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Florestan Fernandes²
Este artigo trata da corajosa postura do sociólogo e militante socialista brasileiro Florestan Fernandes (1920-
1995), a partir de sua obra “Da guerrilha ao socialismo: a Revolução Cubana”, publicada pela primeira vez em 1979,
ainda no período da ditadura civil-militar no Brasil. Assim, objetivamos elaborar algumas considerações sobre como um
importante intelectual – Florestan Fernandes – transformou em livro as anotações de suas aulas ministradas na
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/São Paulo e na Universidade de São Paulo – USP, na
contracorrente da intelectualidade brasileira que, nos chamados “anos de chumbo”, parcamente se expressava sobre a
Revolução Cubana em seus escritos.
Em 1979, por conseguinte, atendeu às sugestões de estudantes de suas disciplinas e, com o apoio de outros
intelectuais, exercitou sua coragem e competência como docente e defensor do socialismo afirmando o que se segue:
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de que as salas de aula ainda constituem uma
fronteira na luta pela liberdade e pela autonomia
da cultura. […]. Essa solidariedade mostra que
não estamos sozinhos e que o trabalho intelectual
também pode assumir as feições de uma
guerrilha... (Fernandes, 2012, p.17-18).
Daí nasceu a iniciativa da publicação da referida obra. No Prefácio, o eminente escritor Antonio Candido
ressaltou, como se segue, o profundo sentido revolucionário de Florestan Fernandes em sua dimensão de sociólogo
movido pela paixão política do socialista que foi.
O meu interesse em escrever este artigo, ao lado da grande admiração que tenho pela obra de Florestan
Fernandes, também se articula ao fato de que vivi em Cuba de 1994 a 1996, quando realizei meus estudos de
Doutorado em Ciências Sociológicas na Universidade de Havana, nos tempos difíceis do chamado “Período Especial”.
Testemunhei, então, a escassez e a dureza do viver em um país pobre e pressionado por forças do capital predatório em
meio à grande crise do mundo do trabalho na era da globalização. Crise essa que revelou a capacidade de resiliência de
grande parte da população cubana e que me fez concordar com a análise de Florestan Fernandes, feita em décadas
anteriores aos anos 1990, sobre a vulnerabilidade do processo revolucionário, a seguir:
2 FERNANDES, F. Da guerrilha ao socialismo: a Revolução Cubana. 3.ed. São Paulo: Expressão Popular,
2012.
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O PASSADO COLONIAL E NEOCOLONIAL DE CUBA
A partir do Sumário do livro, após o Prefácio elaborado por Antonio Candido, Florestan Fernandes redigiu
uma Nota Explicativa e escreveu a Introdução ao Estudo de Cuba Socialista. Em seguida, conforme aqui analisado,
buscou compreender o peso da bota de chumbo representado pelo passado colonial e neocolonial daquele país.
A herança colonial europeia marcou o modelo de economia agrária e para exportação, baseado na monocultura,
na escravidão indígena e africana e no latifúndio. Escravidão que praticamente dizimou a população indígena, conforme
assinalado por Darcy Ribeiro (1992). O genocídio da população nativa, entre a ocupação espanhola e o ano de 1558,
representou a sua redução de 80 mil ou 100 mil para 5 mil indígenas, havendo a necessidade de substitui-la pela
perversa “caça” e traslado, da África para Cuba, de multidões de seres humanos traficados em navios chamados de
“negreiros”. O crescimento do tráfico de africanos (as) tornou-se constante, chegando ao seu ponto mais alto no
decorrer do século 19.
As primeiras vilas coloniais, espaços para os investimentos nas colônias de exploração, foram construídas em
Baracoa (fundada em 1512), Bayamo (em 1513), Trinidad (1514), Sancti Spiritus (também em 1514), Puerto Principe
(ainda em 1514) e Santiago de Cuba (em 1515).
O modo de produção colonial, por conseguinte, ao se expandir na América, buscou implementar a colonização
europeia no Novo Mundo. O que atendeu aos interesses dominantes do Estado Absolutista e da burguesia da Europa no
âmbito da política mercantilista que promoveu a sangria das riquezas coloniais. Sangria que viabilizava as rendas do
Estado Absolutista e a inversão econômica nas manufaturas, fortalecendo a burguesia que se colocava como
intermediária entre a colônia e a metrópole.
A posição estratégica de Cuba representou enorme vantagem para o império colonial espanhol. Nas palavras de
Florestan Fernandes:
Tais características contribuíam para a continuidade da dominação colonial, malgrado suas contradições. No
século 19, as contradições se apresentam com a expansão do maior complexo agropecuário açucareiro do mundo
capitalista – Cuba – que produzia cerca de 1/3 do açúcar mundial, sob o interesse dominante dos capitais norte-
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americanos que para lá convergiam. Desde 1818, a dominação dos Estados Unidos buscava indiretamente enfraquecer o
poder espanhol, com a utilização da estratégia de obtenção dos meios de compra direta do açúcar sem a intermediação
espanhola.
Por sua vez, a Guerra de Independência de Cuba (1868 – 1878) já havia sinalizado o empenho dos Estados
Unidos em afirmar seus interesses econômicos e geopolíticos. Poder esse que culminou com a ocupação militar de
Cuba desde 1898 até 1902. Em suma, mecanismos diversificados de apropriação comercial e financeira deslocavam
para fora de Cuba, incessantemente, os frutos do complexo agropecuário açucareiro. Assim sendo, “Quando os
historiadores e os economistas cubanos falam na distorção da economia, em sufocação e impossibilidade de
diversificação e autonomia, eles descrevem os efeitos desse padrão neocolonial de desenvolvimento capitalista. […]”3.
Eis aqui delineado o perverso mecanismo de produção/reprodução da ordem neocolonial que deserdava a maioria da
classe trabalhadora cubana.
E Florestan Fernandes brilhantemente analisa a diferença entre o colonial e o neocolonial, a partir do fato de
que este último domina de forma indireta e descentralizada. Daí a existência de permanente “submissão induzida, de
lealdades compradas, de corrupção política e de alienação moral” 4.
Cuba estava cindida entre duas forças sociais antagônicas. Havia aqueles que se apropriavam do excedente
econômico nas franjas do neocolonialismo que reproduzia ampliadamente o capital. De outro lado, a chamada
“peonagem miserável”, vítima preferencial dessa ordem que os colocava em condições de vida regidas pela
superexploração, consumo predatório da força de trabalho, miséria, fome, doenças, analfabetismo e nenhuma
perspectiva de superação de tais condições.
Por sua vez, as chamadas “classes possuidoras nativas”, voltadas para o mundo exterior, “para fora”,
participam do processo de “americanização de Cuba”, sob o signo da subserviência aos ditames dos centros de poder
internos e externos. “Ou seja, na lógica da dominação neocolonial, ela[elas] se encarrega [encarregam] de garantir os
requisitos políticos do neocolonialismo imperialista, pondo a capitulação negociada e a negação da revolução nacional a
serviço do poder central, servindo de mediadora[s] entre este e seu próprio governo.” 5. O que significa que essas
burguesias compradoras “tecem sua própria desdita”, no dizer de Florestan Fernandes. Assim sendo, passivamente
obedecem aos interesses das forças de dominação externas, reprimindo e oprimindo incessantemente pela violência
institucional intrínseca da ordem de poder neocolonial.
Diante de contradições e da necessidade de extinção das marcas perversas do passado histórico colonial e
neocolonial - levando-se em conta a condição de inexequibilidade dessas formas de sociabilidade -, as forças sociais
que não estavam comprometidas com essa ordem de poder entraram em cena em Cuba. Segundo Florestan Fernandes:
3 Ibidem, p.78.
4 Ibidem, p.80.
5 Ibidem, p.81.
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razão de ser de uma guerrilha que não poderia
fechar-se sobre um estreito circuito político-
militar (Ibidem, p.116).
Florestan Fernandes também põe em destaque a participação de Fidel Castro no processo revolucionário
cubano. E enfatiza também Che Guevara, um outro fundamental representante do espírito revolucionário. Ambos, por
conseguinte, constituiram os pilares do processo que levou Cuba a romper com os duzentos anos de luta contra o poder
que vem de fora: o espanhol colonizador e o norte-americano imperialista. Enfim, isto significou que o potencial
revolucionário de enfrentamento das forças destrutivas do capital era inevitável.
Diante da impossibilidade de se encontrar saídas para o enfrentamento das contradições da ordem social
neocolonial, fez-se inadiável a construção de um caminho socialista para Cuba. Caminho esse que implicaria na
estratégia guerrilheira de conquista do poder para consolidar a transição para o socialismo. Para Florestan Fernandes, a
guerrilha foi um instrumento que, brotando da ordem social neocolonial em crise, potencializou o desabrochar da
mentalidade comprometida com a causa revolucionária. Promoveu, sobretudo, a postura dos guerrilheiros no sentido
da ação política revolucionária.
Desde 1902 até 1959, Cuba foi governada por uma série de políticos corruptos, sob o beneplácito dos Estados
Unidos e mantendo a economia do país dependente do controle norte-americano (em 80% ou mais), em especial, no que
se refere ao açúcar e outros poucos produtos agrícolas para exportação. Em 1952, Fulgencio Batista instaura um golpe
de Estado, inaugurando mais uma forma ditatorial de exercício do poder em Cuba.
A Revolução Cubana, liderada por Ernesto “Che” Guevara e Fidel Castro e companheiros(as), trazia à tona as
forças em colaboração da vanguarda com as massas.
Em resumo, é em nome das demandas da massa de desamparados, famintos e explorados historicamente que o
governo revolucionário prioriza agudas transformações sociais no campo e na cidade. Para aprofundar o processo
revolucionário, faz-se urgente superar as relações mercantilizadas do passado e enfrentar as pressões e interesses
contrarrevolucionários burgueses. Tal superação é viabilizada pelas Leis de Reforma Agrária, a partir de maio de 1959 e
em outubro de 1963, com a estatização das propriedades rurais e a ampliação de mecanismos de promoção de qualidade
de vida, no campo e na cidade.
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As novas orientações do planejamento central revolucionário priorizaram a industrialização do campo, o
incremento das atividades de mineração e a urbanização do campo, dentre outras iniciativas. O importante era romper
com o modelo de crescimento desigual presente na história cubana. Assim também foram priorizadas as políticas
públicas de saúde, alimentação/nutrição e habitação, com especial atenção à educação e às políticas de geração de
postos de trabalho. O analfabetismo foi praticamente erradicado em Cuba com a exitosa Campanha de Alfabetização
do ano de 1961, em todo o país.
Seguindo os princípios do herói cubano José Martí, predominaria o modelo que articula o estudo com o
trabalho. Graças aos esforços e cooperação, a população cubana destaca-se pelo elevado nível de escolaridade e de
usufruto de serviços de saúde pautados sob a lógica da prevenção e do direito universal, com a promoção de iniciativas
como o Programa de Médico da Família. Convém ressaltar que o modelo de saúde cubano nasceu ainda nos tempos da
guerrilha, na Sierra Maestra, quando os camponeses eram atendidos por “Che” Guevara e seus companheiros
profissionais de saúde. Em agradecimento, aderiam à causa revolucionária e se sensibilizavam diante da substância
democrática e popular dessa luta. 6 Para Florestan Fernandes:
A classe trabalhadora, assim, é o motor da sociabilidade cooperativa e solidária que sustenta a defesa dos ideais
da Revolução Cubana. Ideais esses que historicamente vinham sendo postergados pelas crises sucessivas e crônicas
presentes desde os anos 1920. Importa também acrescentar o peso da presença norte-americana, que significava o poder
externo de fomento da escassez de recursos que alimentava perversamente a miséria da maioria deserdada.
Ao se referir às transformações da economia cubana, Florestan Fernandes analisou vários aspectos que
considerou cruciais para a compreensão das realizações econômicas possibilitadas pelo processo revolucionário nos 20
anos que se seguiram ao ano revolucionário de 1959.
Florestan Fernandes afirma suas preocupações em relação ao que denomina como a forma política democracia
6 Lucena, 1996.
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popular, que, a seu ver, em Cuba concretizou-se de modo imperfeito e ainda incompleto. Assim sendo, expressa sua
dificuldade em admitir os seguintes aspectos da realidade histórica cubana concernentes à forma política democracia
popular:
Ampliando seu leque de preocupações, Florestan Fernandes faz referência ao fato de que o poder popular –
importante para evitar qualquer expressão de dominação – pode ser convertido na fonte de uma dominação organizada e
institucionalizada pela via da forma política assumida pelo próprio poder popular. E exemplifica a partir da indicação,
seleção e confirmação de membros dos comitês executivos das assembleias municipais e provinciais. Também inclui na
sua preocupação a consagração da eleição indireta para as assembleias provinciais e para a assembleia nacional. Para o
autor, o poder popular institucionalizado restabelece a máxima de que o socialismo é transitório e necessita ser
consolidado enquanto condição para a passagem para o comunismo, que estará sempre no horizonte das possibilidades.
Assim sendo, a Revolução Cubana carrega em si a responsabilidade de provar que:
CONCLUSÕES
Florestan Fernandes, nosso sociólogo comprometido com a superação do domínio do capital sobre o trabalho,
ao longo de seu livro aqui analisado, demonstrou que o caminho para o socialismo em Cuba foi peculiar e, por isso
mesmo, não seria passível de ser “copiado”. Ao contrário do que afirmava Che Guevara, que acreditava que o processo
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cubano poderia ser repetido em outras realidades. Assim, o processo revolucionário em sua particularidade social e
histórica enquanto tal, acreditava Florestan Fernandes, seria a saída para além do capital.
Corajosamente, considerando que sua obra aqui apresentada havia nascido de sua prática docente e de
militante, foi capaz de afirmar a importância dos esquecidos e excluídos na garantia de que a revolução cubana não
seria mais uma das muitas “revoluções interrompidas”. Assim sendo, reafirmou que o caminho revolucionário é o que
unifica a diversidade das lutas em diferentes realidades sociais e históricas, uma vez que o sentido histórico aponta para
a necessidade do socialismo. Afinal, foi (é ainda) em nome dele que tantos(as) deram (dão) suas vidas, seu sangue e
seus melhores propósitos.
Florestan Fernandes defendeu a causa socialista em tempos de fechamento político no Brasil, elaborando uma
extensa obra que propiciava (e que ainda propicia) fundamentais reflexões críticas para as gerações passadas e
presentes. Sua herança intelectual não se esgota nos livros e artigos que nos deixou. Sua vida exemplar ilumina nossas
escolhas, pois não se deixava fragmentar enquanto professor e militante socialista. Era em si a síntese de suas múltiplas
formas de pensar/agir, sempre indicando que a sociabilidade estranhada do capital teria de ser superada. E o socialismo
seria o horizonte a ser alcançado.
Florestan Fernandes, por conseguinte, precisa ser entendido para além das aparências – em sua essência –
enquanto intelectual orgânico da classe trabalhadora e defensor da sociabilidade do trabalho diante da perversidade da
ordem do capital financeiro, monopolista e em sua crise estrutural contemporânea. Este é, portanto, o seu mais
importante legado!
REFERÊNCIAS
LUCENA, Maria de Fátima Gomes de. Dos Mundos: un estudio comparativo sobre los servicios
de salud em las áreas rurales de Brasil y Cuba, desde los años 60 hasta la actualidad. Tese de
doutorado. Universidad de La Habana: Havana, Cuba, 1996.
RIBEIRO, Darcy. “Cuba”. in Por que Cuba? Rio de Janeiro: Revan, 1992.
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