo estado de saúde física e de capacidade produti·
do o setor de atividade en volvido , m as também se evi- va, 6 preciso com freqüência umn difcrenciaçüo das ta·
ta ria em boa parte a concorrência com os homens . Os rofnR. 11 EiR, pois, 1:1qui, jl\ resolvido, ingenu nnwnte por
operários ingleses impuseram esse princípio num domí- n1111lm dizer, o grnnde problemu de~ Ll'1tbtilho r.ulwroJ fe.
nio t: ~ Ln.: ito e assaz m aterial. C om freqüência, as mu- mi nino: n novn ll nhn. ~ tlxncla prlo ronJunto dm1 tnrefus ,
lh1we11, com seu nível de vida m en os elevado e men os \
ç)I\ li gll. 01 pulllu• dti vl•t• du1tlnadu1, por prmlm1tin a·
tU.JJtmdioso, concorriam com os homen s provocando çl\o, à pt!rkh& ""P"dt1r.am11nte fominlnn r uu ·os para
Uffift clM1wioração do salá rio p adrão , de modo que, em dc•cm!Juvu um pn1n1111n-. 111trtlruh•rl'11. Om , f!ltl uma re-
,,
7() FILOSOFIA DO AMOR CULTURA FEMININA 77

form a desse tipo visava resolver as tarefas dadas, claro motivo básico, também o conhecimento histórico pode-
que com os meios dados, mas de um m odo inédito e efi- ria pôr a seu serviço a psique feminina . Tudo o que cha-
caz, há outra que cria novas tarefas, ou, em princípio, mamos de história se reduziria a um abs urdo vaivém
pelo menos novos caminhos para resolver os problem as de movimentos externos, desprovidos em si de signifi-
gerais. O exemplo mais imediato é, então, o da medici- cado, coerência e interesse, se não interpretássemos psi-
na. A questão que colocamos é de saber se as médicas, cologicamente os atos exteriores, introdu zindo proces-
além de um aume nto do bem-estar físico e moral, pro- sos mentais sempre impossíveis de se constatar direta-
porcionarão alguma melhoria da cultura médica impos- mente e acessíveis apenas à imagin ação imitativa, à com-
sível de se realizar por meios masculinos. Ora, pode-se preensão das almas por intropatia. Aí também será pre-
efetivamente esperar tal coisa, parece-me , d ado que o ciso, em geral, certa semelhança de compleições psíqui-
diagnóstico e a terapia dependem, ambos, numa parte cas para alcan çar uma tradução adequada das necessi-
não desprezível, da capacidade de sentir o estado do pa - d ades e das paixões, do amor e d o ódio, dos instintos
ciente. O s métodos de exame clínico tidos como objeti- e das emoções religiosas, que não só desen cadeiam to-
vos logo se esgotam, se não forem completados por um do o jogo d a história, mas também o constituem direta-
conhecimento subjetivo do estado do doente e de seu s mente. Tal semelhança, no entanto, não deve ser con-
sentimentos, seja esse conhecimento imediatamente ins- cebida mecanicamente, e o conjunto desses processos en-
tintivo, seja mediatizado por manifestações quaisquer. cerra um grande mistério psicológico. Claro, não é pre-
Um neurologista muito experiente disse, certa vez, que ciso ser um César para compreender César, nem Cati-
uma pessoa só podia desvendar certos estados nervosos lina para compreender Catilina. Ao contrário, tal com-
se houvesse experimentado estados semelhantes. A com- preensão imitativa realiza-se, de certa forma , em cama-
preensão imitativa é, assim, condicionada por certa ana- das da alma situadas além da existência pessoal imcdia -
logia de con stituição .. É por isso que estou persuadido t a, é um a função artística que tem sua vida acim a da
de que, confrontada a m ulheres, uma médica, além de subjclividade. P ortanlo, pode ocorrer que cerlo modo
ter o diagnóstico m ais exato e o pressentimento mais fi- ele cliforenciação subjetiva seja ju stamente a base de uma
no para tratar dos casos individuais de maneira conve- eompr ·cnsão psicológica sp cialmcnlc profunda; inclu-
n ien tc, ainda poderia, sob o ângulo puramente cien tífi- Rivc, um n i;cnwlhnnçn d<'mn11indo dir<'tn podt' nos reter
ro, descobrir conexões típicas, n ão detectáveis por um no 11ul~i •Livo tl Ull po 11to qur 11 n lllrnncçHHlll m a is urn
mrdico, e dar com isso contribuições específicas à cul- 11<'nd nwnt o objotlvo nl\ r11frrl\ clrntrfico·l\rtf11llcn. Assim,
t11rn obj etiva; porque as mulheres possuem, com sua 1111 c·xpc·1·l~11d1111 cl 11 prAKl11 111111111·11111 q111• 1111 1111ilhl'rrs co-
1 nnHtit11i~· iio idê ntica, uma ferramenta de conhecimen- nhrrr111 vAlio11 t\ll)t'c-1111 tht ftlmn mnn ulinf\ b •m nl'lhur,
to 11•1-111111da aos homens. Variando um pouco o mesmo r um um li1111ln111 hr m mnh1 111rf(11ro, rio que rn1 homens.
78 FILOSOFIA DO AMOR CULTURA FEMININA 79

Não há a menor dúvida, a meu ver, que esse talento po- onde é particularmente bem-sucedido, sinto freqüente-
deria ser explorado para a pesquisa histórica. Basta no- mente certo dualismo entre o conteúdo pessoal e a for-
tar - como decerto ainda se om ite fazer atualmente, ma artística, como se a alma criadora e seu modo ele ex-
de ordinário, por diversas causas de burocra tismo cien - pressão não tivessem o mesmo estilo. A vida interior,
tífico - a que ponto toda ciência histórica é psicologia que impele à sua objetivação numa figura estética, não
aplicada, p ara adivinhar os serviços inigualáveis que a preenche inteiramente os contornos dados por esta , de
alma feminina poderia prestar nesse ponto, com seu s ór- sorte que as exigências que emanam dela e às q uais é
gãos específicos para perceber e sentir, desde a compreen- preciso satisfazer só poderão ser aplacadas mediante certa
são de obscuros movimentos p opulares até a epigrafia. banalidade , certo convencionalismo; enquanto que, por
Estou convencido disto : poderia haver , exatamente co- outro lado, no campo da interioridade, um resto de sen-
m o n a medicina, funções especificamente femininas em timento e de vida permanece privado de forma e de rea-
história. Também aqui, poderíamos desembocar n as lização. É interessantíssimo a esse respeito que, em mui-
contribuições de uma cultura feminina no sentido ob- tos povos, as mulheres, no estágio do canto popular, se-
jetivo. jam pelo menos tão produtivas, poeticamente, quanto
Não obstante, é no domínio da arte que essa possi- os homens. Isso significa justamente que não há, nas cul-
bilidade deveria ser m ais acessível à compreensão ge- tu ras ainda não pouco desenvolvidas, a ocasião de dis-
ral, porque nele j á existem os primeiros elementos do crepância aqui em questão. Enquanto as formas cultu-
que quero dizer. É na literatura que eles melhor se per- rais ainda não estão especial e firmemente assinaladas,
cebem . Nesse domínio, j á há uma quantidade de mu- elas não podem tampouco ser resolutamente masculi-
lheres que não têm a ambição servil de escrever "como nas; enquanto se encontr arem n o estado de indiferen-
um homem ", n em manifestam, u sando pseudônimos ciação, as energias femininas não são submetidas à ne-
masculinos, nenhuma ignorância quanto à originalida- cessidade de se exprimir de um modo que não lhes é ade-
de ou à importância específica das contribuições que po- quado, elas podem se desenvolver livremente e em con-
dcri.am dar enquanto mulheres. Claro, a exteriorização formidade com suas próprias normas inter iores. Aqu i,
da nu ança feminina, sua objetivação, também é bastante com o em muitas evoluções , o grau mais elevado repro-
difl'cil na cultura literária, porque as formas gerais da d uz a forma do mais baixo : o produto mais sublimado
r riação poética, no interior das quais o fenômeno ocor- da cultura do espírito, a ma temática, está igualmente
rr. 1Hiio justamente produtos masculinos e mostram, pro- além do masculino e do feminino, e talvez isso explique
v1wclrn ·nte por essa razão , uma reticência interna ao o fato surpreendente de que, nessa ciência, mais que ·m
11nnn preenchidas por um conteúdo especificamente fe- quruquer outra, as mulheres penetraram profunclnmrnte
lnlnu. No lirismo fem inino, notadamente, sobretudo d ·rnJn importantes contribuições. A matcrufüicu poH11ui
110 FILOSOFIA DO AMOR CULTURA FEMININA 81

11111 1-trn11 de abstração que supera toda diferenciação psi- masculinos à artista, reprimindo assim a feitu ra femi-
rn16g-ica dos humanos, do mesmo modo que o estágio nina em suas particularidades. Que essa possa existir a
d ;1 produção feminina de canções populares ainda não título de possibiJidade nas artes plásticas, é coisa de que
chego u a ele. não duvido um só instante. E isso não só porque os prin-
O romance parece oferecer dificuldades menores pa- cipais sentimentos femininos diante do mundo e da vi-
ra a produção feminina do que as outras formas de lite- da - que também determinam a arte - possuem uma
ratura, isso porque, por sua natureza e sua problemáti- coloração específica, mas notadamente porque sabemos
ca artística, ele possui em si uma forma muito menos hoje a que ponto todas as artes plásticas dependem dos
estrita, muito menos fixada. Ao buscar, por seu conteú- dados psicofísicos, do modo de conversão dos movimen-
do, mais a amplitude do que a profundidade , ele pro- tos morais em movimentos corporais, das sensações de
porciona, do ponto de vista formal, uma liberdade maior inervação, do ritmo do olhar e do toqu e. O modo, em
que qualquer outro gênero artístico, e seu s limites flexí- parte mais direto, em parte mais reservado , pelo qual
veis, extensíveis à vontade, trazem menos abruptamente a vida interior das mulheres se manifesta ao exterior,
o caráter de sua origem masculina. É por isso que o ins- a maneira particular que elas têm de se mover, condi-
tinto justamente conduziu as mulheres para o roman- cionada anatômica e fisiologicamente, o tipo de relação
ce, como seu verdadeiro domínio, em que elas podem com o espaço que emana da cadência, da amplitude e
dar o aspecto mais livre de si mesmas, o mais específi- da forma especiais de seus gestos, tudo isso deveria
co. Aí também , decerto, a relação interior constante, re- deixar-nos esperar delas, nas artes da especialidade, uma
gular , mantida com uma grande variedade de fenôme- interpretação e uma figuração específicas dos fenôme-
nos, a tensão do sentimento, obrigado a permanecer sem- nos, como na arte da dança, em que se apresentam par-
pre no mesmo nível de objetividade tanto diante dos con- ticularidades similares. Mas aí as formas tradicionais re-
teúdos simpáticos como dos antipáticos, aí também, por- servam aos impulsos, à graça e à gesticulação individuais
Lanto, nada disso tudo parece corresponder ao ritmo da um espaço de ação sem igual. Nas artes plásticas, em
a lma feminina, e talvez seja por isso que m esmo a for- compen sação, a violência exercida pelo material histó-
ma do romance , que oferece à nuança feminina um es- rico já é irresistível para inúmeros artistas m asculinos
paço particularmente vasto de ação, só apresenta, des- - tomados individualmente , enquanto , além disso, ela
se ponto de vista, poucas produções artisticamente emi- o é genericamente para as mulheres. Também nesse do-
111.: nlcs . Em todo caso, os elementos iniciais de uma cul- mínio, porém, percebem-se alguns leves indícios ck 11111
! 111·a especificamente feminina aparecem aqui com mais toque especificamente fem inino. Em certos q11 ndro11 de
11 i1 idcz do que nas artes plásticas, onde a adesão habi- Dora Hitz, nas águas-fortes de Kath(' K ollwi!7., ('111 a l-
lli ti il u111 mestre basta para impor ideais em si mesmos gumas outras de Kornelie Wagner crn 11c11 11 inícios , do-
j
\
82 FILOSOFIA DO AMOR CULTURA FEMININA 83

mina uma atitude de conjunto que nunca senti numa se aspecto , ela é comparável aos interesses práticos da hu-
produção masculina. Claro, essa diferença não se deixa manidade. No início, tais interesses promoveram os teó-
descrever com palavras ; ou , pelo menos, seria preciso, ricos, como sua conseqüência ou também como seu ins-
para isso, que a estética estivesse muito mais avançada trumento, enquanto agora o interesse cognitivo pode existir
do que é possível até mesmo prever na hora atual. O de maneira de todo autônoma, inteiramente separada da
fato é que aí, na realidade , mesmo se se trata unicamente práxis. Sob o aspecto fisiológico, colocou-se recentem en-
de um começo, a imensa diferença do princípio de vida ~ te a hipótese de que a evolução ascendente dos humanos
feminino em relação ao masculino passou da forma do ia diminuir em geral a importância do erotismo para o con-
vivido em sua fluidez à do produto cultural em sua ob- junto da vida interior, localizando cada vez mais esse in-
jetividade. teresse, por assim dizer, e ao mesmo tempo tornando au-
Com respeito a essas primícias de uma cultura fe- tônomos os demais interesses em relação a ele. Assim co-
minina, gostaria de assinalar uma variante das n ature- ~, mo, fisicamente, a função sexual deu-se órgãos mais ou
zas femininas bem pouco notada, mas que parece pre- menos particulares, enqu anto nos animais inferiores o cor-
destinada a sustentar esse gênero de criações. P enso nas po inteiro participa d a r/ produção da espécie , também,
mulheres que, em todas as expressões de seu ser , apre- segundo se afirma, a evolução superior vai demarcar ca-
sentam o selo puro e autêntico da feminilidade, embora da vez mais nitidamente o sentimento de amor das outras,
tenha desaparecido por completo a coloração propria- funções psíquicas, resultando em que ele se mesclará cada
mente sexu al desta. P ara empregar uma metáfora bio- vez menos a estas para desviá-las ou tiranizá-las. Uma va-
lógica, direi que se trata de seres nos quais as caracte- riante particular desse esquema se realiza nas mulheres em
rísticas sexu ais secundárias são plenamente desenvolvi- que a feminilidade no sentido da sexualidade diferenciou-
das do ponto de vista psicológico, ao passo que as pri- se totalmente, na alma, da feminilidade no sentido da com-
márias apagaram-se. Sem dúvida nenhuma a complei- pleição psíquica geral, de modo que a primeÍra pôde re-
ção fisiológico- sexual, com os fenômenos psíquicos con- gredir e desaparecer totalmente, sem rebaixar a segunda
comitantes e as outras pulsões que emanam diretamen- no que quer que seja. Atinge-se aqui, sob a forma da vida
te dela , é a fonte das propriedades da alma feminina, pessoal e como para simbolizar o objetivo cultural indica-
inclusive das mais espiritualizadas e mais sublimadas. do neste estudo, a impregnação do conteúdo da alma por
Contudo, essas últimas, numa série de indivídu os alta- todas as cores da feminilidade , mas isso dissociado ao mes-
mente evoluídos, diferenciaram-se para levar uma vida m o tempo da obscuridade e do excesso de subjetividade
independente, não bebem mais na fonte precedente, que entravam com tanta freqüência, direta e indiretamcnlc 1
w mpletamente atrofiada, ao contrário. A sexu alidade o desenvolvimento completo da personalidade e11pirirunl
cumpriu seu dever , pode afastar-se; nesse caso e sobes-
) nas produções concretas e m entais.
84 FILOSOFIA DO AMOR CULTURA FEMININA 85

Além disso, é preciso tomar mais consciência do que em termos práticos a questão de suas diferenças essen-
de ordinário da diferença interna entre os princípios mas- ciais, e portanto para mostrar, ainda que de lon ge, o
culino e feminino. É justamente a profundidade abso- imenso problema de saber se uma atividade cultural po-
luta dessa diferença que costuma nos impedir de fazê- deria decorrer tão organicamente do ser feminino quan to
lo. Pois ela se tornou tão natural para nós e condiciona foi o caso até aqui para o ser masculino. Ora, houve e
de m aneira tão dogm ática nossa vida prática, que con- ainda há, em parte pelo menos, uma só e única profis-
sideramos instintivamente cada mulher em função de são desse gênero, revestida da mais elevada .s ignifica-
puras categorias femininas, e cada homem segundo pu- ção cultural, plenamen te autócton e ao mesmo tempo,
ras categorias masculinas. Sem uma atenção especial- no seio da natureza feminina. Falo d a economia domés- - - l
mente consciente, não julgamos o ser ou o fazer mascu- tica. A gestão doméstica, com sua incomensurável im-
lino e feminino segundo uma norma realmente homo- portância para o conjunto da vida, é a grande contri-
gênea; contudo o resultado final da avaliação - é isso buição cultural da mulher, e a casa traz inteiramente
o falacioso - não deixa ver que chegou -se a ele compa- sua marca; suas capacidades e interesses, sua afetivida-
rando-se a mulher à média ou ao ideal da essência fe- • • de e sua intelectualidade, toda a rítmica de seu ser for-
m inina, e medindo-se o homem à luz dos critérios mas- neceram, até aqui, uma criação de que só ela é capaz .
culinos . Senão, são justamente as diferenças entre os hu- Não é preciso explicar a que pon to a evolução moder-
manos que suscitam a consciência mais elevada, mas uni- na, tanto econômica como moral, retirou cada vez mais
camente em função de sua importância para a ação prá- sub stância dessa criação 1 : divisão do trabalho, expatria•
tica. O que é semelhante em todos os humanos é o fun- ção de inúmeras produções para fora de casa, queda d õ11
damento evidente de toda ação, ao qual, na ordem prá- casamentos e , sobretudo, também , do número de crinn·
Lica, não aplicamos nenhuma consciência. Toda ativi- ças no seio das camadas superiores. Foi pr ciNo q11r 11r
dade econômica, social ou ética é orientada, em seu ob- tornasse duvidosa a evidência dessa pro!iH111io (llU'M c1u11
.ictivo especial e em seu modo especial, pelas diferenças se colocasse o problema do acesso das m11lhrrt111 • u1 trl
reconhecidas entre os indivíduos; estas são os pressupos- balhos culturais. T odavia, como d ordl11Arln 11 Mi:
l os maiores de nosso fazer. Mas, dada a persistente di- dera a cultura existente, isto é , rn11•cullua 1 1
viHão do trabalho entre os sexos, a diferença en tre os prin- ca possível, as m ul heres sr vl'rm dlanta
d pios masculino e feminino foi aceita até aqui como na- ou abandonar o trabalho rnhural .,,.. . . .,.UI•..
t11rul pnra a prática, com tanta ingenuidade quanto, por donar o que elas são. H" "'"' renunt&
111111 n Indo, as semelhanças m ais gerais entre todos os a essa visão do mlanuu, 1 lll't'l~llllM•1it1••·--
11111111111011. Foi preciso esperar a irrupção das m ulheres cificamente feminlnAl 1 m .....,. . . . . . . . . . ...
n11• rln111Cnio11 111asc11linos de atividade para se colocar sional 111a11ruli1111 1upr l
86 FILOSOFIA DO AMOR CULTURA FEMININA 87

menor preconceito reacionário que, por falta de relações indicado. Não é ela tal, poderíamos dizer, que seus pri-
intrínsecas com a obra objetiva, os valores, as caracte- meiros estágios adquirem uma direção diametralmente
rísticas e os atrativos pessoais da alma feminina não po- oposta a seu objetivo final? A formação, a atividade e
dem deixar de sofrer. Quando se acreditou que as pro- a situação das mulheres intelectualmente autônomas de-
fissões privariam tão pouco as mulheres de sua femini- vem passar pelo estágio da cultura historicamente da-
lidade quanto haviam privado os homens da sua virili- da, logo masculina, ainda que isso não sej a mais que
dade, esqueceu-se o porquê desse fato: ditas "profissões" uma preparação para melhor deixá-las seguir, depois da
eram a priori de essência masculina - sem contar que bifurcação num ponto definido, sua linha própria. Por-
os homens têm uma capacidade maior de diferenciação, que, por mais longe que possamos ver sem nos perder
porque não misturam tão facilmente quanto as mulhe- nas fantasias, resulta que mesmo a cultura feminina mais
res seu centro psíquico à sua ação exterior, e portanto desenvolvida baseará seu desenvolvimento em dados ou
não deixam esta perturbar ou destruir aquele. Tal al- tarefas essenciais da vida humana, acrescentando a seu
ternativa, que parece obrigar as mulheres a escolherem tratamento especificamente masculino uma abordagem
entre a preservação de sua natureza própria e o traba- especificamente feminina, mas não sem partilhar com
lho cultural produtivo, desaparece quando se sabe a que aquele o fundamental e, sem dúvida, também muitos
ponto a cultura existente não é neutra e o quanto é mo- detalhes. As mulheres deverão primeiro desfrutar da for-
delada, com exceção da economia doméstica, segundo mação dos homens, de suas oportunidades de confirma-
um modo de trabalho unicamente masculino, propor- ção, de seus direitos: é a única forma sob a qual lhes
cionando pois todo o espaço desejado, se necessário, a é dado adquirir a base, o material e a técnica necessá-
outro modo de trabalho que suporia e exprimiria a na- rios a suas possibilidades particulares de trabalho. O ar-
tureza feminina. A criação de uma nova nuança desse tista mais original acaso não passa também seu s anos
tipo, ou mesmo de um novo continente da cultura, não de aprendizado com um mestre inevitavelmente diferente
corresponderia somente à grande fórmula social do de- dele, apropriando-se destaFte das finalidades e meios du
senvolvimento: estabelecer , em vez da concorrência entre arte sob uma forma definida que, em seguicln, ele vni
lrabalhos idênticos, uma complementaridade das ativi- modificar soberanamente por diferenciaçõe11 UlmlUldlle?
dades múltiplas devidas à divisão do trabalho - essa Nosso problema chega aqui nas que1tõe1 mala dlfYccis
complementaridade parece-me ser também, em si, o be- da psicologia da história . Dadas u mdltlplu 111111clhan·
nefYrio próprio que a cultura objetiva pode tirar do mo- ças sobre pontos técnico~ o m1terl1l1 f\andamanto.is, que
Ylmnnro das mulheres na época moderna2. a cultu ra feminina m1l1 dlftrencllda ntat111rl11rnentc
Dito !Rso, não me dissimulo as dificuldades exter- ainda apresentarA em relqlo • cultura m1l1 mfti1culi·
t lntfll'flíl!l com que se choca a evolução rumo ao ideal na, há urnü 1muu&ç1 d1 qu1li11trtlt1m n •n rlldmmm
88 FILOSOFIA DO AMOR CULTURA FEMININA 89

as diferenças de alma entre homens e mulheres e de que , por tanto tempo numa desigualdade excessiva em rela-
com isso, diminua um dos encantos mais profundos e ção aos homens, devem tran sita r pelo estágio de certa
m ais indispensáveis da existência. O perigo é evitável , igualdade exterior , antes que se edifique uma síntese su-
mas contanto que se fortaleça extraordinariamente a sen- perior, ou seja, o ideal de uma cultura objetiva enrique-
sibilidade diferencial. É uma das tarefas m ais refinadas cida com a nuança que a produtividade feminina repre-
da vida da alma cultivar ou sentir a existência e a atra- senta. É assim , em todo caso, que as pessoas para as
ção d as diferen ças num fundo de semelhanças consideráveis. quais o valor do movimento das mulheres repousa nes-
A constituição de ideais especificamente femininos sem- sa diferenciação esperada, nesse esforço para destacar
pre esteve ligada até agora à maior e mais grosseira di- a especificidade feminina, poderão num primeiro mo-
ferença, de or?em imediatamente sexual. A oposição ab- mento aprovar o brutal igualitarismo do p artido da
soluta à essên cia mascu lina, que faz das mulheres o ob- emancipação, do mesmo modo que existem hoj e indi-
jeto do erotismo, foi o que modelou seu s ideais mais pró- vidualistas extremos que são socialistas porque esperam
ximos e mais distantes, não permitindo fosse ignorada apenas da passagem por um socialismo nivelador uma
um só instante sua distância em relação ao princípio mas- hierarquia verdadeiramente natural e uma nova aristo-
culino. No entanto, o toque estritamente feminino não cracia que seja de fato a dominação dos melhores.
se distinguirá com um tal absolutismo ou uma tal evi- Dito isso, dúvidas mais profundas que as que pro-
dência do toque m asculino no âmbito da criação cultu- vêm de tais dificuldades de desenvolvimento concernem
ral obj etiva. T ornar-nos-emos necessariamente muito à relação que o espírito feminino parece ter com a for-
mais sensíveis às nuanças; o processo de apu ro que já ma da cultura. Todos os produtos culturais sobre cuja
conduziu o gosto estético, aqui ou ali, dos contrastes crus produção nos interrogamos aqui têm o caráter da dura-
às gradações suaves, do extremismo violento das formas ção, situam-se, quanto a seu sentido, além da vida in-
e das expressões a um sistema temperado de acentos for- dividual e de seu decurso temporal. Ora, talvez a natu-
tes e fracos, sem que, com isso, sejam sentidas com me- reza e o ritmo da essência feminina em seu conjunto per-
nos vivacidade ou agrado as diferenças que a comuni- maneçam no princípio estranhos a esse tipo de criação.
dade mais acusada dos fenômenos deixa subsistir, esse Sim, talvez as mulheres possua m , mais fortemente que
processo de apuro, portanto, deverá estender-se aos ou- os homens, o caráter da fluidez, uma propl·nsão a dis-
tros domínios culturais - querendo-se prolongar em to- solver-se na exigência do m omento, a oricntnr· sc para
do i:;eu vigor, no seio de uma cultura feminina, o en- a vida puramente individual. f.: <'fHm 11mn dnll críticas ba-
cnnto devido à tensão entre os princípios m asculino e nais que lhes é dirigida: eln11 uno tt·1·i11111 l\t' llhll lllt\ obj e-
li.·111i11ino. Admitir-se-á em todo caso, por enquanto, que tividade, sua devoção nuncn irin pnrn um objt•to ou uma
n 1111 mnçi'io e os direitos das mulheres, que estagnaram idéia , mas, em íi lt i11111 irn1tl\11ci11 , Hc· mpn: paru uma pcs-
.,
90 FILOSOFIA DO AMOR CUL TURA FEMININA 91

soa, portanto pa ra uma realidade temporal e, de certa que depende o problema d e um desenvolvime nto futu-
forma, pontual , com respeito à ponderação e à não-con- ro da produção cultural feminina, ao lado da m asculina
~in.gência que são próprias do interesse puramente ob- ou em seus interstícios . Um problema que, como tudo
j etivo . O que pode haver de verdadeiro nisso deve com o que concerne às realidades primeiras e últimas, não
certeza, ligar-se ao fato de que a atividade das m'ulhe- requer solução cie ntífica , m as é tratado unicamente a
res, sobretudo desde a limitação da produção domésti- p artir d as decisões intuitivas dos indivíduos, para as quais
c~, rarame~te cria ''objetos' ' . O trabalho doméstico que cooperam o acaso das te ndências pessoais, originárias,
am?a subsiste vale para o dia que passa - 0 q ue elas e o acaso, não m enor, de inúmeras experiências incons-
cozmharam a manhã inteira é devorado em meia ho- cientes , assim como sua interpretação. Existe, porém,
ra - , acomoda-se ao fluxo e refluxo de exigências e in- um contexto que legitima essa subjetividade na respos-
teresses momentâneos, sem deixar resultado substancial ta dada às questões mais profundas d a vida histórica:
que não seja d e imediato aspirado por esse fluxo. A vi- falo dos grandes movimentos e mudanças históricas de
da no não-temporal - que é bem diferente da eterni- ordem fundamental , não menos misteriosos para a in-
d~de no sentido religioso - , a pura fatualidade e a ine- teligência contemporânea do que para a inteligência pré-
vitável unilateralidade do trabalho substancial a inser- científica e englobando o destino e o trabalho d as mu-
ção, e~ conte~t~s ~uprapessoais, eis o que talv~z repug- lheres como causa e efeito de todos os demais - movi-
ne a vida m ais mtima da alma feminina. Portanto não mentos e mudanças produzidos, afinal, na realidade da
se tra.ta mais d e saber, agora, se esta possui cont~údos história exatamente pelos m esmos sentimentos instinti-
especialmente caracterizados, que poderiam se encar- vos que surgem das profundezas a-lógicas da alma e são
nar n a vida cultural histórica. P oder-se-ia admiti-lo em os únicos a tornar possível a apropriação espiritual dos
princípi~ , ~as afirmando simultaneamente que a for- primeiros, isto é, um juízo subjetivo sobre sua forma-
m~ ?~ vida mterior típica, que o ritmo psíquico da fe- ção, tão polissêmica objetivamente.
mm1hdade são rebeldes à produção desses valores a que
chamam os cultura objetiva. Importa, aqui, não a coi-
sa, mas seu portador, não o teor moral , mas a função
que a realiza, não o ser, mas a natureza de seu devir
- o que torna a tarefa talvez ilusória.
Essa questão d a cadência e do and amento inerente
no movimento psíquico da vida feminina ou ainda da
1rornrn deveras geral desta última, ritmando ' '
de den' tro
lodnN ns expressões essenciais, é a última instância de
PSICOLOGIA DO COQUETISMO
(1909)

~ filosofia platônica do amor, segundo a qual o


amor é um estado intermediário entre o ter e o n ão-ter,
n ão vai, parece, até o mais profundo de seu ser, mas
detém-se apenas numa modalidade de sua m anifestação
fenomenal, não só porque essa filosofia não leva abso-
lutamente em conta o amor que declara "se te amo, que
te importa?", mas também, n a verdade, porque pode
apenas designar o amor que morr pela rcnJ ização de
seu dcscjo.,S ituado no caminho do nüo•tc r 110 1 •r , ·11go-
t·nndo s u s ·r ness p rc:tmio, t>l n: o I'IOd1· 111 11i11, no mo·
m ·n to cn1 que " 1cm 11 , Ht'r o 111\-' Nmo q111• 11111 1•11, 11 1 o po-
de 11111i11 Rf'I' 11rn o r , 1111111 nmvr1 lt< 11r11 q1111111111n <k t' ll ·r·
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..
94 FILOSOFIA DO AMOR PSI COLOGIA DO COQUETISMO 95

prisioneiro de uma alternância rítmica cujas cesuras con- traduzir coguetismo por " necessidade de agr.a_çlar" é con-
t•
têm os momentos de realização. Mas quando o amores- fundir o m eio em vista de um fim e a pulsão orientada
tá ancorado no mais profundo da alma essa rotação do para esse fim. Uma mulher pode lançar mão d e tudo
ter e do não-ter apenas descreve seu aspecto exterior su- para agr adar , dos encantos espiritu ais à exposição mais
perficial. O ser do amor, de que o desejo é simplesmente insistente de seu s encantos físicos, que ainda assim dis-
a manifestação fenomenal, não pode ser abolido pelo apla- ti~guir-se-á b astante da coqu ete . Porque o próprio des-
camen to deste último . ta última é despertar o prazer e o desejo por meio de
Qualquer que seja o sentido do quere r ter, quer sig- uma antítese/síntese original, através da alternância ou
nifique o dejinitivum do amor, quer simplesmente o ápice da concomitância de atenções ou ausências de atenções,
desse ritmo ondulatório que atua além do seu dejinitivum, su gerindo simbolicamente ao mesmo tempo o dizer-sim
cada vez que seu objeto é uma mulher e seu sujeito um e o dizer-não, que atuam como que "à distância", pela
homem, ele se eleva bem acima da realidade psíquica pro- entrega ou a recusa - ou , para falar em termos platô-
priamente dita do ''agradar'' . O agradar é a fonte em que nicos, pelo ter e o não-ter - , que ela opõe uma à ou-
se alimentam o ter e o não-ter quando devem se transfor- tra, ao mesmo tempo que as faz experimentar com o que
m ar para nós em prazer ou sofrimen to, desejo ou temor. a uma só vez. No comportamento da coquete, o homem
Porém , nisso como em outros aspectos, o vínculo entre sen te quão próximos e imbricados estão o ganhar e a
uma posse e sua estimação também funciona no sentido impossibilidade de ganhar, que constituem a própria es-
inverso. Não só importância e valor vêm se somar ao ter sência do "preço" e que, por essa inversão que faz do
e ao n ão-ter do objeto que nos agrada, mas, além disso, valor o epígono do preço, fazem aparecer esse ganho co-
quando por uma razão qualquer um ter ou um não-ter mo p recioso e desejável. A essência do coquetismo , re-
recebe certo significado e('-centuação, seu obj eto põe-se sumida num paradoxo, é a seguin te : p n de há amor, h:í.
geralmente a nos agradar.~ Ass1m, . nao
- e' apenas a a t raçao
-
- em profundidade ou n a superfície - ter não-te r,
de uma coisa à venda que determina o preço que aceita- portanto onde há ter e não- te r, se n ão ntll'n::l form a rr.rd,
mos pagar; inúmeras vezes, ao contrário , é apenas o fato ao menos sob forma llidica , há amor ou nl f{O qm: ~ tido
de que é pedido certo preço, de que sua aquisição não é por ele . Apli care i essa in tcrpr •taçüo do c'oqw•1i 11111n 1wi-
fáci 1e requer esforç~~ e sacrifíci~s , que n os ~orna ~ cois.a rnciro a nlgu ns fatos dt1 e x pe r i/\1u •ir1, O q 111· 1•111•11Cl( l'i%11 0

atrae nte e desejável}iA eventualidade dessa m ve rsao ps1- o coque i i1uno t•111 11u11 111 :111if(•111nçTlo lllin11l ~ o olli nr l<' r
ol6gica é que faz a relação entre homens e mulheres en- ri o , 11 rn h1•1,•11 11wio r~qnivnclu 11 111""º 11 11 111 11111 1wir11 <k
11• 11· no modelo do coquetismo . l!C l-'lll-l ll ÍVll l ' li l{ llllH p u1t111" 1111111 111 111\l' ii li 1'111 tiv11 de Hl'
( ''querer agradar" da coquete ainda não é, em si d 111·, dr dli IHÍI 11111111r11tn11rn 111r11tr 111111 1111•11 t,:1 o pu ra o
1 pi 11 11i, o q ue d á a seu comportamento o cunho decisivo; 11111 rn, 1q111111 , 11111111 11111~111111 1111H1 , l~t 111 dia•<: u u p osl ri
96 FILOSOFIA DO AMOR PSICOLOGIA DO COQUETISMO 97

da cabeça e do corpo, ela se recusa simbolicamente. Es- em quem, na verdade, ela pensa. Não se trata, aí, da
se olhar, fisiologicamente, não pode durar mais de al- simplicidade brutal própria do ciúme . Este último situa-
guns segundos, de sorte que, voltando-se para, ele já pre- se em outro registro e, quando se desencadeia , por as-
figura, como inevitável, o movimento de se esquivar. sim dizer, sem reservas , para levar a vontade de con-
Ele tem a atração do segredo, do furtado, que não pode quistar ou conservar à paixão, não entra mais no domí-
ter duração, onde, por conseguinte, o sim e o não estão mo. d o coquetismo.
· "-'o coquet1smo,
· , · deve~
ao contrario,
intimamente mesclados. O olhar francamente de fren- fazer aquele a quem ele se dirige sentir esse jogo instá-
te, por mais intenso e insistente que seja, nunca possui vel entre o sim e o não, uma recusa de se dar, que po-
precisamente esse traço específico do coquetismo. No deria muito bem ser a esquiva que leva à entrega, uma
mesmo registro superior dos efeitos do coquetisrno, há entrega de si atrás da qual se delineia, num plano de .
1
o movimento do requebrado, o andar balanceado. Não fundo, a eventualidade, a ameaça de uma retomada de )
só porque este último, remexendo as partes do corpo se- si!"Toda decisão definitiva põe fim à arte do coquetis- I
xualmente excitantes, as põe nitidamente em evidência, mo; por isso, ele manifesta a soberania de sua arte che-
enquanto, ao mesmo tempo, distância e reserva são efe- gando bem perto de um dejinitivum, que contrabalança _./
tivamente mantidas - mas também porque esse andar porém, a cada instante, por meio de seu contrário. O
simboliza o gesto de se voltar para e se esquiv~r, na rít- duplo sentido da palavra "com", designando seja o ins-
micidade lúdica de uma alternância contínua.' E quan- trumento, seja o parceiro, para indicar o objeto de uma
do o coquetismo vai buscar além dos movimentos e ex- correlação, revela aqui sua justeza profunda.
pressões do próprio sujeito não se trata mais que de uma - Nisso tudo, o coquetismo, enquanto comportamen-
variante técnica dessa concomitância do sim e do não to deliberadamente dualista, está, ao que parece, em
que a coquete suger~ Por exemplo, ela gosta de se ocu- completa contradição com a ''unidade'' da natureza fe-
par de objetos de certa ~"";inarginais: cachorros, flo- minina; de fato, esse conceito, por mais diversamente
res, crianças. Porque , de um lado, esquiva-se assim da- - o compreendamos, por mais profunda ou superficialmen-
quele que ela visa, mas, por outro lado , voltando-se pa- te o interpretem os, atravessa no entanto todas as psico-
ra esses outros objetos , faz-lhe ver quanto é desejável. logias da mulher corno motivo fundamental delas. Ca-
Isso significa: não é você que m e interessa , m as essas da vez que a alma feminina e a alma masculina são sen-
coi!'ias; e ao mesmo tempo: eu jogo esse jogo na sua fren- tidas como tais num contraste essencial, trata-se de or·
l ·, m as é o interesse por você que me faz voltar-me pa- d iná rio do seguinte : a mulher é, por su a n atureza, o ser
m c!!tcs outros objetos . Tal imbricação do ter e do não- que tem seu centro em si m esmo, cujas pulsões e pensFi·
lr1• 11lmb6licos culmina visivelmente n a atitude da mu- mentos es tão mais estreitamente reun idos em to rno d ·
lhttl' vnllílndo-se para um outro homem que não aqu ele um ou vários pontos, e são mais diretam ntc: <'X<:itl1veis
98 FILOSOFIA DO AMOR
'l\ PSICOLOGIA DO COQUE11SMO 99

a partir deles do que no homem, mais diferenciado, cu- do que para a mulher, para qu em ser rejeitada assume
jos interesses e atividades se desenrolam muito m ais nu- facilmente um acento trágico . Não é atitud,e. que con -
ma autonomia objetivamente determinada, conforme vém a um homem repelir uma mulhe r, a inda que fosse
uma divisão do trabalho que o isola da globalidade e da inconvenien te para ela oferecer-se a ele; ao passo que,
intimidade da pessoa. Ficará cada vez mais patente que n o sentido inverso , nenhuma dificuldade : recusar o h o-
essa dualidade não encontra nenhuma contra-instância m em que a corteja é, por assim d izer, uma atitude to-
no ser feminino como tal e, inclusive, sua relação com talmente condizente com uma mulher. Mas poder se dar
o ser masculino encontra no coquetismo uma síntese es- é igualmente, na mulher - a despeito de uma restrição
pecífica de seus próprios momentos determ inantes , já que precisaremos evocar no fim destas páginas- , a ex-
que, precisamente, a relação da mulher com o homem , pressão profunda, inteira e exau stiva de seu ser, a um
em seu sentido específico e sem igual, se esgota nos dois ponto que o homem talvez n unca será cap az d e alcan-
\,.
çar por essa via. . (.l.N o d .izer-s1m
. e n o dizer-não, n a entre-
gestos, d~~~der e recu~ar~ Seguramente existe uma
ga de si e na recusa de si, as mulheres são mestra~ ~1 Na­
1
infinidade de outras relações entre eles , amizade e hos-
tilidade, comunidade de interesses e solidariedade mo- da d e espantoso em que elas tenham desenvolvido, n o
ral, aliança sob uma égide religiosa ou social, coopera- coquetismo, um modelo absolutamente inadequado para
ção com finalidades concretas ou familiare~"l Mas ou es- o homem , em qu e as duas coisas lhes são possíveis ao
tas decorrem da n atureza humana em geral e podem mesm o tempo.
também estabelecer-se, no essencial, entre pessoas de Agora, que o homem se preste a esse jogo , não só
mesmo sexo, ou são determinadas a partir de um ponto porque n ão lhe resta outra alternativa, estando seu de-
real ou ideal qualquer situado fora dos próprios sujeito s sej o agrilhoado ao favor da m ulher, mas freqüentemen te
e da linha que os liga dire tamente; e então não estabe- também como se ele sentisse u m prazer e um gozo par-
lecem entre eles uma interação tão pura e exclusiva quan- ticulares nesse tratamento que o puxa em direções opos-
to a que consiste nos dois únicos gestos, de recu sar e con- tas, é coisa que corresponde, prim eira me n te, é r.lnro , ;i
ceder, claro que no sen tido mais amplo, que engloba todo este fen ômeno bem con hecido : um a sC- ric de ncont cci-
co 11t"eúdo de n atureza interna e externa1 . .R_ ecusar - e con -
men tos vividos, o rientada para 11 111 1w nlinw111 0 de· f\"l i
cede r é o que as mulheres sabem fazer com perfeição, cidade fi nal, j á ir rndirt 11ohrr OM111 011 1t•111011 qi1 c o pr<'CC'-
t• s6 das sabem. A recusa de um homem diante de uma clem urna pn1·1c ct0 v dor {itl 1m 1:r,c•1 tlr1Hr 1iltl 11111 , O rn·
11111lht: r que vai a seu encontro, ainda que totalmente qu ·ti:m 10 (. u1 11 clo11 f'Xrmp l1111 11 111h1 1fpiw11 U!'IHH' g/\nr.ro
irniti licada , ou mesmo necessária por motivos éticos, pes- de• rxprrill11 ri11 . A l'tl11c rpl11 1 111i 11 111 p111 1 r1 d 11 11~ ri t· l'l'Ó-
joju llil! uu l: sl é ticos, sempre tem algo de penoso, d e não til'rt d r vr fr 1 111d11 ll11l11ln14h u f\ l11H, li 1J111•dr !111f, r ir :<e
11w r1lht<in·sc·o , de certo modo censurável , e mais para ele r<1Hr nd ll 111111111 tt p111 1111 ; t l1Jtl1111 1111 111orn r nf o 11 nnlc rio-
100 FILOSOFIA DO AMOR PSICOLOGIA DO COQUETISMO 101

res da série. É bem provável que, de fato, estejamos aqui particular quando a fatalidade, esse elemento que esca-
diante de uma evolução histórica, na medida em que pa de toda decisão voluntária e inerente a todo êxito,
permaneçamos no plano psicológico, pois a importân- surge com seu obscuro poder de atração. Se o que faz
cia do prazer se estende a momentos tanto mais afasta- o aventureiro é que ele mostr a diante do incalculável da
dos, alusivos, simbólicos, do domínio erótico, quanto existência a mesma confiança desenvolta do que diante
mais refinada e culta for a personalidade. A reserva da do calculável - e isso justamente porque ele os aproxi-
alma pode ir tão longe que, por exemplo, um rapaz apai- ma tanto em sua prática e sente de maneira muito mais
xonado tira de uma primeira pressão secreta da mão mais profunda e demoníaca a tensão entre os dois, a atração
felicidade do que, mais tarde, uma entrega total da pes- da sorte, do puro talvez, do deus escondido de nossos
soa, e que, para mais de uma natureza terna e sensível destinos-; se isso é verdade, pois, numa menor medi-
- mas não necessariamente frígida ou despida de sen- da e das mais diversas maneiras, somos todos aventu-
sualidade - , o beijo, ou mesmo a simples consciência -reiros. Se calculássemos em função de seu peso objetivo
de ter seu amor correspondido, supera todas as alegrias os riscos de fracasso que se interpõem entre estágio pre-
eróticas por assim dizer mais substanciais. O homem com liminar e estágio final, não nos entregaríamos sem dú-
quem a mulher se mostra coquete já sente no interesse vida a essa antecipação da felicidade ; mas sentimos is-
que ela demonstra, em seu desejo de atraí-lo, a atração, so, ao mesmo tempo, como um atrativo, como um jogo
perceptível de uma maneira ou de outra, de sua posse, de sedução para conquistar o favor das forças imprevi-
do mesmo modo que a felicidade prometida já antecipa "f- t síveis. Esse valor eudemonista do acaso, da consciência

uma parte da felicidade alcançada. A mesma relação de nossa ignorância do ganho e do fracasso, con:o que
apresenta, ademais, outro aspecto de efeitos autônomos: se fixou e se coagulou no comportamento psíquico que
quando o valor de um objetivo finalístico já se estende a coquete pretende provocar~.,.De um lado, este tira da
de maneira sensível a meios ou estágios preliminares, p romessa incluída no coquetismo essa felicidade anteci-
o quantum de valor assim sentido por antecipação é, ain- pada; mas a outra face, isto é, a eventualidade de que
da assim, modificado pelo fato de que, em nenhuma sé- essa antecipação seja desmentida por uma reviravolta
rie real, o ganho de um grau intermediário garante com das coisas, vem se acrescentar simultaneamente, sob a
segur ança absoluta o do valor final propriamente deci- forma de um distan ciamento que a coquete faz seu par-
sivo . O crédito que temos deste, graças a esse prazer an- ceiro sentir. C omo esses dois aspectos agem constante-
tecipado, corre o risco de n ão ser reembolsado .. D aí re- mente um sobre o outro, como nenhum deles é sério o
sulta, para os estágios intermediários, que, ao lado des- suficiente para expulsar o outro da consciência, sempre
!lã inevitável diminuição de seu valor, produz-se tam- paira acima da n egativa a possibilidade de um talvci,
b6m um aumento deste devido à atração do acaso, em e e11e tlllvcz, em que a passividade de receber e A atlvi·
102 FILOSOFIA DO AMOR PSICOLOGIA DO COQUETISMO 103

dade de conquistar constituem um atrativo unitário, cir- te absorvido no segundo, o provisório despojou-se de su a
cunscreve toda a reação íntima ao comportamento da dependência para com um d,ejinitivum ou, simplesmen-
coquete.)~ te , para com a i"d'" eia deste.( Ç'A gora, possmr . JUStamente
.

a marca do provisório, do incerto, d o hesitante to rnou-


!
se - por uma contradição lógica que é, ao m esmo tem-
II po, realidade psicológica - seu encanto definitivo, sem
a menor interrogação que vá além do m omento presen-
!.
Aqui a reação do homem , com esse gosto do acaso te~1 É por isso que as conseqüências do comportam ento
e o prazer diante dessa notável unificação intuitiva das da coquete - de qu e à sua própria segurança interna
potencialidades opostas, já significa muito mais que o correspondam insegurança e desenraizamento no ho-
simples fato de ser arrastado no movimento pendular mem, muitas vezes desesperadamente entregue a um tal-
do jogo da coquete; contudo , além disso , seu papel se vez - invertem-se aqui inteiramente em seu contrário.
eleva finalmente bem acima do de um simples objeto Quando o homem não aspira a nada mais que a esse
quando ele próprio entra no jogo, encontra um en canto estágio, a convicção de que a coquete não leva as coisas
neste e não num eventual dejinitivum. É somente então a sério lhe dá certa segurança em relação a ela. Onde
que toda a ação é realmente levada à esfera do jogo, pois não deseja um sim, nem teme um não, onde lhe é pois
ela ainda permanecia mesclada à da realidade enquan- 1
inútil evocar eventuais instâncias hostis a seu desejo, o
to e na medida em que o homem ainda levava as coisas homem pode se entregar bem mais amplamente à atra -
a sério. Agora também o homem não quer de modo al- ção desse jogo do que se desej ar, e talvez temer um pouco
gum sair do caminho traçado pelo coquetismo: isso pa- / também , que o caminho tomado seja seguido até o fim.
rece abolir a própria noção de coquetismo, em virtude (,\ Mostra-se aqui , enfim, sob sua forma mais pura,
de sua significação lógica e genética, mas é muito mais a relação com o j ogo e com a arte qu e constitui, em to-
o caso exemplar em sua forma totalmente pura, libera- dos os pontos, o específico do coquetismo~~ Este é , de fa·
da de todo d esvio e de toda eventualidade de inversão. to , no mais alto grau , o qu e Kant definiu com o a st1ôn -
O que constitui agora, nessa arte de agradar, o eixo da cia da arte : "uma finalidade sem fim " . A obra d e nrlt'
relação e de seu poder de atração é muito m ais a arte n ão tem absolutamente "fim" 1 não oh11t1ull<- 1111 1111 pllt'
que o agradar, o qual sempre penetra de alguma ma- tes pareçam plenamcm c s ignilicntiv 11H t' i 111JJ1 i~1 1d 1 1 H , rnd n
neira n a realidade. Aqui o coquetismo passou com ple- um a n ecessári a cm 11eu pr6prio 111 1{111 , 11111111 ~li' 1 rn l 111
tamen te do papel de m eio ou de simples estágio provi- lhass1;m j11ntnH p 111 11 11111 11111 t111 11h11r 1111 d1•1;ii1o1 11 w lL'n rn,
sório no ele valor finalizado: todo o valor de gozo que n coq 11 rtr p rm r d r r i111 t11111r11fr 11111111 ""r iu 11(1 !lr i11t t' r t'H•
lhe p rovit:ra d esse primeiro papel é , agora, inteiramen- Hl lNHI' pr l11 lil' ll plll du 111111111111 111, ' 1111111 l'W 1111 11 HClltJ d •
104 FILOSOJ<1A DO AMOR PSICOLOGIA DO COQUETISMO 105

vesse desembocar na plenitude de um abandono, de qual- no plano erótico, muito mais que o homem diante de
quer n atureza que for°:'\Mas essa significação finalísti- um tudo ou nada, o " tudo" não se limitando al iás, aqui ,
ca, lógica para ser exato, de sua ação não é em absolu to a seu significado exterior. H á tão pouca contradição que
o q ue ela pensa; ao contrário, ~la deixa esse agir se vo- agora, nesse estágio último e superior, a coquete se tor-
latilizar sem nenhum efeito, atribuindo-lhe um fim to- n a mais o símbolo da maneira como essa unidade se dá.
1
.talmente diferente: agradar, prender, ser desejada, mas :~ Parece, de fato, ser essa a experiência que a sensibilida-
sem nunca, como quer que seja, deixar-se levar ao pé de m asculina constantemente faz: a mulher - e justa-
da letra~'tEla age de maneira totalmente " finalística", m ente a mais profunda, a mais oferecida, inesgotável
m as o " fim " a que esse procedimento deveria tender em seus atrativos - ainda retém, ao mesmo tempo jus-
na série da realidade, ela o recusa, o dilui na pura feli- tamente que se dá e se revela com mais paixão , um úl-
c1'd a d e su b'~ e t1v
. a d o Jogo.
. '\) o qu e separa seguramente o timo quê misterioso, inaeessívef'Talvez isso sej a preci-
ser íntimo (poderíamos dizer transcendental) do coque- samente correlativo dessa unidade na qual todas as ger-
tismo do ser íntimo da arte, é que a arte se coloca de minações e potencialidades ainda repousam estreitamen-
saída além da realidade e dela se liberta por um olhar te, indiferen ciadas, contíguas ou imbricadas; tanto as-
que dela se desvia absolutamente; já o coquetismo, se- sim que, face à maioria das mulheres, tem-se a impres-
guramente, não faz senão brincar com a realidade , mas são de certas possibilidades não desenvolvidas, imper-
brinca com ela. O movimento pendular das impulsões feitamente atualizadas - e isso de maneira de todo in-
que ele apresenta e su scita nunca tira inteiramente sua dependente de eventuais inibições na evolução, devidas
atração das formas puras do sim e do não, da relação aos preconceitos e às discriminações da sociedade~'Não
por assim dizer abstrata entre os sexos - o que seria é justo, por certo, ver nessa "indiferenciação " apenas
porém o resultado verdadeiro, nunca porém de todo aces- uma simples carência, um simples atraso; é, ao contrá-
sível, do coquetismo . Ao contrário, os sentimentos uni- rio, a maneira de ser totalmente positiva da mulher,
cam ente localizados na série da realidade sempre fazem criando um ideal prór,rio tão legítimo quanto a "dife-
soar ao m esmo tempo seu próprio eco, animando a pu- renciação'' do homern'?~Contudo, do ponto de vista dessa
ra relação formal. A coquete - e, no caso invocado aci- última, ela aparece como um a inda não , uma promessa
ma , seu parceiro - distancia-se da realid ade pelo jogo, n ão cumprida, u ma profusão n ão desabrochada de obs-
rn1110 o a rtista, mas, p ara ela, é um j ogo com a própria curas potencialidades, que ainda não se destacaram su-
rC'n lid adc . ficientemente da intimidade da alma pa ra se e rigir c n1
M 1.:11cionei m ais acima que toda essa dualidade do possibili dades visíveis e ofertáveis. Soma-se a isso , ro111
111q111•1is 1110 não oferece nenhum a contradição com a uni- o mesmo resultado, a seguinte real id ade: OR 111 o d 1111 <k
d ult> 11li ri11 ada ela mulher enqu anto tipo, que a coloca, ff' il 111·11 1· de ex pressão - e não só no plnn o li11 AliÍHlico
106 FILOSOFIA DO AMOR PSICOLOGIA DO COQUETISMO 107

- que nossa cultura põe à disposição da interioridade sual são, de ordinário, as mais coquetes - e, também,
da alma são essencialmente criados por homens, e por- porque homens sobre quem toda sedução puramente ex-
tanto inevitavelmente a serviço da natureza masculina terior permanece sem o menor efeito, se rendem ao en-
e de suas necessidades, de sorte que, muitas vezes, adi- canto do coquetismo, deliberadamente e com o senti-
ferença feminina não encontrará justamente para se ex- mento de que ele não desonra nem seu sujeito, nem seu
primir nenhuma forma inteligível satisfatória. Esse sen- objeto.
timento é escorado, ademais, pelo seguinte: mesmo a Nesse modelo que dá forma à contribuição da mu-
entrega de si mais total não suprime, na mulher, uma lher à relação entre os sexos, nesse sim e não, funda-
derradeira restrição secreta de sua alma; existe um quê mento de todo sim ou não, revela-se o sentido profundo
cuja revelação e apresentação se esperaria na realidade dessa interpretação do amor que faz dele o meio termo
e que não quer separar-se de seu solo nutriz. Por certo entre ter e não ter. Como, aqui, o não-ter entrou no ter, -1
não se trata aqui de limitação voluntária da entrega, de ambos constituem as faces de uma unidade relacional
algo que não se concederia ao bem-amado, mas deyma cuja forma mais extrema e mais apaixonada é finalmente ,, ,
última parte secreta da personalidade, que simplesmente a posse do que, ao mesmo tempo, não se possui. A pro- -. l
não pode se explicitar, por assim dizer, e que se dá do funda solidão metafísica do indivíduo - toda veleidade
mesmo modo, mas não sob uma forma transparente e de ir de um a outro para superá-la conduz simplesmen-
designável: um receptáculo fechado de que o destinatá- ,.. te a um caminho que se perde no infinito - encontrou
rio não possui a chave. Não surpreende que nasça nele na relação entre os sexos uma realização com sua colo-
a impressão de que lhe escondem alguma coisa, se o sen- ração específica, mas que a torna, sem dúvida, mais es-
timento de não possuir é interpretado como recusa de sencialmente sensível. Aqui como alhures, essa relação
dar. Qualquer que seja a origem desse fenômeno de re- entre os sexos proporciona o protótipo de inúmeras re-
serva, ele se apresenta como uma misteriosa imbrÍca- lações no seio da vida pessoal e interpessoal. Ela apare-
ção de sim e de não, de entrega e de recusa, que de cer- ce como o exemplo mais puro de tantos acontecimen-
ta forma o coquetismo prefigura. Retomando, em ple- tos, sendo estes de saída determinados em sua forma por
na consciência, esse "meio escondido" da mulher, ex- essa condicionalidade fundamental de nossa vida. Se n os-
pressão de sua relação mais profunda com o homem, so intelecto nunca pode apreender nenhuma espécie de
o coquetismo rebaixa o último fundo metafísico dessa devir ou de desenvolvimento espontâneos, sejam reais,
relação ao nível de puro meio em vista da sua realiza- sejam lógicos, a partir de uma unidade global, perma-
ção exterior; mas isso explica por que o coquetismo não necendo esta em si estéril e não fornecendo nenhum mo-
é, cm absoluto, uma "arte de mulher leviana" - nem tivo compreensível de mudança , isso se deve provavel-
n hêtnira, nem a mulher menos intelectual e mais sen- mente ao fato de que nossa existência é determinada,
108 FIL OSOFIA DO AMOR PSICOL OGIA DO COQUETISMO 109

em seu na scimento, pela cooperação de dois princípios. 1 aumenta ao máximo a atração do ter j ogando de ante-
Sim , o p róprio fato de que o ser humano é d e essência mão com a ameaça do n ão-ter . E se a relação funda-
absolutam ente dualista, de que sua vida e seu pensam en- .1 m ental evocada acim a m ostrou que m esm o no ter defi-
to se movem numa estrutura bipola r, de que cad a con- nitivo nós ai nda nos encontramos, de cer ta forma, no
teúdo do ser se encon tra e determina a si mesmo somente não-ter, o coquetismo cuida de que mesmo no não-ter
em contato com seu pólo oposto, remon ta talvez , em úl- definitivo possamos nos encontrar , de certa form a, no ter.
tima instân cia , a esse dilaceram ento da espécie huma- Se o coquetismo pareceu nascer exclu sivamen te na
na , cujos componentes se buscam eternamente, se com- relação en tre homens e mulheres, imagem de su perfície
pletam mutuamente sem nunca, porém, superar sua opo- que represen ta o fundam ento último dessa relação sob
si ção .~ Q u e o ser hum ano com suas n ecessidad es apai- certo ângulo de refração, isso finalmente apenas confir-
xonadas dependa assim de um out ro, d e quem é sepa- m a uma vez mais esta vasta experiência: são inúmeros
rado talvez pelo m aior a bismo m etafísico, é também a os modos universais de comportamen to humario que pos-
imagem m ais pura , talvez mesm o a forma original , com suem na relação entre os sexos seu modelo normativo.
efeitos decisivos, dessa solidão que faz do ser human o Se encararmos, de fato , as atitudes que o ser humano
um estranho, não. só entre as coisas deste mundo, mas toma dian te d as coisas e diante d e outrem, o coqu.e tis-
também entre os seres que são os m ais p róximos de ca- m o se apresen ta entre elas como u m tipo de comporta-
d a um . m ento geral , que pode adquirir qualquer conteúdo . O
Se por esse m otivo a concomitância do ter e do não- sim ou não que nos ca bem quando estam os dia nte de
ter representa a m anifestação fenomenal infrangível e, decisões graves ou ba nais, obediên cia a nossas pró pri as
muita vez, o fundamento último do erotismo, este se acha inclinações ou interesses, tomada de pa rtido , fé 11ns ho-
destilado a partir dela pelo coqu etism o , sob uma forma m ens ou nas doutrinas, to rna lll-Sl' i11 (111u.: ras vezes u m
por assim dizer lúdica, dado que o conteúdo do j ogo são, sim e não, ou en tão uni a a ltc rnl\rH'ia elos dois parcn·11-
justamente , partindo d as complicações d a realidad e, as d o basta nl c uma conço111 i1A111.:iu, porq11 t• ai r tiH ele cad11
relações fundam entais mais simples: a caça e o ganho, d ec isão rt:spccti va Nc dc• I i1win n m 11r11 , <.' IHil llll ll o possi·
o per igo e a s possibilidades d e êxito, a luta e as a rtim a - bilidad c 011 t c nt a ç i'lo . A lr11 K1tr11'1l 1n ·11t1· di:r. cp 1t• o~ N1·1·1·s
nhas. Segu ndo a consciência inerente ao coquetismo, ca- liu m nno11 " coq uetr in m ' ' 1n11 1id~ i1111 1 !' l l K l111m11 1111 polf1i-
cl;1 utn desses elem entos opostos, profundamente imbri- cu111 \'lll11 t'11 it111 ~ h 11p111l r111 1t·11 1111 '11 111 l111 1lidndr11; 1\ 1·0 111
rndos, se destaca m ais nitidamente do outro: ele dá ao 1nu ito 111 dor f1 r qlll'111 l11 11l 11d11 d11 q111 • 1n1ilr N1111 rn nAc' x-
nikH n uma espécie de visibilidade positiva, torna-o par- pll d 111111r 111.-, 11111 1111111 1111 l 111111•n1 n d1 1011 kl' t11 •1u 11x iHl t' c 11 1
tll'1il11rmc n te sen sível, acenand o com o ter , ludicam en- C"lll tdo l lllHI 1 1111" 1 111 1h li 111111111 tlt ll llllplt 11 111 111 11(,' íl fl 1111 <-k
1• , 11 l1111i v :1 111 c 11l 1.: , do m esm o m odo que, ao con trário, 1111 111 111 1111111 11 tlt 11111 ud1" 11p 1111t t1 N, lh 11ll111 lo 1w 1mbn· se u
110 FILOSOFIA DO AMOR PSICOLOGIA DO COQUETISMO 111

verdadeiro caráter. Todos os atrativos ligados à conco- mais típica, mais pura, na relação entre os sexos, rela·
mitância do pró e do contra, ao ''talvez'' , à retenção ção que já dissimula em si a relação que é talvez a m ais
prolongada de uma decisão, permitindo gozar de ante- sombria e trágica desta existência, sob a forma de sua
mão seus dois aspectos que se excluem mutuamente na suprema embriaguez e de seu mais brilhante atrativo.
realização, todos esses atrativos não são próprios ape-
nas do coquetismo da mulher diante do homem, mas
atuam em presença de mil outros conteúdos. É a forma
na qual a indecisão da vida se cristaliza num comporta-
mento totalmente positivo, não fazendo, por certo, da
necessidade virtude , mas prazer. Com esse jogo, que -,
nem sempre é acompanhado de uma atmosfera lúdica
e que consiste em se aproximar e se afastar, em pegar
para tornar a largar, em largar para tornar a pegar, em
fazer menção, por assim dizer, de voltar-se para o obje-
to, quando já se projeta a sombra do desmentido, nesse
jogo a alma en controu a forma adequada de seu com-
portamento diante de inúmeras coisas. O moralista po-
de se indignar, mas isto é parte integrante do proble-
matismo da existência: há muitas coisas diante das quais
a vida não pode, apesar de tU<).o , simplesmente declinar
toda relação, mas diante das quais ela não possui ponto
de vista evidente nem imediatamente sólido; nosso agir
e nosso sentir não se inscrevem bem, por sua própria
fo rma, no espaço que elas lhes oferecem. Começam, en-
tão, os passos adiante e atrás, as tentativas de reter e -
largar, e, n as oscilações dessa dualidade , esboça-se are-
lnção fundamental deveras incontornável do ter e do n ão-
UH'. Enquan to um m omento tão trágico da existência po-
dC' revestir-se d essa form a lúdica, hesitante , que n ão le-
\11 • 11uda; a q ue chamamos coquetismo com as coisas ,
19mprcumdemos que essa forma encontra sua realização
FRAGMENTO SOBR E O AMOR -·
(ESCRITOS PÓSTUMOS)

É entre o eu e o tu que, aos olhos da consciência


humana, se produz o primeiro de seu s dissen timentos
e a primeira de suas unificações. A anterioridade dessa
relação a fez ser considerada, além disso, como matéria
de certa forma absoluta em que se j ogavam, em última
in stância, nossas decisões e nossas avaliações, a legiti-
midade ou a não-legitimidade de nossa prática e das exi-
gências que nos são colocadas: a alternativa entre o~­
mo e o altruísmo , manifestando-se ambos através de inú-
meros meios e modalid ades, m áscaras e efeitos, esgota-
va finalmente toda inten cionalidade de nosso compor-
tamento. Mesmo quando este último era posto sob ideais
objetivos - seja por P latão ou Tomás de Aquino , sej a
por K ant ou pelo socialismo - , o egoísmo mais ou me-
nos claramente designado era tido como o princípio in-
trinsecamente oposto, enquanto a exigên cia concreta
imediata, quando não também a exigência abstrata, Hem·
prc tem como conteúdo um tu, um tu pessoa.I 0 11 1upr1
114 FILOSOFIA DO AMOR FRAGMENTO SOBRE O AMOR 11 5

individual. Ora, à parte o fato de que o nível eudemo- 1 direção a uma reação qualquer do eu - e para qualifi-
nista, no qual se realiza - , segundo a opinião geral e 1' car uma ação de egoísta pressupomos implicitamente
na medida em que fornece os conteúdos - , essa esco- uma orientação desse tipo, à qual escapa porém a n atu-
lha entre egoísmo e altruísmo, não engloba em absolu- reza da pulsãqjporque seu conteúdo pode estar dirigi-
to todas as dimensões às quais essas noções poderiam do unicamente para o bem de um tu, para a destru ição
estender-se; à parte esse fato, portanto, mesmo a am- do eu, para algo de teleologicamente de todo insen sato.
plitude máxima que possamos reconhecer a ditas noções De fato, não é sequer verdade no plano fisiológico, sem
não seria capaz de exprimir de forma pertinente nossas falar no p sicológico, que as pulsões representem unica-
verdadeiras motivações últimas. M encionemos aqui ape- mente adaptações ~..
nas um argumento exterior à via que seguimos atual- Se compreendermos corretamente, através desses
mente: inúmeras vezes , nossa vontade visa formar ob- / casos simples, que nosso agir pode ser independente em
jetivamente o ser , portanto simplesmente obter um es- relação à alternativa acima, chegaremos também a n os
tado , um fenômeno, uma qualidade d as coisas, sem se projetar nessa relação mais complexa, no entanto capaz
colocar nem um pouco a questão dos efeitos que a reali- de reduzir sua acuidade, em que se move o agir '' por
zação dessa vontade terá para um eu ou um tu. Esse (lillOr'' . Se qualificarmos de altruísta no sentido puro um
querer absolutamente objetivo, para além do eu ou do agir para o bem de urna pessoa que nos é ·de todo indi-
tu e seu dualismo reconciliado ou não , parece-me ser ferente ou antipática, ou mesmo hostil , então não po-
uma realidade inegável e especificamente humana, jus- deremos qualificar corretamente do mesmo modo o agir
tamente . E, do mesmo modo que essa realidade situa- por amor: pulsão e satisfação próprias nele se acham por
se com o que acima desse dualismo , há outra abaixo de- demais imbricadas para situar simplesmente seu tetos no
le: o comportamento puramente instintivo. Quando qua- tu \ Mas o con ceito de egoísmo ainda não convém aqui,
lificamos de egoísta o fato de seguir sem contenção seu s _ ,~ potqüe, além de toda essa abnegação de si ineren te ao
próprios instintos, já elevamos esse comportamento a conteúdo material de tal agir, ele não corresponderia à
uma esfera além da sua própria, uma esfera em que é sua nobreza, nem ao seu valo_J Enfim, esse agir, em sua
colocada uma exigência altruísta; não a satisfazendo, tal origem m ais profunda, é demasiado uno e inteiro para
comportamento parece egoísta, o qu e em si ele n ão é, aparecer como uma espécie de mistura mecânica dos dois
certamente, mais do que o é o crescimen to da planta ou tipos de mot{vações. Portanto , não resta outra solução
a queda da pedra, que se limitam , ambos, a seguir sua sen ão considerar a motivação pelo amor como motiva·
própria lei e acerca dos quais não poderíamos dizer que ção específica e primeira, ao abrigo dessa redução hnhi·
têm comportamentos egoístas. Egoísmo significa sem- tua!. Que essa questão esteja mal colocada aqui 1 "µnn••
pre, de forma precisa, uma-OrientaçãG-teleológica=- em ce no fato de que uma psicologia racionalistn poflC", eom
116 FILOSOFIA DO AMOR FRAGMENTO SOBRE O AMOR 11 7

igual direito, pôr o agir por amor n o pedestal do altruís- cisar d e um pon to que separa ao m esmo tempo que li-
m o ou desclassificá-lo como fundamentalmente egoís- ga . No enta n to, o m otor aqui é ou tro que não essa uni-
ta . Acescente-se a isso que a relação e ntre o obj etivo e dade metafísica de todos os seres, da qual Schopenhauer,
a pulsão é aqui bem particular! Se satisfaço os desejos por exemplo, faz decorrer o bem-faze r e o sacrifício. O
J de u m ser h uman o qualque r, porque os considero con - milagre do am or é justam en te não abolir o ser-para-si
1' venientes e legítimos, é o exercício dessa legitim idad e n em do eu n em do tu, fazer dele inclusive a condição
que é meu objetivo final e su a realização mi nha única que permite essa supressão d a distância, esse fech ar-se
m otivação decisiva / Se faço exa ta m en te a mesma coisa egoísta em si m esm o d o querer-viver. Isso é algo total-
porque am o esse human o, o estado a realizar é, em sua mente irracion al, que se subtrai à lógica d as categorias
m anifestação , minha meta fin al, mas não é m inha ver- habitualmente válidas . O fato de Schopenhaue r qu erer
dadeira motivação , p orque é primeiro a ener gia p ulsio- explicar essa supressão pela unidade transcenden tal do
n al de meu amor - e por assim dizer de maneira in tei- ser é um racion alismo em que começa a se m a nifestar
ram en te espontânea - q ue se implica nesse telas. Em sua incompreen são (sobre a qual ainda precisaremos dis-
todas as outras situações , nosso agir, cad a vez que seu cutir m ais adian te) q u anto à essên cia do amor. Um es-
fundamento axiológico é posto sob o sign o positivo, se tudo a posteriori , pa rtindo dessas ca tegorias, pode sem
vê separado de su a motivação última por uma certa dis- dúvida estender o agir por amor a uma correlação de
'\ tân cia que o amor ignora. Porque é exatamente esta a egoísmo e de altruísmo, e também de pulsão e finalida-
diferença decisiva: o amor por um ser humano, en quanto d e . Mas su a verdadeira n atureza íntima fica, com isso,
motivação por assim dizer geral de uma ação determi- tão desconhecida como quando se rebaixa o desejo de
n ada, se solidariza com seu conteúdo, irriga-o com seu união física com a am ada ao nível de sim ples "pulsão
sangue m uito mais diretam ente do que em qualquer ou - sexu al ''.
tra m otivação (com exceção , talvez , do ódio). D e certa P artindo da outra dimensão, em que se en trelaçam
m an eira, percorre-se um caminho mais lon go qu an do de m an eira mais estreita o PJJ,l~onal propriam en te dito
se realiza u m a ação benéfic~ a alguém por s~n.lli;lo m o- e o tcle.ol.ógico.,_tomou -se o amor , no ~e.ntido especifica-
ral ou seguindo sem resistir seu próp rio im p ulso, por m ente ..e,r:.ótico, e o comportamento que lhe correspon -
~ ou por s~ried ade so..çial , d o que quando o d e, pela confluên cia das duas fon tes: ~nsualjd ade e af~­
fazemos por amor. Aqui o caráter da ação benéfica, es- ___.,,.__
tividade . Mas esse du alismo também elude a u nidade
sa tensão en tre o eu e o tu , não apa rece em absolu to com d ecisiva; esta última perm anece, visivelmente, u ma pa-
a mesma acu id ade , porque o eu aproximou-se afetiva- lavra vazia, se nos conten tarmos com dizer que sens11 a:_
mente do tu, e seu próprio querer-viver flui , para lá desse liçladc c..aCc..tiyidade constitu em j u stamente u m a 11 n id.w
l 1ia10, rumo ao outro , abolida tod a distân cia, sempre- ele no..a mru:. Porque seria preciso designar ;i fo rça q u ·
118 FILOSOFIA DO AMOR FRAGMENTO SOBRE O AMOR 119

liga, neles mesmos ou um ao outro, esses dois elemen- d~. A multiplicidade dos sentimentos despertados dian-
tos do psiquismo tão diferentes um do outro; mas então te do Deus da fé, as sensações não raro divergentes qut·
a essência do amor residiria nessa própria força que é marcam nossa reação a uma obra de arte, a estranha
diferente ao mesmo tempo de cada um dos dois elemen- "mistura" afetiva que um encontro suscita com freqüên
tos e que seria, pois, impossível constituir mecanicamente eia em nós, a imbricação e a confusão dos sentimentos
(( com uma parte de um e de outro\- sendo o erro funda- em nossas emoções íntimas , paralelamente a uma ava
mental de todas as tentativas desse tipo seu caráter me- liação global de nosso próprio eu, tudo isso eu já gosta
cânico, que pretende combinar, a partir de elementos ria de ter como manifestações secundárias, dissecções ck
preexistentes, o que, intrinsecamente uno, crrig;nou-se um comportamento totalmente unitário em si, com sua
,ilii. yjda.. É por isso que seria muito melhor supor que orientação subjetiva. É, enfim, uma questão de palavras:
atividade sensua.Le alivida~a nascem seja como essa realidade íntima que, no fenômeno afetivo, é sc111
dois efeitos dessa unidade na superfície da consciência, - pre una, um destino, uma surpresa, um ato, acaso j á va
seja de seu encontro com a multiplicidade do natural e mos chamá-la de sentimento ou tomá-la como ser e com
do dado , como fragmentações prismáticas realizadas por portamento indefiníveis, subconscientes? É a primeira
nossa organização íntima sobre a realidade erótica uni- fórmula que me parece boa; não vejo por que seria 1w
tária. De fato, assim como inúmeras vezes nosso inte- cessário pressupor, para essa fragmentação cujos pro
lecto não consegue penetrar uma unidade pela compreen- dutos nos são dados na forma de sentimentos, um aco n
são, e deve portanto fragmentá-la em vários elementos tecimento fundamentalmente diferente daqueles. Ora,
a partir de um pressentimento, de uma exigência ou de parece que se produz algo desse gênero onde se com
uma intuição, para reconquistá-la em seguida a título preende a fciação e rótjq1 como a síntese de uma rda
de "unidade sintética" pela reunião desses elementos, ção em si.sensual e de uma relação~ si afetiv-ª.:_ A n·11
assim também nossa ~alidade afeti.l{a aparece com fre- nião das duas, no nível da consciência do vivido,..i;cµn·
qüência como algo uno e inteiro em si, mas que, mal senta então a unidade de que provêm a maneira. cJ_e s1·1
chega à .superfície de nossa vida prática (em todos' os sen- íntima, de modo algum dividida em si, que chama1111111
tidos do termo) e estando diversam ente desenvolvido, ,Rrecjsamente de amQ_r.
divide-se numa multiplicidade de sentimentos particu- Não irei m ais longe acerca dessas relações; ck f,1
lares. Se, no entanto, nos ativermos à sua unidade, to, tratava-se apen as de refutar essa possibilidade· dr
percebê-lo-emos como uma cooperação, uma comple- "compor" o amor a partir de uma multiplicidad<' ele- l 1
mentaridade, uma imbricação desses elementos diferen- tores, nenhum dos quais justamente é amor. U111.1 Vt
ciados. Não se trata de análise intelectual (se bem que que ele está presente, é bem possível que os t·lc-111rnt
isso possa também sê-lo), mas de e.wlução afetiva vivi- mais diversos venham enxertar-se nele e que, pu1

.
120 FILOSOFIA DO AMOR FRAGM ENTO SOBRE O AMOR 121

seguinte, todo um fenômeno global complexo se apre- portamento eróJic.Q_em_r~l-ª-çliQ.-ª-º~, não só o dese-
sente sob seu nome. Ele é, em si, um ato psíquico im- jo, mas, examinando com atenção, a própria avaliação
possível de fragmentar desta maneira, ou de explicar pd_L também considera o objeto' 'com demasiada atenção' ' _
cooperação de..Qllt~~m~ntos. E a diversidade de inú- O primeiro visa o exercício de um poder; a segund a,
meras manifestações que a língua batiza com esse no- a sentença de um poder, duas atitudes bastante distan -
me não depõe contra sua unidade fundamental, mas pro- ciadas do amor. Justamente, o amor por um objeto ina-
va ao contrário a..s~xistência-d.esta. Pois seria de todo in- nimado pode permitir que se esclareça a um grau parti-
verossímil que uma realidade que para aparecer n eces- cular de pureza essa relação do sujeito co~ um objeto,
sita simplesmente que um elemento espere a chegada que não pode se comparar a nada mais, nem portanto
de outro possa constituir o núcleo imutável de uma pro- se compor de nada mais, e que c:bd_mamos de . ªITIºE.·
fusão tão infinita de acontecimentos sempre em evolu- Aqui, nós o vemos totalmente separado de tudo o que
ção.1;1mor oi Deus e arn.Q.Là.p_áti:ia, ªf!lQI cri:;_t_~ ao pró- é prático , teórico, de todos os juízos sobre o valor das
xigw e amor entre homem e mulher, amor pQ_r um amigo coisas (porque nada nos impede de ''amar'' o que é ob-
ou amor prático-racional ao ideal humanitário,. eis já uma j etivamente de todo indiferente, até mesmo de menor
boa diversidade; mas, além disso, tem-se razão em fa- valor). V emos esse amor ascender de profundezas to-
lar de amor para com os objetos inanimados, não só por talmente irracionais da vida , sem que vise necessaria-
ideais ou estilos de vida, mas também por paisagens, mente qualquer melhoria ou deterioração dessa vida.
objetos de uso corrente, obras de arte. Se "amo" a pai- Vemo-lo como um puro estado ou perturbação do su-
sagem de Florença, isso ainda não significa que eu gos- jeito, categoria em que, no entanto, se insere o teor fa-
taria de fato de viver lá em pe rmanência, nem tampou- tual do objeto: em virtude de sua incomparabilidade
co que a admire de um ponto de vista estético. Talvez transcendental, o objeto amado se encontra, no plano
as duas coisas sejam verdadeiras. Mas nem o desfrute formal, no mesmo nível do objeto do conhecimento , do
subjetivo, por assim dizer prático, dessa paisagem, nem objeto da fé, ou do objeto de um juízo. Amando-o ~a ­
o juízo de valor objetivo sobre ela podem, separada ou II_l_O ~ uma for~a acabada à relação fundamenta~ n tre
conjuntamen te, entrar em j ogo nessa atitude íntima bem a alma e o mundo: a alma perma nece d ecerto fixada a
espec ial que designo sob o termo de amor por ela. In- seu centro - aquilo no qual ela possui seus limites e
r lt1sive aqui , parece, está o segredo do g otism_o___s_exual, sua grandeza - , mas essa iman ência é a fo rma em que
cil' 1a mbém amarmos o corpo do outro n esse sentido, de ela se torna transcendente, ca paz de apreen der os con
11rto ll (J~ ço nlenta rmos com "de__sef,á.-lo" e contemplá-lo de tcúdos do mundo e integrá-los a si. Se ela não fo~s~' , p1i
11111 po lltO de vis.ta-es-tWco. Um desejo e uma avaliação m eiramente, em si, não pod eria sair de si m r11rn n; 111 11 H
p1u lr 111 j11n lar· sc a isso; no entanto, comparado ao com- essa form ulação, inevitavelmente crouo16giea, rnlo dt•·
122 FILOSOFIA DO AMOR FNAG'Ml!.'N1'0 SOBRE O AMOU 123

signa uma sucessão que separa, mas a determinação da_ vo", mas de uma maneira que não pode visivdmcnte
vid a, fundamentalment~ unitária. Todavia, é a partir parece r coordenada com as oulras força:; cspirilua is q ue
do conceito sujeito/objeto que ~or revela o mais for- d ão forma. De fato, que acontece aqu i? Uma imagem
te d-ª imanência mQ~Jll'~ão do mundo. D e fa- (supostam ente) "verdadeira" do ser amad o foi estabe-
to, no ato de conhecimento, como no ato de estimação, lecida por fatores teóricos . A isso vem somar-se, por as-
sentimos como um.a injunção em torno de nós, algo que sim dizer a posteriori, o fator erótico, acentuando certos
designamos imperfeita e pejorativamcnle como norma aspectos, elimin ando outros , mudando a coloração do
medida ou vª1idade, e que está simplesmente situad~ conjunto. Trata-se portanto, aqui, de uma imagem já
além do sujeito e do oqjeto. M as quando amamos, em existente q ue se encontra modificada em sua d eter-
particular um obj eto que não traz cm si - como tudo m inação qualitativa, sem que se tenha abandonado seu
o que possui a alma huma na - uma intenção latente nível de existên cia teórica , nem criado um produto de
de ser amado, verno-nos resolu tamente livres na esco- uma nova categoria. Essas modificações que o am or já
lha, n a maneira e na med ida de nossa atividade subjeti- presente traz à exatidão objetiva da representação nada
va. Mas aq ui também é o objeto que m odelamos por es- têm a ver com a criação inicial que produz o ser amado
sa atividade; o m ovimen to do sen timento segue a fo r- como tal . O ser humano que eu contemplo e conheço,
~a de uma elipse: um de seus focos é ocupado pelo ob- que temo o u venero, aquele que a obra de arte mode-
j eto, ao passo q ue ela permanece em sua totalidade com- lou, é cad a vez um produto particular; e se tomamos
preendida na (manência do sentimento. Assim também apenas a pessoa apreendida pelo entendimento com o
po.demos, ~esse ponto extre~o .~m que o signifi~ado pró- aquilo que ela " é na realidade " e consideramos tod as
?no d.o obj eto .se aproxima do limite do zero e o atinge as outras modalidades como múltiplas situações em que
mclus1ve, sentir esse algo envolvente, que ultrapassa a subj etivam e nte colocamos essa realidade modificada, isso
exterioridade recíproca da alma e do mundo , mas que, se d eve unicamente à preponderância da imagem inte-
no caso limite do amor, ainda faz deste uma relação uni- lectual em nossa atividade prática . Na verdade, todas
versal da alma. essas categorias são coordenadas, por sua significação,
O amor é uma das grandes categorias que dá for- quaisquer que sejam o momento ou as circun stân cias
1
ma ao existente, mas isso é dissimulado tanto por cer- cm que elas atuam . E o amor é u ma delas, na medida
tas realidades psíquicas como por certos m odos de re- em que cria seu objeto como produ to totalmente origi-
presentações teóricas . Não há dúvida de que o efeito na l. Exteriormente e conforme a ordem cronológica, é
~~ O!:_O§O de~loca :_ fa!_sifica _i_nú~as vezes _a _imagem ob~ prt·ciso, por certo , antes de mais nada, que o ser hu ma-
JCt1 v~mente reconhecível, de_ seu ~bi~ nessa medi- no exista e sej a conhecido, antes de ser amado. Mas,
ei a , e decerto geralmente reconhecido como " formati- então, r ssc nl go <p w acontece n ão tem luga r com r ssr
124 FILOSOFIA DO AMOR
FRAGMENTO SOBRE O AMOR 125
ser existente que permaneceria não modificado; foi, ao
que ama em mim, mas meu ser inteiro, o que não pre-
contrário, no sujeito que uma nova categoria fundamen- 1.
1 cisa significar uma transformação visível de todas as mi-
tal tornou-se criadora. O outro é "meu amor", com tan- / 1

nhas outras manifestações-, também o amado, enquan-


ta razão quanto é "minha representação"; não é um ele-
to tal, é um outro, nascendo de outro a priori que não
mento invariável que entraria em todas as configurações
o ser conhecido ou temido, indiferente ou venerado. Por-
possíveis e, portanto, na situação de ser amado, ou ao
que o amor está, antes de mais nada, absolutamente in-
qual viria acrescentar-se de certa forma o amor, mas um
tricado em seu objeto, e não simplesmente associado a
produto original e unitário que não existia antes. Pen-
ele: o objeto do amor em toda a sua significação catego-
semos simplesmente no caso da religião: o D eus que se
rial não existe antes do amor, mas apenas por intermé-
ama torna-se justamente, por isso mesmo, diferente da-
dio dele. O que faz aparecer de maneira bem clara que
quele que seria se não fosse amado, permanecendo inal-
o amor - e, no sentido lato, todo o comportamento do
teradas todas as qualidades que por outro lado lhe são
amante enquanto tal - é algo absolutamente unitário,
atribuídas. Mesmo que seja amado por certas qualida-
que não pode se compor a partir de elementos preexis-
des ou efeitos essas "razões" do amo_r_situam-se num
' -
níveLi:>em_c;likr.ente-chpró.~, e, tão logQ_~~9r
--·----.. tentes.
·:~'>J
-~p~rece .!_e_~mel!te~ são introduzidas afetivamente Totalmente inúteis parecem, pois, as tentativas de
~-~-ãtotalidade de se~categori~
considerar o amor como um produto secundário, no sen-
n<?':'.ª _em r~laç..ãQ..._à g~~_?.~~P..~-r~~g!_...§~Q._J!.moi:-esú~s-~ tido de que seria motivado como resultante de outros
ausente2.31-inQa.q_ue.,~~-~,j9mbém_s.e~~­ fatores psíquicos primários. No entanto, ele pertence a
" objêto de fé"_, Mas, justamente, essa justificativa não
um estágio demasiado elevado da natureza humana pa-
é em absoluto necessária. Eckhart anuncia expressamente
ra que possamos situá-lo no mesmo plano cronológico
que não devemos amar a Deus em razão de determina-
e genético da respiração ou da alimentação, ou mesmo
da qualidade ou ocasião particular, mas exclusivamen-
do instinto sexual. Tampouco podemos safar-nos do em-
te porque f~ é Ele. Sem nenhuma ambigüidade, isso
baraço por esta escapatória fácil: em virtude de seu sen-
revela qu~~~~~~gor:ia_R!lmordiaj_L!!~n-_
do nenhum outro funda!!:l~~o. p~ ele
I: tido metafísico, de seu significado atemporal, o amor per-
tenceria sem dúvida à primeira - ou última - ordem
é precisamente isso, porque determina seu objeto na to-
talidade de seu ser último, o n ada como tal na ausência
r. dos valores e das idéias, mas sua realização humana ou
~.) psicológica colocá-lo-ia num estágio ulterior de uma sé-
de toda existência prévia. Do mesmo modo que eu, en-
rie longa e complexa na evolução contínua da vida. Não
q uanto amante, sou diferente do que era antes - pois
podemos nos satisfazer com essa estranheza recíproca
n ão é determinado "aspecto" meu, determinada energia
de seus significados ou de suas reações. De fato, o pro-

'
126 FILOSOFIA DO AMOR FRAGMENTO SOBRE O AMOR 127

blema de seu dualismo certamente é aí reconhecido e \ O am or é sempre uma dinâmica que se gera, por assim
Q
nitidamente expresso, mas não resolvido ; determo-nos dizer , a pa rtir de uma auto-suficiência interna, sem dú -
nessa conclusão seria du vidar da sua solubilidade. vida trazida, por seu objeto exterior, do estado latente
Volto mais uma vez sobre o conceito m ais geral do ao estado atual, mas que não pode ser, propriamente
amor, que, para lá de sua manifestação sexual, englob~ falando, provocada por ele; a alma o possui enqua nto
não só -o que sucede entre dois seres humanos, m as ~11!.: realidade última, ou não o possui, e nós não podemos
~o-que concerne a todos os conteúdos possívei~ de~­ remontar, para além dele, a um dos movens exterior ou
te mundo. Pa rece-me da mais alta importância reconhe- interior que, de certa forma, seria mais que su a causa
cer o amor como uma função imanente, diria eu for- ocasional. É esta a razão mais profunda que torna o pro-
mativa da vida psíquica , também ela se atu alizando se-
guramente a partir de uma incitação do mundo, mas
cedimento de exigi-lo, a qualquer título legítimo que sej a ,
totalmente desprovido de sentido. Sequer estou certo ele
\
nada determinando de saída quanto aos portadores dessa .
1

que sua atualização dependa sempre de um objeto, e se.


in citação . Este sentimento está mais completamente li- aquilo que chamamos de de_sejo 011 n~ces~idade..de-amor.
gado à unidade que engloba a vid<;l. do que muitos ou- - esse_i.~l~bj_eto, em particular na
tros, talvez a maioria dos outros. A maioria de nossos ( juventuc!_e , em direção a qualquer coisa a ser amada -
sentimentos de prazer e de dor, de veneração e despre- já não é amor, que por enquanto só ~e m ove em si mes·
1
zo de temor e de interesse, nascem e vivem numa dis- mo , d igamos um amor em_Ioda livre.:.. Seguramen te, a
'
tância bastante grande do ponto em que se unem as cor- \ pulsão em direção a um comportamento poderá ser con-
rentes da vida subjetiva ou, antes, do centro onde elas siderada como o aspecto afetivo do próprio comporta
brotam. Mesmo quando "amamos" um objeto inani- mento, ele próprio já iniciado; o fato de nos sen tirmos
m ado em vez de qualificá-lo de útil, agradável ou belo, \ " levados" a uma ação significa que a ação j á começo u
pensamos nessa sensação central, de intensidade varia- \ interiormente e que seu acabamento não é outra coiRn
bilíssima, é claro, que ele deflagra em nós, enquanto essas
avaliações correspondem a reações mais periféricas. A
existência de interesses, sensações, imbricações íntimas,
l que o desenvolvimento hlter:!Qr dessas primeiras inc r
.vações. O nde , apesar do impulso sentido, n ão pa:-;sa111011
à ação, isso se dá seja porque a energia não basta , d<
junto a um sen timento de amor, não é bem expressa, pronto, para ir além desses primeiros elos da açi'ío, 1wi11
na minha opinião, pela n oção das partes diferenciadas porque esta é contrariada por forças opostas, atll<' H "'" "
da alma. Acho, ao contrário , que o amor é, em todas mo que esses primeiros elos já anu nciados n e rn11u 1 ~ 11
as circunstâncias, uma função da totalidade relativamen- eia tenham podido se prolongar num alo vÍM Ívi'! 1111 1111 li
te indiferenciada da vida e que esses casos apresentam mo modo, a possibilidade real, a ocasii'ío np1 1111 h llt ,, d
a penas um grau menor de intensidade dessa totalidade. se n1odo de comportamento que ch a111111111 1wtl1 11111111 1 t ut'I
·'
\1
'
128 FILOSOFIA DO AM OR FRAGMENTO SOBRE O AMOR 1 ~9

surgir, se for o caso , e levará à consciência, como um homem por tanto tempo quanto eu ci venerar. D o roes·
(),
sentimento obscuro e geral , um estágio inicial da sua mo modo, no homem que temo, o caráter temível e o
própria realidade, antes m esmo que a ele se some a in- motivo que o provocou estão intimamente ligados; mes-
citação por um objeto determinado para levá-lo a seu mo o homem que odeio não é, na maioria dos casos,/
efeito acabado. A existência desse impulso sem objeto, separado em minha representação da cau sa desse ódio
por assim dizer incessantemente fechado em si, acento - é esta uma d as dife renças entre amor e ódio que deR•
premonitório do amor, puro produto do interior e, no mente a assimilação que comumente se faz deles 1. L!: 1

entanto, já acento de amor, é a prova mais decisiva em 1
a despeito d a advertência de Eckhart, a relação psíqui ·
favor d a essência central puramente interior do f~nômeno ca geral com Deus permanece quase constantemente pn··
.amor , muita s vezes dissimulado sob um modo de repre- sa a suas propried ades: bondade e justiça, paternidaclr
sentação pouco claro, segundo o qual o amor seria uma e potência , senão a advertência teria sido inútil. M1111
espécie de surpresa ou de violência vindas do exterior u" o específico do amor é excluir do am or existente a qua•
(como também pode parecer, aliás , num plano subjeti- !id ade mediadora de seu objeto, sempre relativame nte·
vo ou m etafísico), tendo seu símbolo mais pertinente no geral , que provocou o amor por ele. Ele permanece c 111
" filtro de amor", em vez de uma maneira de ser, d e seguida como intenção direta e centralm ente dirigida pll
uma modalidad e e de uma orientação que a vida como ra esse objeto, e revela a sua natureza verdadeira e i11
tal toma por si m esma - çomo se o amor viesse de seu comparável p recisamente nos casos em que sobrevive no
objeto, qual}do, na realidade, vai em direção a ele . desaparecimento indubitável do que foi sua razão de 111111
-- T odavia, esse tipo e esse ritmo da dinâmica vit al, cer. É somente onde se trata verdadeiramente de um /m111
determinados do inte rior, sob os quais o amor se a pre- amor a De us que a fórmula de Eckhart é pertine nte; 1u1
senta, também têm seu pólo oposto - tanto que o ser entanto , p ertinente ela é para todo amor, porq ue 'Hll'
humano é amante , assim como é, em si, bom ou m au , deixa atrás de si todas as particularidades do amado q11r
excitado ou ponderado. De fato, o amor é o sentimento estiveram n a sua origem . As fórmulas extáti ca~ <11111
que, fora dos sentimentos religiosos, ~e liga r;iais estrei- , am antes - o ser amado representa " o mun d o tn . t c1ru
' li ,
ta e m ais incondicionalmente a seu objeto. A acuidade '-J' não existe " n ad a fora d ele " e outras expressões 111•111 r
com a qual ele brota do sujeito corresponde ã acuidade ..,.~ lhan tes - significam simplesmente, positivada, CHHll t')(
igual com que se dirige para o objeto . O que é decisivo dusividade do amor com a qual ele, esse fenômrno tn
aqui é que nenhuma instância de caráter geral vem se talmente su bjetivo, en cerra seu objeto exata t: 1111 Jla
inte rpor. Se vene ro alguém , é pela mediação d a quali- ta me nte. P or m ais longe que olhem os, n i'i o h4 n nh
dade de certo modo geral da venerabilidade que, em sua oulro se ntime nto com o qual a a bsolu lll i11111rl1•••
1r li d ad e pa rticula r , permanece ligada à im agem desse rio 1mjci1 0 tenda de m aneira tão int<'f.{H\l IUI y ...... _
\
?)
.r
'
130 FILOSOFIA DO AMOR FRAGMENTO SOBRE O AMOR 131

o absoluto-de. seu objeto, o terminus a quo e o terminus ad humano que esteja o conceito de obje tivo e de meios em
quem integrando-se, apesar de sua oposição insuperável, presença da misteriosa realização da vida , devemos qua-
incondicionalmente a uma só corrente, que nenhuma ins- lificar essa emoção sexual de meio de que a vida se ser-
tância intermediária vem em parte alguma ampliar, ain- ve para a manutenção da espécie, confiando aqui a con-
da que, de início, uma instância desse gênero tenha guia- secução desse objetivo não mais a um mecanismo (no
do um pouco a corrente e ainda mantenha de modo al- sentido lato do termo) mas a mediações psíquicas. Que
go acidental um canal lateral de ligação. numa evolução contínua o amor também surja entre elas,
-\'Essa constelação, que engloba inúmeros graus, des- é inegável. Porque não só a coincidência típica entre a
. de a frivolidade até a mais alta intensidade, é vivida se- época da pulsão sexual e a época do despertar amoroso
gundo o mesmo modelo, seja em relação a uma mulher não pode ser o efeito de um puro acaso, como também
ou um objeto, a uma idéia ou um amigo, à pátria ou não se compreenderia a recusa apaixonada (ainda que
uma divindade. Isso deve ser solidamente estabelecido apresente exceções) de toda outra relação sexual senão
em primeiro lugar, se quisermos elucidar em sua estru- com o ser amado, nem o desejo tão apaixonado desta.
tura seu significado mais restrito, o que se eleva no ter- Deve haver aqui uma correlação genética, não simples-
reno da sexuâlidade. A ligeireza com que a opinião cor- mente associativa. A pulsão, dirigida a princípio, tanto
rente alia instinto sexual a amor lança talvez uma das no sentido genérico quanto no sentido hedonista, ao ou-
pontes mais enganadoras na paisagem psicológica exa- tro sexo enquanto tal, parece ter diferenciado cada vez
geradamente rica em construções desse gênero. Quan- mais seu objeto, à medida que seus suportes se diferen-
do, ademais, ela penetra no domínio da psicologia que ciavam, até singularizá-lo. Claro, a pulsão não se torna
se dá por científica, temos com demasiada freqüência amor pelo simples fato de sua individualização; esta úl-
a impressão de que esta última caiu nas mãos de açou- tima pode ser refinadamente hedonista, .ou instinto vital-
gueiros. Por outro lado, o que é óbvio, não podemos teleológico para o parceiro apto a procriar os melhores
afastar pura e simplesmente essa relação. filhos. Mas, indubitavelmente, ela cria uma disposição
N ossa emoção sexual desenrola-se em dois níveis fo rmativa e , por assim dizer, um m arco pa ra essa ex-
de significação. Por trás do arreb atame nto e do desejo, clusividade que constitui a essência do am or , mesmo
da realiza ção e do prazer sentidos, diretamente subjeti- quando seu sujeito se volta para uma pluralidade de ob-
vos, delineia-se, conseqüência disso tudo, a reprodução je tos. N ão duvido em absoluto que no seio do que se
d a espécie. Pela propagação contínua do plasm a germi- cham a "atração dos sexos" constitui-se o primeiro Jac-
nal, a vida corre infinitamente, atravessando todos es- tum , ou , se quiserem, a prefiguração do am or.(A vida
ses estágios ou levada por eles de ponta a ponta. Por mais se meta m orfoseia também nessa produção , traz su a cor-
insuficie nte , por m ais preso a um estreito simb olism o r~ n te à altu ra dessa onda , cuj a crista , poré m , sobressai
132 FILOSOFIA DO AMOR FRAGMENTO SOBRE O AMOR 133

livremente acima dela. Se considerarmos o processo da Então ela dá à luz produ ções cognitivas ou religiosas,
vida absolu tamente com o um dispositivo de meios a ser- estéticas ou sociais, técnicas ou normativas, que repre-
viço deste obj etivo - a vida - e se levarmos em conta sentam um excedente para lá do simples processo d e vi-
o significado simplesm en te efetivo do am or para a pro- da e que serve a este. E, na m edida em que cada uma
pagação da espécie, então este também é um dos meios dessas produções se forj a uma lógica e um sistema axio-
que a vida se dá para si e a partir de si. lógico correspondente a seu conteúdo fatual e se torn a
No entanto, no m omento em que esse obj etivo é um domínio autônomo no interior de su as fronteiras
alcançado, em que a evolu ção natural to rnou-se amor elas se oferecem de n ovo à vida sob a forma de contcú·'
a fim de que o amor se torne, por sua vez, evolução na- dos, que a enriquecem e a intensificam , mas não raro
tural, n esse momento preciso, pois, o quadro se trans- também sob forma d e rigidezes - , contra as quais se
forma; assim que o amor tem seu lugar nessa significa- chocam ou se desviam seu próprio fluxo, sua própria rí t-
ção para a teleologia da espécie, ele j á é algo diferente, micidade - , ou de impasses em que ela se esgota mor·
para além desse estatuto. Ele, sem dúvida, sempre é vi- talmente . Toda essa contingência, que vai até a contra-
da, m as de uma espécie particular, uma vida tal que sua dição, cujas séries que devemos qualificar de "ideais"
dinâmica própria, desenrolando-se o processo vital na- testemunham contra a vida, a qual as realiza porém cm
turalmente, só existe a partir de então para si mesma si mesma, tem sua problemática mais profunda n o fato
e representa um sentido e um defi.nitivum que se subtraem de que essas mesmas séries originaram-se finalmen te em
totalmente a essa teleologia, e inclusive, na m edida em sua totalidade na vida e são englobadas por ela. Elas su r•
que permanece o vínculo com ela, a invertem: o aman- gem da própria vida, pois é sua essência m ais profunda
te tem a sensação de que a vida deve estar agora a ser- superar-se e criar a partir de si o que não é ela, colocar
viço do amor, existe de certa forma para lhe oferecer seu outro, de maneira criadora, em face de seu próprio
a força de durar. A vida pulsional cria em si mesma mo- desenrolar e de su a própria legalidade . Essa transcen-
men tos de apogeu em que ela entra em contato com a dência, essa relação - produção, contato, correlação,
outra ordem de vida, mas, no instante desse contato, harmonia ou combate - do espírito com seu além , q1w
esses auges lhe são por assim dizer arrancados e se põem é entretanto o próprio modelo de sua vida intcriw·,
a existir daí em diante por virtude de sua própria lega- manifestando-se mais simplesmente na realidade da con11·
lidade e de seu próprio significado. Pode-se aplicar tam~ ciência de si do sujeito que se faz ele próprio objr 111 1
bém aqui a fórmula goethiana: tudo o que alcança a per- p~rece-me ser a realidade original da vida, na 1uc•cllcl1

feição em sua própria espécie supera os limites desta. em que é espírito, e espírito na medid a em ()llr /. vld
O específico da vida, que de um modo ou de outro gera E ela não é apenas dada onde os conteúc:k>H 1-'lllJirltu
sem cessar, é produzir m ais vida, ser um mais que a vida. se cristalizaram numa solidez ideal; anlt'K 111r11nm d
FRAGMENTO SOBRE O AMOR 135
134 FILOSOFIA DO AMOR

princípio, substituível por qualquer ou tro; ademais, dado


cançar esse estágio de agregado, a vida pode , embora
que a substitutibilidade é sempre a própria essên cia de
permanecendo mais estreitamente fechada em si, gerar
um meio, o objeto também se revela simples meio para
camadas, a partir e acima dela mesma, que seu fluxo,
alcançar um objetivo solipsista - o que pode, indiscu-
respondendo à especificidade da natureza e à finalidade
tivelmente, ser tido como a oposição mais flagrante en-
vital, não irriga mais. O amor parece-me habitar uma
tre o amor e esse objeto. Essa contradição não caracteri-
dessas camadas. Está englobado psicologicamente, mes-
za apenas a utilização do ser pretensamente amado co-
mo em seu desprendimento aéreo continuamente me-
mo meio, mas também a intrusão da categoria teleoló-
diatizado, pela vida movediça e seu significado metafí-
gica em geral no domínio do amor. Todos esses reinos
sico, contudo tão transcendente em relação a ela em sua
transvitais permanecem livres, são como que garanti-
própria intencionalidade, suas leis específicas e seu au-
dos pelo timbre e a palavra do rei, em relação a todo
todesenvolvimento, como estão o conhecimento objetivo-
o encadeamento dos objetivos e dos meios. A expressão
lógico em relação à representação p síquica, ou a quali-
de Schopenhauer, a arte atinge "por toda parte o al-
dade axiológica da obra de arte em relação às emoções
~ vo", não significa nada mais que isso, e vale também
psicológicas que acompanham sua criação ou sua frui-
para o amor. O que quer que ele deseje ou cobice, nun-
ção. Determinar os conteúdos do amor nesse puro ser-
ca se insere, enquanto permanece puramente si mesmo,
si-mesmo de uma maneira mais positiva do que a ten-
na técnica dos objetivos e dos meios, da qual uma sen-
tativa precedente de rejeitar a idéia de que é composto
sualidade apenas em busca de si é sempre prisioneira.
de elementos estranhos talvez seja uma tarefa insolúvel.
Em compensação (e os documentos fisiológicos vão nesse
A separação em relação à esfera em que a vida se de-
sentido), parece que a sensualidade, do mesmo modo
senrola - levada pela pulsão sexual - é ainda mais di-
que todos os outros elementos originalmente enraizados
fícil pelo fato de o amor não banir em absoluto a ' ' sen-
na vida pura e simples, atravessa ao m esmo tempo que
sualidade' ' de sua própria esfera. Não posso ver nenhum
eles o limiar do amor verdadeiro; ou então, considera-
m otivo para a afirmação, ouvida com freqüência , de que
do do ponto de vista evocad o precedentemente, que n a
erotismo e sensualidade se excluiriam . O que se exclui ,
amplitude da corrente erótica unitária também passa essa
n a realidad e, é amor e sensualidade isolada, colocando-
veia, separad a d as outras a posteriori pelo conceitualis-
se o prazer sensual como fim em si. Pois, por um lado ,
mo isolador, mas não na realidade da vida. Se design a-
a unidade que colore o ser d o sujeito n a m edida em que
mos como "natureza erótica" aquela em que, de um
ele ama se encontra assim dilace rada e, por ou tro lado,
lado, é totalmente acabada a metamorfose d a energia
a orientação individual do am or que se apossa cada vez
vital nessa esfera do amor, au to-suficiente e transcen-
de seu objeto , e apenas dele, regride em benefício de um
dendo a vida pura e simples, ao passo que essa esfer a
praze r totalmente n ão-individual, cuj o objeto é, por
136 FILOSOFIA DO AMOR FUM:Mt~'N ? 'O SOBRE O AMOR 1:17

é, de outro lado, irrigada por toda a dinâmica da vida cionalidade vê-se de pronto carregado de uma co111 r 11•
afluente sem nunca estagnar? então há naturezas eróti- clição mortal. Se o trágico não significa simplesmenlt•
cas totalmen te desprovidas de sensualidade , assim co- o choque de forças ou idéias, de volições ou exigêncirni
mo outras que são sensualíssimas. Essas diferenças de / opostas, porém muito m ais o fato de que o que destrói
dote físico-psíquico individualizam o e rótico sem tocar uma vida desenvolveu-se a partir de uma necessidacl1•
na identidade fundamental de sua decisão vit<tl. última dessa mesma vida, de que a trágica "con lra(li
Mas o que o amor com cer teza recusa totalmente ção com o mundo" é , em última in stância, um a con
é o interesse pela reprodução da espécie. Como o ser que tradição interna d o próprio sujeito - então todos os h11
ama libertou-se enquanto tal de toda relação propria- bitantes do reino da "idéia" carregam esse fardo. O qut·
mente finalística, da hedonista e da egoísta, e como a con fere o caráter trágico a tudo o que se situa a cima do
relação moralista e altruísta não pode deixar de apegar- mundo ou em oposição a ele não é que o mundo n iin
se a seu estado, que é simplesmente um ser e não um possa suportá-lo, que o combata ou mesmo o des 11·uu,
agir2 , assim também a relação finalística a serviço da o que seria apenas triste ou revoltante; mas sim o fato
espécie lhe é igualmente estranha. Não é um ponto de de que, enquanto idéia e suporte dessa idéia, ele tirnu
passagem, mas um ponto final, ou melhor, seu ser e seu a força de nascer e durar precisamente desse m undo,
sentimento de si estão absolutam ente além de toda no- onde não encontra lugar.
ção de caminho e objetivo final, de toda propensão a ser- E essa é a causa desse traço trágico inerente ao ·ro
vir de meio ou a servir-se de um meio, do mesmo modo tismo puro, desviado da corrente da vida; ela nasceu j 11H
que o conteúdo d a fé religiosa e a obra de arte; simples- tamente dessa corrente cuja lei mais íntima se realil'.11,
mente, nesses últimos casos, a forma duradoura dada enquanto ela própria engen dra sua outra lei, estrn11h11
a uma produção torna mais clara do que no amor a dis- e mesmo oposta à primeira. A beleza atemporal de Afro
tância em relação à teleologia da vida. Isso permite, tal- elite ergue-se no meio da espuma do mar agitado , qt11•
vez, ouvir essa tonalidade trágica geral que emana de o tem po e o vento levam . A vida que gera e procria 1!('11 1
todo grande apaixonado e de todo grande amor, tanto cessar, que pôs a atração dos sexos como mediadora c11l1e•
mais perceptível neste último quanto mais nitidamente duas cristas de suas vagas·, conhece agora essa pud TtJHll
separado do desenrolar racional d a vida, tanto mais ine- inversão, pela qual essa atração torna-se amor, i11to f.,
vitável onde o amor se fecha neste e a ele se m escla, co- se eleva no reino do que é indiferente à vida , cstr:11 il111
mo no casamento . A tragédia de Romeu e Julieta é da- a toda procriação e mediação. Pouco impo rta <]Ili' 1111111
da com a medida de seu amor: pela dimensão deste, o seja justificado pela idéia ou que a justifique, pou1111111
inundo empírico não tem lugar. M as como ele vem desse po rla que o amor regrida para um vínculo u1 1t!'11111 r
m1rndo <' deve enredar sua evolução real à sua condi- assuma , enquanto realidade, o significado g111' H11hll11h1t
l
138 FILOSOFIA DO AMOR
r, FU1lCM JmTO SOBRE O AMOR 139
\!
mos para a reprodução da espécie. No que concerne à c m seu portador e o envolvimento, a absorção do ou-
sua significação própria, ele ignora tudo desse interes- !I tro, e a necessidade de fundir-se com ele, contradição
se, é e continua a ser a permanência do sujeito em seu no processo entre o eu e o tu, que mesmo essa última
estado, que , de uma maneira que não se pode explicar, l in stância não pode preservar de um perpétuo recome-
mas somente viver, cresce em torno de outro sujeito, en- ~· ar. No entanto, trata-se aqui do outro trágico, aquele
contra finalmente sua centralidade em si mesmo e não riuc, partindo da vida da espécie, projeta uma sombra
na manutenção e no desenvolvimento da espécie, nem
num terceiro a gerar. Mas o amor provém dessa vida
f sobre o amor. É com ele que essa vida transcendeu-se,
1 ~ cngendrou por suas próprias forças a infidelidade par:1
da espécie e algo como uma contradição interna, uma consigo mesma, produziu uma esfera que ainda pode.:
autodestruição, paira em torno dele, desde que, existên- ' ser tomada em sua significação cosmo-metafísica, po r•
eia própria, dela se destacou, separando-se de sua sig- 1 '> que é essa significação que faz que a vida sejajustamenle
nificação . A sombra trágica que paira sobre o amor não mai s que a vida, m as em cuja esfera ela rompeu co111
vem de si mesmo, é a vida da espécie que a projeta. Por a sua lei de ser um acréscimo de vida.
suas próprias forças e por seu desenvolvimento finalís-
1
~ São altamente complexas e finamente tecidas as r ·•
tico, esta impele para o alto a plenitude do amor; mas lações múltiplas em que no amor enredam-se individua•
no instante em que desabrocha o amor exala seu perfu- lismo e vida da espécie. Só que a complexidade não n~·
me numa região de liberdade, bem além de seu enrai- 1
side em absoluto em todos os lugares da própria ex p<··
zamento. Com certeza não se trata de uma tragédia com riência vivida. Com muita freqüência , esta é, antes , lu•
1 destruição e desenlace fatal. Mas esta é a contradição: ', 1almente monocolor e rígida, e só nossa reflexão ao 1' <'
ao lado ou acima da vida que quer tudo englobar, há i
produzi-la, com nossos conceitos insuficientemente agu·
alguma coisa que lhe é estranha, que se destaca de sua çados, a compõe a partir de elementos fragm enl HdüM ,
cor~ente criadora, que tira de sua própria semente for- 111utuamente opostos e mal ligados entre si. Se a CH lru
tuna e infortúnio, e que não obstante vem justamente lura específica dos conceitos se defende assim co111ru 11
de uma profunda vontade, ou necessidade , ou melhor, fragmentação desses elementos e quer colá-los const11n·
talvez, de um dever dessa mesma vida, e essa alienação te mente uns aos outros para construir ao menos u11111
em relação a ela representa seu próprio e último segre- contra-imagem que coincida simbolicamente com a uni•
do; essa contradição, essa negação, sem agressividade dndc d a experiência vivida, isso deve ser imputado, 1111
decerto, da vida, que é negação de si, faz a d oce música me nos cm parte, ao fato de a filosofia não levar ' lt1 rnn
trágica soar diante da porta do amor. Talvez em seu puro 111 u problema erótico. À parte algumas menç{i1·11 til M
ser-si ele j á contenha algo do trágico, pois há uma con- 11icm11i H, os debates em Fedro e O banquete e as rrllf'11fttt1
tradição entre a interioridade indissolúvel do sentimento d1' Vl'l"ll ll t1niln1 crais de Schopenhauer são tudo o ljUll 1

~'

- -
li':
140 FILOSOFIA DO AMOR
Fl<ADM ENTO SOBRE O AMOR 141
ses grandes pensadores deram como contribuição ao pro-
çns da terra a Zeus. É por isso que, não importa a quan-
blema. Por conseguinte, os únicos conceitos utilizáveis
tidade de moças que tal homem seja capaz de seduzir
permaneceram fossilizados, indiferenciados e não per-
4 a seu bel-prazer, o abandono da moça não é aqui em
mitem uma verdadeira tomada de posição. Cumpre di-
a bsolu to ligado à individualidade específica desse ho-
zer que, n esse contexto, parece-me ver esboçar-se ~ais
111c m , m as apenas a seu tipo. Margarida não conhece
uma vez, no individ ualismo do amor, uma determina-
a· personalidade particular de Fausto, não tem dela o me-
ção decisiva deste. Exponho o q ue entendo por isso
nor pressentimento e, em todo caso, n ão é ela que M ar-
servindo-me de dois pares am orosos de Goethe.
garida ama. Quando fala dele em seus monólogos, o faz
O fato de que Fau sto e Margarida sejam ampla-
cm termos surpreendentemente individuais: "que h o-
mente considerados como o par erótico ideal prova quão
mem !'', d iz ela. E se essa imagem genérica é , a seu s
raramente a idéia do amor supera o caráter puramente
ol hos, digna de toda a intensidade do que ela sente e
genérico deste . Sem dúvida nenhuma, a experiência vi-
da colocação de toda a sua existência em jogo isso se ba-
vida por Fausto é globalmente determinada pela incom-
se ia no fa.t~ de que, para as mulheres em geral, o gené-
parável individualidade de seujatum interno, nã~ se~­
rico - a vida sexuàl em sua globalidade, a relação com
do o acontecimento exterior, no seio dessa evoluçao ps1-
o li lho, os domínios do agir e do sentir, que são a casa
cometafísica, mais que puro símbolo. Mas precisamen-
e a fam ília - torna-se facilmente uma experiência de
te porque tem apenas uma função determ inada a cum-
todo individual. Sua maior profundidade de sentim en-
prir no seio de um imenso desenrolar é que ele é, em
IO apa rente ou real significa com freqüência qu e o que
si, enquanto acontecimento erótico , de uma essência to-
o homem apreende como algo geral, típico , é aperfei-
talmente não individual. Margarida ama Fau sto não co-
~«>ado por elas num destino puramente in dividual, n o
mo individualidade, mas como H omem inteligente, que
1im ite da personalidade.
simplesmente supera e domina. Temos aí uma dessas
Pa ra o próprio Fausto, essa experiência é uma sim-
relações que se ·apresentam mil vezes, em que uma mo-
pl ·s aventura . De acordo com sua n atureza, cuja uni-
ça de nível cultural inferior e de m ais nobre disposição
dnclc é constituída pela união de dois elementos opos-
natural cheia de u ma nostalgia obscura, talvez até in-
'
consciente, por um m undo superior do qual nenhum raio
. lwl, a reflexão e certa emotividade, ela adquire decerto
pl'Of\rndid ade e ele é pego numa cilada; no en tanto, lu-
penetra em seu ambiente, torna-se vítima de um homem
do 1·0111inua para ele uma simples aventura. E a esse seu
que desce até ela, vindo desse mundo superior para sa-
tll'lll i111l d · preencher, por assim dizer, uma parte esque-
tisfazer essa expectativa de maneira inesperada e cegá-
mnlll nmrnte esboçada de seu programa de vida corres-
la com aqueles sóis a que seus olhos não estão habitua-
1111111li 11 1111111 c i ra assaz superficial com que capta a na-
dos. Toda resistência é tão impossível quanto a das mo-
turr1111 d11 M111·g-arida. O comportamento tipicamc nt<.:
!.

142 FILOSOFIA DO AMOR FRAGMENTO SOBRE O AMOR 143

masculino que, na relação com a mulher, consiste em sica de sua natureza inteiramente genérica - que nem
~
só pensar em última instância em si mesmo e não na 1
por isso fica absolutamente integrada à vida infra-erótica
mulher - ainda que se mate por ela, e em particular da espécie , mas revela-se como habitando de p leno di-
nesse caso - tem seguramente aqui a justificação mais reito a região do amor verdadeiro.
profunda de que o vivido n ão é mais que um símbolo , Entretanto, com tudo isso, ainda não temos o que
uma etapa incontornável de sua grande viagem; mas isso se pode ch amar de amor absoluto ; ele corresponde ape-
não muda nada, e torna simplesmente evidente o fato nas a essa definição quando tudo o que se refere à espé-
de que integra Margarida apenas a título genérico na cie - e que não é, de modo algum, o sensual, porque
imanência da natureza erótica dele. É o' 'desejo de seu o sensual pode tender, como no amor de Margarida, para
doce corpo'' que o impele em direção a ela, desejo igual- um significado espiritual e universalmente humano -
mente estranho à individualidade, ainda que a palavra foi eliminado, de sorte que o sentimento vai exclusiva-
corpo (Leib) possa adquirir aqui u m significado que su- mente para a personalidade insubstituível. Ora, é jus-
pera a simples anatomia. Ele não dá o menor sinal de tamente aí que está o decisivo para a relação entre Eduar-
sentir a profunda especificidade de sua paixão, desse do e Otília, o oposto absoluto de Fausto e Margarida.
grande heroísmo que ela exerce sem muitas palavras nem Para estes últimos, no que diz respeito à natureza de seu •
consciência. Toda a surpresa e o encanto desse erotis- amor, é permitido pensar que não são insubstituíveis co-
mo dissimulam bastante mal , finalmente, o fato de que mo pessoas, se bem que Margarida, de acordo com es-
cada um dos dois ama passando ao largo daquilo justa- sa individualização da afetividade feminina em tudo o
mente que o outro tem de mais individual. Eu gostaria CJUC concerne aos fins da espécie, liga indissoluvelmen-

de presumir o indemonstrável, a saber , que o próprio te sua paixão a esse único representante dos valores in-
Goethe sentiu isso mais tarde e, com a reintrodução de dividuais fundamentalmente decisivos. Mas em Eduardo
Margarida transfigurada, deu a posteriori à relação deles e Otília Goethe conseguiu dar a impressão - como em
uma profundidade transcendental, legitimando-a, por nenhuma outra parte em sua pintura do amor - de que
assim dizer, metafisicam ente per subsequens matrimonium luc.la possibilidade de substituição acha-se, aqui , excluí-
coeleste. Mas a natureza original de Fausto' não se modi- da a priori, no sentido próprio desse termo (isso vale igual-
fica em absoluto; fica, ao contrário, ainda mais acen- me nte, é claro, para Carlota e o capitão, como Goethe
tuada com isso . Pois o que a partir de então é ativo em 1111uncia, por sua integração sob o mesmo conceito de
Margarida é o eterno feminino, isto é, simplesmente o nlinid ac.lcs eletivas; mas vale em grau menor, mostran-
feminino, atemporal e supra-individual. Mesmo essa úl- do, tl m troca, de maneira assaz interessante , que ma-
1ima sublimação da relação, que significa seu derradei- nrlrnHdr nma r absolutamente distantes em sua nature-
ro aprofundamento, não é mais que a tradução metafí- • • tH•rnai11:1u , cada vez, as dosagens mais diversas) . So-
144 FILOSOFIA DO AMOR !'IU IC:MENTO SOBRE O AMOR 145

mente então , a paixão é totalmente determinada pelo l'l t:s dois e à sua "vida juntos", sem que apareça um
Jatum da individualidade. Com certeza ela pressupõe, se- " ao lado" ou um " acima" cuja irradiação celeste ate-
gundo a lei da espécie, a divisão d os sexos. Eduardo e 1111ari.a os contornos de suas individualidades absolutas.
Otília devem necessariamente ser homem e mulher. Nes- Assim, penso poder chamar de amor absoluto aque-
se amor absoluto , a sexualidade é ativa enquanto colo- le em que a desconexão de tudo o que depende da espé-
ração geral do indivíduo, não como elemento que se abs- ci1· e a exclusão a priori de toda substitu tibilidade do in-
trai e se autonomiza; nem um nem outro experimen- divíduo não são senão duas expressões do mesmo com-
tam uma palpitação por ela em sua qualidade puramente portamento. O puro conceito do amor, o movimento que
genérica. Contra a individualidade absoluta vem se que- kva um sujeito ao outro, destacado de tudo o que é vi-
brar, no erotismo como em outros aspectos, a continui- d a da espécie e q ue permanece, enquanto sentimento
dade inseparável da vida da espécie. Para Fausto, M ar-
garida é, em primeiro lugar, simplesmente um a moça,
:1bsolutamente individual, inteiramente dentro do sujeito, 1
1•ncontra aqui uma realização como é raro se ver, sem
um exemplar de. toda m ulher, pois ele está destinado a 11 cnhuma regressão. É por isso que eu só podia quali fi-
ver H elena em cada uma; ademais, ela é dotada a tal n 1r de a priori a segurança com a qual ele torna qual-
ponto d as qualidades d a moça , que o limiar d a excita- quer troca impossível. Não se deveria confundir css ·
ção erótica é ultrapassado: genus plus differencia specifica. ;1111or a bsoluto com o caso em que , depois de a escol ha
A paixão de Eduardo, por sua vez, é pela individuali- l er sido efetuada e d e a possibilidade d e relação com o
dade absoluta de Otília, que é decerto totalmente femi- Sl' XO inteiro ter-se reduzido a um só e único indivíduo,
nina, mas em quem essa linha de separação ideal é in- 11 iio é mais possível tra tar-se de outro . Aqui, a exclw1i·
teiramente apagada, de sorte que se torna impossível di- viclaclc é a posteriori, vale para o futuro, enquanto lá ela
rigir essa pa ixão - por exemplo, na base genérica - t-. idealmen te válida também para o passado . Há a Jll(J•
para outra individualidade específica. Eles se amam un i- n·s maravilhosos, que possuem plenamente o aspecto f't·
camente porque está escrito nas estrelas, enquanto Fausto norn cnal do amor absoluto , mas que só têm isso de 1•11 1
e Margarida só se amam porque se encontraram. Nada pfri co e estão para o absoluto assim como o infinito do
simboliza melhor a diferença do qu e esses pressentimen- f(• m po \"Slá para o atemporal, coisas que tampou('o q1111N1'
tos do além, que concluem cada um desses destinos. nno se d istinguem na prática .
Margarida é una poenitentiana, u ma irradiação desse eterno , Assim como o amor de Eduardo e O tflil\ p1 ~1u1u
fem inino que age aqui, o símbolo de um mistério abso- põe a difere nça dos sexos - que, po r certo , nT111 lo mall
lu tamente su pra-individual. Para Eduardo e Otília, é o q1u• n ro lon u;ão geral da indiv idualid ade 1·111 NUA IOl
'' amável instante em que despertarão um dia de novo dudr, do úni r o su,ieito/ objeto desse a111m r •lt (!Cl1
ftllll• •
Ju nl os" que os espera. Todo porvir eterno se limita a & Ili wl um el1•111cn to específi co para umn nh111rqle1...,.• •'J.


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146 HLOSOFIA DO AMOR FRAGMEN TO SOBRE O AMOR 147

teriori, irreal - , assim também o amor mais autêntico timento e a exigência do puro indivíduo , isto é, do su-
não se defende, em absoluto, inclusive em sua progres- jeito cen tral ou total, e enquanto isso , como dissemos,
são para o absoluto, contra a sensualidade que bate à as determinações biologicamente conformes à espécie não
porta e su as conseqüências para a conservação da espé- são decerto descartadas, mas, para um estudo que isole
cie, como tampouco se defende contra um destino que seu objeto, não são agora mais que u m fator entre tan-
se prende à personalidade central. Só que, de acordo com tos outros que parecem sintetizar uma individualidade;
seu próprio sentido, ele se comporta para com a vida dentre estes, os que permanecem afastados dos interes-
da espécie e suas finalidades, que são realidades objeti- ses imediatos da vida ou da espécie - de maneira be111
vas, exatamente como em relação a algo estranho e in- compreensível, ainda que passageiramente - são, da
diferente. Evoquei o trágico, sentido, em compensação , maneira mais consciente, os mais marcantes. Mas isso
como revolta da sua gênese incontestavelmente ligada pode ter conseqüências incômodas para a manutenção
à espécie; talvez se trate inclusive, não só da gênese, mas da espécie . Enquanto o interesse desta dominar o se r,
também do fundamento permanente do erotismo. De fa- se não a consciência dos humanos, podemos considerar
to, a contradição pela qual tentei definir seu ser só apre- o amor, pelo menos o amor da mulher, como o instinto
senta esse radicalismo no princípio ou na idéia; mas um ou o porta-bandeira do instinto para o pai do melhor
corte histórico único desse tipo nunca existiu, nem na filho possível. É essa a justificação biológica do casamento
realidade filogenética, nem na ontogenética. Resta em por amor. Não há necessidade dela, na medida em qu<'
aberto a questão de saber se ela se produz real e absolu- o material humano é supostamente pouco diferenciado .
tamente no mundo fenomenal. Nesse domíuio da vida, No seio deste, saber que casal se forma é deveras indi
é m uito m ais de acordo com uma progressão contínua ferente para a qualidade da descendência. O interc1H1c
que se eleva o verdadeiro amor transvital, a par tir da por essa qualidade só entra visivelmente na prática on
vida da espécie e da vida conforme à espécie, sob forma de as personalidades são bastante individualizadas e 011•
mais ou menos fragmentária ou acabada, ora como sim- de, por conseguinte, a escolha do cônjuge pode, dt:HflW
ples nostalgia, ora como um arroubo que logo se arre- ponto de vista, revelar-se absolutamente justa ou fnlH11.
fece, ora num compromisso ou numa mistura relativa- Suponhamos agora que uma instituição autoritária prr
mente estável do biológico com o puramente erótico, ora mita a reunião dos exemplares mais aptos de cacJn
numa alternância inquieta dos elementos dominantes. seríamos, então, notoriamente incapazes de detcc1111 dr
Em todo caso, assim que sobrevém entre eles, essa maneira segura essa aptidão, por se tratar de scn ·H nltn
contradição também significa, além desse lado trágico, mente diferenciados e altamente complexos , roilm t••r•
um perigo bem real para a vida da espécie. De fato, o a qual, na criação do animal, o olhar do en tendido ~ mlll
desenvolvimento crescente do erotismo favorece o inves- que suficiente . Em vez de um saber devida111r11tt4 t\tn
148 FILOSOFIA DO AMOR FRAGMENTO SOBRE O AMOR 149

dado, a finalidade da espécie dispõe aqui apenas do ins- menor grau o dos homens, se prende cada vez mais , por
tinto, no qual ela se fia e ao qual confia a escolha do certo ainda não de maneira constante, às qualidades es-
parceiro biologicamente apto, sob a forma con sciente de pirituais do parceiro, e que ele é cada vez menos solidá-
u m a inclinação erótica individual. A crença popular nu- rio do instinto para sua competência biológica. Discre-
ma perfeição específica dos "filhos do amor " só pode tamente iniciada, mil vezes contrariada e suspensa, é esta
ter o seguinte fundamento: o amor nasce justamente on- uma das mais formidáveis transformações introduzida
de as individualidades parentais são destinadas a gerar por essa evolução; seu avan ço priva-nos do único indi-
juntas o m elhor filho. Nossa a r gumen tação, segundo a cador para a justeza biológica das procriações, o casa-
qual o amor enqua nto tal desprende-se da corrente vi- mento por amor perde seu valor biológico! Essa contra-
tal da finalidade da ~spécie, para constituir um ser-assim dição vital permitiria, em suma, que o trágico da reali-
do sujeito, autocentrado, não está, em si e por si, em dade erótica tomasse corpo. A autonomização do amor
contradição com isso. Pois a gênese do amor estava nessa· em relação à vida que o gerou para seu s próprios "fins",
corrente, que ele não fe z mais que transcender para ga- sua concentração n a imanência de seu suporte, sua ex-
nhar seu ser-si; e ele carrega simplesmente consigo, pa- ten são às energias suprabiológicas deste, o absoluto que
ra lá desse limiar, conteúdos e colorações , pulsões eva- ele se torna pela não-permutabilidade da sua individua-
lores que cresceram em sua forma vital e renascem a go- lidade, tudo isso, a princípio, simplesmente se aliou à
ra, mas numa nova tonalidade e centralidade, com o a indiferença do amor p ara com as finalidades da espécie.
visão da n atureza na obra de arte. Mas essa centralida- Isso confirma a fórmula da vida: promover o que a trans-
de subjetiva traz precisamente em si, para a finalidade cende segundo sua absoluta realidade específica e suas
d a espécie salva d e passagem , a am eaça de um desvio, pró prias leis, de acordo com a lei que leva essa vida não
na medida em que o amor também extrai seu sentido só mais adiante em seu próprio n ível, m as também até
do universo global da personalidade, tornando-se este, a d imensão superior. No entanto, a pura indiferença cor-
de um lado, m ais rico em elementos diversos, de outro, re o risco de evoluir para hostilidade positiva; essas des-
ma is individualizado e, por assim di zer, ma is voluntá- f·inações do amor parecem ti rar-lhe pouco a pouco a sig-
rio. Porque, a partir de então, o novo, o verdadeiro amor 11i li cação e a gratificação de seu retorno à vida a partir
se nutre igualmente de todos os elem entos fora dos que rl1: sua autonomia transvital. Se essa evolução continuasse
s~.o vitais p a ra a espécie , e esses outros elementos p o- a st· consumar, fi caria cada vez m a is claro qu e o desti-
de m muito bem se tornar m ais fortes , tanto em sua di- nn da vida é cortar as ligações anteriores que estabele-
rerJ io qu a nto em seu caráter. A realidade empírica pa- n :u para seus caminhos, e reconhecer esse corte como
1'n~1..: prová-lo. Pelo menos nas camadas elevadas de n ossa iH Ul necessidade m ais íntima , com o a realiza ção últ im a

1mrir d ndr, obse rva-se qu e o a mor das mulhe res, e em de• 1ma le i de autotranscendê ncia .
150 FILOSOFIA DO AMOR FRAGMEN T O SOBRE O AMOR .1 5J

IJigressão sobre o eros platônico e o eros moderno do, desde então rompeu-se o sólido fechamento do uni · •
verso , que era precioso e divino em cada uma de suas
O único grande filósofo que se colocou a questão partes , pelo simples fato de seu ser-aí. O ser-aí está tcn ·
da significação psíquica do erotismo no plano destinai sionado entre dois pólos , a alma e D eus, ou, melhor di·
e metafísico e que deu uma resposta tirada das maiores zendo, absorvido neles; bastou que a representação cli ·
profundezas foi Platão. D e fato, Schopenhauer, o úni- vina perdesse , no decorrer dos séculos, sua força origi·
co que se possa citar a seu lado , não se interrogou ver- nal , para que a alma permanecesse , p or assim di zer , só;
dadeiramente sobre a essência d o amor , mas sobre a da isso vai encontrar, em seguida, su a expressão m ais pu·
sexualidade. Platão, por sua vez, viu no amor uma for- ra n o idealismo moderno, para quem o m undo só cxis
ça vital absoluta, e compreendeu que um caminho do te como representação no seio de u ma consciência q t11•
conhecimento deveria passar portanto através dele p a- o design a . O fato de a alma possuir, assim , uma procl11
ra levar às últimas potências ideais e metafísicas. Por/ I 1 tividade original está bem distante da consciência teóri·
certo, os meandros e pontos de chegada desse caminho ca do grego , por mais infinitamente produtiva que tcnh11
são diferentes daqueles por que passa o hom em moder- sido sua r ealidade . Ademais, esse p ensam ento era ck
no, ainda que seu ponto de partida, o dado subjetivo masiado preso ao ser vivo do cosmos, em cuja unidndl•
imediato do sentimento amoroso, não tenha conhecido a alma crescia, e os gregos viviam de maneira dem a11i11
a mesma transformação. Sua interpretação filosófica es- do incondicional da solidez intuitiva do obj eto para c·on
boça, de maneira tanto mais nítida, a diferen ça entre ceder ao sujeito uma criatividade independente. Esln r
as intenções últimas do espírito grego, que culmina em a camada inferior dos traços característicos a p artir <l oH
Platão, e as prescritas pela lei do espír ito moderno. quais se desenvolve a especificidade da ética plat ôni('11,
Para o grego, sua representação do mundo é con- em oposição à ética moderna.
forme à idéia do ser, do cosmos real unitário, cuja for- ~ P ortanto, se a beleza de um ser humano - i1t~11
ma plástica fechada em si venerava como d ivina. M es- é óbvio p ara Platão - incita-nos a amar, a amar pri
mo quando seu pensam ento o conduzia para os princí- m eiro sua beleza física, mas depois, como conccdc 111 1111
pios universais do movimento e d a relatividade do dua- mais timidame nte , sua beleza moral, é porque elr t•vn
lismo, era sempre o ser sólido, onienvolvente, auto- ca em nós a lembrança da idéia de beleza, outrora ('011
sufi ciente, intuitivo , que determinava a forma e o dese- tcmplada, da imagem original do belo em geral, d11 q1rnl
jo últimos de sua modelação espiritual do mundo. D es- trazem os den tro de nós , neste mundo, uma cte rn11 NIUI
de que o cristianismo au mentou infinitamente o signifi- dade , devida à nossa vida anterior. A belc:.:a 1 d!' 1111 IA1
t:atlu <la alma humana e reuniu todos os valores exis- as idéias a única visível, faz a idéia passar no 11·11utrt1
lrnrin is na pessoa de um Deus único em face do mun- o amor , pelo mesmo caminho, faz o tcrrcst rt• 1111111111ler
152 FILOSOFIA DO AMOR FIUJGMENTO SOBRE O AMOR

à idéia. Encontram-se aqui reunidos como num ponto conteúdo da alma se apresenta ao grego como tirad o d e
focal todos os traços que pareciam constituir para nós um ser-aí , não como gerado pela alma em sua cri ati v i
a espiritualidade platônica. (. c.la de autônoma. Assim, o amor não é, para ele, um 11 111
Há, em primeiro lugar, o olhar que se dirige para livre da alma, ao qual ela é sem dúvida estimulada do
a substância sólida, escultural. Para nós, a beleza é uma exterior, mas que nasceria, sem cálculo nem coerção pOM
qualidade do ser hum~no, uma relação entre as partes síveis, simplesmente do mais í11timo de sua disposÍ<,füJ
de sua imagem, talvez uma repercussão simbólica de sua e de sua força; ao contrári.~_:>, o amor é uma espécie d r
vida íntima, ou mesmo a reação que suscita na consciência necessidade lógica, i1p.posta poLessa contemplação w1
daquele que o contempla. Para Platão, a beleza deve, por bcle~lli'Jl~__as.s.im__Que seu ser-dadg__an_ t qi9r res11 u q.çc
sua vez, ser objeto, deve poder ser contemplada como uma ~t vjs_ª _
Q...de_uma imageIJ1 _t<;rrestre. Por isso é semprt' 11
substância para ter realidade e significação universal. E, simples visão da beleza que gera o amor, e o grego 11 1111
como ela não existe assim no ser empírico, é preciso que percebe o significativo caso inverso, em que o rni s t ~ i ln
a alma tenha sido contemplada antes, numa existência pró- cio amor é apreendido num nível bem mais p rofundu,
pria, igualmente plástica e apreensível; o belo ser huma- a saber : ac~amos _belo o ser que amamos, _o que s<.;g 111·11
no não é mais que a mediação empiricamente necessária 111ente só pode ser pensável graças a uma esponta ncid11
para despertar a lembrança dela. O dinamismo vital do de, uma .vida criadora autônoma do..,,afeto amqro110 4
sentimento moderno da existência, o fato de que ele se Toda a violência da paixão amorosa, no quadro q111•
apresenta a nós como uma espécie de animação (apesar Platão pinta, tende para a impessoalidade d a idéia . C11
1110 se essa menção de uma racionalidade supn.:111 u rht
de toda a sua constância e de sua fidelidade, ele é absor-
vido no fluxo contínuo e deve seguir esse ritmo que re- idéia, que é o oposto de nossos próprios conceitos rm ili
nasce sem cesssar), está em contradição com o sentido nai s, mas se nos torna acessível por eles, devesse jw;tll
dos gregos, orientado para a substância e a perenidade raro irracional da paixão . O que é decisivo e dif(.:1'!'lll r
de seus contornos. cio sentir moderno é que a irradiação erótica n ão fa z 111 f11,.
Em visível correlação com a diferença que acaba- que a travessar o indivíduo amado , esta ndo seu ];>Wtl11
mos de ressaltar entre o pensamento grego e o pensa- fornl situado acima dele . Enquanto para nós o amm n 11
men to moderno, está o fato de q~e o primeiro possui (- n1 a is que mediador entre dois seres human os, PJnt.111 ,
111~1 a5onsciência bem men or da produtividade da alma . nc-ssc caso, desloca precisam ente o fa tor da 111<.!di n~ 111,
DP. fa to, a alma, como a concebemos , significa exercí- f'nzt•ndo-o passar desses seres à sua relação com o 1/1/11 11
cio contínu o d a criatividade . O grego , a despeito de to- iurl~l. O fim último é a contem placão d a pffi 1o1~ 111 lu
e ln o sr u pode r espiritual e de sua autonomia efetivos , lf!W , o.amOLJl.ã.Q.é m ais qne.il servidor, o O'UIJ<'P"(IJ\ A•
Mt rnp rt-· deve, por assim dizer, ater-se a alguma coisa. O 1d1ll , Pla tão pode continuar a ensinar qu e a nat111 r 1111 d1
/
154 FILOSOFIA DO AMOR /l'UíW/t. /l•,'N'f'U SOllNE O AMOR 155

tica con sumada não se detém em nenhuma beleza indi- 1 1r lnciiu de valor que se constrói a partir do amor e do
vidual, mas reconhece n a primeira p essoa a mesma be- m11or rnrn;spondido não é levada em conta por Platão.
leza que na segunda e em todas as outras , e que, por O r rw1 Krego é um querer ter, por certo igualmente no
conseguinte, seria servil e insensato ligar esse sentimento 1H•111idu nobre de ter n o ser amado um continente para
à beleza de um só ser. Ele verterá seu am or no ' 'oceano 11111 cnsino ideal e uma aculturação que eleve m oralmen-
da beleza''. Está portapto bem distante dele aquilo que l l', A11s i111 , o amor pode ser, para ele, o estado interme-
nos parece a altura definitiva do amor: o fato de que dl6.rin e n tre o ter e o não-ter; logicamente, portanto, ele
ele vale justamente apenas por esse ser impermutável, drvt·ria se ex tinguir com o ter. Mas se quiséssemos dar
bem como o fato de que, onde ele se inflama diante de 111i::1 fi xação do amor antes do ter a interpretação de
uma beleza exterior, o faz apenas diante de sua mode- que, para ele , o "ter" aparecia como objetivo inacessí-
lagem individual, e nesse caso toda outra beleza objeti- ve l, situado no infinito, estaríamos errados . J á que pa-
vamente de m esma grandeza não seria capaz de nos al- rll o a111 or moderno o objetivo verdadeiro é o amor cor-
cançar no plano erótico . Paui._pós, _ª-1;deza..da individua- n·~ sendo tudo o que segue secu nd ário e aci-
lidadf._e_a_individualidade da hek.?a constituem uma uni- tlcnlal , ele compreendeu - é a conseqü ência desse co-
d ade.ativa indissociável , e o que nos separa mais pro- 1ílicci111c nto - que há, no outro, algo impossível de se
fundamente de Platão é que, para ele, iir~ualidade mnq uistar, que o absoluto do eu individual ergue uma •
e bd.ez.a são dissociáveis, realiz$!!.illg_o .a,mQLP-recis~ 111ura ll1a entre um ser e o outro, muralha que mesmo
o ~ue as separa: ele se apodera da beleza e deixa 11 mn is a paixonada vontade dos dois conjugados não se-
a indiY.i.ch_.ialidade de for.a. 1'111 capaz de demolir, e que faz de todo "ter " real que
Essa negatividade da individualidade é o que dis- q lll' ira se r mais que a realidade e a consciência de ser-
tingue definitivamente o erotismo platônico do erotis- nmado-de-volta uma ilusão.
mo moderno. Todos os grandes mo tivos que assumem Enfim, a indife rença particular entre o eu e o que
como base a teoria platônica do amor levam a essa ne- 11 1111 pera se manifesta de m aneira inegável na interpre-
gatividade , todas as determinações que dão su a colora- l aç~to platônica do amor sob forma d e desejo d e imorta-
ção a essa m esm a teoria decorrem dela. Entre elas, em lidade. É a aspiração do ser humano em sua m aturida-
primeiro lu gar , eis o que mais nos surpreende: para d e- de a procriar - u m a to divino pelo qual o mortal ob-
te rminado amor, a reciprocidade não é, em absoluto , 1<l 111 para si imortalidade. Nosso amor por nossos filhos
u111 elemento determinante, intimamente essencial. A 111o seria nada mais que esse desejo apaixon ado de du-
idéia, à qual o amor na realidade se dirige, n ão ama em rnr além da morte. Nada mais que isso , portanto : a
t rncu, o m esmo se dando com seu representante terres- "ctl u<.: a<,:ão" do jovem amado , pela qual nós o modela-
t rn , rlinnte do qual o amor fez sua primeira escala. A tnOfl p~rn elevá-lo a um s~r superior, que é desde en tão,
156 · FILOSOFIA DO AMOR /t'l{Af.'M t ..N T O SOBRE O AMOR 157

no sentido mais profundo, a descendência que produzi- u111ile. C omo, para seu pen samento racional, a indivi-
mos nele, o prolongamento de nossa própria existência, d11 nlidacle aparecia como algo não-substancial, demasia-
ou ainda nossa própria maturidade continuando a ge- do volátil, e todos os acontecimentos íntimos que se re-
rar. Se Platão justifica antes a veneração amorosa do belo ltwio nam a ela como um arbitrário p ai rando livremen-
fazendo-a estender-se a uma das dimensões eternas, à 1<', ele pensava só poder retribuir o amor por um total
idéia atemporal da beleza - ela se estende aqui à outra 11ba11clono dessa esfera, por aquilo que, para nós, apare-
dimensão à continuação de sua própria vida n a lem - <'<' precisamente como uma volatilização do amor no uni-
à
brança e evolução superior dos humanos. O caráter v ·rsal. No entanto, tampouco nos tornamos infiéis ao
depurado , algo abstrato, da justificação anterio.r é bru~­ qu e , cm última instância, funda seu instinto. O que o
camente irrigado aqui por uma corrente da vida mais conceito moderno do amor, arraigado na individualidade
pessoal. Desde então, em vez de nos abandonarmos <'Oncreta, herdou de Platão foi o sentimento de que, no
quando o amor ao belo nos arrebata, levamo-nos conosco 11111or, vive algo misterioso, para lá da simples relação
além do limiar de nossa vida limitada no tempo. Mas afetiva. Nós também sentimos no amor uma significa-
em lugar algum ele reconhece o amor a um indivíduo <.:fio metafísica, de algum modo atemporal; só que não
como um fenômeno primitivo; esse afeto tampouco se podemos tomar n osso partido, à maneira simples do pen- •
detém n o indivíduo cuja beleza o inflamou. Porque, en- samento plástico-substancialista do grego, l~~
quanto o primeiro apenas mostrava a direção a que tende 1..J~to . Aqui também se ariuncia muito
nossa aspiração última, ele é aqui o continente em que mais o grande problema do espírito moderno, a saber: '
se reúne o melhor de nossas forças para frutificar e to- 111cl o o que, por seu próprio sentido, vai além dos dados
mar o caminho da eternidade. dos fenôm enos vitais deve encontrar um lugar em seu
Muito se falou da mística inerente às visões platô- pró prio interior, em vez de se transportar para um ex-
nicas do erotismo. T odavia o mais profundo mistério 1 'l'Íor igualmente espacial. Não se trata de síntese do fi-
de nossa imagem do mundo, a individualidade - essa n ito e do infinito, mas de unidade natural da vida. A
unidade que não se deixa nem analisar, nem deduz~r vida desvela o que é mais que a vida. Nesse caráter supra-
de nenhuma outra coisa, nem subsumir sob um concei- indivi.dual h avia - n ão o desconhecemos - um valor,
to superior, introduzida num mundo sob outros aspec- uma libertação, um ponto de apoio, a que não renun-
tos desmontável e calculável ao infinito, respondendo a ia mos . Do mesmo modo que em moral temos como
leis universais - essa individualidade é tida por nós co- idéia de uma "lei individual" essa severa normatização
mo o verdadeiro ponto focal do amor, que se acha im- do ·omportamento individual que no entanto não po-
plicndo por ela no mais obscuro problem atismo de nc:_s- rlt-mn11 e ncerrar mais num imperativo universal abstra-
Mll ('Oll l'cilO cio mundo. E é justamente ela que Platao io , t11111bé rn deve haver algo como uma lei individu al
158 FILOSOFIA DO AMOR 1•t<1IGMENTO SOBRE O AMOR 159

do erotismo; uma relação sem igual en tre indivíduos não ao seguinte : o acontecimento, par tindo de um a impli-
igu ais comporta uma significação inteiramente li~ita­ rnc;ão finalística numa ação de cer ta fo rma exterior, lo-
da a essa relação , m as que supera su a fenomen alidade go relacion a-se com essa íntima cen tralidade d o sujeito,
superficial - dominada ou justificada não por uma idéia a ú nica a merecer com propriedade o no me de am or.
gera l d a beleza, d o valor, do que é digno de am or, mas Dois gr up os de fenômenos sã o, aqui, da m aior im p or-
j ustamen te pela simples idéia dessas existências indivi- lância , qu e eu designo, de acordo com su as culm inân-
duais e de sua con sumação . cias m ais visíveis , com o amor humano universal e amor
cristã o .
O qu e, de m aneira típica, é imagin ado como amor
R essaltei a que ponto o conceito de amor en globa, humano u niversal é de ter minado pelo segui nte: o sen -
em su a amplitu de, o de relação do eu com o u n iverso. time nto de amor não se dirige mais ao indivídu o por sua
A essência do erotism o, inclusive em seu sentido espe- 1t1ancira de ser individ ual. Claro, en quan to erotism o,
cífico, se aclara pela existência de sen timentos que têm ele nunca se liga a determ in ada qualidade p ar ticular do
o n om e de amor, sem que isso se deva ao acaso de um ;nn ad o ; é porém uma qu alidade desse gên ero que cons-
m al-en tendido ou de um abuso, e se estendendo a inú- 1i l ui a m ediaçã o con sciente q ue faz a pon te com a ima-
meros d omínios situados além de tod a sexualidade . A gc1n glob al do ser hum ano, objeto propriamen te dito do
idéia de que o am or, gerado decerto pela vida gene rati- nol isrno , subtraindo-se a toda fixação em qualidades de-
va , eleva-se porém , n o momento de se tornar puramen te sig11{tvc is . M as é precisamente recu sando-se a b asear-
ele m esmo, a uma nova categoria indiferente a essa vi- H1· 1H·stas que o individualismo do amor se manifesta .
da é ainda m ais convincente se ele se en contrar nessa Dl· !'a to, Loda " qualidade" é algo universal, pode se pren-
categoria com ou tros am ores, de ou tro conteú do, ou tra der a q ua lquer núme ro de sujeitos ; e é apenas além de
origem. E essa con vicção não será diminuída, mas f~r­ tod as as q ualid ades, numa ligação destas e n tre si qu e
talecida, se a evolução forma l apresen tar um paralelis- ni'io f>. d a da com elas , que se situa essa imagem global
mo com a evolução sexual. T ambém aí, inúmeros ca- vcn l;1d e ira111 c nlc ind ividual, indissociavelm ente unitá-
sos nos permitem observar qu e cau salidades e finalida- 1in, n (Jll f' se d irig-c o a mor. O ra , trata-se aq ui de um
des d a vida prim á ria - biológica, egoística , sócio- . 1111111 q1H' 11itn 111• d1•t( 111 1wssa 11 n ir iclade individ ual e que ,
rcl igiosam ente determinada - geram rela ções afetivas 1 l1• lli ll l 1l l11tl n, d1·1i v 11 111111 o ricnl nçfio cio ra to ele ele vale r
dl; na lu reza am orosa que, no en tanto , n ão permanecem 1111 111 t11d1111 q u1 11•111 1lll! Jlr't l11 l11111 in 110 . Ek (o d ive rso d o
prisio ne iras d a corre nte dessa vi<la, mas se elevam nes- ' '" " 111 ~111 1111 , d11 I Hlll l• l ~ 11n1 11 11 1111 11Nt1 , 11 11 rio 11 111 or 11ni -
Ht ' n ·i11o tra nsvital que podem os chamar de re in o ideal, 1 t fi1t l 11111 fi• dlh1 11tl1 11 p t1ll1 d1 11111 lllllf'll tt1•111 111 11ssa
1111 11<•n1iclo lato, não teórico. E ssa elevação se aparenta 111111pH1 ltt llH p1t1'1ll• , 11q11 1, U rt /)l il)J i ('
160 FILOSOFIA DO AMOR FIVI GMENTO SOBRE O AMOR 161

.a vida da personalidade... e esse amor é , portanto, tão con- P ara mim , n ão há dúvida de que o amor humano
~ quanto essa própria vida; esse amor dirige-se a universal tem seu fundamento ou sua prefiguração nes-
Deus e à minhoca, à estrela e à planta, a todo o real, sas disposições amigáveis, com freqüência j á repletas de
simplesmente porque é real, isto é, precisamente, obje- a mor, que nascem inevitavelmente no seio das relações
f
to desse sujeito. Incan sável, ele se exterioriza, sej a n a prático-sociais, estreitas ou amplas. Inevitavelmente por-
atmosfera de um terno lirismo universal, seja num aban- que tal coesão não poderia ser mantida em vida e em
dono religioso a todas as coisas, porque elas vêm de D eus função por nenhuma espécie de consideração utilitária,
ou da natureza, sej a ainda numa lógica propriam ente ck coerção exterior ou de regrà moral, se aos vínculos
racional, que é mais pensamento e exigência do que sen- relacionais tecidos p or essas forças racionais não vies-
timento vivido - e faz naturalmente os homens entra- sem mesclar-se também sentimentos sociais, a saber,
rem em seu d omínio ilimitado. No entanto, o "amor querer-se mutuam ente bem e ligar-se de bom grado. Se,
humano universal " é de essência diferente, não é uma de fato , o homo homini lupus fosse a regra - o que não
parte de um amor mais vasto, absoluto , apenas realiza se poderia excluir por otimism o e benevolência moral - ,
a relação específica entre os humanos como tais, e esta ninguém simplesm ente suportaria psiquicamente viver
não se efetua sem certa exclusividade que coloca seu s cm contato estreito e duradouro com homens em rela- ..
atores bem longe do amor panteísta. P arece indubitá- ção aos quais se disporia dessa maneira. Do mesmo modo
vel que o amor humano universal é , regra geral, preci- que o direito sozinho, por mais específica e rigorosa que
samente como afeto amoroso, algo gélido, com um pouco :-w ja sua aplicação , nunca seria capaz de manter a coe-
desse caráter abstrato próprio de todos os universalis- são de uma sociedade sem o complemento de atos m o-
mos que o século XVIII erigiu em conceitos axiológi- rais volun tários inspirados pela bondade e a decência,
cos: o dos Direitos universais do Homem, da lei moral o es pírito de conciliação e a boa vontade, também essas
universal n a ética kantiana, da idéia de religião humana virlu dcs inacessíveis, aliadas ao direito, nem sempre da-
universal no deísmo . Sob essa forma, o amor huma r i11111 uma sociedade viável, se não fossem secundadas
o universal equivale, n a verdade a esse abstractum que por iudin ações afetivas, por um clima de amor e de am a-
é o homem em geral e, tomando esse desvio para se di- hiHdaclc, sem o qual a promiscuidade e a estreiteza so-
rigir ao indivíduo con creto, com freqüência já perdeu ~·iol61-1 icas, os contatos mútuos constantes seriam algo to-
tanto calor que significa pouco m ais que uma limitação t 11lmcntc insu portável. O s sen timentos de amizade en -
ao homo homini lupus. No entanto, há nisso, inclusive sob llf' vii i nhos, por menos ilusões que se deva ter quanto
essa forma atenuada, uma manifestação de amor ver- 1\ 1111 0 co ntiabilidade, exten são e profundidade , consti-
dadeiro que, com o o grande erotismo, subtraiu-se ao pu- 111r 111 1 p11ra cada gru po, um cimento indispensável, me-
ro contexto vital original. llUM t 11l v'·~. 110 sentido de um aglutina nte positivo do
162 FILOSOFIA DO AMOR FRAGMENTO SOBRE O AMOR 163

que na medida em que, sem eles, certas condições de pura, ele corrou os vínculos com toda espécie de teleo-
vid a em sociedade, notadamente para personalidades já logia, é elã interno do sentimento, estranho à prática,
diferenciadas, tornar-se-iam necessariamente um infer- que pode, é claro, ser reconduzido a uma relação com
no. D e fato, disposições amáveis e cordiais entre os hu- a vida e se exteriorizar em ações; é disposição imanente
manos que se desenvolvem numa relação num espaço do suj eito, não em relação a outro sujeito determinado
restrito não são em geral a causa dessa relação; ao con- ou muitos ou tros, mas em relação ao gênero humano
trário, é dessa relação, estabelecida por razões quaisquer, em geral, onde quer que ele se realize no indivíduo3.
que vai nascer semelhante disposição. Mas não, como Existe urna função psíquica formativa, localizada no mais
diz essa banalidade inexplicável, do "costume" de vi- profundo, que podemos designar apenas como ab stra-
ver juntos; muito pelo contrário, nunca se alcançaria essa ção, concentração ou canalização de uma energia da
coabitação duradoura e, justamente , esse costume, se consciência para certos elementos de seu objeto respec-
essa disposição apaziguadora não se formasse relativa- tivo, os outros decerto constituindo com estes uma uni-
mente depressa entre as partes, espécie de m edida de dade fatual, m as sem serem tocados agora pela irradia-
proteção orgânica contra as dificuldades e os atritos da ção da consciência; e o fato de não serem notados n ão
vida em comum, no próprio seio desta. Portanto, se as se deve a uma contingência, mas a uma afinidade ex-
formas e as linhas de força das sociedades nascem abso- clusiva da energia psíquica com os primeiros,
lutamente como necessidades de um processo de vida permitindo-lhe formar a partir deles uma n ova unidade
finalístico, esses sentimentos de amor ou semelhantes ao f'atual, que representa a partir de então a totalidade do
amor decorrem então da mesma gênese de teleologia so- o bj eto. Essa função pode ser ativa em todos os registros
cial. Eles são tecidos na práxis d a vida social , como as possíveis da intelectualidade, como os da exaltação reli-
pulsões sexuais o são na práxis da vida sexual. E domes- giosa, da afetividade ou da força criadora. Ocasional-
mo modo que esse último afeto, por uma inversão com- mente, ela também pode apresentar, no interior do sen-
pleta do sentido, dá n ascimento ao amor autêntico tam- 1im ento de que falamos aqui, um traço intelectu alista,
bém parece que o amor universal se deve a esses senti- mas isso é uma ênfase e uma inauten ticidade do senti-
mentos vitais para a sociedade, não, é claro, num para- rnento em sua pureza - ele é, sob essa forma abstrata,
lelism o mecânico com o fenômeno erótico-individual, 11 ma produção totalmente sui generis. O q~e indica da

mas levando em conta modalidades e atenuações deci- uianeira mais clara sua liberdade em relação aos enca-
sivas, segundo o mesmo modelo fundamental. Seria cair t it' amentos prático-vitais e sua natureza de puro estado
1M psicologia associativa mais banal interpretar o amor do suj eito é que ele não é dirigido para indivíduos par-
humano universal como uma simples ampliação progres- i ic 1ilares, mas para todos os indivíduos. Provavelmen-
t
11iv11d~·1111rs elementos da vida social. Em sua figura mais 11•. 11crn a sociabilidade e sua condicionalidade afcti va ,
164 FILOSOFIA DO AMOR FRAGMEN TO SOBRE O AMOR

não teria aparecido mais que o erotismo sem a sexuali- nal deste; por aí ele consegue que o afeto se r ' l Í11· d1
dade. Esse sentimento, que já se tornou supra-singular todo vínculo com a vida, não encontre mais seu po11111
no seio da vida social, penetra agora totalmente no su- de partida em realidades individuais, mas se m ova lli'N
jeito e brota dele como de uma fonte primordial, enquan- sa unidade específica da centralidade subjetiva e da iclt-i.i ,
to em sua prefiguração não era m a is que u ma onda fei- que constituía igualmen te a essência do amor prop1fo
ta pelo rio vital da sociedade em sua continuidade e reab- mente erótico e agora se projeta para o exterior, na " 11 111
sorvida nele. Essa metamorfose numa disposição do su- versalid ade" , na não-diferenciação de seus obj etos,
j eito, completamente difusa no seio deste, e portanto à Comparado com essa essência abstratizante do HllHll'
espera de uma atividade ilimitada, essa metamorfose sem humano universal, o que chamamos de am or cri11l111 1
dúvida só se produz rara e tardiamente a partir dessas constitui u m fe nômeno aparentado, mas ao mesmo 11•111
prefigurações sociais , mas isso não é uma prova contra po resolutamente diferente. Com ele, o ser pa rtic11l 111
essa correlação, como tampouco depõe contra nossa in- não é amado pelo que tem de comum com todos os 011
terpretação do amor o fato de ele também alcançar, tar- tros, portanto por deixar de lado o que tem de espt'dli
diamente talvez , raramente em todo caso, a pur a con- co e de pessoal, ou de só o incluir a fim de permaiw1·1•1
quista de si mesmo a partir de sua prefiguração vital- cm união pessoal com seu caráter universal. O amor niN
sexual. Por mais insípido e sem cor que esse amor por tão compreende justamente o ser humano inteiro. E111 •
todos os homens em geral, comparado ao erotismo, possa bora dirigindo-se a cada homem em geral, te m po r t'N
parecer, ele também vive da mesma conversão funda- pecificidade ser absolutamente indiferente ao fato de q11 1•
m ental : suas prefigurações sociais são servas , são sim- determinado hom em tem algo em comum com dc lt•1
ples meios, diante da centralidade da vida sociológica; minado outro; ele o ama justamente tal como é , cfo 1w
onde, em contrapartida, prende-se autenticamente ao riferia até o centro. O mais característico é, talvez, q111•
sentimento, ao ser, o amor humano universal reside no o a mor humano universal ame igualmente o p cndni ,
centro do sujeito, valor autoportado, auto-suficiente, não rn as , para dizer a verdade, apesar de ser um pcc:rn lrn
t' a penas porque, afinal de contas, também é um H cr 1111
dependendo de nenhum objetivo do qual decorreria, mas
difundindo constantemente em torno de si um suave bri- 11rnno. Já o amor cristão envolve precisame nte o 1w1"
lho e um calor que emanam apenas dele. do r de um amor que, se não é maior do que o <u1101· 1111
1h-r normal, não tem, em todo caso, esse "ap snr" ( >
O que dá ao sentimento de amor humano univer-
Sl:l l esse caráter abstrato é o descarte das diferenças in- inro mparável nesse amor que devemos cha ma r cl1· 11i14
di viduais de seus objetos . Embora visivelmente isso já 1no c m virtude de sua situação histórica - cmh11 1, 1, NMM
1w prod11z:1 em certa medida no caso do amor social, o
r11trutu ra determinante, que é a sua, resulte 111,IÍ• dtt 111
1111rn humano universal é o prolongame'n to incondicio-
lr1prctação de certas declarações de J esrn1 1• d11 p~ l111
166 FILOSOFIA DO AMOR FRAGMENTO SOBRE O AMOR 167

logia de sua práxis do que de referên cias dogmáticas ou outros humanos, ele não implica, fundamen talmente,
literárias - , o incomparável portanto está nessa rela- a uniformidade dessas relações, um modo de sen tir que
ção com o princípio de individualidade : ele vale para seja, de saída, invulnerável à influência da natureza in-
o particular como se valesse para a totalidade de sua na- dividual. A própria natureza erótica, no sentido mais
tureza pessoal, ele se abism a em si no que respeita a es- acabado - por se tratar nela justamente de uma vida
se ser particular, ao passo que sua individualidade, com- conforme à intenção, só obedecendo a si mesma e só se
parável ou incomparável, não é porém nem um pouco determinando do interior - , apresenta essas diferen -
o que o motiva. C aracterístico dessa estrutura é mos- ças de tônica, esses altos e ba ixos, esse supramecânico
trar a insuficiên cia da alternativa entre individualidade e , em certo sentido, esse arbitrário que constituem a es-
e universalidade como motivo determinante. Trata-se sência da vida enquanto tal , diante de todas as determi-
de uma disposição fundamental a abraçar todas as indi- nações que pode receber do exterior, de todas as forças
vidualidades, sem ser, porém, guiado pelo conceito da que , por menos que sejam elas m esmas conceitos, po-
universalidade. A coisa só se produz quando o amor cris- dem se exprimir enquanto conceitos, enquanto unida-
tão se limita ao correligionário. M as isso não me pare- des existentes por si mesmas. Onde a vida deriva de uma
ce corresponder a seu sentido mais profundo. Quando delas, seu s momentos podem adquirir certa uniformi-
São Francisco ama até os pássaros e os peixes, temos dade, comparada com a qual su a capacidade natural de ..
decerto um impulso da su a n atureza puramente am an- se modelar se torna contingen te, uma legalidade, decerto,
te, obrigad a a am ar , m as na direção dada com a dispo- mas sem regularidade. Assim se aclara a essên cia parti-
sição cristã e sem superar sua energia habitual senão pelo cular do amor cristão em relação às duas outras formas
g_rau ou pela extensão. O decisivo no cristianismo é, pre- de amor que se estendem fundamentalmente também
ClSamente, o fato de que ele define a priori a alma como a tudo o q ue tem aspecto humano: o am or humano uni-
amante, de modo que ela deve tudo amar, mesmo se versal, que, ao contrário do amor cristão, abraça ape-
sua dinâmica também nesse caso não vai de ordinário nas o típico do humano enquanto humano e deixa de
além do todo humano . fura a totalidade da pessoa diferencial ou, pelo menos,
Seguramente, ninguém pode , a partir do cristianis- RÓ a inclui por esse artifício; e a natureza erótica, decer-
~o, tornar-se uma natureza erótica, se j á n ão o for por to completamente indiferente a uma universalidade desse
s1 mesmo . Resta a diferen ça de que, na natureza eróti- gêne ro e atraindo completamente, como a cristã, a in-
ca , no ser humano cuja essência original é o amor, esse di vidualidade para a sua esfera, m as com multiplicida-
amo r segue o ritmo e as flutuações do processo vital; por- dc11 de acentos e de inten sidade. De fato, ela tem su a
lnnto , ao se estender continuamente e ao possuir esse oril{c111 direta na vida primária, de n atureza já indivi-
pod<::r determinante para todas as relações possíveis a du nl, cujo curso rítmico e arrítmico acompanha, enquan-
168 FILOSOFIA DO AMOR FRAGMEN T9 SOBRE O AMOR l fit>

to o amor cristão é dominado por uma idéia que trans- este último não deveria mostrar-se em seres difcr t1lell
cende a vida: pela filiação divina comum, ou pelos man- em graus diferentes, porque, senão , a intensidade difti•
damentos de Jesus, ou pelo amor a Deus , de que é a rente dos castigos infernais na igualdade absolu ta de sun
acidência ou a representação. É por isso que, em virtu- extensão seria incompreensível. Ainda que o ouro fol!ll
de de seu princípio, ele não pode fazer entre os homens tido como valor econômico absoluto, existem peças de
a diferença que a vida faz , pode se apegar às individua- ouro maiores ou menores, de liga mais ou m enos fort 1
lidades humanas em sua plenitude específica mas sem cada uma delas agindo como quantum unitário de valor
fundar no que as diferencia um comportamento amo- mas deixando graduar diversamente seu valor absolu•
roso diferente . to, do mesmo modo que o valor absoluto da alm a é grn·
Essa não-diferenciação específica do amor cristão duado nos degraus do paraíso. Tampouco é pensável qun
é sustentada ainda de dois outros la dos. Ela se liga ao D eus tenha ordenado o amor a todos os humanos, se lt
valor absoluto da alma humana. Sei muito bem que se gradação axiológica que vai do mais alto nível positivo
podem fazer objeções a essa interpretação absolutista da ao mais baixo nível negativo não deixasse intacto uu1
" igualdade diante de Deus". Nem Jesus, nem as auto- núcleo absoluto de valor presente por toda parte. E a sim·
ridades cristãs ignoram as diferenças entre as almas de pies possibilidade de se elevar até a realização do mai11 111•
um ponto de vista ético dos valores; a igualdade de seu lo grau de valor significa um valor metafísico da alma,
valor metafísico é diretamente desmentida pela doutri- ela mesma já absoluta, qualquer que seja a m anifeHt!\·
na da graça e , até na felicidade eterna, a hierarquia, dos ção relativa realizada por sua modelagem psicol6gicu.
maiores santos aos menores, suprime totalmente o ab- Se é certo que altura e baixeza, bondade e m aldade, t i •
soluto desse valor, que não admitiria tal relatividade. 1u pidez e inspiração estão longe de ser indiferentes em
No entanto, estou convencido de que todas essas dife- relação a todos os interesses possíveis do cristianisttm,
renças não vão ao fundo das coisas, mas se edificam so- no que concerne justamente ao amor que se deve dnr
bre a suposição de um valor ab soluto . A graça sign ifica a cada um elas n ão têm importância . Essa exigência ge·
precisamente a indiferença ante todo valor próprio do ser ra1 e unifo rme seria incon cebível enquanto tal se devei •
huma no, coloca o arbitrário divino , dispensador deva- llê d irigir-se a uma estrutura dos valores determinada
lor, acima de tod o valor relativo ou ab soluto, e é p or- por essa relatividade; ela só pode se dirigir pura e 11im•
tanto aqui excluída de saída com o argumento decisivo. ple1;mente a u m valor da alma que seja absoluto em 111
U m argumento positivo a gora: os castigos eternos do in- meismo . Por certo o amor ainda n ão chegou , aqui , 1\ •eu
ferno - é de imediato evidente - só se podem fundar , grnu mais elevado, pois sem pre pode introduzir uma M#t
d o ponto de vista d a moral religiosa, sobre a negação po.rn si mesmo. Ele só atingiria esse grau se baixea:a, mll-
ou l\ perversão de um valor absoluto. E não vejo por que t:lnde e estu pidez constituíssem a essência deflnltlYI •
170 FILOSOFIA DO AMOR
J1'1(11<:t1t1..N /'O SOBRE O AMOR
171
um ser humano qualquer, sem que lhe restasse a me-
nor centelha de valor, e se ainda assim o amor fizesse 11w~wi1·~~ análoga com duas exigências religiosas cujas di-
sua aparição - mas, então, esse último valor fundamen- t r çucs sao paralelas ou opostas: a salvação individual da
tal e, com ele, toda qualidade que o justificasse teriam 11 ln1 11(' º, am~r. Ele escapa a seu dualismo decidindo que
desaparecido. Só então ele seria realmente causa sui, só 11 11 111 or e a via para a salvação. Mas, do ponto de vista
então amar-se-ia por amor e não mais por uma razão d11 111 oli vação da salvação a ganhar; os objetos dos atos
qualquer situada fora do amor. O amor cristão progre- dt• 11111nr tampouco apresentam diferenças capazes de exi-
diria além de si mesmo, embora em su a própria dire- 11 lr1 e111 nome de sua própria importância, uma diferen-
ção . Mas ele não o faz, permanece preso a um valor ab- ' l11~·ilo dos próprios atos. P or certo , como penetra com-
soluto da alma, no qual crê enquanto finalidade aprio- plr1 1111H;nte a individualidade de seu objeto e se entrega
rística do movimento amoroso - e essa crença, decerto li rl11 , embora a diferenciação dessa individualidade não
profundamente religiosa , tal como a crença no valor ab- 11 rdi·tl' , o amor cristão escapa às incômodas conseqüên-
soluto da existência em geral, ainda q ue o mundo fosse t 11/i da s: guii:_te .re3:1idade: quando o valor e a dignida-
celerado, miserável e ímpio, basta para dar à indiferen- tl1• do º.'~ict~ sao .mdiferentes para o ato do amor enquan-
ciação do amor cristão seu apoio positivo. Porque é jus- 11 1 1111, isso implica certo desprezo por esse objeto. Te-
tificado, agora, não se preocupar com diferenças pes- lllUH uí ressaltada a acentuação deste caráter inerente a
soais, que só podem ser relativas em relação a esse ab- 1111 111 11111or: ser algo imerecido . Mesmo em presença de
soluto. Através daí, esse amor se situa além da vida, que 11111 111 11or igualmente correspondido, ele nunca pode ser
se desenrola inevitavelmente em relatividades e estima- 1
1ll1"111itdo de maneira que não fique nenhum resto sem
ções da natureza e do valor dos seres humanos, e em t 11 nt rnpanida, acha-se entre os valores n ão definíveis de
reações diferenciais de nosso sentir e de nosso agir, em 1111111:1 qu a ntitativa e que portanto , fundamentalm ente,
li li uc• "
conformidade com essas estimações. " . n1 crecem " ; e, por .isso que o amor tampouco
Uma terceira indicação que conduz ao mesm o re- p11tll' " ·xigir-se" , mas permanece, ainda e sem pre, em
sultado nos vem do comportamento do próprio aman- 10111111 flM circunstâncias , mesmo quando as ofertas e os
te . Esse comportamento é conforme a um tipo cujo mo- t 1t11Lr11 v1d0res mais altos parecem impô-lo e dar direito
delo é particularmente marcante na ética kantiana. K ant 11 r ir , 11111 presente e uma graça. Ora, tudo o que nos
ex perimentou com grande nitidez a extrem a estranhe- \'1 111 d1• imr recido de parte de um ser pessoal mesmo
1

:ta mútua, ou mesmo a heterogeneidade, dos dois com- n lrlldrladc e a graça, rebaixa-nos de uma ma neira ou
ponentes do mundo moral - a liberdade e a lei - e ih w1m•11 , C lri ro, só o orgulho mendicante senti-lo-á co-
fu ndiu-os juntos, declarando que a liberdade verdadei- nto 11111 11 hwuilh ação, mas m esmo aquele que pensa de
rn ~ra a consumação d a lei. O cristianismo procede de llht11t·l111 mni s livre e mais ampla sente humildade cm
1-An li ÍHHO, e a aceitação de todo grande amor sem-
172 FILOSOFIA DO AMOR l •'Ull<.'M /\NTO SÇJBRE O AMOR 173

pre comporta certo elemento de humildade. No entan- 110 representa um ponto focal em que a irradiação exis-
to, pode-se ser mais ou menos "digno" até mesmo de l ·ncial de inúmeros indivíduos converge , em particu-
uma ''graça''. E o fato dessa diferença não existir para lur, com a do crente. Não conheço religião que não in-
o amor cristão enquanto amor - embora seja capaz de d11 a algo de uma solidariedade metafísica, ritual ou prá-
integrar a diferença em outras séries axiológicas - po- tica, e de uma exigência altruísta, ainda que só no seio
deria facilmente levar a um sentimento de humilhação, de um círculo muito estreito. Ela é, muitas vezes, até
sobretudo quando o imerecido não é sequer uma graça, mesmo a expressão ou a hipóstase para a unidade de um
mas atinge de maneira uniforme todos os seres. A úni- grupo. Quanto mais dá provas de vitalidade imediata,
ca coisa que pode frear um pouco esse sentimento é o 111 ais suas conseqüências interpessoais vão se desenvol-
interesse, que se encontra nessa forma de amor, pela ple- ver nitidamente como se estivessem determinadas pelo
na individualidade de seu objeto. A estranheza em re- 11111or pelos correligionários designados por ela, ainda que
lação à forma da vida enquanto tal ainda permanece, haja, efetivamente, outros motivos para tanto. Quando
porém, onde a motivação pessoal - ganhar sua própria s ua essência , em vez de incorporar-se em certa conduta
salvação por meio do amor - aproxima estreitamente da vida, se coloca antes num dogma, esse resultado torna-
o amor cristão da vida e de suas pulsões primárias na- 1w mais duvidoso. De fato, com o dogma, a religião acaba
turais . Porque quanto menos essas pulsões sofrem a in- ele deixar a esfera da vida para entrar na da idéia. Mas
tervenção diretora de idéias ou normas , tanto mais to- o dogma cristão ingeriu o amor, elevando-o assim a es-
talmente elas seguem as contin gências da evolução in- HU segunda esfera, em que ele pode então, enquanto '

terna ou das coisas externas. Por mais legal que seja a '' amo r cristão", dar provas dessa forma particular de
vida do eu em si mesma, por mais monocolores que se- ·xtcnsão universal, que revela para nós sua estranheza ;
jam suas manifestações pela permanência de seu cará- r. m relação ao ritmo próprio da vida enquanto tal. Na
ter profundo, sua relação com o mundo que o cerca é medida em que o cristianismo é tomado como forma de
no entanto - e precisamente quando submetida a essa r •lig iosidade não específica, ele não faz mais que con-
unidade que só está em si mesma - uma relação de certa du zir ao limiar do amor, do mesmo modo que a vida
forma contingente, bastante diferente, abordando ora 11cxual o faz em seu próprio d omínio - o amor perma-
11m , o ra outro ponto, como objetivo de suas impulsi- nr r r lodo esse tempo no estado de latência nele, uma
vid ades. llcidl! ncia da orientação universal da vida religiosa. Mas
A vida religiosa em geral já dispõe espontaneamente o r 1·istia nismo efetua a grande inversão do eixo: o amor
pnru o amor, sem dúvida nenhuma, embora em graus P"'ºm ll ser o ponto central extremo, pelo que, na ver-
h11"tnnte diferentes e das mais diversas maneiras.Já não 1lnclo, toma-se realmente "amor" - e a vida se ach a
1'11101r, Him plcsme nte, porque toda idéia de um ser divi- &:unvlcl11d111 com suas energias religiosas, à su a reali za-
.•
'

174 FILOSOFIA DO AMOR

r
ção . O amor , é claro, pode reagir sobre a vida , se r ab-
sorvido nela . Ele permanece então, justamen te, um con-
teúçlo recebido , originário de u m a esfe ra que tem su a
própria validade , e não da própria vid a, q ue não dispõe
ab solutamen te, em si, dessa forma específica. Assim , a
prefigu ração do amor é, sem dúvida, um elemento ou
um produto d a vida religiosa, do m esm o modo que a
..-vida biológica; m as, tornando-se verdadeiramente amor FRAGMENTOS E AFORISMOS
cristão e parte constitutiva do dogma, transcende igu al-
m ente esse modus ou esse domínio d a vitalidade ; re to-
m ado por ele , revela sua particularidade tra nsvital sub-
traindo-se às determ inações elitistas e individualistas , às
O fato de ao instinto do acasalamento, que serve
interrupções, limitações e influenciabilidades da vida co-
apenas para a reprodução da vida , ter-se juntado o amor;
m o tal, inclusive a vida religiosa.
que não se preocu pa com ela, é u ma imensa libert ação
r in relação à vida. D o mesmo modo que a arte é uma ,
qua ndo se ergue acima d o n atural; ou ainda o religio-
110 , quando se em ancipa do tem or e d a esperança.
O amor, que se torn ou algo totalmen te autônom o,
trnnsvital, em qu e se realiza a ruptu ra em relação à vi-
d l\ e s u serviço , transforma-se de n ovo em vida n a na-
tu r11im erót ica, do mesmo modo qu e , n o artista, a arte
l (ll C RC tornou su prateleológica.
Ao se falar de natureza erótica, só se pode tratar, j us-
t1m r 11 tc, de uma forma de vida. E é a vid a de tal indi-
yfduo , eo rn sua teleologia interna, sua força que b usca
nllrurnçãu e seu ritmo, que se acha determinad a aqui
'llln llt: emancipou da vida, tendo tud o isso se tor-
novnmen te vida nele. É por isso que São Francis-
1rr 11ma natureza erótica.
•' /
/

176 FILOSOFIA DO AMOR fi/IA GMENTOS E AFORISMOS 177

'1 Na natureza erótica, o amor emancipou-se da ma- A natureza erótica talvez seja aquela para quem dar
neira mais completa dos fins da procriação - e o decisi- e tomar são uma só e mesma coisa : ela dá tomando e
vo, o que alcança em suas profundezas a metafísica da toma dando.
vida, é, no caso, o fato de que não há, aqui, abstração,
Na natureza erótica, a relação com o outro é uma
mas natureza,
forma ou a forma de sua existência imanente, do mes-
mo modo que a exterioridade espacial é a forma da in-
Na natureza erótica, o amor é um fim em si, e o de-
tuição, em si mesma não espaci.al. O que , segundo o con-
terminante para ele não é que sirva à reprodução ou ao
ceito, é transcendente à alma lhe é imanente sob o as-
gozo.
pecto metafísico ou epistemológico. O homem não eró-
ti co, de fato, ama em direção ao exterior; no homem
Natureza erótica? Isto é, uma natureza em que o
e rótico, esse exterior é uma função interna.
amor é o a priori da relação interna com outrem? Um a
priori tampouco tem por definição aplicar-se a toda maté- Uma natureza erótica é uma natureza em que o
ria. Inúmeras vezes não pensamos causalmente (de ma- amor é uma produtividade do ser e não só a reação a
neira correta e tácita), o que não impede que a causalida- t1ma atração? Na época da juventude, em que apenas
de seja a priori. Pois é apenas se pensamos assim que pen- qu eremos e devemos amar, somos todos naturezas eró-
samos corretamente e compomos o universo teórico com 1ic:as (mas o desaparecimento dessa época prova que se
a unidade que ele deve ter. Portanto, a natureza erótica trata de um fenômeno de ordem genérica, e não de or-
não ama sempre, nem ama todos, mas é na medida em dem individual), ou então pode-se considerar o d esen-
que o faz que ela se concentra integralmente e consuma volvimento dos impulsos sensuais, mesmo se nascem pu-
o sentido objetivo da sua vida. nunente no interior, como uma "atração" exterior no
cen tro da alma, que só se distingue da atração que exerce
A natureza erótica está para o apaixonado comum 1111H t bela moça por uma questão de distância.

assim como a bela alma para a simples moralidade?


Uma natureza erótica é, em todo caso, uma natu-
A natureza erótica enquanto caso limite : o amor de- i rt!za que a cada instante sabe com que obj etivo vive -
ve efetivamente ir da pessoa inteira à pessoa inteira. Por- { 11inda que o objetivo em questão n ão se realize .
que o elemento puramente sensual e o elemento puramen: "
te espiritual da pessoa situam-se para lá da individuali- O q ue o ser erótico não é, em todo caso: um ge-
dade; tanto com um como com outro, a substituição por t ç nL • 'conômico, um homem de profissão diferenciada,
qu a ntos indivíduos quisermos tornar-se-ia possível, mn hipocondríaco,
178 FILOSOFIA DO AMOR FRAGMENTOS E AFORISMOS 179

O Dom Juan da ópera é movido apenas por sua mas que, adem ais de não demonstrarem contrapartida
fisiologia, com o detalhe de que só pode satisfazer a pul- no caso particular , não são em a bsoluto pessoas aman-
são com mulheres sempre diferentes, e logo se mostra tes. O erótico da sua n atureza, que indubitavelmente
farto de cada uma isoladamente. Há individualismo nisso existe, exprime-se apenas por esse desejo de possuir
apenas em aparência, apenas em aparência oposição ao amor. Não são, por isso, naturezas passivas, longe dis-
aspecto puramente genérico da pulsão. Porque tudo is- so; querer ser amadas decorre de uma atividade. apai-
so significa que ele não é atraído pela individualidade xonada, pela qual investem tudo o que podem. Elas não
d a mulher, a qual se desenvolve justamente depois da querem ser amadas porque amam por sua vez; querem
primeira satisfação sensual, e portanto genérica, mas ape- sê-lo em geral sem nenhum " porquê" . É o fenômeno
nas pela realidade formal da mudança. É compreensí- originário da sua natureza.
vel que esta seja justamente uma atração necessária
quando a m otivação é puramente genérica. Talvez a n atureza erótica tenha, em relação à ge-
Ainda diferente é o caso em que nem a pulsão co- neralidade, o sentimento que , em outros, só é desenca-
mo terminus a quo, nem o prazer ávido do ''supremo mo- deado pela individualidade.
mento" são o elemento motivador, mas a atração da se-
dução como tal. V ontade de poder sádica por um lado, Para a natureza erótica, a relação afetiva unicamen-
maneira, por outro , de fixar a atração numa etapa pré- te possível em relação a um indivíduo (e, para dizer a
via, o que ainda não coincide com a simples antecipa- verdade, inclusive em relação a um só indivíduo) torna-se
ção, mas pode, ao contrário, permanecer inteiramente uma relação geral permanente (se bem que em diversos
dissociado do definitivum físico . graus), mas sem cair na negação p anteísta da individua-
O tipo m ais elevado de Dom Juan , que não chega lidade .
por certo a 1. 003, se manifesta quando uma pulsão ge-
nérica desm edidamente forte, constituindo talvez o ab- A natureza erótica não é necessariamente panteís-
solu to da personalidade, se realiza ape nas e de imedia- ta. Ao contrário, a indiferen ça p anteísta em relação ao
to através de uma paixão individual, em que ela encon- indivíduo como tal não lhe pode ser simpática. A filoso-
tra sua única forma. (Analogia com a metafísica indivi- fia de Schleiermacher é, antes, o que a exprime. De fa-
dualista de Schleiermacher.) to ela tem, em relação a cada um, o espírito amante,
não porque ele represente o ser humano em geral ou por-
liá naturezas que são eróticas em certo sentido, mas que a v:ia que leva ao todo e ao absoluto passe por ele;
1111 111·nLido que se estabelece por inversão : naturezas que mas, de certa forma ela se detém , junto de cada um,
fl\1«'1l" IH nbijolutamente ser am adas, sempre e por todos, como se naquele instante só houvesse no mundo esse um ;
r
180 FILOSOFIA DO AMOR FRAGMENTOS E AFORISMOS 1111

essa maneira de sentir também pode, decerto, compor- ção e a persistência da função erótica com ·11t • 6nlt u t
tar graus variadíssimos. Ela decorre desse tipo de almas exclusivo conteúdo. Entre o aspecto geral ' o ll~}J"' 'º
que perdoam não porque compreendem, mas embora individual do processo, não existe nenh uma scp11r1wn11
compreendam . .. Ela não ama todo o mu ndo, mas cada psicológica ou ideal, o sujeito conhece o a mor 111 111111
um , ela tem a relação mais sutil com o indivíduo como essência e "em geral" exclusivamente sob a forn111 drll
tal, o ind ivíduo não é amável a seu ver por uma razão se amor individu al, ele mesmo exclusivamente SUHl' il11
qualquer exterior a ele. do, em sua própria raiz, pelo objeto em questão . 1111"
\, gundo estágio começa quando o outro sexo, cm s1111 111
Na natureza erótica, o amor não é urna relação com talidade, substitui, por assim dizer, essa individ ualidn
outrem, m as um absoluto de seu ser, fechado em si. O de única chamando o amor. H á homens que amfl lll li
amor qu e se emancipou do serviço à vida torna-se aqui, mulher como tal, isto é, o tipo feminino em ge ra l. Aqui
por sua vez, vida - uma ·vida num estágio superior. também é preciso distinguir dois tipos: mu itos h o í1Wlll4
Assim, ele pode se desenvolver em todas as relações que- amam, por assim dizer, todas as m ulheres , porlHlllO 11
ridas. Conheci naturezas eróticas que amaram apenas conjunto dos indivíduos femininos, de m odo que ·~t'll
um só ser, sem ter sabido antes o que era o amor, e pondo tualmente pode ser amada a individualidade de cada t111111
o absoluto de sua existência erótíca nessa única relação , como tal e em particular; outros amam o princípiu li'
não sendo sequer imaginável então a menor hesitação. mi nino , a unidade mais elevada ou mais baixa ( ab1H111
E conheci outras cujo ser abria-se todo a um amor uni- ta ou orgânica) além dos indivíduos e de seu conjtwto:
versal, no momento em que u ma atmosfera sempre re- aqui, o amor se dirige à mulher singular, com l'rcq\\f\11
novada, ascendendo delas, vinha envolvê-las, como to- eia na medida em que representa completa e int n11lv11
dos aqueles que delas se aproximavam . A ssim, a natu- mente esse princípio. Mas o comportamento crótl111
reza religiosa também pode ser tanto monoteísta quan- eleva-se à generalidade mais extrema quando semi p1 r11
to panteísta ou politeísta. Esse último caso é talvez o mais supostos tomam o sujeito de modo exclusivo . E1111 1 p1•11
d ifícil, porque entre os pontos isolados para os quais se soa é então constituída de tal sorte ·que lhe é ncce1111rtrl11
orienta a intenção subsistem, por assim di zer , espaços amar. Isso significa que todo seu ser assume unHt 111111
vazios. ração e uma tendência que se desenvolverão tnlve.t. tltt
maneira mais forte e mais nítida através d<: sua rr lu~ln
O fenômeno da natureza erótica é a extrem idade com o outro sexo, mas sem se limitar em ab11oh.1t11 lt oi ,
ele uma escala que, em idéia, leva do individual ao m ais Com efeito, a disposição erótica é, para tnl nntu
geral. De um lado, há portanto o amor singular por uma quanto a todas as suas manifestações, o a /niuri qUI
pmuma porque ela é esta pessoa determinada, a apari- termina como geral ou necessária a f1wml\ .,rc\tlll
182 F!LOSOFIA DO AMOR
FRAGMENTOS E AFORISMOS 183
o elemento erótico. Não é exigido em absoluto que esse
a priori dê sempre lugar a um fenômeno puro, ou mes- e caem assim em confusões repu gna ntes - q ue poderiam
mo a um fenômeno sexual. A sexualidade é um de seus despertar a idéia de que a psicologia caiu nas mãos de açou -
domínios de atividade, mas, como todos os outros , re- gueiros - , assimilando o ardor dos místicos religiosos a
lativamente contingente, exterior, dado como material. uma sex ualidade indireta, quando ela deriva diretamente
O comportamento em relação a todo homem, qualquer do erotismo. A noção de erotismo esclarece m elhor o que
que seja, ou em relação a D eus , à natureza , ao destino, falei acerca do amor (mesm o no sentido sexual), a saber:
não é menos determinado ou co-determinado pela dis- é um estado solipsista, um ser do sujeito que só secunda-
posição erótica . Só a medida e a natureza dessa deter- riamente tem a ver com o objeto, com a vida. A natureza
minação permanecem tributárias da individualidade do erótica é, de fato, erótica m esmo quando não ama ninguém,
objeto, em oposição absoluta ao primeiro tipo e relativa do mesmo m odo que é forte o homem forte, mesmo quan-
ao segundo. do nenhuma tarefa lhe for atribuída.
A questão primordial , seja como for, é a seguinte:
todo erotismo emana da sexualidade con siderada como A sensualidade é , em si, o gen érico , e nessa medida
sua fonte e sua substância estável , ou o erotismo é uma o verdadeiro oposto do amor. O estágio em que hoje se
textura primitiva da alma, autônoma em si? O simples encontram com freqüência as próprias pessoas superiores
fato de existir um amor que n a da tem a ver com a se- se resume a uma justaposição dos dois, que é bem pouco
xualidade, nem em seu conteúdo, nem em sua gênese , orgânica , bem pouco homogênea: um dos componentes
depõe a favor desse último caso. tem o efeito de um trunfo em relação ao outro. Problema:
a individualização realmente extremada da sensualidade,
T anto o erotismo inerente a uma natureza pode se
urna individualização tal como o amor a efetua. T ambém
transformar em amargor, em pessimismo, em aversão
ao mu ndo, como o amor a um indivíduo transformar- pode exis tir outra que seja apenas o caso de uma diferen-
se em ódio, um sentimento então bem diverso do ódio ciação ou mesmo u m refi nam ento, de caráter espiritual
nascido numa base diferente. e geral. l\/Ias esta , em princípio, não se prende a um só
obje to, e pode se voltar pa ra determinado outro graças a
uma m udança de gosto, a uma modificação dos fatores que
H á naturezas erótica s que nã o são a bsolutamente
determinaram esse refinamento . Para que a individu ali-
sex u a is . Talvez Jesus , talvez Spinoza - este último tão
e rótico , q ue pretendeu amar as coisas p elo sim ples fato zação sej a rea lmente definitiva e legitimada pela p róp ria
coisa, é preciso que decorra do a mor.
J · q ue as compreendia. O erotismo, é verdade , surge n a
m nlo ria das vc/.:es sob a form a da sexu alidade, tanto que
t1 111 ainrin cios hu manos n ão conhecem outro erotismo
J á ver o amor n o a to sexual decorre, sem d1'.ívid a, ele
um otimismo muito nobre , rle 11 rn csfnrço idealista para
184 FILOSOFIA DO AMOR FRAGMENTOS E AFORISMOS 185

enobrecer o inferior - mas h á nisso uma aberração to- mas substituiu-a uma finalidade subjeti va que imprime
tal. A vida não se origina do amor, mas o amor. da vi- do mesmo modo ao ato o caráter de puro meio ern vista
9~· É por isso que este, assim q~ se torna autônom~', de um objetivo. De outro lado, a estrita paixão espirilual-
fica igualmente infecundo . Ele não pode alcançar a vi- erótica incita à união dos corpos - em que dece rlo é
da, é preciso que ela esteja de saída n ele. preciso supor a pulsão genérica, por mais latente q ue
seja, enquanto toda teleologia da procriação desapare-
No organismo altamente complexo, apenas uma ceu completamente-, não menos que aquela outra qu e
parte das células assume, n a divisão do trabalho, a ati- busca o prazer. Trat a-se certamente de pulsão, mas es-
vidade de reprodução que exercia outrora a célula indi- ta não é, enquanto tal, mais que a conseqüência n a or-
vidual enquanto totalidade. Essa divisão do trabalho, que dem física do erotismo puramente individual, emanci-
também se m antém em espírito no ser humano excita- pado dos fi ns da espécie, bem como de todo objetivo em
do pela pura sexualidade, irá regredir, por sua vez, n o geral. Aqui n ão se aplica a genealogia banal·: o instinto
amor: é o indivíduo em sua integridade que ama. Seja sexual, base do amor - o inverso é que é verdadeiro!
como for, semelhante volta atrás ocorre no ser humano
num estágio mais elevado de cultura; sua excitabilida- "A s·exualidade normal desenvolvida é o estreita-
de sexual ou erótica, tanto no sentido ativo com o no pas- mento e o agu çam ento de uma instintividade difundi-
sivo, não se limita em absoluto ao domínio especifica- da, num estágio antigo da vida individual , através do
mente sexual, mas se estende ao conjunto do corpo. Na conjunto do corpo e do sistema nervoso . Essa instinti-
natureza erótica, ao conjunto da alma. vidade só assu me o caráter da sexualidade por semelhan-
te centramento exacerbado nos órgãos genitais." 1 Ora,
O ato sexual contém , em seu primitivismo natu- uma natureza erótica parece-me aquela em que toda a
ral, a pulsão e o objetivo, seja na sim~ltaneidade, seja energia pulsional em suas ramificações possui; de h ábi-
na indiferença. O animal sente-se impelido , ele serve to, o caráter erótico j á antes que tenha sofrido o estrei-
lambém ao objetivo da espécie . A humanidade acaba- tamento necessário.
da distingue o aspecto teleológico e o aspecto impulsivo
do ato preen chendo-o, na verdade, de conteúdos bem H á dois casos em que o beijo é simbólico: na_ami-
diversos. O ser humano pode buscá-lo para o prazer, ;;ade e na pu ra sensu alidade. No primeiro, ele simboli-
Hl' lll q ue a pulsão desempenhe um papel, ou então uni- za a relação espiritual-ativa, no segundo, o definitivum
t'lllfl •ntr o exigido como condição do desejo de volúpia, sexual. Quanto ao beijo de amor, não simboliza nada ,
11 11niC'o decisivo. A teleologia d a espécie desapareceu é a própria coisa - como a música, que é diretamcnle
lwunh11nn1 r nesse caso não deixando o menor vestígio, Ludo o que ela significa .
,,
~

FUAGMENTOS E AFORISMOS 187


186 FILOSOFIA DO AMOR

------- O amor como busca, como tentativa. Buscamos q,- -\\


O amor n ão mostraria justamente isso? E não é esse ter-
ceiro, com freqüên cia, uma coisa que pode e deve ape-
o utro em ~' em nosso próprio sentimento. Essa bus-
-· ca se chama amor. Não começamos amando esse outro
1 nas ser, apenas se viver, uma coisa que, tratando-se de
ap reendê-la intelectualmente, desemboca nessa alterna-
~ p~ra em seguida buscá-lo. __..---
__, tiva cuja insuficiência sentimos, embora não possamos
superá-la logicamente?
Em virtude do amor, o homem encontra o cami-
nho que leva do conjunto do sexo feminino a uma só · Em face do ser imediato da vida elementar, por na-
mu.lher, e a mulher, a via que conduz ao princípio mas- tureza arraigada no cosmos, e diante também de seu cor-
culino através de um ~ornem. De um lado, há con - respondente simétrico, o êxtase plotiniano, o saber é um
densação, do outro amplificação. d istan ciamento, a instauração de u ma distância e n tre
o sujeito e o objeto, como os místicos também conside-
Talvez n ada mostre de forma mais clara, ou mes- ram. Mas talvez ele seja, apesar de tudo, a tentação de
mo mais cru a, a que ponto, genericamente, o amor do superar essa cisão dada, talvez seja também o único ato
homem e da mulher se distingu em do que os sentimen- que su pera a cisão criando-a, e que a cria superando-a.
tos e as apreciações totalmente opostos que associamos, Contudo, a separação leva a melhor sobre a reconcilia-
de um lado, ao amor da moça pelo homem bem mais ção, a unidade metafísica do sujeito e do objeto n ão é
velho, de outro, ao do rapaz pela mulher bem m ais velha. acessível por essa via, permanece um processo sem fim.
O w esm o pode ocorrer com o amor. Percebo sob a sua
O erotismo metafísico: amar o mundo através da 11uperfície uma relação das almas - "relação" j á é uma
mulher e a mulher através do mundo. expressão que implica um dualismo falsificador - , por-
tnnto uma unidade dual, um absoluto do estar juntos,
Que o amor busque o eterno no indivíduo, seja; do evoluir juntos, que não é am or. Este j á é distancia-
mas ele também pode buscar o indivíduo no eterno, tam- m ·nto, confronto, suposição do ser-para-si e, simulta-
bém pode resumir a orientação essencial do ser huma- ncnmcnte, a tentativa de superar isso. Essa tentativa n ão
no em direção ao absoluto e ao supra-individual no de- pnclr l r 1· l\xi10: um a vez tendo tomado posse dessa "re-
la~lo", a t•on11d~n iu fn?. dr ln rc:ilmente uma relação,
finitivum de uma figura individual e da relação com ela.
ltv..a l IUI forma anthdtka próprin. Se esses esforços
Platão ama o go.r-al-ao indivídu o, e n.óR-oind.iYíduo
amor juatnlnrntc não cxis-
aounrn11· do mcR·
rnmo tal. Mas a alternativa entre o geral e o individual
11r11110 11üo é daquelas além das quais existe um terceiro?
mA lotnlltludv do Hcr
188 FILOSOFIA DO AMOR FU1IC:MENTOS E AFORISMOS 189

n ão é mais o conhecimento. Platino : a unidade com Deus U ma de nossas dificuldades mais graves, m a is fu-
no êxtase só dura brevemente, porque o h omem em su a ncslas, é deixar a inte n sidade de um estado m omentâ-
fra queza teme n ão possuir Deus se n ão o coloca diante neo fornecer a razão determinante d a duração mais ou
de si como um objeto; ~que justa mente o faz desapare- 111l·nos grande sobre a qual v amos projeta r no fu turo de-
cer . Colocando o amor diante de si - gesto necessário 1crminada situ ação ou determinada relação. Não temos
sem dúvida n enhuma, para que se torne u m amor em - allc rnativa, porque toda consideração racional sobre a
pírico - , faz-se surgir sua problemática e su a contradi- duração conveniente não pode oferecer outro critério ob-
ção . H á algo em seu fundame nto a partir do que se de- jetivo além de sua forma lógica, e deve aceitar justamente
sen volve a dualidade. como su a condição material , única a permitir a decisão
ma terial, esse estado momentâneo, o único de que dis-
É justam ente estando a dois que se está só , porque pomos. Não temos fó rmula que autorize projetar com
então se está sep arado, se está ''face a face'', se é ou- precisão obj etiva a inten sidade do atual sobre a exten-
tro. E qu ando alguém está fundido n a unidade, encontra- são do futuro e, sob retudo, como seremos mais tarde,
se de novo sozinho, porque não h á, agora, nada mais coisa qu e não depen de, evidentemente, da d ita intensi-
que possa abolir a solidão de não ser mais que um. Mas, d ade ; duas séries de evolução com curvas rrtuito dife-
como não se é solitário n o amor, ele não pode se dissol- rc nles podem apresentar , num ponto dado, uma inten-
ver nesse du alismo lógico. Nem tampou co no esforço pa- sid ade exatamente do mesm o tamanho. Se o ponto em
ra ligar seu s aspectos por uma continuidade , como Pla- questão é ou não o rep resentante autên tico d e nossa lei
tão tentou chamando-o de caminho que leva do não-ter C' vo luli va, disso raramente somos bons juízes.
ao ter, por tan to do ser do is ao ser um (como O banquete
também o interpreta). Essa simples mediação entre os Um rc ílexo subjetivo e mpresta ao casamento um
pólos, n enhum dos quais é o amor, não se coloca de m a- l'l'cit o cudc mon ista que o amor livre não seria capaz de
neira b asta n te resoluta além del~s . De m aneira similar poHH11ir, a saber: cada instante contém em si todo o fu-
n a relação religiosa: não quer dizer estar separado d e turo, um acn111 ccimc nto nunca é isolado, mas constitui
D eu s enfrentá-lo numa dualidade, como tampouco sig- 11 pnnt o d<' pmisngcm na vida desse sócio-indivíduo a dois,
nifica estar fundido com ele n a unidade . q1 w 11· 111, 1·111 11i Hll UH 1·voluçõ s ult ·riorcs no estado de la-
1/1111 111, e 11 clr 11•1111h111rl1111 p nr r ir , l ~R~n nntecipação de um
Nessa m edida, o amor deriva do trágico no estado lt1tlllll lil' Hlll t111pr1 d 11 d r vaH IH , !fllt' l't'Hidt• l' ll l l odo in s-
p11 ro , infla m a-se apenas em contato com a individuali- ltUl lt 11 lrlii l1ltt1lt ili 11111• n 10.m1111111 11111ll 1l!;l\ t1,ko , ·ft·-
dade , e se choca contra a impossibilidade de superar a 1t1i. llf!IA Alllltlht\1\11 1 llllHt t< lt \'l1\1Jh1, 11111 11 111111'1111cl11 m 1•n -
i 111 Ii vitlu " 'id ade . hl ltuu1111uu4 IH 1111 1111111111111111 t > 1111 1111111 . .. dl'i 11 11 n1·
/

190 FILOSOFIA DO AMOR FUA GM E N T OS E AFORISMOS 191

fera religiosa: o filho de Deus sen te cada inst ante da vi- rado com freqüência p elo con traste das naturezas, m as,
da como um ponto de passagem rumo a um futuro infi- cm contrapa rtida , a boa con duta do ca samento d ep e n-
nito de felicidade que existe nele em estado de latên cia der em grande medida da similitude destas. A sim ili tu-
e que ele antecipa psicologicamente. C ontin uidade da de familiar j á tem seu sentido benéfico como cond ição
existência que a vida e a religiosidade criam. de possibilidade para a família . E entre o homem e a
mulher també m deve finalmente existir uma similitude
Gostaríamos de concluir, baseados em alguns sin- fam iliar. Se os contrastes , que originalmente eram o ele-
tomas, que o processo de diferenciação da cultura mo- mento de atração e de ligação, são tão fortes que impe-
derna libertará a qualidade durativa do amor em relação dem que isso atue, o casamento não dá m ais certo.
às materialidades acima evocadas, con cedendo a este,
pois, uma existência cada vez m ais indep endente da- i O amor é um investimento da alma, tal como a mo-

quelas. ralidade; a alma não se pertence mais na mesma medi-


da, não é mais tão livre do q u e q u ando a inda não ama-
As proposições qu e visa m su bstituir o casamento va. A tarefa ideal se apresent a então exatamente como
pelo amor livre correspondem à tendência futurista da face à moralidade: a limitação da liberdade deve ser sen -
atual mística n a evolução d as for mas cultu rais . A for- tid a como a liberdade superio!1_ O que chega ao eu do
m a antiga j á cadu cou , a nova a inda não está criada , de exterior sob forma de exigência determinante deve ser
modo que se crê ter no informe a expressão adequada concebido com o uma ampliação do eu. Claro, devem os
da vida em seu ímpeto. Mas resta a mesma contradição repetir as palavras que nos sopram o imperativo cate-
que existe no expressionismo. g-ó rico e o a m or; mas somos nós mesmos os poe tas que
Aqui também, para dizer a verdade, o fenômeno rcdi g-iram o que um e outro nos dizem. Só há duas m a-
trágico fundamental: a vida cria uma forma indispen- 11ciras ele sentir a liberdade e a limitação da libe rdade
sável para si, m as que, pelo simples fato de ser forma, 1·0 111 0 urna só e mesma coisa: ou a prescrição imperati-

se mostra hostil tanto à mobilidade como à individu ali- va deve b rnl'a r do eu , ou o e u brotar dela. Nosso eu é
d ade da vida. 11 i11stl\llcia realr ncll le p rodutiva e a utônoma, ele chega
j\ t'!ll n plr nn l' Xprcssfio na mo ralid ade e n o am o r, su as
Existe inegavelmente entre o erotism o e a solidez ~·x l Kú ll l'ittN H w tl i'I fll l'llltlH ideais d · seu st: r, q ue lhe resta
fo rm al da monogamia uma contradição que só um feliz prr r1H hc•1 ele• 111111 1f't1 lld clt•; 011 vnt iio estas (dt imas pcr-
acaso pode aplacar. Ela se torna trágica devido ao fato lr1111 •111 11 11111 1r11111 1111•1111í" i1 o , d11 q11 1il 11 011~0 c11 (:a ir-
d · que esse e rotismo, n a realidade, leva apesar de tudo 111111111,Ao, 111 11n11 ft, 111lv1 1, tqu n 11H 11 Nt 1·1111 kl' i l'O du111i -
11 1·111rn solick z. Um dos sintomas disso é o amor ser ge- 1 1l11ul11
192 FILOSOFIA DO AMOR /t){A UMENTOS E AFORISMOS 193

Só o ser que ama é um espírito realmente livre. Por- !,'.Üo ou de equilíbrio, ou que são postas em equilíbrio,
que só ele enfrenta cada fenômeno com essa capacidade como o p razer e o desprazer.
ou essa propensão a acolhê-lo, a apreciá-lo tal como é,
a sentir plenamente todos os valores, capacidade que não O amor infeliz - com o o costume nos faz dizer -
é limitada por nada de anterior nem de preestabeleci- é uma expressão totalmente errada. O amor sem res-
do. O cético, o espírito crítico, aquele que é despido de posta torna o amante infeliz, mas não há n ele mesmo
preconceitos em teoria, comportam-se de maneira dife- nenhum a infelicidade . " Infeliz " é o amor quando se vol-
rente . Notei com freqüência que esses tipos de homen s, 1a para um objeto que sabemos indigno dele, em rela-
com medo de perder sua liberdade, não oferecem uma ção ao qual se manifestam reservas, uma indiferença,
acolhida realmente independente diante de tudo o que ou mesmo aversão , inclusive ao lado do amor, e talvez
vem de fora, acolhida que sempre necessita certo aba n- nas camadas m ais profundas que esconde sob su a su-
,--dono ao fenômeno L<?-~~~ ama é aquele que não perfície. Então, a infelicidade é realmente situada no
se deixa entravar na relação interior com outrem - tal acontecimento amoroso, enquanto, em caso de não res-
como, na ordem prática, só podemos observar nas pes- posta, permanecerá algo de acidental, que também po-
soas violentas. O ódio não é tão livre em relação aos va- deria ter outro resultado com o mesmo amor exatamente,
lores positivos dos outros quanto o amor, por seu lado, e que amanhã, talvez, será efetivamente outro.
em relação aos valores negativos.
Grosseira superficialidade da conceitualização: amor
" Tomar" e "dar" é , no erotismo, uma categoria infeliz - amor sem resposta! Existe um amor sem res-
extraordinariamente grosseira e bem pouco pertinente. posta que faz nossa felicidade e um amor corresp on di-
Ela decorre de um modo de representação mecanístico- do que nos torná miseráveis. Mas a equação acima
lógico, que pretende recompor, a partir de relações es- baseia-se no fato de que vemos a essência do amor na
tabelecidas a posteriori entre elementos fossilizados , ex- busca de certas coisas exteriores (de ordem social ou fi-
traídos do contexto da vida, o que é o fluxo imediata- siológica), cuja obtenção nos ''torna felizes'' e que, de-
mente homogêneo da própria vida. A unidade em que certo , só cabem ao amor correspondido .
se oferecem os estados de coisas é deduzida, então, da
Identificação errônea do ''amor feliz'' com o amor
composição formada por um elemento ativo e um ele-
correspondido. "Possuir a felicidade" ainda não é "ser
men to passivo, os bens do amor são dissociados do pro-
fel iz''.
cesso vivo deste e transformados numa realidade subs-
lancial que não se é, mas que temos. Corno temqs " re- A indiferença em relação ao amor recíproco em Pla-
pl' ·scnlações" que se encontram em relações de propor- tão ainda persiste em parte em Shakespeare. Sob certos
194 FILOSOFIA DO AMOR FRAGMENTOS E AFORISMOS 195

aspectos muito discretamente, na medida em que o apai- amo, que te importa?" n ão vai completamente nesse sen-
xonado pretende desposa.r o objeto de seu amor e seria tido. Porque temos aí uma renúncia, uma modéstia, um
feliz assim, ainda que seja evidente que não se trate de entrave ao desejo. Ora, o amor que quer apenas amar
um amor do outro por ele. Assim, em As you like it o não precisa renunciar, porque, q_pr.iori, n ão_~gja. O
duque quer se casar coro Olívia e ela com Cesário, e amor cristão está, sob certos aspectos, nessa disposição .
os dois não desistem, embora saibam que não são cor-
respondidos. S ob outros aspectos, tudo está imediata- Há um aspecto não simpático no amor cristão ao
mente presente, na surpreendente rapidez com que o próximo, o fato de ele só se preocupar com a aflição do
amor cria seu objeto, troca-o e se contenta desta forma, próximo, se apresentar apenas como um impulso aso-
por mais claro que seja, porém, que não pode haver aqui correr, só ser, portanto, verdadeiramente suscitado pe-
nenhum amor fundado ou duradouro . Foi apenas em la aflição. Esse amor não provém da plenitude ou do ex-
Romeu eJulieta que Shake::speare pôde nos convencer do travasamento feliz que gratificam inclusive o rico, nem
fenômeno. Shakespeare também não superou o estágio busca a plenitude ou o extravasamento, mas limita-se
do "€pwç-", pelo menos nas comédias . à ajuda requerida pela necessidade. No en tanto, o amor
deveria comportar essas duas correntes, do mesmo mo-
O querer de Schope0hauer, embora fundado na es- do que a religião emana da carência ou do excesso da
sência metafísica do sujeito, é na ve rdade determinado vida.
pelo terminus ad quem. O próprio desse querer é orientar-se
para um objeto exterior a ele, e é nisso que repousam L.Q fato de o amor cristão buscar essen cialmente aju-
todas as conclusões met;::tfísicas e pessimistas de Scho- dar, ser atualizado pelo sofrimento de outrem, é o que
penhauer. Ora,Lexiste outro querer que não deseja, que ) o atrai ao genérico. Ninguém pode remediar o mais pro-
não busca um ter, a~sim CQ.Ul.D não espera do m11ndo, fundo sofrimento inteirame nte individual, mas apenas
enqu@tfr_qllerer, sua.satisfação : f-alc::wio querer agir, ..uo o sofrimento ge ral: afl.i§ão, dQe~a, abancfono, é a isso
d~sejo de..se .~xp.t:.i..mir, de-se. ativar, d~ g~_confir:~r . A 1 que se pode socorrer. O conteúdo dessa tendência amo-
isso correspondem duas possibilidades do amor. Uma rosa é, portanto, tão gen é rico quan to seu fu ndamento
quer algo do objeto amado, quer "tê-lo" num sentido · religioso .__
qu alquer; seu significado e sua evolução dependem in-
lcgralmente da espera e da chegada da resposta prove- O "amado " é um problema bem p articula r, que,
nie nte do objeto . A outra consiste em am ar pura e sim- estritamente falando, n ada tem a ver com o amor. De
plesmente, é uma função..inteiramente subjetiv.a, não pre- fato, o amor só existe no amante, mas o estado mo ral
ci Rr111do portanto de uma reação_d CL.obj rto. O "se eu te do amado está em su a alma, onde, segundo os prcssu -
/

196 FILOSOFIA DO AMOR FRAGMENTOS E AFORISMOS 197

postos, não se encontra nada do amor. A natureza des- ta, suscitado por essas ocasiões , ou se rá que q uerem os
se estado depende integralmente da compleição e do mo- que isso se produza de certa forma na ordem objetiva,
do de reação próprios à sua alma. Assim que o amor com o também queremos que sejam realizados valores
sentido no outro provoca em si mesm o o amor, ele é, que em absoluto não nos dizem respeito pessoalmente,
por sua vez, amante, e o problema desaparece nessa me- sendo n ossa reação subjetiva então algo de secundário
dida. C laro, ~especificidade do amor assim nascido co- e acidental?
loca um problema particular, do mesmo modo que o fe -
nômeno do amor correspondido, conjunção entre amar Uma obscuridade particular é provocada pelo fato
e ser amado. de que parecem os experimentar, no ato sexual, o senti-
m ento de prazer genérico, condicionado pela pura physis,
Ser amado decorre de uma pura passividade unica- como um prazer relativamente autônomo e interiormente
me nte quando o objeto do amor não experimenta nada separado em relação à personalidade individual e à re-
deste, ou não lhe retorna nenhuma espécie d e reação lação estabelecida com ela. Na medida em que se trata
(nem mesmo a rejeição). Ora, sendo esse o caso, en tão exatamente d isso, todo o processo é um processo solip-
a expressão corrente, mais uma vez , não convém intei- sista. O aspecto puramente genérico do erotismo sexual
ramente. Apanhar a cacetadas sem dúvida também é é puramente egoísta, o que só seria m odificável na me-
uma passividade, mas representa uma determinação po- dida em que o ego, enquanto realidade individual , fos-
sitiva bastante marcante do indivíduo que apanha, o que se em tal caso tão apagado quanto o tu.
adquire sentido na reação deste , se bem que esta se con-
sume integralmente no interior dele. Ora, deve existir O desejo do d iferente é um desejo diferen te . Do
uma reação semelhante no fato de ser amado, se se pre- mesmo modo, a posse do diferente é uma posse diferente .
sume que tal fato deva designar algo que se refere de
alguma maneira a seu obj eto . Senão, n ada tem a ver A graça que vive em todo amor recebido não é de-
com ele, e a qualificação de passividade ainda é excessiva. certo manifestada deliberadamente pelo enamorado, mas
nada tem a ver tampouco com um favor do destin o, de
A meu ver, "desejar" o ser amado é uma noção onde viria essa felicidade. Essa graça é, certamente , tam-
muito mal esclarecida. Um deseja tão-só sua presença, bém uma felicidade, mas que vem ao mesmo tempo d o
o outro a consciência do amor correspondido, o tercei- e namorado, de uma camada última ou de um li mite ex-
ro a possibilidade de se sacrificar por ele, o quarto um tremo d a personalidade, não necessita ndo cm a bsoluto
beijo, o quinto a entrega do corpo. Mas a questão de de sua vontade e, inclusive, não sendo cni absolu to accs-
fu ndo é a seguinte : desejamos nosso estado eudemonis- :-;ível a esta. Onde há vontade , j á não há libe rdade a b-
198 FILOSOFIA DO AMOR FRAGMENTOS E AFORISMOS 199

solu ta e ainda resta algo a superar (senão, não se ria em eis aí a p rópria a usência de desejo. Meu am or à vida :
absoluto necessária a von tade), e é uma energia especí- o amor é, justamente, ele próprio um processo vital, o sen-
fica da alma que se mostra ativa , n ão a força unitária timento engloba tudo, porque tudo o que se enco n tra
de sua raiz global. em mim é portado pela vida . Nesse amor, a vid a se vol-
ta para si m esm a, como D eu s se volta para si no amor
Do mesmo modo que a divina conservação do mun- Dei de Spinoza.
do é uma criação contínua, também a con servação do
amor de outrem é sua reconquista contínua - e a con-
servação do amor que se tem em si é uma recriação igual-
mente contínua deste.

O grande par de opostos que dete rmina o mundo


como alma e a alma como mundo - o ser e o devir -
também se revela no amor. Ao lado dos indivíduos pa-
ra quem o amor é um estado, uma realidade persisten-
te, dada de uma vez por todas, há outros nos qu ais é
um devir constante, uma evolução sem pausa, um
tornar-se outro, um ganho sempre n ovo; só ganha "a
liberdade como a vida" aquele que deve çonquistá-las
cada dia; o m esm o se dá com o amor .

O amor à vid a , que não deseja a vida, é o amor


atemporal. Toda vontade tem algo de temporal, perma-
nece estendida entre o agora e o em seguida. O amor
que nada quer recolheu em si todos os eleme ntos separa-
c.los do tempo . Eis um sen timento que Spinoza deve ter
tido, salvo que, a seu ver, ele valia para a totalidade do
:ser . Mas o objeto do am or fica assim posto lon ge de-
mais do cu (daí o amor intellectualis, de fato, o pensamento
vcncc qualque r distância) e a ele só pode ser u nido pelo
p11n1dsrn o . Q ue Deus n ão corresponda a nosso amor,
(

'
POSFÁC IO
,
A MEMORIA DE G. SIMMEL
(G. LUKÁCS, 1918)

Georg Simmel foi, sem dúvida nenhum a, a fi gu1·11


de transição mais importante e mais interessan te de to
da a filosofia moderna. Por esse motivo, exerceu u111 11
atração sobre todos os verdadeiros talentos filosóficos d,1
nova geração de pensadores (que são mais que simpln1
especialistas circunspectos ou ded icados às disciplinas cH
pecializadas da filosofia), a tal ponto que, por assim di
zer, n ão h á um só que não tenha m ais ou ºm enos su eu n 1
bido à sedu ção de seu pensamento. Mas, pela rncs 11111
razão também, essa at ração só foi duradoura em rnrf11
simos casos. Simmel n ão teve " discípulos", com o t iw
ram Cohen , Rickert ou Husserl; ele foi grande por t' MI i
inular, m as não por educar, nem t ampouco, na v1·1d,1
de, por criar uma obra acabada - o que nos a p1 "'"'" i
de um salto ao centro de seu ser.
C ostu ma-se a presen tar Simmel, tanto p 111 .1 1 hhA
lo como par a denegri-lo, como alguém "rht•i11 dr r11ph 1
202 FILOSOFIA DO AMOR l'OSFÁCIO

to " . No entanto , essa qualificação, por m ais justa que impressionismo. Não que ele tenha apenas po11to C'l ll e1111
sej a , não toca em absoluto o núcleo de su a personalida- ceitos o qÜe exprim iu a evolução impressiôl1ÍHll\ cht 1111\
de filosófica. D ecerto, espiritual no sentido corrente do sica , das artes plásticas e da literatura; su a obm é UCIU
termo ele tam bém foi, e poderíamos citar dele, ao lon- mais q ue a formu~ção abstrata _d9' visão impr,s11lo11 h1tA
go de muitas páginas, fórmulas que sustentariam a com- do mu nd9..L é a figuração filosófica desse~entimcn LO 14111
paração com os maiores m estres do dito espirituoso; mas balde que nasceram as m aiores obras dessa tendê11d11,
o elemento decisivo, em seu caso, reside num nível m ais é a essênciã da época qu_é_nos p recedeu imediata111 ·11tt',
profundo: trata-se de fato de um ~spírito filosófico n o
formalizada de maneira tão problemática quanto n 1111
~mido mais autê_ntico_un_~nos f.alsifi_ c_a__do, de u m espí-
obras de um M onet ou de um Rodin, de Richard StraUHll
UtQ_CQ.ITlO só os _mq_ior~.§_p_Q.êg1íram. O espiritual , n ele ,
ou de Rilke .
é a apreensão fulgurante, a expressão ao m esm o tempo
T odo impressionismo é, em sua essên cia, uma for·
admirável e pregoante de fatos filosóficos a inda não re-
velados, a faculdade de ver o fenômeno .!!?-ais ÍI}timo, m a de tran sição e, a esse título, rejeita o fecha mento,
maiª an ódino_Qa_yida coti diÊ-na tilo forterp~nl.e sub specie a modelagem final imposta pelo destino ou im pondo-se:
philosophiae que ele chega a ~ t_sJ_rnar transl(l_cido.e deixa a ele - não por princípio, mas por incapacidade de che·
aparecer, além dessa transparência , o eterno encadea- gar a tanto (definição que, por certo, convém apenas aos
men to de form9-ª_çle gue é solidá ri.Q-º-.§.e11tido filosófico . m ais altos representantes do impressionismo; en tre 011
Simmel possuía em inentemente esse dom suprem o epígonos e os imitadores, sempre se trata apenas de u ma
do filósofo. Como é possível , en tão, que ele tenha dado impotência h abilmente m ascarad a). O impressionismo
prova desse " espírito " briJl?.ante próprio a estimular , sem sente e avalia as g:an~s fo_r~~~ígi(!a~, prometidas à
alçar-se à altura de um filósofo realmente grande , que ~~rnidad~ com o v~olênc:_L<!_sJei!:-ªs à. vid_a ,,."ª S\J.a riq_ui:!Za
faça realmente época? A cau sa desse fracasso diante do e à su a policromia, à sua plenitude e à su a p olifonia ;
ápice designa a o mesm Õ-tempÕo ponto ém qu e estavam gf
e.le n ã9_c~ssa_ de orific-;~-a vida ~-P~:!~~~- forma-a seu
an coradas as capa cidades mais ricas e mais fecundas de servi_ç_o ., M as, com isso, a essência da form a torna-se pro-
Sim~~l. éit~os J.L~ª_ selli{fillidãd_i que não conhece blemá tica. A empresa heró ~c~- trágica dos grandes im-
nem freio nem limite , sublinhando o aspecto positivo dis- pressionistas consiste .ju stamente em que a essa form a
so . E , se queremos ind icar exatamente os limites de seu - da qual n ão podem escapar, pois é o único m eio pos-
ser que se revelam então , é de uma falta de centro qu e sível de sua substancial existência - eles pedem e im-
convém falar, de um.a incapaciç:lade qe assumir as_deci- põem sempre algo que contradiz sua destinação, ou mes-
sõcs última.s_e ~Jllil. ~: Simmel é o m aior filósofo de mo a suprime , porque deixando de se fech ar, soberan a
trnn sição de n ~sso_te~~para resumir com um a frase e acabada em si, a form a deixa, dç ser forma. Uma for-
1n 111 gra ndeza e seus limites;_é º--~rdadeiro filó~q_(o _do ma servil, aberta à vida , não poderia existir.
204 FIL OSOFIA DO AMOR POSFÁCIO 205

Apesar d a constância desse problematismo, su rgiu sibilidade na reconstituição histórica das épocas e dos
nas obras dos grandes impressionistas do século X IX homens do passado (a via do tipo Dil thcy), porque mes-
uma p rofusão de valores adquiridos pa ra sempre. Por- mo os prim eiros intentos d o neoidealism o hoje flores-
que, por mais fechadas em si mesmas, por mais distan- cen te deviam proporcionar a aparência d e que sua ri-
ciadas da vida que devam ser as grandes formas em seu gorosa exaltaçãQ,,oo~r.btl~nos-8ignificwa necessa-
acabamento, sempre lhes é n ecessário voltar a essa vi- riapRte uma-.vielênGia cemt~oiu.sã,.Q_d_a.,vicla,. e que
da, tentar assumi-la em todo o seu polim orfismo , p ara sua vitória só podia tornar-se a vitória do ~p_.i.or­
que a obra - a partir de então sob eranamente acabada m al , do mon:ismG ml5tedalógli.:o, sobre o m on ismo d e
em si - se torne uma verdadeira obra, uma obra que conteúdo caro à filosofia então reinante . A importância
se b aste, um microcosmos. E todo grande movimento histórica de Simmel está no fatQ....~siue ele foi, desd e
impressionista i:!__~d~_mais é ~t; º -P!"Otest() d ª · viqa _co_n- o começo, o representante n:iais marcante do ~l-is­
tra as formas demasiado petrificadas e,_po_!' essa petrifi- m;1.~etod-elógie-0 . (0 pathos do seu filosofar tinha sua ori-
~açjo~ cleiPas~ac!_o__fi_:âg~~- p-~ra--ª:§_similar a 2!Qfusão da gem na consciência pasma com as possibilidades múlti-
vida, model;:~pdo-a. M as como se limita, então, à aper- plas de enunciação e objetividade filosóficas~ "fiá mui-
cepção intensificada desta última , tem os aí, em s~a es- to go~rias, do_.m.e.smo m odo que existem muito
sência, fenômenos de transição: preparando um novo poucos sexQS'', disse ele uma vez numa conversa. Essa
classicismo que eterniza a profusão da vida, perceptível sentença assinala, ao mesmo tempo, com uma nitidez
através da sua sensibilidade, em formas novas, duras e marcante, os limites de seu ser.(A descoberta da plura-
estritas, mas englobando tudo. A situação histérica de lidade das enunciações filosóficas é, para ele, o objetivo
Simmel pode, desse ponto de vista, formular-se da se- final e um fim em si, não o meio de d ar à luz um siste-
guinte m aneira: foi U!Jl M~net da filosofi~, a quem a in- m a diversamente organizado, m as ainda assim un itá-
da n ão sucedeu, até hoje, nenhum Cézanne. rio~ Fez-se freqüentemente de Simmel um relativista por
( O estado em que Simmel encontrou a filosofia quan- cau sa dessa tendência pluralista , não sistemática, de seu
do d e su a entrada em cena era o mais desolado que se pensamento. Erradamente, na m inha opinião . Porque
possa conceber: a grande tradição da filosofia clássica o sentido do relativismo está em pôr em dúvida a vali-
alemã parecia estar perdida) os outsiders importantes dessa dcz absoluta das possíveis enunciações particulares (por
época (Nietzsche , Hartmann) erguiam-se sem raiz nem exemplo, da ciência ou da arte), e permanece, a esse tí-
rebento numa maré montante de materialismo e positi- lulo, totalmente independente da_q,.uestão de saber se nos-
vismo particularmente desprovida de sabor e de alma. sa imagem do fl\l,l QQO. é.m~ista-ou .plu ralista. Simmcl,
Para uma receptividade filosófica, não parecia se abrir ,
110 contrário, prende-se ao caráter absoluto de cada enun- I

nenhum ou tro caminho além da intensificação da sen- l'Ínçfio, considera-as todas com o necessárias e in concJi -
206 FILOSOFIA DO AMOR POSFÁCIO 207

cionais, só que não crê que possa haver uma tomada de tima de Simmel, nunca poderá pns11nr no IHl'f\O dfl 1111 1111
posição a priori diante do mundo que abraçasse realmente constatações filosóficas.
a totalidade da vida . Cada uma oferece apenas u m as- ( A essência própria dos u tal ftlu })Cl'll lill' l' Ut1tp ti1 •n·
pecto, u m aspecto apriorístico e necessário, m as um as- der que seus valores m ais estávei1114cJa111 rlt• 1111t 11 r<' z 11 NO·
pecto, não a própria totalidade \ O que separa Simmel, ciológica e histórico-filosófi cu ~ A MJJ d ulidHd · d ' NIHll'l
aqui , do sistema da filosofia hoje buscado , plu ralista po- duas disciplinas repousa na i mbricaçilo rndp rnrn de pon-
rém unitário, é justamente o fato de limitar-se à consta- tos de vista heterogêneos pura constituir uma nova un i-
tação dos aspectos par ticulares) Isso tem a ver em parte dade, com base na interação do condi ionado e do in-
com a alegria que ele sente diante da singularidade qua- condicionado. Se , antes de Simme l, a sociologia., sobre-
litativa, com seu praze r em descobrir diversos domínios tudo a que foi igualmen te d ete rminante p ara sua posi-
o riginais onde outros, obtusos, não viam m ais qu e uma ção, a sociologia de M a rx, tend ia a d issolve r n a reali-
unidade indivisa, e, sem dú vida também , com sua com- dade temporal todo o absolulo atemporal (a religião, a
placência au tenticamente impressionista para com a sua filosofia , a arte) , a parcialidade e a fraqueza das maio-
própria sensibilidade. M as a razão decisiva disso é que, res concepções histórico-filosóficas da época clássica, a
para Simmel, a instância final sempre esteve além de de H egel, por exemplo , estavam vinculadas à tentativa •
toda enunciação : trata-se da vida, cujas enunciações só de incorporar a temporalidade da história, em sua in-
podem, justam en te, oferecer aspectos (nisso repousa o teireza indivisa, ao absoluto de relações puramente aprio-
paren tesco de seu pensamento com o de Bergson) . O ra, rísticas. A importância de Simmel par a a sociologia -
esses aspectos particulares mantêm uns com os outros penso em primeiro lugar em sua Filosofia do dinheiro -
as mais diversas e mais complexas relações, e Simmel vem de que ele exacerba e aprimora a análise das con-
lança mão de toda a sua fineza e de toda a sua acuidade dicion alidades a um ponto que ninguém h avia conse-
de pensam ento para deslindá-los. M as como - vista a guido alcan çar antes dele, fazendo aparecer ao mesmo
su a posição final e de princípio - essa rede de relações tempo, com uma nitidez inimitável,' a inversão dessas
recíprocas deve necessariam ente p erman ecer um labi- · relatividades, su a au tolimitação, su a p arada diaJ?te do
rinto e não pode se tornar um sistem a a hab ilidade sa- incondicionável. A sociologia da cultura, como Max We-
gaz de Simmel em sem pre descobrir n ovos fios e n ovos ber , Troeltsch , Sombart e outros em preenderam , só se
novelos, a serem desem baraçados para serem melhor rea- tornou possível - por m ais fortes qu e sej am suas di-
tados, toma a aparência de um j ogo, e sua h ipersensibi- vergências m etodológicas com ele - no terreno q ue ele
lidade diante da descoberta incessante d e novas quali- soube criar.
dades, a de um virtuose monótono. Mas a nova filoso- Para dizer a verdade, essa "sociologia" de Simmel
fia , por mais resolutam ente que se afaste da posição úl- niio é senão uma "experiência" também , e não um pon-
208 FILOSOFIA DO AMOR POSFÁCIO 'll'l

to de fechamento ; traz em si a m arca de seu impressio- de cada uma em sua p rópria csfcrn , ci o 11u 101 111 111111111
nismo mais ainda do que o grande ensaio sobre o di- que não poderia dar nascimento a u111 rcl11 1ivlto1111 111 1
nheiro. E suas tentativas em matéria de filosofia d a his- tegoria Rembrandt é tão absoluta quanlo ; 1 rnl1•1-10 1111 ~ li
tória são, por sua vez, ainda mais manifestamente con- chelangelo. É próprio da essência meta l'fsit ,, tln 11111 11
cebidas como fragmentos. O aspecto inovador desse mo- do, a bem d ize r , não só admitir mas ta 111 br 111 1·xi11t1 11
do de enfoque se revela muito menos em suas obras de multiplicidade de semelhantes " categorias". 111l(· lií'. 11 11 11
teoria da história do que em suas tentativas para consi- te, não é possível sequer indicar aqui qu ão dt'< 'Ísiv11 1
derar filosoficamente figuras históricas pa rticulares. Sua a fecundidade desse modo de abordagem pa ra a li lwm
m aneira de apreender Goethe e Kant, Michelangelo , fi a da história; e , ainda menos, qual a relação ck Si111
Rembrandt ou Rodin não é nem a do historiador , que m el com as tentativas que lhe sucederam n esse clo rn(
as classifica numa continuidade temporal evolutiva ou nio. Mas, aí também , a essência de sua perso na lidad1·
as vê como silhuetas de uma época determinada, nem se manifesta em seus efeitos: ninguém prosseguiu d in·
a do pensador sistemático, analisando sua obra desta- tamente n o caminho que ele traçou , mas n ing ué nt ptl
cada de toda temporalidade, em sua normatividade de nem pode empreender o que quer q ue sej a de esscn
apriorística, mas a do filósofo da história, para o qual eia! na ordem da filosofia da história sem ter p as:sad o
cada u ma dessas grandes figuras é, ao mesmo tempo, primeiro por esse modo de abordagem ..
algo de único, que nunca se repete, e uma categoria
apriorística O impressionism o d e Simmel vê em cada
um desses grandes gênios uma possibilidade de tomar
posição com respeito à totalidade da vida, que se define
por su a singularidade , mas é, ao m esmo tempo, eterna
e apriorística : seu pluralismo não se refere apenas às
enunciações particulares, m as também às realizações in-
dividuais dentro de cada modo de enunciaçãd. A ima-
gem do mundo de u m Goethe é tão necessariamente di-
ferente a priori da de Kant qu anto a conceitualização da
h istória o é d a conceitualização das ciências da nature-
za. Mas, visto que o impressionismo de Simmel é au -
têntic_Q.Gxofundamente filosófico , cada uma dessas ima-
gens do mundo se torna algo absoluto ; a pÍuralidadc das
enunciações não pode abolir a validez incondicionada
(

NOTAS

C ultura feminina (1902)

1. De resto, isso tem uma importância raramente sublinhada para


a imagem d as hierarquias profissionais em suas conseqüências indivi-

duais. Existe uma série de profissões masculinas que não requerem ta-
lento específico e que, no entanto, não são inferiores, profissões que,
sem ser necessariamente criadoras ou individuais, não excluem 11i11·
guém de qualquer nível social; é o caso, por exemplo, ela profissüojul'f·
clica e ele m uitas profissões comerciais. O ofício de clona de t'!INll 111111
bém tem essa forma social: ele pode ser preenchido por todo llllrnto
simplesmente médio e nem por isso permanece sub11lt1'rno, 1111, 1wl11
menos, não está destinado a vir a sê-lo. Contudo, unin voz rxduh lo
esse ofício, as carreiras e as possibilidades ele autonomitt qrn• Ht' 1111 111•·
cem às m ulheres sem disposição particular não Mil.o 11111iH q 1111 !111 111111 11 1•111
subalterna. Aquelas a quem falta semelhante dis11o&k!ln pn1t I ulítt' pn·
ra as profissões intelectualmente proclutivuN l<m H11 Nr Ao o l11 lw11111 iu·
mente estenógrafas, cientistas ou outra coiK11d(J11ru1•1o. 1'01 r 11qu11nto 1
elas não têm a inclinação para acarrcirnjurfdkn, 11q111tl111111 ('. H11l11tl11· r·
na, apesar ele não específica. AsNirn , ele 11m l11do, ""ºi11qwlid11M 11 pi o
fissões de baixo nível, abaixo de suas <'icl1o1e n d11~ MtidtdN "•dr nu tro, a
profissões intelectuais cio nfvrl 111rliH 1.Jc.v111l11 1 q11r ~11pr 1 11 1n Hllll H d i~ po
sições pessoais.
212 FILOSOFIA DO AMOR NOTAS 213

2. O professor Breysig sugeriu , n uma discu ssão oral sobre esse Psicologia do coquetismo (1909)
tema, uma idéia que considero , em todo caso, uma ampliação capital
de meus p róprios desen volvimen tos. A contribuição cultural o riginal 1. E m estud os relativos a tod a a extensão da relação entre os
e objetiva das mulheres, disse ele aproximadamen te, consistiria no sexos, a linguagem utilizará antes d e mais nada seus significad os
fato de q ue elas m odelam em grande parte a alma m asculina. As in- mais crus, o que é quase inevitável por motivos psicológicos óbvios.
fl uências, as fo rmações e transformações vindas das mulheres, graças Aqui, no ent anto, quand o falamos de entrega e de prazer, de sim
às quais a alma masculina é j ustamente aquilo que ela é, d ecorrem e de não, designamos os modelos mais gerais d essa relação , que se
da cultura objetiva tanto q uanto o fenômeno da pedagogia, ou a ação preenchem com os conteúdos, moral e esteticamen te l~al a n do, mais
legal d os h umanos un s sobre os o utros, ou ainda o trabalho de um elevados, bem como mais baixos. Essas extremas di íercnças deva-
artista sobre um m aterial dado. De fato, na feitu ra da alma masculi- lores não impedem que uma consid eração puramente psicológica
na, as mulheres se exprimem, criam um p roduto unicamen te possí- const ate que tais categorias formais têm efei tos equivalentes .
vel através delas, no sen tido d e que se pode , em geral, evocar a cria-
ção h u mana, não sendo estajamais senão u ma resultan te da ação cria-
dora, de um lado, e das energias e determinações de seu objeto, de
outro. Seremos tentados a ver nisso uma analogia com a convicção Fragmen tos sobre o amor (escritos póstumos)
popular de que a tarefa específica das mulheres é gerar e criar a gera-
ção seguinte. Nos dois casos, o sentido da existência femin ina reside 1. Considerar amor e ódio dois termos exatamente opostos,
em sua relação com outros seres que se modelam através dela . Ensi- como se bastasse atribuir a um deles o sinal inverso para obter o
nar que as mulheres existiriam para p roduzir e educar a geração se- outro, é um erro total. Esse erro decorre simplesmente do fato de
guin te é d izer que elas existem a título global unicamente para os ho- que algumas conseqüências práticas exteriores d e um aparecem exa-
mens. P ois, co mo os seres fem ininos dessa nova geração não são nada tamente como o contrário d as do outro; mas tampouco esse fenô-
mais q ue meios da seguinte, as únicas metas fixadas para toda a evolu- meno é m uito preciso. Desejo a u m a felicid ade, ao outro o sofri-
ção se encarnam n os elemen tos masculinos desta . A idéia d e Breysig, mento; a presença de um me rejubila, a d o outro me faz sofrer. Mas
em compensação, não ensina o abandono das mulheres por elas mes- felicidade e sofrimento não se acham em con tradição lógica. Do mes-
mas, ensina sua conservação, do m esmo mod o q ue o artista se con- mo modo, o fato d e que o amor se t ransforme com bastante freq üên-
serva em su a obra, comparado com a qual ele não pode ser tido com o cia em ód io nad a prova a favo r de u ma cor relação lógica. O con trá-
um meio. A finalid ade de sua realização é e continua sendo muito mais rio do am or é a ausência de amo r, isto é , a ind iferença. Para que,
o fato de que sua natureza e sua energia desenvolvem até o fim sua em seu lugar, o ódio se instale, é preciso que h aj a motivos positivos
vida e sua marca. Sustentar q ue as mulheres existem para a gçração novos, que se ligam efetivamente ao amor d e m aneira algo secun-
seguinte decorre de uma ilusão otimista que encobre o fato de que elas dária - por exemplo, estar p reso u m ao outro, sofrer por ter-se en-
existem unicamente para os homens; inversamente, se elas dão sua ganado ou deixado enganar, a dor das possibilidades perdidas de
contribuição cultural modelando qualitativamente a vida dos homens, amo r, etc.
isso significa que encont ram neles sua matéria-prima, em que a par- 2. O vínculo, até a união íntima, que se estabelece entre o amor
ticularid ade de sua essência e de sua energia próprias vem se objeti- e a moral é tão secundário, ou mesmo frágil, quanto aquele entre
var, criando assim um produto que só pode se realizar através delas a religião e a moral. A moralidade é seguramente uma "idéia" tam-
e q ue, portan to, as exprime, ainda que não literalmente. hén1 , elevada acima dos v ínculos final ísticos da existência a um pu-
~/

214 FILOSOFIA DO AMOR N OTAS 215

ro estado com seu fim em si, e que agora põe, ao contrário, toda vida Posfácio
a seu serviço. Por essa mesma razão, não convém legitimar a religião,
que se encontra na mesma categoria, pela moral , ou a segunda pela 1. Jung, Versuch einer D arstel/1m.i: dt:r j1.~11rfwm1alplil'l'lll'11 7 /11'orú1hzw
primeira - porque é a isso que correspondem , finalmente, as tentati- der Erotik, pp . 39-40 (Ensaio de a pre s1 ·11 1 a~· iio da 1... 1ri:1 psi rnnalí1 ica
vas de ligá-las . Se, para K ant, o " homem que vive sob as leis mo ra is" e d o erotismo) .
não é apenas o objetivo fin al da existência humana empírica, mas igual-
mente o de um universo em geral, de sorte que a religião se torna um
simples apêndice, mais exatamente um meio da moral, isso sem d úvi-
da nada mais é que uma fals ificação da essência autônoma, absoluta
em si, da religião. Isso não só desconhece a realidade psicológica, ine-
gável a meu ver, de que há seres particularmente religiosos de moral
duvidosa e homens profundamente morais sem o menor traço ele im-
pulsos religiosos, como ademais não está longe de uma inversão does-
tado objetivo das coisas. De fato, embora se situe acima dos impulsos
vitais, a idéia de moralidade, em sua gênese e sua prática, está mais
próxima das emoções da vida, dos fins e dos interesses dos indivíduos
e dos grupos histórico-empíricos, mais realizada por eles, do que a reli-
gião. Sua colocação no mesmo plano enquanto idéia impede de substi-
tuir uma por outra. M as se quisermos compará-las e relacioná-las não
deveremos ignorar a diferença que vem do fato de que o comportamento
moral está, em si, mais estreitamente im bricad o n uma finalidade do
que o religioso. Do ponto de vista d o conteúdo como da forma seria
um erro estabelecer um vínculo que tornaria uma dependente da ou-
tra, seja por ratio essendi, sej a por ratw cognosceruli. Mesma coisa no que
diz respeito ao amor e à moral. H á naturezas de elevadíssimo nível éti-
co a quem o amor é estranho, não só n um sentido ou noutro, mas em
todos os sentidos do termo, e naturezas eróticas que seque r compreen-
dem a essência da moralidade; outras que sem dúvida a compreendem,
mas não se deixam absolutamente motivar por ela.
3. O amor ao" Homem " enquanto idéia, ao gênero humano co-
mo valor situado acima de todos os indivíduos, é algo totalmente dife-
rente, muitas vezes sem a menor ligação psicológica com o amor aos
homens. Nietzsche possuiu e pregou da maneira mais apaixonada o
;11110r ao H omem tomado nesse sentido, mas rejeitou totalmente na dou-
1ri na , e possivelmente também em sua afetividade própria, o amor hu-
111: 1110 universal.
FONTES BIBLIOGRÁFICAS

Capítulo 1. Anonyme: Einiges über die Prostitution in Ge-


genwart und Zukunft in: Die Neue Zeit , janeiro de 1892.
· Capítulo 2. Zur Soziologie der Familie in Vossische Zeitung,
21-28 outu bro 1894. •
Capítulo 3. Die Rolle des Geldes in den Beziehungen der Ge-
schlechter. Fragment aus einer Philosophie des Geldes in Die Zeit,
15-22-29 janeiro 1898.
Capítulo 4 . W eibliche K ultur in Neue Deutsche Rundschau,
maio 1902, caderno 5.
Capítulo 5. Psychologie der Koketterie in Der Tag, l l e 12
maio 1909 .
Capítulo 6. Fragment über die L iebe. T extos p6stu rnos, Lo-
gos, 10/ 1921- 1922 .
O texto de C. Lukàcs fo i extraído cio fluch dos Dankes an
Georg Simmel - DunckedHurnblut, li ·rlim , J9:Hl.
, ISBN 85-336 - 0 162 - X

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