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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA

PROGRAMA DE PÓS - GRADUAÇÃO EM MEMÓRIA: LINGUAGEM E


SOCIEDADE

CRISTINA QUEIROZ DA ROCHA

MEMÓRIA E ESQUECIMENTO NO PENSAMENTO DE FRIEDRICH NIETZSCHE

Vitória da Conquista- Bahia


2019
CRISTINA QUEIROZ DA ROCHA

MEMÓRIA E ESQUECIMENTO NO PENSAMENTO DE FRIEDRICH NIETZSCHE

Artigo apresentado como requisito parcial para


avaliação da disciplina Introdução às Teorias
da Memória, pelo Programa de Pós Graduação
em Memória: Linguagem e Sociedade da
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Profa. Dra. Maria Salete de Souza Nery

Prof. Dr. Edson Silva de Farias

Vitória da Conquista - Ba
2019
MEMÓRIA E ESQUECIMENTO NO PENSAMENTO DE FRIEDRICH
NIETZSCHE

Cristina Queiroz da Rocha1

RESUMO

Este artigo tem como finalidade precípua examinar, dentre as vertentes do pensamento
de Friedrich Nietzsche, conceitos relevantes para a compreensão da concepção de
memória na interpretação do autor. A idéia de esquecimento, contudo, assumirá papel
central na análise proposta, tendo em vista que esta concepção é elucidada na teoria
nietzschiana como indissociável ao estudo da memória. Do ponto de vista
metodológico, a abordagem se concentrará principalmente nas obras Genealogia da
moral e Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida: Segunda
consideração extemporânea.

Palavras-chave: Nietzsche, Memória, Esquecimento

1
Pós-Graduanda no Programa de Pós Graduação em Memória: Linguagem e sociedade, endereço
eletrônico rocha.cqueiroz@gmail.com
ABSTRACT

The main purpose of this article is to examine, from the perspective of Friedrich
Nietzsche, concepts relevant to the understanding of the conception of memory in the
author's interpretation. The idea of forgetting, however, will assume a central role in the
proposed analysis, since this conception is elucidated in the Nietzschean theory as
inseparable from the study of memory. From the methodological point of view, the
approach will focus mainly on the works Genealogy of morals and On the utility and
disadvantage of history for life: Second extemporaneous consideration.

Keywords: Nietzsche, Memory, Forgetfulness


1. INTRODUÇÃO

A presente pesquisa busca apontar as contribuições do pensamento do filósofo


Alemão Friedrich Nietzsche para o estudo da formação da memória, a partir da
concepção antagônica evidenciada como ponto chave para este estudo, que é a idéia de
esquecimento.

Ainda que em plano secundário, outras questões percebidas como caras ao


estudo deste campo do saber também serão abordadas, tais como a idéia de
reminiscência e presentismo da memória, apresentadas como vertentes do pensamento
do autor.

A análise de tais proposições será viabilizada a partir de uma imersão em duas


obras de grande relevância à exposição da temática, quais sejam, Genealogia da moral e
Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida: Segunda consideração
extemporânea.

O trabalho em curso, portanto, se constitui em primeiro plano, a partir do


seguinte questionamento: De que forma podemos pensar a relação entre memória e
esquecimento por meio da teoria nietzschiana? À evidência destes conceitos esta
reflexão se mostra relevante, pois que, existem vinculações e tensões profundas no
pensamento de Nietzsche que demandam uma exploração mais detida.

É importante mencionar, contudo, que a concepção de esquecimento na obra de


Nietzsche não corresponde tão somente ao ato de não lembrar, ao revés, é
compreendido como uma necessidade humana, uma espécie de dispositivo complexo
que tem a função de apagar registros, possibilitando a assimilação de novas
experiências. Na perspectiva do autor, o esquecimento é como um meio de libertação
em relação ao passado, enquanto que a memória exerce função diametralmente oposta.

Diante disso, em uma abordagem mais específica, importa suscitar alguns


questionamentos que contribuirão para a assimilação do conteúdo teórico pesquisado.
Como a memória é acionada? É possível esquecer aquilo que se deseja esquecer? É
possível lembrar aquilo que se deseja lembrar? O indivíduo lembra quando quer ou
porque deseja?
Tais reflexões são bastante profundas porque impõem a compreensão de que no
projeto de Nietzsche, não é um sujeito que está no comando do processo mnemônico,
mas um corpo vivo que está em um ambiente afetando e sendo afetado. Significa dizer
ainda que, para o autor, não é concebível pensar a razão dissociada do corpo e o corpo
aqui, destaque-se, é em última instância, uma apresentação, uma imagem, uma
linguagem.

Este aspecto em particular, é abordado na obra do filósofo alemão de forma


bastante crítica, posto que, na sua percepção, o homem é apenas um resíduo judaico-
cristão da vida em sociedade e está sujeito à modelagem da consciência moral. Em uma
abordagem genealógica, implica dizer que a memória não é exposta como faculdade
inata ao homem, mas como uma combinação de fatores que o impuseram o dever de
lembrar.

Em síntese, é possível afirmar, diante destas considerações que, o pensamento


nietzschiano não desqualifica o sentido de memória para trazer à tona a concepção de
esquecimento, ao contrário disso, concebe a possibilidade de uma convivência
harmônica. O foco do artigo, portanto, é evidenciar a importância da concepção de
esquecimento em Nietzsche para compreensão da memória e, além disso, demonstrar, a
partir da obra, como uma interação harmônica entre memória e esquecimento pode
viabilizar novos processos criativos.

2. DESENVOLVIMENTO

2.1 A GENEALOGIA DA MEMÓRIA

A compreensão da memória na gênese do pensamento nietzschiano perpassa


pela idéia de uma modelagem histórica do homem, pela moral, que o enfraquece e o
coloca em uma condição de sujeição às normas instauradas e justificadas pela tradição,
sobretudo a partir da concepção de culpa, consciência e outros conceitos afins.

A memória, deste modo, apresenta-se na visão nietzschiana como instrumento


de modelagem cultural do homem, que comparado a um animal, abandonou o
primitivismo de seus atos, para se submeter ao rebanho. É interessante mencionar a
importância da compreensão dos preceitos de Nietzsche a partir de um contexto social
em que os indivíduos estão inter relacionados e assim, se sujeitam uns aos outros ou são
colocados em uma situação de dominação. A concepção de memória para Nietzsche,
portanto, é extraída de um contexto coletivo, é uma memória social. Essa perspectiva é
desenvolvida, sobretudo, na obra Genealogia da Moral (2009), quando o autor busca
compreender o regime de valoração da moralidade vigente e desenvolve, a partir disso
uma ideia de genealogia da memória.

Na obra Genealogia da Moral, ele busca analisar de forma sistemática os valores


morais desenvolvidos no decorrer da história pelos indivíduos lançando sua crítica sobre
a pretensão de buscar no passado, conceitos fixos para responder os impasses do
presente, quando na verdade se deveria buscar a origem desses valores para situá-los
nessa dimensão histórico-temporal. Não é pretensão de Nietzsche, contudo, desvendar a
origem da moral, mas sim documentar, conectar, contrapor pontos relevantes acerca
dessa concepção de moralidade a partir de uma irrupção histórica.

Isto fica claro a partir das discussões de Foucault, quando, em um estudo sobre o
pensamento nietzschiano, evidencia essa contestação de uma origem de produção dos
valores:

Fazer a genealogia dos valores, da moral, do ascetismo, do


conhecimento não será, portanto, partir em busca de sua origem,
negligenciando como inacessíveis todos os episódios da história: será,
ao contrário, se demorar nas meticulosidades e nos acasos dos
começos (...) O genealogista precisa da história para conjurar a
quimera da origem (FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder,
1989, p. 19.)

A crítica Nietzschiana confronta a idéia de moral como algo inerente à natureza


humana. Para ele, todas os estudos que se centravam sobre os valores morais, tinham
tão somente o condão de justificar a concepção já posta, sem entretanto, questionar o
conceito dessa moralidade em uma perspectiva histórica.

É justamente a partir da compreensão desta crítica nietzschiana e da concepção


de genealogia da moral que o estudo sobre a memória se torna viável em Nietzsche. Os
valores morais são o substrato para entender o porquê do homem ter tido a necessidade
de cultivar memórias.
2.2 O SURGIMENTO DA MEMÓRIA

Na Segunda Dissertação da Genealogia da Moral, o autor elucida a forma como


a memória foi se formando, sobretudo, no âmbito das obrigações legais e de seus
desdobramentos práticos que impuseram ao homem o dever de conviver sobre as regras
impostas pelo seu meio social.

A memória, portanto, na visão de Nietzsche, está umbilicalmente ligada aos


padrões sociais e morais, às promessas e até mesmo à violência. Em sua visão, esse
indivíduo enquanto animal previsível, é condicionado pelos meios repressivos a
respeitar os ditames dos grupos a que pertence para ser aceito.

Ainda que sem estabelecer um marco temporal, o autor parte da idéia de que os
homens primitivos utilizavam-se de atos violentos para impor marcas aos outros com a
finalidade de que não praticassem determinadas ações, como um meio de proteger a
espécie. Tem-se a partir dessa ideia, que a formação da memória não aconteceu de
forma pacífica, mas sim, por meio de sacrifícios impostos aos homens para que se
tornassem confiáveis no meio social.

Cabe elucidar que Nietzsche não teve a pretensão de desvendar o momento de


surgimento da memória, mas com sua teoria crítica, buscou analisar as características e
modo desse surgimento. Para ele, esse indivíduo memorioso e previsível aprendeu, a
partir das suas vivências, a tornar-se confiável, depois de um processo de violenta
domesticação. Como elucida, em uma passagem da obra Além do Bem e do Mal:
“grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessar de causar
dor fica na memória.” (NIETZSCHE, 2002, p.50)

Nietzsche, assim comporta a idéia de inúmeros tipos de castigos.

Castigo como neutralização, como impedimento de novos danos.


Castigo como pagamento de um dano ao prejudicado, sob qualquer
forma (também na de compensação afetiva). Castigo como isolamento
de uma perturbação do equilíbrio, para impedir o alastramento da
perturbação. Castigo como inspiração de temor àqueles que
determinam e executam o castigo. Castigo como espécie de
compensação pelas vantagens que o criminoso até então desfrutou
(por exemplo, fazendo-o trabalhar como escravo nas minas. Castigo
como segregação de um elemento que degenera (por vezes de todo um
ramo de família, como prescreve o direito chinês: como meio de
preservação da pureza da raça ou de consolidação de um tipo social.
Castigo como festa, ou seja, como ultraje e escárnio de um inimigo
finalmente vencido. Castigo como criação de memória, seja para
aquele que sofre o castigo – a chamada “correção” –, seja para aqueles
que o testemunham. Castigo como pagamento de um honorário,
exigido pelo poder que protege o malfeitor dos excessos da vingança.
Castigo como compromisso com o estado natural da vingança, quando
este é ainda mantido e reivindicado como privilégio por linhagens
poderosas. Castigo como declaração e ato de guerra contra um
inimigo da paz, da ordem, da autoridade, que, sendo perigoso para a
comunidade, como violador dos seus pressupostos, como rebelde,
traidor e violentador da paz, é combatido com os meios que a guerra
fornece (NIETZSCHE, 1998, GM, II § 13, p. 69)

Mas ele não concebe tão somente a idéia de violência como mecanismo de
evolução da espécie, esta violência teve desdobramentos e finalidades diversas, que a
configuraram como meio de dominação. A violência, assim concebida como castigo,
vingança, intimidação, tinha para ele a finalidade de provocar no agente passivo
sentimentos de remorso ou culpa e tudo isso, a partir de um processo ativo da memória.

[...] inquestionavelmente se deve buscar o genuíno efeito do castigo,


antes de tudo, numa intensificação da prudência, num alargamento da
memória, numa vontade de passar a agir de maneira mais cauta,
desconfiada e sigilosa, na percepção de ser demasiado fraco para
muitas coisas, numa melhoria da faculdade de julgar a si próprio. O
que em geral se consegue com o castigo, em homens e animais, é o
acréscimo do medo, a intensificação da prudência, o controle dos
desejos: assim o

castigo doma o homem, mas não o torna ―melhor‖ – com maior razão
se afirmaria o contrário (NIETZSCHE, 1998, GM, II § 15, p. 72)

O distendimento da memória resultante da violência é interpretado por Nietzsche


como um mecanismo utilizado para impor ao homem limites e adequação às normas da
sociedade, o que impõe dizer que a memória em Nietzsche está imbricada ao próprio
processo civilizatório.

Esse processo civilizatório desaguou também na constituição de uma má


consciência. O processo de adaptação do ser humano às normas instituídas no seio da
sociedade implicou em ações mais conscientes e menos impulsivas e instintivas. Essa
nova condição existencial impôs ao homem uma nova forma de pensar, a capacidade de
mensurar as conseqüências de suas ações, ou seja, uma capacidade de auto-reflexão.

Nietzsche não aduz em sua obra uma transição gradual para esse modelo de
sociedade, mas uma ruptura abrupta que a partir da violência e coerção criou essa
percepção moral de má consciência, culpa, ressentimento e responsabilidade, concepção
que foi consolidada também a partir da difusão do Cristianismo, da idéia de pecado
como uma dívida que foi paga mediante o sacrifício do filho de Deus.

Assim, o processo civilizatório impôs ao homem padrões morais e espirituais


que o permitiram se adequar às normas impostas na sociedade por intermédio de uma
modelagem cultural. Na percepção de Nietzsche, contudo, a grande problemática
decorrente dessa modelagem, reside numa limitação das capacidades humanas, já que
ao se moldar aos padrões pré-concebidos no seio social, o homem fica coagido pelos
costumes e tradições, tornando-se limitado, previsível e influenciável.

A partir dessa leitura, percebe-se, portanto, que a Memória em Nietzsche


funciona como uma ferramenta de apaziguamento das tensões e conflitos sociais, mas
também de imposição de valores, padronização de comportamentos e em última
instância, de limitação do homem.

2.3. MEMÓRIA E ESQUECIMENTO

Para além da crítica Nietzschiana à citada modelagem cultural imposta pelos


padrões morais a saber, pela forma como esse fenômeno limita os processos criativos
humanos, interessa mencionar apontamentos do autor acerca do excesso de memória,
que segundo ele, resulta no mesmo problema, a anulação da ação humana.

É contra esse excesso de Memória que ele se insurge, ao passo que concebe o
esquecimento como mecanismo fundamental à vida.
Em sua obra Segunda consideração Intempestiva – sobre a utilidade e os
inconvenientes da História para a vida, Nietzsche faz um contraponto entre a
experiência memoriosa do homem e a vida de esquecimento do animal. Nesse sentido, a
memória para ele é compreendida como um fardo, um meio de impor sofrimento e dor
ao homem, pois que o ato de lembrar o aprisiona a certos sentimentos, enquanto que o
animal, ao viver o momento presente, não tem essa percepção acerca da angústia, da
tristeza e do sofrimento.

Essa idéia de memória enquanto aprisionamento fica clara no ensaio citado:

(...) Mas ele se admira também consigo mesmo, pelo fato de não poder
aprender o esquecimento e de sempre ficar prisioneiro do passado: por
mais longe que vá, por mais rápido que ele corra, os seus grilhões vão
sempre com ele. É um verdadeiro milagre: o instante, aparecendo e
desaparecendo como um relâmpago, vindo do nada e retornando a ele,
volta no entanto como um fantasma a perturbar a paz de um instante
posterior. Uma após outra, as folhas se soltam do registro do tempo,
caem e volteiam, depois voltam repentinamente a se pôr no colo do
homem. Então, este diz: ―Eu me lembro‖, e tem inveja do animal que
logo esquece e realmente vê cada instante morrer, caído na noite e na
bruma, e desaparecer para sempre. O animal, de fato, vive de maneira
a-histórica (unhistorich): ele está inteiramente absorvido pelo
presente, tal como um número que se divide sem deixar resto; ele não
sabe dissimular, não oculta nada e se mostra a cada segundo tal como
é, por isso é necessariamente sincero. O homem, ao contrário, se
defende contra a carga sempre mais esmagadora do passado, que o
lança por terra ou o faz se curvar, que entrava a sua marcha como um
tenebroso e invisível fardo (NIETZSCHE, 2005, Co. Ext. II, 1,
p.70-71 ).

Assim, para Nietzsche, o esquecimento é uma força propulsora para a criação,


ou mais precisamente, uma força inibidora ativa indispensável ao desenvolvimento da
humanidade, ou ainda, nas palavras do autor, uma força plástica que possibilita ao
homem a digestão de suas próprias experiências.

Esquecer não é uma simples vis inertiae [força inercial], como crêem
os superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais
rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós experimentado,
vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em nossa consciência,
no estado de digestão (ao qual podemos chamar ―assimilação.

Ainda na concepção de Nietzsche, sem esquecimento não poderia haver nem


felicidade, nem serenidade, nem esperança, nem altivez, nem presente. Para que o
indivíduo possa viver feliz, é necessário que esqueça (Nietzsche, 1988, vol. 5, p. 292).

O esquecimento, portanto, é um mecanismo utilizado para assegurar a força


criadora da mente e um meio de eliminar as marcas ocasionadas pelo excesso de
memória, sobretudo, decorrente da má consciência, ressentimento, culpa e medo,
consubstanciando-se, assim, também em um equipamento de descanso. A importância
do esquecimento dá-se, desta forma, em razão de um esvaziamento da mente que
viabiliza a realização de novos processos criativos e impossibilita o estabelecimento
continuo das experiências diárias.

O que não se pode ignorar das lições nietzschianas, contudo, é que ele não
desconsidera o fato de que este mesmo indivíduo, que tem no esquecimento uma força
salutar, é também um ser memorioso. Ao mesmo tempo em que concebe em sua obra a
existência de uma “doença histórica” que desencadeia ou é desencadeada pelo excesso
de memória, ele afirma expressamente na Segunda Consideração intempestiva que todo
ser humano e todo povo precisa de certo conhecimento do passado (Nietzsche, 2003,
P.95)

Ainda para Nietzsche, o homem em muitos casos lembra porque deseja lembrar,
como quando promete. Aqui, há não apenas um compromisso moral, mas também uma
vontade ativa, aquilo que ele denomina “memória da vontade” (Nietzsche, 1988, vol. 5,
p. 292). O cerne desta questão está centrado na ação que envolve o ato de lembrar, já
que essa vontade exige um exercício de reflexão e filtragem entre o que é trivial e o que
é imprescindível. Neste ponto há uma compreensão da complexidade da memória.

Diante do que se extrai da Segunda Dissertação da Genealogia da Moral, a


promessa revela-se como uma garantia de uma ação futura, determinada pela ação da
memória no presente. A memória, por sua vez, é um elemento de contraposição ao
esquecimento. Impõe dizer que o não funcionamento da força ativa do esquecimento
desencadeia, de forma reativa, o excesso de memória e consequentemente, um animal
homem doente.

Ainda, importante mencionar que, para Nietzsche, a capacidade do homem de


fazer promessas e recordar-se, para cumpri-las o coloca em uma condição de
superioridade e o diferencia do animal não humano, pois somente um ser livre pode
responder por si diante das adversidades.

Consoante se pode inferir, não apenas a questão da má consciência e da moral


estão intrinsecamente ligadas no pensamento de Friedrich Nietzsche, de igual forma,
memória e esquecimento aparecem em sua obra como indissociáveis.

3. CONCLUSÃO

O objetivo perseguido com o presente trabalho foi de trazer uma teorização


acerca da memória, a partir do pensamento de Friedrich Nietzsche. Para tanto, foram
destacados alguns conceitos abordados pelo autor, sem os quais o presente estudo não
se concretizaria. Em primeiro lugar, foi empreendida a tentativa de uma digressão
histórica acerca das primeiras noções de memória a partir de Nietzsche e como essa
concepção de memória está imbricada à genealogia de uma moral vigente, ou mais
detidamente, como, na percepção do autor a violência, culpa, sofrimento e dor
impuseram a formação dos processos mnemônicos.

Esta primeira análise surge da constatação de que em todo o processo


civilizatório, os instintos humanos foram tolhidos e reprimidos por normas sociais que
buscavam impor um processo forçado de adaptação. Na análise de Nietzsche, esse
processo não se desenvolveu de forma pacífica, mas a partir de meios coercitivos que
associados à tradição judaico cristã em efervescência cunharam uma concepção de má-
consciência.

Desse processo de uma violência que era praticada entre os grupos, para uma
violência voltada sobre o indivíduo, na tentativa de coibir que seus instintos
espontâneos se voltassem contra a coletividade, o homem torna-se, de animal esquecido,
um ser memorioso. Cunha-se, a partir disso, o conceito de memória no pensamento do
autor.
Em um segundo momento foram trazidos apontamentos acerca da contraposição
entre memória e esquecimento, sobretudo, tomando como base duas das suas principais
obras: Genealogia da moral e Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a
vida: Segunda consideração extemporânea.

A concepção de esquecimento mostrou-se indissociável da concepção de


memória em Nietzsche, posto que, para o autor o esquecimento assume papel salutar no
desenvolvimento da sociedade e consubstancia-se no único meio do homem alcançar a
felicidade. Em sua visão, sem o poder do esquecimento, o homem esgota as suas forças
vitais e todo a sua capacidade criativa.

Mas ele não relega à memória um papel de dispensabilidade. Para Nietzsche, o


que diferencia o homem do animal e o torna superior, é a sua capacidade de lembrar, de
prometer e de se recordar das promessas. Ao que se evidencia, portanto, a ação de
delimitar aquilo que deve ser lembrado e o que pode ser esquecido, é a principal
habilidade desenvolvida pelo indivíduo.

É preciso deixar claro, assim, que não é pretensão de Nietzsche dizer que todo
pensamento resultante do processo de consciência deva ser esquecido. Nietzsche
evidencia, ao contrário disso, que existem coisas que o homem precisa lembrar pois a
atuação da memória, agindo conjuntamente com o esquecimento, é criadora. A sua
crítica contudo, firma-se sobre um historicismo exacerbado que resulta num excesso de
memória e impõe ao homem sofrimento.

A ação do esquecimento, portanto, ao atuar consoante com a memória,


impulsiona o homem para um processo criativo que o possibilita imprimir no mundo
suas particularidades.
REFERÊNCIAS

NIETZSCHE, Friedrich. A vontade de poder. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.

DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo:


Companhia das Letras, 1998.

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Sao Paulo: Companhia das Letras,
2002.

NIETZSCHE, Friedrich. Segunda consideração intempestiva: Da utilidade e


desvantagem da história para a vida. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2003.

FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Microfísica do poder.


Graal: Rio de Janeiro, 1989

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