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A CULPA É DO MEDO

Você só deve dizer a verdade. Sempre a verdade. Não deve mentir. Nunca. Quem de nós não
escutou coisas similares? Dos pais, tios, professores? Destes mesmos educadores, não ouvimos
também inúmeros exemplos de coragem de personagens históricos? A verdade. A coragem.
Dupla inseparável, irmãs siamesas. Na vida como ela é, porém, mentira e covardia são mato.
Criamos em nosso grupo de comunicação o programa A Voz das Ruas, para permitir ao cidadão
sem vez nem voz a livre expressão. Câmera, microfone e um banquinho à disposição de quem
desejasse dar seu recado. Um sistema simples, direto. Testemunhamos o medo. As pessoas se
aproximavam com seu rosário de queixas, mas não se dispunham a rezingar suas queixas
publicamente. Na hora de abrir o peito, o pau da crítica que bate no Chico íntimo emudece diante
do Francisco que a repercute. As pessoas chegavam diante de nossa equipe com a caixa de
ferramentas aberta, mas recuavam por conta de favores que pediriam a uns e outros que
desejariam criticar. A maioria simplesmente temia abrir a boca, como nos regimes de exceção.
Lembro de algumas narrativas de meu pai que atestavam a valentia de homens que conhecera.
Um deles, chamado Generoso, o acompanhava pelas bandas de Sarandi, onde começou sua
vida como funcionário do Estado. Minha mãe contava que naquele tempo as calçadas de
Sarandi eram de madeira e os fiscais andavam armados, devido aos riscos que corriam quando
perseguiam as pegadas dos sonegadores. Numa destas andanças bateram com os costados
num Secos e Molhados. O estabelecimento comercial vendia de tudo e sonegava com afinco. A
dona os atendeu e lhes entregou parte da escrita fiscal. Enquanto começavam a olhar os livros,
o cunhado da proprietária, escorado no balcão, mostrava-se agitado, sestroso, levando a mão
com estudada inquietude ao coldre. Tentava intimidar a dupla que fiscalizava o estabelecimento.
Meu pai, verde ainda, fez de conta que não via. Lá pelas tantas Seu Generoso, já impaciente,
deu a resposta à provocação: “Ô Dona Maria, por favor avise seu cunhado que eu urino no cano
deste revólver que ele tem na cintura. E depois ainda dou uma tuzina de pau nele”.
Para surpresa de meu pai, que chegou a imaginar o pior, o sujeito ergueu-se, girou sobre si
mesmo e abandonou o salão. Suas ameaças eram só de fachada. A coragem de Seu Generoso,
porém, não era de fancaria. Era de fato um valente, como foram Gumercindo Saraiva e Honório
Lemes. Os tempos mudaram. Poucos andam armados e combates como o da Ponte do
Ibirapuitã ficaram na poeira. Que bom, afinal a mortandade das revoluções, a despeito dos
registros da história que as engrandecem e aumentam os feitos, são em verdade máculas que
produziram degolas, lagos de sangue e ossos macerados. Os textos que celebram alguns de
nossos heróis da aldeia omitem muita crueldade que na verdade deveria nos envergonhar.
O encômio de feitos militares não é problema apenas de nossa cultura, senão uma praga
universal. A história é escrita com a pena dos vencedores e o sangue de muitos inocentes. Não
creio que Deus, ainda que compassivo, veja esta turma com olhos de peneira que tapem suas
iniquidades. Se um dia o mundo marchar resoluto para a paz, um dos pilares da mudança será
certamente o fim do elogio dos brutos e conquistadores. Quanto à valentia, uma pergunta se
ergue: teriam todos, afora os psicopatas de ontem e de hoje - que empunham armas e atiram
com a mesma naturalidade com que nós seguramos uma vassoura,- de fato tanta valentia? A
experiência mostra que não. No Vietnã a droga correu solta, porque excetuados os doidos e
suicidas não é das naturezas saudáveis expor-se à morte com platitude zen.
Também entre nós, dentre os que participaram das refregas em terras paraguaias, da campanha
de Canudos ou da revolução de 1923, reza a lenda que era comum a ingestão de pólvora com
cachaça para aumentar a coragem. Em “Prelúdio da Cachaça” Luís Cascudo verseja sobre o
tema. Como esta pólvora entrava em combustão? Com a faísca da pregação inflamada. Se até
os homens do passado, que reverenciamos como insuperáveis, recorriam a artifícios que lhes
restituía o movimento livre às pernas paralisadas pelo medo, por que não admitir que nossa
gente precisa hoje de um reforço, de um doping social, para que enfim conquiste a cidadania?
Verdade e coragem são irmãs siamesas, com um só coração. Tentar separá-las é condenar uma
delas à morte e a outra à solidão estéril. Como diz o refrão, “O medo é natural a toda gente.
Dominá-lo é ser valente”. Filhos de uma sociedade escravocrata, nos falta muitas vezes a
coragem, sem a qual não expurgaremos nem o autoritarismo que nos oprime nem a demagogia
que nos enoja. Se chegamos onde chegamos, foi por conta de muita omissão. E muita covardia.

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