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Teoria literária I – Professor Maurício

Mircea Eliade, Mito e realidade (trecho)

“(…) Devemos, não obstante, deter-nos um momento sobre a situação e o papel da literatura, sobretu-
do da literatura épica, que não deixa de estar relacionada com a mitologia e os comportamentos míticos.
Sabe-se que, assim como outros gêneros literários, a narrativa épica e o romance prolongam, em outro plano
e com outros fins, a narrativa mitológica. Em ambos os casos; trata- se de contar uma história significativa,
de relatar uma série de eventos dramáticos ocorridos num passado mais ou menos fabuloso. É inútil recordar
o processo longo e complexo que transformou uma 'matéria mitológica' em um 'objeto' de narração épica. O
que deve ser salientado é que a prosa narrativa, especialmente o romance, tomou, nas sociedades modernas,
o lugar ocupado pela recitação dos mitos e dos contos nas sociedades tradicionais e populares. Melhor ainda,
é possível dissecar a estrutura 'mítica' de certos romances modernos, demonstrar a sobrevivência literária dos
grandes temas e dos personagens mitológicos. (Isso se verifica sobretudo em relação ao tema iniciatório, o
tema das provas do Herói-Redentor e seus combates contra os monstros, as mitologias da Mulher e da Rique-
za). Por esse prisma, pode-se dizer, portanto, que a paixão moderna pelos romances trai o desejo de ouvir o
maior número possível de "histórias mitológicas" dessacralizadas ou simplesmente camufladas sob formas
'profanas'.
Outro fato significativo: a necessidade de Ter 'histórias' e narrativas que se poderiam chamar de para -
digmáticas, pois elas se desenrolam de acordo com um modelo tradicional. Seja qual for a gravidade da atual
crise do romance, a necessidade de se introduzir em universos 'desconhecidos' e de acompanhar as peripécias
de uma 'história' parece ser ,consubstancial à condição humana e, por conseguinte, irredutível. É uma exigên-
cia difícil de definir; sendo ao mesmo tempo o desejo de comunicar com os 'outros', os 'desconhecidos', de
compartilhar de seus dramas e de suas esperanças, e a necessidade de saber o que pode ter acontecido. É difí -
cil conceber um ser humano que não se sinta fascinado pela 'recitação', isto é, pela narração dos eventos sig -
nificativos, pelo que aconteceu a homens dotados da 'dupla realidade' dos personagens literários (que refle-
tem a realidade histórica e psicológica dos membros de uma sociedade moderna, dispondo, ao mesmo tempo,
do poder mágico de uma criação imaginária).
Mas a 'saída do Tempo' produzida pela leitura — particularmente pela leitura dos romances — é o que
mais aproxima a função da literatura da das mitologias. O tempo que se 'vive' ao ler um romance não é, evi -
dentemente, o tempo que o membro de uma sociedade tradicional reintegra, ao escutar um mito. Em ambos
os casos, porém, há a 'saída' do tempo histórico e pessoal, e o mergulho num tempo fabuloso, trans-histórico.
O leitor é confrontado com um tempo estranho, imaginário, cujos ritmos variam indefinidamente, pois cada
narrativa tem o seu próprio tempo, específico e exclusivo. O romance não tem acesso ao tempo primordial
dos mitos; mas, na medida em que conta uma história verossímil, o romancista utiliza um tempo aparente-
mente histórico e, não obstante, condensado ou dilatado, um tempo que dispõe, portanto, de todas as liberda-
des dos mundos imaginários.
De modo ainda mais intenso que nas outras artes, sentimos na literatura uma revolta contra o tempo
histórico, o desejo de atingir outros ritmos temporais além daquele em que somos obrigados a viver e a traba-
lhar. Perguntamo-nos se esse anseio de transcender o nosso próprio tempo, pessoal e histórico, e de mergu-
lhar num tempo 'estranho', seja ele extático ou imaginário, será jamais extirpado. Enquanto subsistir esse an -
seio, pode-se dizer que o homem moderno ainda conserva pelo menos alguns resíduos de um 'comportamen-
to mitológico'. Os traços de tal comportamento mitológico revelam-se igualmente no desejo de reencontrar a
intensidade com que se viveu, ou conheceu, uma coisa pela primeira vez; de recuperar o passado longínquo,
a época beatífica do 'princípio'.
Como era de esperar, é sempre a mesma luta contra o Tempo, a mesma esperança de se libertar do
peso do 'Tempo morto', do Tempo que destrói e que mata.”

(ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Trad. Pola Civelli. São Paulo: Perspectiva, 2016. pp. 163-5)

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