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UNESP - FCLAr - Departamento de Literatura

Trabalho final do curso de extensão: Macunaíma, 90 anos: O romance e outros


aspectos da obra e Mário de Andrade em Perspectiva Interdisciplinar: Literatura,
Teatro e Cinema

Docentes responsáveis: Prof. Dr. Antônio Donizeti Pires e Profa. Dra. Juliana Santini

Poemas da Negra e Poemas Negros: entender o outro para se entender – a crítica social
nos poemas de Mário de Andrade e Jorge de Lima.

Renaldo Mazaro Jr. (pós em Cências Sociais)


(...) falar-se com relação ao Brasil de “africanismo”
como expressão à parte da vida brasileira é revelar
desconhecimento da simbiose Brasil-África. G. Freyre

Assim o analista esquece que o documento não tem um


significado natural, mas que só se torna documento em
função da interpretação que o elege; esquece ademais que
a sua própria concepção da realidade social tampouco é
um insofismável dado natural, algo que se impõe aos
olhos, mas também produto de uma interpretação
histórico-socialmente condicionada. L. Costa Lima

Texto e contexto

A proposta de pensar a crítica social que há em Poemas da Negra, de Mário de


Andrade , e em Poemas Negros, de Jorge de Lima, exige um olhar um pouco mais
distante no tempo em que foram escritos e publicados. Essa imposição histórica ajuda a
compreender o panorama do século XIX onde se gestou, sobretudo a partir da
independência (1822), os primeiros elementos que realizaram a tarefa de construção de
uma identidade nacional cuja inspiração de um país propriamente dito já despontava,
incipiente e amorfa, nas manifestações literárias oitocentistas.

A partir da criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838, em


plena Regência), divisor de águas de um movimento mais amplo que norteou o olhar, a
interpretação e a concepção da nação, também se criou a imperativa necessidade de
compreender os elementos nacionais. Nessa dinâmica, passou-se a estudar o país por
duas perspectivas - geográfica e histórica - nas quais a historiografia nacional situava a
constituição da nação como comunidade imaginada numa comunhão de sentimentos,
isto é, dentro de um espírito antropológico [de] nação: uma comunidade política
imaginada e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo,
soberana. (ANDERSON : 2008 : p.32). Formava-se, então, o reconhecimento
construído pela simbologia nacional - o mito fundador que concentra e dá sentido à
comunidade - repousada no horizonte do processo civilizador legitimamente brasileiro
em sua origem.

A ruptura provocada por esse movimento na busca e na construção da nação só


se deu por completa com o modernismo, décadas depois, na medida em que os
modernistas afastavam o imaginário e suas implicações simbólicas da tradição europeia,
noutras palavras, o “corte modernista” se deu na proporção que os jovens de 22 se
alimentavam do imaginário europeu num processo antropofágico – de digestão e
gestação –, num desejo de encontrar a si e de se colocar distinto no mundo. Enquanto se
pensava no século XIX por eixo superioridade/inferioridade, no Brasil a grande virada
no pensamento foi marcada pela expressão de muitos autores que entenderam, direta ou
indiretamente, o povo brasileiro por outro viés. De certa forma, o balanço e a
perspectiva do que o Brasil se tornaria o que é já estavam presentes nas obras dos
escritores modernistas: tenentismo, revolução de 30, Estado Novo, as guerras e os
conflitos internos.

Desde o Império, a noção de comunidade política brasileira angulou e se pautou


no imaginário da união das “três raças” formadoras do povo brasileiro. Em meados de
1800 esse pressuposto “racial” passava ao largo de uma ideia revolucionária, pois havia
uma população indígena, os africanos que se chamavam “importados” e o português
como capitão desse povo. Nessa chave, vinha dos influxos dos povos autóctones - que o
elemento branco poderosamente influiu em suas condições morais e físicas -, a energia
constitutiva de uma nova nacionalidade. Nesse encadeamento, o português era
comparado ao grande rio que absorvia os efluentes, embora nesse processo de encontro
fluvial das três culturas houvesse um paradoxo que permeou a arquitetura e a construção
do povo brasileiro: em um país escravocrata como é possível a realização da soberania
se, em sendo escravagista, ele abre mão da possibilidade universal à emancipação dos
seus indivíduos?

A constituição das três raças perpassou muitos autores e tempos distintos na


literatura e na história nacional e se complementaram na construção de um elemento
típico a partir da necessidade de se pensar uma literatura local. Nesse sentido,
primeiramente, o canto indígena foi uma grande forma incorporada à alta literatura,
representou uma particularidade (ou exclusividade) enquanto escravo, de fato, não
aparecia. Silvio Romero, por exemplo, postulava pensar a cultura e literatura brasileira a
partir das três raças; nesse sentido, é Euclides da Cunha e o seu Hércules Quasimodo
quem pela primeira vez conseguiu capturar melhor o caldeamento daquele encontro das
três raças já formatadas num sujeito forte, cujo território e destino se completam em sua
própria luta e em sua existência.

No intenso e profundo encontro das raças, o núcleo do problema era a


escravidão por alicerce da civilização, era ela a amalgamar todas as relações desde a
base até as mais singelas expressões da formação da economia capitalista no Brasil.
Intimamente ligado à barbárie, o sistema escravagista sombreou toda a aquarela
brasileira e nutriu o problema de castas que, até ontem, mantinha um sujeito sob o seu
domínio. Assim, forjada na [e pela] escravidão, o elemento civilizatório é a própria
violência e o seu revés também é violento: o nordestino de Euclides da Cunha, um forte
porque produto acabado, histórico, macerado e condensado em séculos de
desenvolvimento, uma espécie de entreposto social situado entre a escravidão e o
progresso técnico na aurora do capitalismo bélico-industrial em que as armas Krupp
eram – embora nem de longe a mais bela - a sua melhor expressão.

Até 1930 a constituição do povo brasileiro, em seu paradoxo essencial, cuja


singularidade e entrave ao desenvolvimento eram equacionados uma chave racista e ao
mesmo tempo nacional (o brasileiro como uma raça inferior), reiterava em seu íntimo a
necessidade de uma população e de uma identidade cujos elementos atomizados na
imensidão da terra e na diversidade das gentes impediam, dadas as condições
específicas da gestação do país (rural, patrimonialista, dependente e católico), a
compreensão dos caracteres intrínsecos à civilização que até aquele momento suportara
e nutria. Esse movimento remontava às origens e expunha as dualidades brasileiras:
rural e urbano, norte e sul, litoral e interior, brancos e pretos, civilização e barbárie.

Uma breve digressão. A civilização que significa comunidade, cidade de base


comunitária, foi a ideia que orientou desde a modernidade (séculos XV, XVI e XVII) as
grandes navegações e a formação do Estado Moderno – os principais artifícios que
estenderam a civilização para onde não havia. Pode-se dizer que foi o Estado Nacional
navegante o preceptor de uma dada comunidade civilizada de modelo único em
contraposição à barbárie que não fala a língua nacional, a língua da comunidade; seu
elemento radical, o bárbaro, está fora dela, sua linguagem não permite a sua
comunicação e ele é identificado como o Outro. É uma questão de alteridade que lança
mão do bárbaro, do selvagem, desse grande Outro que a civilização não toma para si e
que deve ser conquistado em nome da manutenção de toda a ideologia colonialista e de
exploração. Leviathan e o Outro.

Um pequeno exercício. Durante a história e o desenvolvimento do Brasil, as


relações externas se davam num eixo binário, de um lado a colônia de bárbaros e, de
outro, a metrópole civilizacional. Paralela e internamente essas relações se reproduziam
em escala menor: a ideia de sertão e periferia permaneceu por muito tempo como o
espaço em que se encontravam os tipos que estavam fora das relações do centro, alheios
à civilização e à cidade. Assim, é possível pensar numa imagem sertão/resistência,
periferia/resistência, uma forma de barbárie civilizada resistindo à civilização
barbarizante. Vale lembrar: o Brasil é país que foi rural até 1960, seu crescimento
urbano trouxe consigo o encortiçamento, o favelamento - uma dinâmica que confirma
até hoje a máxima: onde estão o progresso e a civilização também se encontra a
barbárie. Civilização e barbárie se comunicam, um não existe sem o outro e, ao admitir
o Estado como braço armado do processo civilizador e monopolizador legítimo da
violência, toda a ordem assim construída exige o seu oposto para se sustentar e mediar,
pela violência, o enfrentamento da diferença na construção da alteridade.

A virada do século XIX ao XX acenou para um momento em que uma questão


estética se impunha à afirmação da civilização brasileira, ou seja, para se afirmar de fato
como nação, a importância da construção de uma narrativa brasileira não poderia ser
igual à narrativa europeia. História e literatura ligam-se nos passos da colonização. Em
José Alencar, por exemplo, a narrativa se colocou como projeto de construção de um
todo, em que o tipo de romance e suas personagens entram numa simbiose com o
pensamento sempre apontado à nação. Essa é a tradição que pensou o Brasil por
dualidades ou por soma de vários matizes, e que também se valeu do espaço de forma
diferente dentro da literatura e além dela. Certamente, compreender o espaço e sua
importância para outras expressões artísticas, tal como na música, na dança e nas artes
plásticas foi um projeto que encontrou em Mário de Andrade a maior expressão
intelectual na sua tarefa de pensar o Brasil.

O contexto década de 20 e seguinte é marcado pela política de industrialização, a


conformação das burguesias e pela rápida urbanização. Os anos precursores reuniram no
bojo do futurismo e da vanguarda Segall, Malfatti, a Revista Orpheus, experiências de
linguagem, mudanças estéticas. Entre 1917 e 1919 as primeiras publicações dos
modernistas, Mario de Andrade, Menocci Del Picchia, Manuel Bandeira. A rejeição da
forma, da tradição, o impacto diante do novo. Brecheret descoberto por Oswald. A
Liberdade de traços e a experimentação de volumes. Sergio Milliet: integrar a cultura
brasileira no cosmos. O Brasil como retalhos e a busca pelo nacionalismo que não apaga
as diferenças. A reflexão sobre a realidade nacional e heterogenia: lendas, regionalismo,
espaço e tempo relativo da narrativa em sua dimensão metaficcional. A experimentação
do modo de contar os universos de opostos num país de contrastes. A ausência de
caracterização e a bricolagem que mantém a integridade da lenda ao tempo em que se
apropria dos seus elementos: o hibridismo étnico e procedimentos técnicos em todos os
níveis da narrativa, a heterogeneidade entre tempo e espaço. Dois anseios dos
modernistas: libertar o país do passadismo e acabar com a dependência cultural
brasileira.

Passadismo e dependência que, em certo sentido, sempre ilustraram bem as


consequências do projeto modernizador perpetrado pelo alto, distante dos indivíduos e
das camadas populares. Modernização de cima e para quem está por cima. Embaixo, a
loucura e o medo. O eterno retorno.

No poema O Filho Pródigo, de Jorge de Lima, os elementos que o autor


mobiliza são conflitantes e próprios de uma sociedade modernizada pelas máquinas. Se
a sociedade é moderna e promissora por um lado, por outro lado ela também mantém
seus valores tradicionais que a modernização não eliminou, mas tão somente os isolou
mais e mais distantes no tempo e no espaço. Presente e passado. Engrenagens, fábricas,
dedos decepados, teares, avião. O progresso do mundo e o medo da loucura. As
lâmpadas que velam a poesia.

O FILHO PRÓDIGO

Nas engrenagens das fábricas


bolem como vermes — dedos decepados de operários.
Há intestinos rotos de crianças
nos vaivéns do correame das oficinas.
A cor e a alegria das moças empregadas
dissolvem-se na algazarra monótona dos teares.
O avião comeu a saudade das mães
que a distância separou dos filhos vagabundos.
Há máquinas que cegam os adolescentes
ansiosos de ver o progresso do mundo.

Um homem teve medo de enlouquecer


perseguido pela força e pelo orgulho
das máquinas assassinas.

Cadê a luz trêmula de vela


pra alumiar o meu poema antigo?
O lirismo perdeu a sua liturgia.

As lâmpadas Osram velam funebremente a poesia.


Ah! que existe uma tristeza na terra
que nem lágrimas produz
de sua esterilidade tão seca.

Eu sou um corpo distraído.

Bóiam os meus olhos pelas superfícies.


Mas os meus olhos correm mais perigo
do que se andassem em acrobacias contemplativas
pulando no céu alto, perto das estrelas.

Vovozinha, venho de longe,


ando há muitos séculos a pé.

Ensina-me de novo a ficar de joelhos,


que já é tarde e eu quero me deitar.

São contrastes, paradoxos. O perigo das acrobacias contemplativas que pulam no


céu bem próximo das estrelas, a aeronave metálica-fabril e o seu produto quase humano:
o seu verme decepado que há muitos anos se arrasta a pé. Percebe o poeta a alegria das
moças e a cegueira dos adolescentes que permanecem longe da tradição, da família, dos
avós e dos genuflexórios improvisados antes de dormir. Desejo de aprender com o
passado o que foi esquecido na algazarra monótona dos teares da modernidade. O
resgate da tradição, dos valores cristãos permeados por um ideal socialista.

MULHER PROLETÁRIA

Mulher proletária — única fábrica


que o operário tem, (fábrica de filhos)
tu
na tua superprodução de máquina humana
forneces anjos para o Senhor Jesus,
forneces braços para o senhor burguês.

Mulher proletária,
o operário, teu proprietário
há de ver, há de ver:
a tua produção,
a tua superprodução,
ao contrário das máquinas burguesas
salvar teu proprietário.

Conforme o crítico literário e autor da Dialética da Colonização, Jorge de Lima,


poeta sucessivamente regional, negro, bíblico e hermético. O roteiro da sua produção
foi pontuado pela descida às fontes da memória e do inconsciente (BOSI : 1975 :
p.503). O poeta rapsódico cuja composição compõe o vitral nordestino presente em
outros contemporâneos e conterrâneos.
(...) por trás do mosaico ingênuo e colorido, o poeta vai reconhecendo as matrizes da
sua emotividade que coincidem com a de tantos meninos brancos do Nordeste: o
convívio com o negro, portador de marcas profundas tanto na conduta mítica quanto nos
hábitos vitais e lúdicos.

Mas a carga afetiva sublimada em prece não é o único traço de união entre a poesia
negra e a poesia bíblico-cristã de Jorge de Lima: perpassa por ambas um sopro de
fraternidade, de assunção das dores do oprimido, socialismo inerente a toda
interpretação radical do Evangelho. Nos Poemas Negros, há momentos de ênfase dada à
tensão entre escravo e senhor, aguçada pela oposição entre negro e branco. (BOSI :
1975 : p.504)
Gilberto Freyre, no prefácio de Poemas Negros, afirma que Jorge Lima foi o
representante mais fiel e distintamente nordestino de renovação da cultura brasileira a
partir das letras e das artes. Seus valores se compõem de elementos despercebidos de
outras partes do país,

Dentre aqueles valores, nenhum mais cheio de substância particularmente brasileira, ao


mesmo tempo que humana em sua essência, que as tradições amadurecidas, nas terras
de massapé do Nordeste à sombra das casas-grandes, das igrejas, dos sobrados, das
senzalas, dos mocambos, das palhoças, das mangueiras, dos coqueiros, dos cajueiros
desta região; e resultado do contato de europeus com índios e, principalmente, com
africanos. Com malungos, mucamas, babás, cunhãs, columins. Contato democratizante
dos brancos e degradante dos pretos (FREYRE apud LIMA : 1997 : p. 05/6).

Em Mario de Andrade essas questões estão intimamente ligadas à sua pesquisa


etnográfica sobre a música, a arte e a literatura brasileiras como dimensões de expressão
da cultura. Os exemplos mais notórios podem ser encontrados n’O Turista Aprendiz, o
sujeito que busca e procura pelos elementos nacionais, ou, ainda, em Macunaíma, que
foi construído sobre a base dos mitos populares numa tentativa de reunir numa rapsódia
todos aqueles elementos invariavelmente múltiplos. Dessa maneira, ambas as obras
executam o rompimento com a noção de inferioridade pela valorização de caracteres
recolhidos na própria sociedade brasileira, extremamente sincrética em termos culturais
e miscigenada em seus aspectos demográficos, populacionais. Além disso, ainda que
esses temas não sejam propriamente o mote poético Mario-andradino ou de Jorge de
Lima, é possível perceber nos seus poemas certas nuances alegóricas que apontam para
esses quesitos.

Guardadas as particularidades que lhe são próprias, Poemas da Negra e Poemas


Negros podem ser entendidos como uma maneira de pensar a literatura a partir de seu
distanciamento tanto do Brasil quanto da Europa, na medida em que trazem à baila os
elementos, as cores, os sons, os sabores típicos de uma dada brasilidade. Mario de
Andrade e Jorge de Lima perceberam a presença das dualidades geográfica e social
contidas no regionalismo e, em certo sentido, essa percepção contribuiu às implicações
de alteridade: falar da região é falar do outro, um eterno discurso sobre o outro e não de
si próprio. Ao lado dessas questões, outras também se colocavam: a autenticidade, o
povo autêntico, a cultura autêntica que sempre será o outro - ao invés do centro ou do
litoral -; o tempo, aquilo que subsiste ao tempo, os problemas que permanecem na
atualidade dos conflitos que mudam de sentido, embora a ideia permaneça inalterada em
sua essência. Eis a importância do realismo no Brasil que se liga à construção da nação
(desde o romantismo) e define a possibilidade de pensar a literatura brasileira a partir de
suas realidades locais, sociais. A propósito do poeta alagoano, Alfredo Bosi lembra que
o próprio Mário de Andrade reconheceu como a razão da resistência do poeta Jorge de
Lima: "a qualidade lírica da sua imaginação" (BOSI : 1975 : p.505/6)

Em Jorge de Lima, assim como em Mário de Andrade que, não sendo de origem
rigorosamente popular nem principalmente ameríndia ou africana, têm se dedicado ao
estudo, à interpretação e até a expressão dos complexos mais característicos da região,
ferindo nessa interpretação a nota de revolta contra os últimos preconceitos de cor
confundidos com os de classe que mantêm na miséria tantos descendentes brasileiros de
africanos. Para o autor de Casa Grande & Senzala, (...) sua poesia afro-nordestina;
poesia que não é a de um indivíduo pessoalmente oprimido pela condição de
descendente de africano ou de escravo, (...) [é] uma literatura, uma música, ou uma
pintura brasileira, voltada com simpatia para o negro, o índio ou o mestiço. Em
Poemas Negros a sensibilidade aos característicos mais profundos da vida, do passado
e da paisagem das nossas várias regiões forma o eixo em que se manifestam as
intimidades de nossa paisagem humana. Jorge de Lima, segundo Gilberto Freyre, fez da
sua experiência o chão da sua escrita,

(...) gente cuja pobreza conheceu pequeno e mesmo depois de grande; médico de
província, cuja miséria observou, cujo sofrimento sentiu com o poder da empatia que o
anima com relação à sua gente, do mesmo modo que sentiu suas alegrias, suas
esperanças, seus deleites doentios de comedores de barro, seus medos das almas do
outro mundo” .

É essa totalidade de experiência, essa variedade de passado, sem o domínio exclusivo de


uma tradição étnica, social ou de cultura sobre as outras, que dá a poetas brasileiros
como Jorge de Lima, Simões Lopes Neto, Castro Alves, Gonçalves Dias, José Lins do
Rego, Jorge Amado, Jaime Ovale, Ascenso Ferreira, Mário de Andrade, Cícero Dias,
tremenda superioridade (...) em exprimir sem revolta acre nem violência o que há de
africano em nossa vida e em nosso caráter. O que há de africano se confunde, se mistura
quase fraternalmente, com o que existe de europeu e de indígena. Na experiência
plebeia do brasileiro total se estende à aristocracia, sem que a aristocracia seja
invariavelmente a europeia. (FREYRE apud LIMA : 1997 : p. 09)

Experiência que pode ser percebida e na condição do mundo moderno, de suas


máquinas e pela nova situação dos sujeitos inseridos numa sociedade industrial cuja
exploração capitalista reduz tudo o que alcança em mera mercadoria. Sensível ao novo
tempo, Jorge de Lima captura as mais sutis contradições de sua época em que as
relações sociais são permeadas pela posse e pelo domínio, cujo destino do outro é a
reprodução cada vez maior da máquina humana.

Por sua vez, Mário de Andrade nos “Poemas da negra” que foram escritos logo
após a viagem ao nordeste, desenha outro Brasil, diferente do sul (da tradição européia),
que inspirou os versos que fazem referências a Recife/Pernambuco. A afetividade do
nortista, tantas vezes referida pelo escritor, parece ser o motor (ou terá sido algum
encontro amoroso?), para essa incursão subjetiva que ao mesmo tempo conserva sua
referência espacial à cultura brasileira. Aquilo que era referência externa, a busca da
identidade cultural brasileira, passa primeiro pelo filtro da subjetividade do poeta. A
verdade que ele busca aqui é a sua, sem a mediação dos espelhos da cultura. As escolhas
do poeta levam à inversão do sentido pressuposto de uma prostituta e,
consequentemente, leva a mulher para fora do contexto de mercadoria e da coisificação.

POEMAS DA NEGRA

Não sei por que espírito antigo


Ficamos assim impossíveis...

A Lua chapeia os mangues


Donde sai um favor de silêncio
E de maré.
És uma sombra que apalpo
Que nem um cortejo de castas rainhas.
Meus olhos vadiam nas lágrimas.
Te vejo coberta de estrelas,
Coberta de estrelas,
Meu amor!
Tua calma agrava o silêncio dos mangues.

III
Você é tão suave,
Vossos lábios suaves
Vagam no meu rosto,
Fecham meu olhar.
Sol-posto.
É a escureza suave
Que vem de você,
Que se dissolve em mim.
Que sono...
Eu imaginava
Duros vossos lábios,
Mas você me ensina
A volta ao bem.

XII

Lembrança boa,
Carrego comigo tua mão...
O calor exausto
Oprime estas ruas
Que nem a tua boca pesada.
As igrejas oscilam
Por cima dos homens de branco.
E as sombras despencam inúteis
Das botinas, passo a passo.
O que me esconde
É o momento suave
Com que as casas velhas
São róseas, morenas,
Na beira do rio.
Dir-se-ia que há madressilvas
No cais antigo...
Me sinto suavíssimo de madressilvas
Na beira do rio.
Falar do amor em Mario de Andrade é o mesmo que falar da poesia/arte em
Mario de Andrade – Poemas da Negra, Tempo da Maria e Girassol da Madrugada
(Livro Azul, 1941). Sempre tentando entender o outro para se entender, a procura, o
percurso tem a ver com a diversidade do país, grande e diverso. Sua vida e obra são
marcadas pelo percurso da viagem e Mario de Andrade procura entender o Brasil, coleta
de dados, participação e integração ao outro que, para eles, sempre são muito relevantes.
Poemas da Negra remete a música lenta e grave dos catimbós, do culto feiticistas, o
“fechamento de corpo”, aí Mario de Andrade oscila entre o intelectual e o primitivo, e a
negra é a detentora do que o poeta intelectual já perdeu: uma determinada ligação
cósmica.

A questão dos versos, melódica, harmônica e polifônica, as questões rítmicas do


poema, o pronunciamento sobre literatura e poesia, a fortuna critica e teórica denotam o
grande apreço que Mário de Andrade demonstrava pela cultura popular em que a danças
músicas e a poesia eram marcadas por essas experiências. O Mario músico que aparece
pela experiência e pensa a poesia num diálogo com a música juntamente ao
envolvimento com Villa-Lobos, para propor a escrita de um verso pautado na harmonia.
Daí a importância do ritmo e das vozes para a construção de um verso polifônico que
traduz os problemas urbanos e que dá ânimo à criação poética: dança e movimento
pautados nessa construção de versos harmônicos e polifônicos.

Como se dá a poesia para Mário de Andrade e Jorge de Lima? Pode-se esboçar


uma resposta que leva em consideração a recepção dos sentidos, as sensações que se
transformam e que serão trabalhadas pela forma, pela consciência e experimentação dos
poetas. A poesia deve, por meio da palavra, gerar a comoção. Outro aspecto poético em
Mário de Andrade e Jorge de Lima é o belo da natureza, a beleza é uma conseqüência
poética, representada nas palavras previamente belas e num conjunto lexical que
funciona bem. A beleza para ambos é uma conseqüência, pois questionam o belo
pautado na tradição (o feio pode ser belo) e se posicionam num esforço em buscar
novos ritmos, uma reinvenção do poema, a definição de um verso. Sua confecção
poética permeia os elementos da linguagem que imita e organiza o movimento do
estado e do pensamento: movimento que determina as pausas rítmicas e o ritmo como
uma combinação de valores de tempo, que se juntam aos acentos para imprimir novas
camadas de sentido e novas compreensões do Brasil, do seu povo e da sua sociedade.

Referências
ANDERSON, B. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do
nacionalismo, SP, Cia das Letras, 2008.
ANDRADE, M. “Poemas da Negra” in Poesias Completas, RJ, Nova Fronteira, 2003, vol. I.
BOSI, A – História Concisa da Literatura Brasileira, 2ª Ed., SP, Cultrix, 1975.
DUARTE, E.A. “O negro na literatura brasileira” in Navegações, v. 6, n. 2, p. 146-153, jul./dez.
2013.
LIMA, J. Novos Poemas, Poemas Escolhidos, Poemas Negros, RJ, Lacerda, 1997.
LIMA, L.C. (org) “A análise sociológica da literatura” in Teoria da literatura em suas fontes,
vol. 2, RJ, Civilização Brasileira, 2002.

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