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Vitória da Conquista - Ba
2019
MEMÓRIA E ESQUECIMENTO NO PENSAMENTO DE FRIEDRICH
NIETZSCHE
RESUMO
Este artigo tem como finalidade precípua examinar, dentre as vertentes do pensamento
de Friedrich Nietzsche, conceitos relevantes para a compreensão da concepção de
memória na interpretação do autor. A idéia de esquecimento, contudo, assumirá papel
central na análise proposta, tendo em vista que esta concepção é elucidada na teoria
nietzschiana como indissociável ao estudo da memória. Do ponto de vista
metodológico, a abordagem se concentrará principalmente nas obras Genealogia da
moral e Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida: Segunda
consideração extemporânea.
1
Pós-Graduanda no Programa de Pós Graduação em Memória: Linguagem e sociedade, endereço
eletrônico rocha.cqueiroz@gmail.com
ABSTRACT
The main purpose of this article is to examine, from the perspective of Friedrich
Nietzsche, concepts relevant to the understanding of the conception of memory in the
author's interpretation. The idea of forgetting, however, will assume a central role in the
proposed analysis, since this conception is elucidated in the Nietzschean theory as
inseparable from the study of memory. From the methodological point of view, the
approach will focus mainly on the works Genealogy of morals and On the utility and
disadvantage of history for life: Second extemporaneous consideration.
2. DESENVOLVIMENTO
Isto fica claro a partir das discussões de Foucault, quando, em um estudo sobre o
pensamento nietzschiano, evidencia essa contestação de uma origem de produção dos
valores:
Ainda que sem estabelecer um marco temporal, o autor parte da idéia de que os
homens primitivos utilizavam-se de atos violentos para impor marcas aos outros com a
finalidade de que não praticassem determinadas ações, como um meio de proteger a
espécie. Tem-se a partir dessa ideia, que a formação da memória não aconteceu de
forma pacífica, mas sim, por meio de sacrifícios impostos aos homens para que se
tornassem confiáveis no meio social.
Mas ele não concebe tão somente a idéia de violência como mecanismo de
evolução da espécie, esta violência teve desdobramentos e finalidades diversas, que a
configuraram como meio de dominação. A violência, assim concebida como castigo,
vingança, intimidação, tinha para ele a finalidade de provocar no agente passivo
sentimentos de remorso ou culpa e tudo isso, a partir de um processo ativo da memória.
castigo doma o homem, mas não o torna ―melhor‖ – com maior razão
se afirmaria o contrário (NIETZSCHE, 1998, GM, II § 15, p. 72)
Nietzsche não aduz em sua obra uma transição gradual para esse modelo de
sociedade, mas uma ruptura abrupta que a partir da violência e coerção criou essa
percepção moral de má consciência, culpa, ressentimento e responsabilidade, concepção
que foi consolidada também a partir da difusão do Cristianismo, da idéia de pecado
como uma dívida que foi paga mediante o sacrifício do filho de Deus.
É contra esse excesso de Memória que ele se insurge, ao passo que concebe o
esquecimento como mecanismo fundamental à vida.
Em sua obra Segunda consideração Intempestiva – sobre a utilidade e os
inconvenientes da História para a vida, Nietzsche faz um contraponto entre a
experiência memoriosa do homem e a vida de esquecimento do animal. Nesse sentido, a
memória para ele é compreendida como um fardo, um meio de impor sofrimento e dor
ao homem, pois que o ato de lembrar o aprisiona a certos sentimentos, enquanto que o
animal, ao viver o momento presente, não tem essa percepção acerca da angústia, da
tristeza e do sofrimento.
(...) Mas ele se admira também consigo mesmo, pelo fato de não poder
aprender o esquecimento e de sempre ficar prisioneiro do passado: por
mais longe que vá, por mais rápido que ele corra, os seus grilhões vão
sempre com ele. É um verdadeiro milagre: o instante, aparecendo e
desaparecendo como um relâmpago, vindo do nada e retornando a ele,
volta no entanto como um fantasma a perturbar a paz de um instante
posterior. Uma após outra, as folhas se soltam do registro do tempo,
caem e volteiam, depois voltam repentinamente a se pôr no colo do
homem. Então, este diz: ―Eu me lembro‖, e tem inveja do animal que
logo esquece e realmente vê cada instante morrer, caído na noite e na
bruma, e desaparecer para sempre. O animal, de fato, vive de maneira
a-histórica (unhistorich): ele está inteiramente absorvido pelo
presente, tal como um número que se divide sem deixar resto; ele não
sabe dissimular, não oculta nada e se mostra a cada segundo tal como
é, por isso é necessariamente sincero. O homem, ao contrário, se
defende contra a carga sempre mais esmagadora do passado, que o
lança por terra ou o faz se curvar, que entrava a sua marcha como um
tenebroso e invisível fardo (NIETZSCHE, 2005, Co. Ext. II, 1,
p.70-71 ).
Esquecer não é uma simples vis inertiae [força inercial], como crêem
os superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais
rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós experimentado,
vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em nossa consciência,
no estado de digestão (ao qual podemos chamar ―assimilação.
O que não se pode ignorar das lições nietzschianas, contudo, é que ele não
desconsidera o fato de que este mesmo indivíduo, que tem no esquecimento uma força
salutar, é também um ser memorioso. Ao mesmo tempo em que concebe em sua obra a
existência de uma “doença histórica” que desencadeia ou é desencadeada pelo excesso
de memória, ele afirma expressamente na Segunda Consideração intempestiva que todo
ser humano e todo povo precisa de certo conhecimento do passado (Nietzsche, 2003,
P.95)
Ainda para Nietzsche, o homem em muitos casos lembra porque deseja lembrar,
como quando promete. Aqui, há não apenas um compromisso moral, mas também uma
vontade ativa, aquilo que ele denomina “memória da vontade” (Nietzsche, 1988, vol. 5,
p. 292). O cerne desta questão está centrado na ação que envolve o ato de lembrar, já
que essa vontade exige um exercício de reflexão e filtragem entre o que é trivial e o que
é imprescindível. Neste ponto há uma compreensão da complexidade da memória.
3. CONCLUSÃO
Desse processo de uma violência que era praticada entre os grupos, para uma
violência voltada sobre o indivíduo, na tentativa de coibir que seus instintos
espontâneos se voltassem contra a coletividade, o homem torna-se, de animal esquecido,
um ser memorioso. Cunha-se, a partir disso, o conceito de memória no pensamento do
autor.
Em um segundo momento foram trazidos apontamentos acerca da contraposição
entre memória e esquecimento, sobretudo, tomando como base duas das suas principais
obras: Genealogia da moral e Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a
vida: Segunda consideração extemporânea.
É preciso deixar claro, assim, que não é pretensão de Nietzsche dizer que todo
pensamento resultante do processo de consciência deva ser esquecido. Nietzsche
evidencia, ao contrário disso, que existem coisas que o homem precisa lembrar pois a
atuação da memória, agindo conjuntamente com o esquecimento, é criadora. A sua
crítica contudo, firma-se sobre um historicismo exacerbado que resulta num excesso de
memória e impõe ao homem sofrimento.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Sao Paulo: Companhia das Letras,
2002.