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O LÉXICO ROMÂNICO DO SÉCULO XXI

Bruno Fregni Bassetto

Entre os vários níveis da linguagem, o léxico constitui sem dúvida o


que melhor representa a cultura dos usuários. Nele estão refletidos o modo de
vida, as atividades em todos os campos, a visão do mundo, o meio ambiente,
as influências tradicionais e externas e outros fatores. Desse modo,
compreende-se que o vocabulário de um brasileiro que viva às margens do
Amazonas seja bastante diferente daquele de um paulistano da Avenida
Paulista ou do Anhangabaú ou do de um gaúcho da vastidão dos pampas. O
meio ambiente levou os esquimós a criarem cerca de quarenta palavras para
“branco” e outras dezesseis para “neve”, fenômeno que, para a maioria dos
brasileiros, é algo mais ou menos abstrato.
Desse modo, grande parte do léxico constitui um inventário aberto,
em parte mutável por representar a Weltanschauung, a visão do mundo e a
cultura do povo que o usa. Essa mutabilidade, porém, observa-se mais nas
palavras ditas de significação externa, como substantivos, adjetivos e verbos,
que nas de significação interna, por não disporem de conteúdo significativo
característico e, por isso, assumem funções diversas na estruturação do
período, tais como preposições e conjunções e cujo inventário é geralmente
fechado. As mudanças léxicas acompanham as alterações sociais,
econômicas, políticas e culturais da comunidade, conforme atestam os
resultados da aplicação dos métodos filológicos da Geografia Linguística,
Wörter und Sachen, Onomasiologia e mesmo o Histórico-Comparativo.
Modificações sociais mais rápidas aceleram também as do léxico, conforme
se verificou no século XX e no nosso, com a rápida evolução tecnológica e
seus numerosos neologismos. Contudo, uma parte considerável do tesouro
vocabular de uma língua resiste às mudanças quase tanto como sua gramática,
conforme se verifica nas línguas românicas em relação a seu léxico
fundamental, herdado do latim. Uma visão diacrônica do léxico românico
patenteia a conservação do vocabulário fundamental herdado; os
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semieruditos são menos numerosos e tendem a diminuir à medida que as
línguas atingem certo grau de maturidade, enquanto os eruditos, introduzidos
de cima para baixo, se tornaram legião nos últimos tempos.
O conhecimento científico das últimas décadas e sua aplicação
prática, em todos os campos, exigiram a criação ou a adaptação de um número
enorme de novos termos. Observa-se, porém, que esses novos termos não são
criações ex nihilo. A grande maioria deles busca nas línguas clássicas, o latim
e o grego, as raízes ou ou radicais sobre os quais se constrói a denominação
de algo novo; ou adaptam-se termos já existentes. Para tanto, basta, por
exemplo, examinar a terminologia computacional: data, neutro plural de
datum, “dados”; media, igualmente neutro plural de medium, “meios”,
pronunciado à inglesa mídia, adotado internacionalmente para indicar os
meios modernos de comunicação; computare, “contar”, “calcular”, “julgar”
> computador, computação; informare, “delinear”, “ensinar”, “descrever” >
informática ; bit é formado por lat. bi(narius) t(erminus); de delere, “apagar”
> delete > deletar (melhor seria usar a forma português arcaico delir), entre
tantos outros, embora na cibernética (< gr. , “piloto”) tenham
sido usados muitos termos ingleses comuns.
Esse recurso constante às fontes clássicas, sobretudo latinas, é uma
constante na história das línguas românicas. O latim, tanto clássico como o
medieval e o eclesiástico, foi e continua a ser um adstrato permanente na
história da România, sempre emprestando seu léxico para nomear qualquer
necessidade, nova ou antiga, não só às línguas românicas como a
praticamente todas as línguas ocidentais. Contudo, urge não esquecer que
medeiam, entre nós e o uso corrente do latim, muitos séculos, durante os quais
as palavras sofreram muitas vicissitudes. Por isso, o conhecimento do étimo,
ou mesmo, como queria Kurt Baldinger, da biografia das palavras, é muitas
vezes indispensável para que se lhe compreenda o significado e suas
alterações no decurso dos séculos. Modificações sociais mais rápidas
aceleram também as do léxico, conforme se verificou no século XX e no atual,
com a rápida evolução tecnológica e seus numerosos neologismos. Contudo,
uma parte considerável do tesouro vocabular de uma língua resiste às
mudanças quase tanto como sua gramática, conforme se verifica nas línguas
românicas em relação a seu léxico fundamental, herdado do latim. Importa
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ainda relacionar a história interna com a externa, ter presente a importância
do substrato, do superstrato e do adstrato, pois é no léxico que a influência
desses diversos estratos é mais atuante e sensível, particularmente diante do
fenômeno da globalização dos nossos dias. Esse inter-relacionamento explica
os diferentes empréstimos às línguas românicas, como as palavras eslavas,
albanesas, turcas e húngaras ao romeno, não encontradas, v.g., nas línguas da
Ibéria, da mesma forma que não se usam, no romeno, os empréstimos francos
ao francês. Levadas para regiões diferentes, as línguas, românicas ou de
outros troncos, sofrem a inevitável influência do meio, fornecendo ou
recebendo empréstimos. Nesse sentido, basta considerar os milhares de
empréstimos tupis ao português do Brasil, em grande parte desconhecidos em
Portugal e em outras regiões de fala portuguesa.

Por outro lado, por ampliação ou restrição semânticas ou outro


processo, não raro o conteúdo significativo das palavras é adaptado segundo
as necessidades dos usuários. A história do léxico românico apresenta vários
exemplos, dos quais são particularmente interessantes os seguintes: Embora
de uso muito frequente, as formas do verbo ire eram curtas demais, com
escassa perceptibilidade dentro do fluxo frasal; além disso, no lat. vulg.
encontram-se homonímias, como eo < ego, it e id, além de numerosas flexões
nominais e verbais. Mesmo assim logrou manter algumas de suas formas
com o auxílio de vadere, “ir”, “caminhar”; desde os sécs. IV e V, os textos
latinos apresentam as seguintes formas para o presente do indicativo: vado,
vadis, vadit, imus, itis, vadunt (port. vou, vais, vai, imos ou vamos, ides, vão).
Note-se que na Vulgata não se encontram is, it nem o imperativo i, substituído
por vade (181 ocorrências), mas o plural ite é usado 68 vezes, fato que
confirma a fuga da homonímia. Da mesma forma, nenhuma forma
monossilábica se encontra na Peregrinatio. As formas resultantes das
combinações desses dois verbos permanecem nas línguas da Ibéria, no rét.
dolom. (central) e nos falares it. das Marcas até a Sicília (vai, vai, va, imu, iti,
vanu). Nas outras regiões, o quadro românico dos substitutos de ire é
complexo. Pode-se supor que, ao lado de ambulare, “passear”, “caminhar”,
usava-se também annare, “passar o ano”, metaforicamente com o sentido de
ire. Partindo-se de annare, chega-se regularmente ao cat. e prov. anar. De

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ambitare, “rodear”, “ir”, de ambitus, “circunferência”, “circuito”, já no latim
vulgar admite-se *andare (ambitare > ambidare > ambdare > andare),
donde port., cast. andar, log. e it. andare. Pelo cruzamento com ambulare
teriam surgido *amnare ou *ambnare e *allare, bases do mác.-rom. îmnare,
megl.-rom. amnari e fr. aller. De ambulare, com poucas modificações,
provieram fr. ambler, istr.-rom. amble, rom. umbla. O rom. adaptou
semanticamente também mergere, “mergulhar”, “submergir”, > merge, “ir”;
da mesma forma, ducere, “conduzir”, > duce, em expressões como eu
maduc, “vou embora”. Em port., mandar-se é usado nesse sentido. Esse
campo semântico mostra como as ampliações e as restrições semânticas se
fazem com muita facilidade. A partir de um sema comum, no caso o de
“movimento”, “deslocamento”, a língua passa a utilizar as palavras para
expressar ideias aparentemente não relacionadas. Um exame atento, porém,
descobre o caminho seguido, embora nem sempre muito evidente.
Exemplo claro de que a língua é expressão das atividades humanas,
da cultura, encontra-se nas expressões românicas para “chegar”. Em latim,
essa ideia era expressa por advenire, que figuradamente significava também
“suceder”, “acontecer”, passando da ideia concreta de espaço para a abstrata
de tempo, como em Periculum advenit e Dies advenit. Isso facilitou o
aparecimento do emprego especial de várias expressões, dentre as quais se
destaca plicare, “dobrar”. Usava-se em linguagem náutica na expressão
plicare vela, “dobrar as velas (do navio) ” à aproximação da chegada ao porto,
com que se obtinha que o navio atracasse mais lentamente e parasse. Por
braquissemia, dizia-se apenas plicare, logo com o significado de “chegar”
(plicare > plegar > port. chegar, cast. llegar, com a sonorização da surda
intervocálica e a palatalização para a chiante em port. e para a lateral no cast.).
Já na Peregrinatio (séc. IV) plicare significa “chegar” sem ligações com a
linguagem náutica: cum iam prope plicarent civitati (10,9); ut plecaremus
nos ad montem (38,11). Fora da Península Ibérica, plicare passou a significar
“chegar” numa região da Sicília, “chicari”, e ao sul da Calábria, chiicari. Na
Dácia, plicare era empregado na expressão plicare tentoria, “dobrar as
tendas” e plicare sarcinam, “dobrar a mochila”, na linguagem militar, com
que se indicava a hora de “partir”, ao se desmontar o acampamento; daí,
plicare > rom. pleca passou a significar “partir”, ao contrário do que se deu
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na Ibéria, notando-se ainda que o rom. é a única língua românica que ainda
conserva o termo sarcinaContudo, o romeno conserva também pleca no
sentido de “dobrar”, “inclinar”, “curvar”, acepção comum, sem influência do
sermo castrensis. No lat. lit., ocorrem expressões com o composto applicare
ou applicari com significado próximo a plicare, “chegar”, como em applicare
se ad flammam, “achegar-se ao fogo”, em Cícero, e naves terrae (e ad terram)
applicare, “chegar os navios à terra”, se ad arborem applicare, “encostar-se
a uma árvore”, em César e Tito Lívio. De applicare provém sic. e cal.
agghiicari, também “chegar”. Outro substituto de advenire é adripare, (<
ad + rip(a) + are), “aproximar da margem”, de possível procedência das
populações litorâneas; por sua evolução fonética, pode-se concluir que surgiu
na Gália e difundiu-se em outras regiões: fr. arriver, prov. arribar, cat.
arribar, (> sard. arribare), it. arrivare, ingl. arrive ( > arrival, “chegada”).
No português, arribar, “chegar à riba”, “aportar”, já é documentado no séc.
XIV. No italiano, encontra-se ainda giungere, mais como um preciosismo
absolutamente não popular; em certas regiões da Sicília, porém, é corrente
juntari (< junctare) no sentido de “chegar”.
Outra ideia do léxico comum é a de “encontrar”. O latim literário
empregava reperire e invenire, este mais popular e aquele mais erudito, tanto
que reperire não deixou traços na România, enquanto de invenire restam
escassos usos em textos mais antigos; assim, no Satyticon contaram-se 45
ocorrências de invenire e apenas uma de reperino De Architetura de Vitrúvio,
mais de 100 de invenire e apenas 6 de reperire. Na linguagem popular, afflare
passou a substituir os dois verbos; do significado de “soprar para ou contra”,
“insuflar”, “inspirar”, passou a “encontrar”, sem que se saiba exatamente a
razão dessa mudança semântica. Uma possível, aventada por Schuchartd e
Coromines, é que provenha da linguagem da caça, em que os cães
“encontravam” a caça pelo “cheiro”: Canis leporem afflat. Textos lat. já
apontam nesse sentido: Urbem Romam regius terror adflabat. (Floro, I, 40,
9; séc. II d.C.). Me sinistrae rumor ac fumus opinionis afflavit. (Sidônio
Apolinário, Epist., I, 2, 2; séc. V). Dada a extensão românica da palavra, pois
se encontra nos extremos da România e no sul da Itália, essa alteração
semântica deve ser antiga e mais ampla do que atualmente: port. achar, cast.
hallar, sobres. unflá, nap. ashá, calab. ajjari, sic. ashari, dalm. aflar, rom.
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afla (REW 261). Na Idade Média, outros termos vieram substituir afflare. Um
deles foi lat. captare, frequentativo de capere, “procurar apanhar”, “tentar
pegar” (Laqueis captare feras, Virg., Georg. 1, 139), “apanhar”, “granjear”,
“espreitar”, “surpreender”, que passou a significar “ver” no oeste da
România, documentado nos sécs. VI-VII; no port. significa “pegar”,
“procurar”, mas no venez. (catar), emil. (catèr), eng. (chattar), friul. (ciatar),
log. accattare, camp. (agattái) significa “encontrar”. Outro substituto de
afflare é *tropare > fr. trouver, que passou depois para o cat. e prov. trobar,
gasc. trouba, it. trovare. No it., trovare superou os verbos tradicionais afflare
e captare. Quanto à etimologia de *tropare, há várias tentativas de
explicação; uma plausível seria uma derivação do gr. , “figura de
expressão”, ponto de partida do prov. ant. trobar, “compor versos”, e
trobador, o que suporia antiguidade maior. Outros termos com essa acepção
são rom. gasi, do esl. gasiti, “apagar o fogo ou a sede”, com evolução
semântica especial. No port. do Brasil, o mais corrente é encontrar (< en
+contra + ar), usual também no cast., cat., encontrar, it. incontrare. Popular
é ainda topar, “encontrar inesperadamente”, “dar de cara com”, e topada,
“encontrão”, entre vários outros significados, em regiões da Ibéria.
Cabem aqui alguns dados quanto ao número de vocábulos herdados
de modo direto por via popular, conforme registro no Romanisches
Etymologisches Wörterbuch (REW) de Meyer-Lübke que, como se sabe,
elenca apenas as palavras herdadas, sem seus derivados ou compostos de
formação posterior. Segundo essa fonte confiável, de um total de pouco mais
de 10.000 no cômputo final, 6.700 formam o patrimônio de vocábulos latinos
herdados; desse total, 1.300 (quase 20%) são panromânicos, ou seja, fazem
parte do léxico de todas as línguas românicas; 3.900 (60%) conservaram-se
em algumas e 1.500 (pouco mais que 20 %) foram herdadas por apenas uma
delas. Esses dados não pretendem ser exatos, uma vez que o próprio REW
continua a receber acréscimos, por ser um inventário aberto, segundo atestam
os Nachträge (p. 804-814, da 5ª edição).
Quanto à categoria gramatical dos vocábulos herdados, cabem
algumas considerações, ainda que de caráter bastante genérico. Os
substantivos frequentemente sofrem modificações mais ou menos profundas,
substituições ou alterações semânticas. Denominando sobretudo objetos
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materiais, destinados a satisfazer às necessidades da vida humana,
modificam-se e renovam-se constantemente, conforme se alteram essas
necessidades ou surgem outras. Essa parte do léxico está intimamente ligada
também ao meio ambiente, à visão do mundo e à época focalizada. Entretanto,
os substantivos que designam noções básicas da vida humana, sem as quais
qualquer comunicação seria muito difícil, senão impossível, costumam
manter-se sem maiores alterações. Assim, as denominações românicas das
partes do corpo são herdadas do latim em sua quase totalidade; vejam-se,
como exemplos, os correspondentes românicos de auricula, barba, brachium,
bucca, caput, corpus, dens, -tis, digitus, fácies (ou facia), frons –tis, humerus,
manus, nasus, oculus, pectus, pedes (ou petiolus), pilus, ungula entre outros.
Importantes no relacionamento familiar, foram mantidos os designativos de
parentesco, como avus ou avunculus, (con)sobrinus, filia, filius, frater, gener,
mater, nepos, norus (nora), pater, socer (socrus) e outros, além dos
provenientes da linguagem infantil, geralmente panromânicos, e
caracterizados pela reduplicação (mama, papa, tata), embora com alguma
variação semântica. O campo semântico da habitação conservou grande parte
das denominações latinas, ainda que por vezes semanticamente um tanto
diferenciados, o que se vê nos correspondentes românicos de casa, clavis,
fenestra, mensa, paries, –tis, porta, scamnum, tectum, tegula. No campo de
animais domésticos e selvagens, as denominações comuns à fauna dos
diversos continentes também foram conservadas, umas em todas e outras em
quase todas as línguas românicas: asinus, bos, caballus, canis, capra,
cervus,cunis (cunicullus), lepus, leo, lupus, ovis ou ovicula, porcus, serpes, –
ntis, sorex, –cis, taurus, ursus, vacca, vitellus e outros. Os nomes de aves e
insetos mais comuns encontram-se nas línguas românicas, como apis e
apicula, corvus, formica, gallina, hirundo ou hirundula, lacusta, musca,
passer, pedunculus, pulex, –cis ou pulica. Os designativos de atividades
comuns também são panromânicos, como os referentes à agricultura
(aratrum, campus, falx, –cis, granum, linum, millium, palea, semen,–tis,
spica), a plantas comestíveis (alium, caulis ou cauliculus, faba, legumen, lens
ou lentícula, phaseolus, viridia), ao pastoreio e seus produtos (berbex, caseus
ou formaticus, lacte, lana, pastor), a diversas ocupações (argentarius,
armarius, faber, ferrarius, lanarius, molinarius, ollarius), a objetos de uso

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geral (acus ou acucula, buttis, caldaria, forfex, furca, fusus, olla, pecten,
vasum). Muitos nomes de plantas, comuns na Europa, são pouco conhecidos
em outros continentes, como no Brasil, salvo as genéricas e as que se
aclimataram (arbor, carpinus, fagus, fenum, fragum, fraxinus, hedera, herba,
jeniperus, malva, napus, pepo, –inis, persicus, pinus, populus, prunus, spinus,
ulmus, urtica, vitis). O campo semântico dos elementos da natureza e de seus
fenômenos apresenta forte herança latina, como dies ou dia, gelu, luna, lux,
mane, nix, nox, nubes, pluvia, sol, stella, tempestas, tonitruus, ventus etc.
Foram herdados também os nomes dos meses e dos dias da semana, menos
pelo português, que ficou apenas com sábado e domingo em consonância com
as outras línguas românicas, tendo substituído lunae dies, martis dies etc por
segunda-feira, terça-feira etc. São panromânicos os nomes das quatro
estações: prima ver, aestas, autumnus, hibernum (tempus).
Contrariamente aos substantivos, os adjetivos, semanticamente de
natureza qualificativa, herdados pelas línguas românicas, não são muito
numerosos. Permaneceram os mais correntes, tais como albus, clarus, negrus
(por cl. niger), viridis; acetus, acrus (cl. acer), amarus e amaricus, dulcis;
bonus, malus, calidus, frigidus, siccus; crassus, grandis, grossus, macer,
altus, directus, latus, longus, minutus; caecus, mancus, mutus, orbus, surdus;
bellus, foedus, formosus. Calcula-se que as línguas românicas tenham
herdado em torno de 100 adjetivos, ainda que nem todos sejam panromânicos.
Diferentemente dos substantivos, os adjetivos estão mais sujeitos à visão
subjetiva, fato que pode explicar certas variantes formais e semânticas.
Considerem-se, por exemplo, as designações românicas para “cego”, segundo
G. Rohlfs (Diferenciación Léxica de las Lenguas Románicas, p. 60-62),
notando-se ainda ser esse o único adjetivo analisado nessa obra: caecus >
port. cego, cast. ciego, cat. cec (também orb), it. cieco, mas esse só na
Toscana, nas Marcas e na Úmbria., eng. tschiec; fr. arc. cieu, prov. cec.
Atualmente, fr. cieu, forma bem documentada por textos medievais
normandos e anglo normandos, foi completamente substituído por aveugle,
gasc. abugle proveniente da expressão (orbus ou orbatus) ab oculis,
“privado de olhos”. Apuleio (125-180 d.C.) usa orbus (> it. orbo, “privado”,
“cego”, “zarolho”), cujo significado original é “órfão” e “sem filhos”, na
acepção de caecus; da expressão orbatus ou orbus oculis ou ab oculis, por

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abreviação, resultou apenas ab oculis > aboculis, documentado no séc. V, em
Actus Petri cum Simone, onde se encontram “unam viduam aboculis” e
“viduae aboculis”. Trata-se, por certo, de um eufemismo nascido entre as
classes sociais mais altas, segundo Karl Jaberg, conforme expressões de
Cícero (orbus ab optimatibus), Virgílio (orbus a parentibus) e Plínio (orbus
luminibus). Em partes meridionais da Itália, caecatus, documentado pela
primeira vez no séc. V por Paulino de Nola (“lumina caecatis dedit”) >
cecato, substituindo caecus. Em romeno, incorporou-se o empréstimo turco
kör > rom. chior. Na Sardenha, usam-se thurpu, turpu, zurpu, de possível
origem pré-românica; na região norte da ilha encontram-se cecu e segu,
empréstimos do italiano ou do castelhano. No Piemonte e na região leste da
França, borgno, francês borgne, “torto”, “caolho”, passaram a designar
“cego”. – Obviamente, nos compostos em que “cego” representa um dos
elementos, verificar-se-á a mesma diversidade, como lat. murem caecum,
“rato cego” > port. morcego, cast. murcielago, enquanto as outras línguas
românicas nomeiam o animal segundo outros aspectos e pontos de vista,
como cat. rata-pinyada ou rat-penat, prov. rata-penada, “rata empenada”,
fr. chauve-souris, “camondongo calvo”; it. vipistrello ou pipistrello, mais
corrente (do lat. vulg.*ves-pertellus, diminutivo de vespertilio, e inclusão da
onomatopéia inicial pi...pis no lugar de vipi-); rom. liliac, al. Fledermaus,
“rato voador”, termo mais antigo ao lado do mais recente Flattertier, em que
a ideia de “rato” foi substituída pela mais genérica de “animal”.
Esse exemplo mostra as muitas influências, o grau de subjetividade,
os mais variados fatores culturais e de visão do mundo que podem levar o
falante a qualificar algo, resultando daí o número relativamente pequeno de
adjetivos panromânicos de origem latina, calculados em aproximadamente
uma centena, ainda que com alterações de significado. Note-se que os
adjetivos expressam semanticamente apenas qualidades; os denominados
determinativos constituem outras categorias (possessivos, dêiticos,
indefinidos), caso se leve em conta apenas seu conteúdo significativo, razão
pela qual essas categorias foram herdadas do latim quase integralmente pelas
línguas românicas, por seu caráter mais objetivo e suas funções definidas no
sistema da língua. O fato de modificarem substantivos não parece suficiente

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para denominá-los “adjetivos”, porque são funcional e semanticamente
diversos.
Quanto aos verbos, a maioria foi herdada do latim por todas as línguas
românicas, especialmente os que designam ações e estados habituais, ligados
às necessidades da vida física e espiritual do homem. Suas origens são indo-
europeias e pouco susceptíveis a alterações. Esses verbos não são muito
numerosos, mas muito antigos. Sempre existe a possibilidade de cada língua
criar novos verbos para expressar tais ações ou estados básicos, geralmente
calcados em substantivos ou adjetivos primitivos. Alguns exemplos desses
verbos panromânicos, por campos semânticos, tendo como ponto de partida
as formas do latim vulgar, documentadas ou filologicamente supostas: audire,
gustare, sentire, videre; bibere, cadere, dormire, manducare, movere, sedere,
stare, venire; amare, cantare, comparare, prehendere, scribere, vendere;
arare, colligere, coquere, currere, dare, exire, facere, intrare, laudare,
morire, nascere, operare, remanere, respondere, salire, sibilare; cogitare,
credere, desiderare, volere entre muitos outros. Cumpre notar que
frequentemente ocorrem mudanças semânticas nos verbos românicos em
relação aos do lat.. A tendência é conferir-lhes conteúdo significativo mais
concreto, já que a vida dos falantes do lat. vulg. estava voltada
preponderantemente aos fatos objetivos tangíveis. Alguns exemplos desse
caráter do lat. vulg.: discere, pouco transparente semanticamente, foi
substituído por apprehendere, “colher”, “pegar”, no lat. tardio “perceber”;
daí, “perceber com a mente”, “pegar com a mente” passou a “aprender”, em
que é clara a substituição de verbo abstrato por outro concreto. O rom. tem
în-va\a, do lat. invitiare, “acostumar-se a algo mau”, depois apenas
“acostumar-se”, sem conotação pejorativa, e daí “aprender”. Também
pacare, “pacificar”, “apaziguar”, passou a significar “pagar”, “quitar débito”,
em que não é difícil verificar a razão da restrição semântica. O mesmo se deu
com pensare, “raciocinar”, que passou a port. pesar, “medir o peso”, cast.,
cat. pesar, gasc. pesa, prov. pezar, fr. peser, eng. pser, log. pezare, it. pesare
; somente mais tarde, por influência do lat., recuperou a forma com /-n-/ em
quase todas as línguas e seu significado abstrato: port., cast., cat. pensar, gasc.
pensa, prov. pesar, fr. penser, eng. penser, friul. pensa, it. pensare, vegl.
pians (REW 6391).
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São herdadas também as formas românicas dos possessivos,
demonstrativos, numerais, de um número considerável de advérbios, das
preposições e conjunções, embora haja diversidade formal e semântica,
segundo as características de cada língua, fato perfeitamente compreensível.
Sob outro aspecto, observa-se ainda que, com bastante frequência,
palavras latinas, já pertencentes à base românica primitiva, são introduzidas
novamente sob forma erudita ou semierudita e com significado geralmente
diverso. Constituem as chamadas formas divergentes ou alotrópicas, que
convivem lado a lado e se caracterizam formalmente por menos
modificações, como em port. orelha e aurícula (< auriculam), bocal e bucal
(< buccalem), olho e óculo (< oculum), caldo e cálido (< calidum), cadeira e
cátedra (< cathedram), catar e captar (< captare), cheio e pleno (< plenum),
dedo e dígito (< digitum), chão e plano (< planum),eira e área (< aream),
foz e fauce (< faucem), logro e lucro (< lucrum), relha, regra e régoa (<
regulam), paço e palácio (< palatium), selo e sigilo (< sigilum), coalhar e
coagular (< coagulare), entrudo e introito (< introitum) entre muitos outros.
Há também pares de termo herdado e semierudito, como artelho e artigo (<
articulum); chaga e praga (< plaga); mancha e mágoa (< macula), chegar e
pregar (< plicare). No castelhano, tais pares são tão frequentes quanto no
português, pois os dois idiomas constituem uma unidade léxica com
relativamente poucas discrepâncias; por isso, apenas alguns exemplos:
augurar e agorar; cálido e caldo; canônico e canónigo, “cônego”
(semierudito); insânia e ensaña; pleno e lleno; límpido e limpio; logro e
lucro; rotundo e redondo. O mesmo se verifica no cat., no prov. e no rét.,
sobretudo no ocidental, ainda que por influência it. ou fr.. No fr., cujo léxico
apresenta as maiores alterações por causa, particularmente, do superstrato
franco, as formas divergentes nem sempre são reconhecíveis à primeira vista,
como em entier e intègre; frêle e fragile; hotel e hopital; loyal e legal; oreille
e auricule; peser e penser etc. O distanciamento das formas francesas
herdadas em relação ao latim torna-se patente, quando se comparam essas
palavras com as correspondentes abstratas; a partir sobretudo do séc. XIV,
quando esses termos abstratos se tornaram mais necessários, percebeu-se
quão opacos se haviam tornado os radicais latinos em relação aos derivados
modernos correspondentes, formados sobre as formas latinas: maturum > fr.

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ant. meür (mod. mûr) > meüreté; fr. mod. maturité (< maturitatem); calvum
> chauf > fr. ant. chauvece ou chaulveure ou chauveur, mod. calvitie (<
calvitiem); surdum > sourd, fr. ant. sourdece ou sourdoison, mod. surdité (<
surditatem); aqua > fr.ant. eve (mod. eau) > eveux, mod. aqueux (<
aquosum).
É muito clara, portanto, a importância do latim clássico, medieval e
eclesiástico para o enriquecimento do léxico românico, inicialmente bastante
pobre. Entretanto, não parece ter havido um romance popular puro, sem o uso
de grande número de termos de cultura, com feição mais ou menos latina, mas
que eram do conhecimento do povo. Segundo observou Henrique Maurer (A
Unidade da România Ocidental, p. 58), os empréstimos eruditos são os
mesmos por toda parte, inclusive os que são introduzidos através de línguas
germânicas em relações comerciais. Até na atualidade, o adstrato latino
permanente, como também o grego, continua a fornecer empréstimos, com os
quais se designam invenções, inovações, descobertas e todo tipo de objetos,
como a mais recente terminologia da informática. Notável é também a
equivalência semântica desses empréstimos eruditos em todas as línguas
românicas; nos casos de existência do mesmo termo de origem vulgar antiga,
este apresenta significado diferente na România medieval ou mesmo
posterior. Esse fato, porém, não impede que a palavra se espalhe em todas as
línguas do grupo, caracterizando sua firme unidade. Essa unidade verifica-se
também nos processos de derivação e composição léxicas, em que não raro
se empregam os mesmos prefixos e sufixos. Entretanto, não é possível
estabelecer leis para a evolução do léxico, como se fez em relação à da
fonética. O exame preciso mostra que cada palavra tem sua própria história e
mesmo sua biografia.
Do exposto torna-se evidente que o adstrato latino sempre foi e
continua sendo a grande fonte na qual vão buscar termos designativos para
novas realidades, objetos e situações não apenas as línguas românicas
propriamente ditas, mas também as que pertencem ao universo cultural do
Ocidente, sobretudo as germânicas e as eslavas. Diacronicamente,
distinguem-se três períodos para essa influência latina do adstrato:
a) Na Renascença carolíngia (séc. VIII-IX), o estudo de um latim mais
perfeito e a fundação de numerosas escolas aumentaram consideravelmente

12
os empréstimos latinos ao romance, o que se vai verificar também nos
primeiros textos românicos. A Renascença carolíngia foi o ponto de partida
de uma nova Europa; procurando reviver o prestígio do antigo Império
Romano, revitalizou também o latim, fato que teve efeitos previsíveis sobre
o léxico românico.
b) Nos últimos séculos da Idade Média (XIII-XV), a fundação das
universidades e, através delas, o consequente estudo mais profundo da
teologia, da filosofia, da história, do direito, das ciências, além do grande
número de traduções do latim para as línguas românicas, acabaram por
enriquecê-las com muitas formas latinas. Muitas delas foram introduzidas
primeiramente no francês ou no italiano, as duas línguas românicas de maior
prestígio literário e político, difundindo-se depois entre as outras românicas.
c) No Renascimento (séc. XV-XVI), todos quantos escreviam,
latinizavam, embora houvesse críticas contra os excessos e abusos de
empréstimos e de torneios latinos, que eram muito comuns. Contudo, as
formas eruditas então introduzidas deixaram influência menos duradoura do
que as do período medieval. O Renascimento foi um período de latinização
extremamente acentuada, de fixação de formas, mas também a época do
desenvolvimento da consciência nacional, à qual se deve a busca de certa
independência em relação ao latim. Percebe-se essa situação no que diz o rei
Dom Duarte (1391-1438), em Leal Conselheiro, cap. 99):
“Por que muytos que som leterados, nom sabetrelladar bem de
latym em lynguagem, pensey escreuer estes auysamentos para ello
necessários... O ssegundo que nom ponha pallauras latinadas, nen
doutra lynguagem, mas todo seja nosso lynguage scripto
achegadamente ao geeral boo costume de nosso falar que se poder
fazer.”
Um exame, mesmo rápido, dos escritos dos primórdios da literatura
romance mostra que Dom Duarte tinha motivos para essa observação. Por
outro lado, a pobreza do léxico herdado, relacionado com o cotidiano
concreto, obviamente não dispunha de termos adequados à expressão
artística, especulativa e técnica. Sendo que o latim era a língua utilizada no
aprendizado nas escolas e que a primeira tentativa de introduzir a língua

13
materna nesse mister ocorreu apenas no séc. XVII nas Petites Écoles de Port
Royal, compreende-se o grande volume de latinismos dessas primeiras obras
das nascentes línguas românicas. Tais latinismos sofriam algumas
modificações fonéticas conforme as tendências de cada língua, diferentes,
porém, daquelas dos termos herdados. Desse modo, na Ibéria são exemplos
de termos semieruditos: lat. capitulum > port. cabido, cast. cabildo (mas cat.
e prov. capitol); lat. modulum > port. e cast. molde; rotulum > cast. rolde;
titulum > tilde; no port. articulum > artigo; maculam > mágoa; populum >
povo; spatulam > espádua; tabulam > taboa. No fr., são exemplos de formas
mais recentes (orbatus) aboculus > aveugle, mas oculus > oeil; regula >
reille (cf. port. regula > régoa e regla > relha); tegulam > tuile (it. tegola,
port. telha). Incluem-se nesse rol as palavras em que a semivogal /-y-/ > /-
g-/ nos grupos /-by-/, /-dy-/ e /-ny-/: lineum > linge, rabies > rage, somnium
> songe; hordeum > orge, contrariamente às mutações herdadas, como em
habeam > aie; inodiare > enuir; vineam > vigne.
Os termos latinos eclesiásticos ou culturais, v.g., abbatissa, altare,
communio. doctus, lectio, legere, líber, littera, missa, sacramentum, scribere,
ratio estão diretamente ligados à tradição literária, embora apresentem
modificações fonéticas bastante regulares. Missa, por exemplo, conservou o
/-i-/ nas línguas da Ibéria, mas tem /-e-/ no fr. (messe) e no it. (messa). Devido
a seu isolamento em relação ao Ocidente, o romeno não dispõe desses termos.
Os textos medievais românicos apresentam grande quantidade de termos
emprestados do latim. Para o port., a tradução da Regra de São Bento, do séc.
XIV, é bem ilustrativa, sendo que uma parte, sem dúvida, era da língua
corrente e outra é do tradutor; vejam-se: austinençia, adoptivo, adulatores,
blandas, canônicas, color, congregaçõ, continuar, contrairas, créligo,
deliberação, diligencia, discórdias, duodécimo, enfirmydades, festivaaes,
hedificar, hydonios, humanydade, hymnos, inqueitados, invidia (jiuidia),
laude, obligado, officio, ordinar, oytavo, pecúlio, persecuções, perpetuo,
preceptos, prerogativa, prouximo, pugnar, qualidade, raço, refeiçom,
reverença, regla, silencio (por seenço), scupulosidade, signo, súbditos,
vicioso, vigílias, vindicta, vituperar, voto – entre muitos outros. Notem-se
formas refeitas, conforme o modelo latino, em silencio, ao lado de latinismos
puros. Esses latinismos puros tornam-se muito numerosos no Renascimento.
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Luis Vaz de Camões, o maior renascentista português, lançou mão de
latinismos até então não encontrados em textos escritos, tanto em Os Lusíadas
como nas Églogas, Canções, Odes, Elegias e Oitavas, dentre os quais
destacam-se: dea, divícias, “riqueza”, procela, tuba; devastar, fluctuar,
imolar, superar, vibrar, vociferar; argênteo, aurífero, belígero, canoro,
cornígero, diáfano, equóreo, etéreo, fatídico, flavo, fulgente, grandíloquo,
hirsuto, horríssono, imbele, intonso, lácteo, lúcido, malévolo, nítido, ovante,
plúmbeo, pressago, pudibundo, quadrupedante, rútilo, rúbido, salso,
sulfúreo, trêmulo, truculento, túmido. Um número considerável desses
termos é hoje de uso corrente, pelo menos na norma culta, enquanto outros
(v.g., cornígero, equóreo, flavo, imbele, quadrupedante) não tiveram a
mesma sorte.
Em relação ao castelhano, as Glosas Emilianenes e as Glosas Silenses,
consideradas seus mais antigos documentos, trazem muitos latinismos, ao lado
de claros sinais das tendências da língua falada. Os parâmetros ortográficos são
claramente latinos, já que o romance ainda era ágrafo; é preciso não esquecer
que a linguagem das pessoas cultas estava mais próxima do latim do que da do
povo, fato que recomenda cuidado para a correta interpretação dos dados.
Contudo, é clara a intenção dos autores das Glosas de escrever na língua do
povo, para tornar a comunicação compreensível. Alguns exemplos das Glosas
Emilianenes (séc. IX-X): pugna (4), partitiones (6), conjuro (56), fortitudine
(57), castiguemus (79; mas fr. chatier, já no séc. XII), ajutório e omnipotens
(89), penas (104), plus áspero (105), vivificarat (135; forma do futuro
românico sobre a base erudita vivificare), apostolo (137). E das Silenses (séc.
X): benedictione (15), debiles, aflitos (26), periuret (34), furtus ficieret (37),
denudavereit (39), relíquias (40), penitieret (44), consilio (46), ministrent
(49), occisiones (52), grandine (74), abortare (88), adversario (98; no fr.
adversaire já no séc. XII), culpaviles (108), uxoris (188), rogarent (196),
pascere (235), pacifiket (240), figurat (266), interrogat (267). Tais glosas
são traduções do latim para o romance e mostram que termos do latim
medieval, como adstrato permanente, haviam sido já incorporados pelas
línguas românicas em formação, suprindo carências léxicas ocasionais.
Da mesma forma, dos primórdios da literatura francesa, Vie de Saint
Léger, pequeno poema composto por volta do ano 1000 e conservado na

15
biblioteca de Clermont-Ferrand (manuscrito 240 (189), fol. 159-160), legou
muitos latinismos, e.c., (os números são dos versos): Domine Deu (1), sancs
e honor (2), devendo-se notar a grafia latinizante do /-c-/ e do /h-/, e ainda
que sanctus é termo eclesiástico e honor só ocidental (rom. cinste), torment
(12), (cf. cast. tormento sem a ditongação espontânea, portanto, erudito);
infans (18) por enfes > prov. efas; magistre (22); exultat (29), perfectus (33),
veritiet (34), sem a síncope da protônica, mas /-a-/ > /-e-/ > /-ie-/, mas mod.
vérité, humilitiet (336), gratia (36), observat, consentit (71), dominat (72),
inimix (73), pavor (75), cf. mod. peur; castier (104), (cf. mod. embora não
popular châtier), confortent (119), semper (130), hoje em desuso; devaster
(132), flamma (133), gladies (134), tiranz (152), perfides (153), afflicz (163),
condemnets (166), exaudis (170), do lat. ecles.; pensaez (170), mod. penses,
carnels (171), anima, consolament (174), consoler firmou-se no séc. XIII;
restaurat (181), exarserat, furor (193), causa (208), prediat (213), forma do
perfeito, mod. prêcher; lucrat (214), occidere (220), absols (226),
eclesiástico e jurídico. O documento é claramente latinizante, não fornecendo
indicações seguras das possíveis formas populares correspondentes; mas é
possível perceber as tendências fonéticas da língua.
A verificação feita nas línguas acima pode ser aplicada às outras
línguas românicas. Certamente, os empréstimos latinos, medievais e
posteriores, são mais numerosos nas línguas românicas de maior projeção no
Ocidente, mas encontrados em todas elas, sobretudo, o vocabulário latino
medieval, que se tornara panromânico. Até nos dialetos estão presentes,
principalmente se dispuserem de alguma literatura, como as composições
líricas do friulano. Mesmo no dalmático, a única língua românica morta, os
poucos documentos disponíveis apresentam empréstimos latinos através do
italiano e do francês: affuor (< it. affari < fr. affaire), balcaun (< it. balcone),
bandunure (< it. abbandonare), blank (< it. bianco), botaile (< it. bottiglia <
fr. bouteille), cumpanaja (< it. compagnia), cuntrabuand (< it.
contrabbando), além de formas facilmente reconhecíveis como eruditas:
defendar, frabicuar, onipotiant, purgatori, santificur.

Esse sucinto resumo dos principais fatos da história do léxico


românico demonstra a sólida base latina e sua capacidade de expressar

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qualquer sutileza e profundeza de pensamento, de arte, de investigação. E o
latim disponibilizou e continuará a disponibilizar seu tesouro léxico milenar
para suprir eventuais carências, constituindo-se numa fonte inexaurível até
para o efervescente século XXI, com sua globalização e sua incomum
apetência por novas terminologias.
Entretanto, caso seja necessário recorrer a outras fontes de
empréstimos, pode-se fazê-lo sem inconvenientes. A permeabilidade a
empréstimos de qualquer origem sempre foi uma característica do latim,
especialmente da variante vulgar, e das línguas românicas em geral. Os
mecanismos internos da língua adaptam a forma ao sistema fonológico
próprio, particularmente se provier de idioma não românico, e fixam apenas
os termos que a ele se adequarem. Os modismos são transitórios e raramente
deixam vestígios duradouros. Os romenos, levados pelas dificuldades
ocasionadas pelas flexões de suas declinações, readaptaram a terminologia
computacional de acordo com os parâmetros de sua língua; muitos internautas
colaboraram com sugestões. Substituíram os termos opacos ou inadaptáveis
por outros vernáculos, tornando-os compreensíveis por todos.
Como parte final, é interessante apresentar os resultados de um
trabalho, encontrado na internet no sítio http:// users. Belga com. net/
ethesis7/ influ_ ned/ influ_ ned_ in houd, sobre empréstimos do neerlandês
ao francês. Trata-se de uma tese de doutoramento de Marjolein van der Berg,
L’influence néerlandaise sur le vocabulaire français, em uma universidade
belga. Foram levantados 208 empréstimos holandeses ao francês, no período
de 1.100 a 2.000, aplicando-se os princípios estabelecidos por Michel Bréal.
Antes de detalhar os resultados, convém lembrar que o galo-romance,
abrangendo o francês e o provençal (ou occitano como se prefere atualmente),
destaca-se no contexto do léxico românico como grande fornecedor de
empréstimos, não apenas às línguas românicas, mas também a muitos idiomas
do mundo. Internamente, a unidade política facilitou influências mútuas entre
francês e provençal. Por isso, mutatis mutandis, nesse aspecto parece lícito
falar apenas em galo-romance. O francês, porém, manteve constante
relacionamento com vizinhos germânicos, advindo daí empréstimos, cujas
formas comprovam serem tardios, de que são exemplos o francês antigo
agrafe, “gancho”, “presilha”; bouter, “colocar”; bride, “rédeas”; danser,

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“dançar”; galopper, “galopar”; guimpe, “escapulário”; hanap, “grande taça”;
morne, “abatido”, “taciturno”; rider, “enrugar”, sale, “sujo”, trompe,
“tromba marinha”, entre outros. Encontram-se atualmente numerosos
estudos específicos e recentes no campo dos empréstimos léxicos, em boa
parte, reflexo da disputa com o inglês. O trabalho de Marjolein van der Berg
insere-se nesse contexto, mas é interessante também sob outros aspectos.
Segundo os resultados obtidos pela autora, o maior número de
empréstimos remonta aos sécs. XI-XII, mas atinge o pico nos séc. XVIII e
XIX. Desses 208, um total 164 (78,8%) são substantivos, 15,4%, verbos,
4,8%, adjetivos, uma interjeição (ploc) e um advérbio de lugar (vrac,
“desordem”, usado na locução en vrac, “a granel”), perto de 0,5%. São
analisados também os campos semânticos, denominados setores pela autora,
desses empréstimos, destacando-se os termos náuticos, com quase 70%, pois
os holandeses sempre foram grandes navegadores, seguindo-se os nomes de
profissões, de botânica, zoologia e termos comuns. Sendo alguns muito
antigos, permitem seguir-lhes a história com suas alterações semânticas.
Alguns exemplos, com a data da atestação: hol. boeye > fr. bouée (1375),
“bóia”; bolwerk, “baluarte” > fr. boulevard (1327), “obra de defesa”; séc.
XVIII > “rua larga com árvores, fazendo a volta à cidade sobre o lugar das
antigas fortificações”; brikke > brique (1175), “tijolo”; cabret > cabaret
(1275), “café”, no valão e no picardo, séc. XV-XVII, “lugar de reunião para
beber e jogar”, séc. XIX, “estabelecimento de apresentações satíricas, teatrais
e outras, onde se pode beber, comer, dançar” (> port. cabaré, cast., cat.
cabaret, sobres. cabaret, rom. cabaret); kringhelen, “fazer curvas”, >
degringoler (1677), “despencar em quedas sucessivas”; droog, “seco”, >
drogue (1690), “secado”, depois “produto farmacêutico”, “remédio
tradicional”, feito com ervas secas (1568), passando a significar um século
depois “algo ruim se ser absorvido” ou “alguém ou algo desprezível”, e no
séc. XX passou a designar as substâncias alucinógenas (1913), além de
manter o significado de “ingredientes, cada uma das matérias primas da
fabricação de remédios” ( > port., cast. cat. droga, sobres. droga, it. droga,
rom. drog) ; drol (séc. XIV), “traquinas”, > drôle, “folgado”, “debochado”
(séc. XVI) > “pessoa não confiável”, “desprezível” (1718); no séc. XVIII,
passou a significar “criança”; em 1635, é usado como adjetivo, “divertido”,

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“cômico”; daí o significado atual, “que provoca riso por sua originalidade,
singularidade”, “que é anormal ou espantoso”; manneken, “homem pequeno”,
> mannequin (1467), com a significação: séc. XVI, “figura de madeira ou de
cera”, “escultura”; a partir de 1614, “modelo numa vitrine”, além de outros ;
maken, “fazer”, > picardo maquier (1468), “fazer”, “fingir” na gíria; nos séc.
XVII e XVIII, significava “roubar” e também “trabalhar”; entre 1798 e 1849
voltou a significar “fazer”; no começo do séc. XIX, entre os jogadores de
baralho, “falsificar a aparência de algo para enganar”; na gíria teatral,
“caracterizar-se”, “produzir” (1840) e daí o sentido atual de “modificar ou
embelezar certos traços do rosto”, “desnaturar”, “falsear”( > port. maquiar e
maquilar, cast., cat. maquillar, rom. machia) ; mite, “espécie de moeda de
cobre” > mitraille (1375), “pedaço de metal”, > “fragmentos de metal com
que se carregavam os canhões” (1872), “descarga conjunta de artilharia”,
“grande quantidade de bombas ou tiros”. Esses exemplos demonstram como
age o adstrato, seguindo caminhos imprevisíveis, facilitados pela
flexibilidade dos conteúdos semânticos. Através do francês, muitos desses
empréstimos passaram às outras línguas românicas e não românicas; além dos
já apontados, fr. mitraille > port. metralha, cast., cat. metralla, sobres.
mitraglia, it. mitràglia, al. Mitrailleuse, ingl. mitrailleuse.
Esses 208 empréstimos holandeses ao fr., incorporados no decurso de
quase um milênio, representam apenas 0,3% do léxico básico fr., constituído,
segundo levantamentos recentes, por cerca de 60.000 palavras. O ponto de
partida do léxico fr., obviamente, é o lat., com 10.590 palavras (17%), o gr.
com 3.785 (6,3%), o ingl. com 2.451 (4%), o it. com 1153 (2%) e outros com
contribuições menores. Cf.. http:// users. Belga com.net/ ethesis7/influ_ned).
Tendo como ponto de partida um dicionário de uso, com cerca de 35.000
palavras, a enciclopédia Wikipedia estima em menos de 13% os empréstimos
estrangeiros no francês. Desses, 1054 são ingl., 707 it., 550 do ant. al.
(franco), 481 dos antigos falares galo-romanos, 215 árabes, 164 do alemão,
160 do antigo celta, 159 do castelhano, 153 do holandês (cf. supra os 208 de
inventário mais recente), 112 persas e sânscritas, 101 das línguas ameríndias,
80 de diversas línguas asiáticas, 56 de diversas línguas afro-asiáticas, 55 do
eslavo e do báltico, 144 de outras línguas. Por outro lado, convém lembrar
que o fr. é a língua oficial da França, Bélgica, Suíça, Canadá e 21 outros países

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e “largamente utilizada em determinado número de outros”. Uma parte das
nações que falam o fr. constitui a Organisation Internationale de la
Francophonie; conforme cálculos dessa Organização, o total dos falantes
“reais” ou “parciais”, isto é, como língua materna ou segunda língua, atingiu
183 milhões em 2005. (Cf. http:// fr.
Wikipedia.org./wiki/Langue_fran%C3%A7aise). Sendo falada nos cinco
continentes, em ambientes naturais, culturais e de diferentes visões do mundo,
é claro que haverá muito regionalismo, termos e expressões próprias para
designar algo específico – tudo isso dito à maneira francesa, enriquecendo o
tesouro léxico total. No sentido inverso, o fr. tem sido a fonte de empréstimos
léxicos para as línguas ocidentais, sobretudo para as línguas românicas, do
português ao romeno. Mesmo em relação ao ingl., pesquisas mais recentes
indicam que 29% do léxico do ingl. moderno são de origem fr.; o total, de
origem lat., passa dos 65%.
Por fim, perfeitamente inserido no contexto atual da globalização, o
it. assimila numerosos neologismos nos campos da ciência, dos meios de
comunicação, da tecnologia, do jornalismo etc. Várias instituições, v.g.,
Osservatorio Neologico della Lingua Italiana (ONLI), CNR, o Istituto per
il Lessico Intellettuale Europeo (ILIE), Unicoop Firenze, Annali Del Lessico
Attuale Italiano e até a Accademia de la Crusca elencam e estudam os
neologismos sob diversos aspectos. Mesmo levando em conta o caráter
efêmero de muitos, foram registrados mais de 5000 nos últimos anos, não
encontrados nos principais dicionários em circulação na Itália e alhures.

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