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FOTOGRAFIAS, DOCUMENTÁRIO E MEMÓRIA COLETIVA PARA

FORMAÇÃO, RESGATE E HISTÓRIA DA OCUPAÇÃO ESTUDANTIL


DA ETESC (Escola Técnica de Santa Cruz)

Caio Ferreira de Araujo, Lucas Barbosa Oliveira Souza,


Orientador: Julio Cesar Roitberg
Coorientadora: Luciane de Paiva Moura Coutinho

Escola Técnica Estadual Santa Cruz


Largo do Bodegão, 46 - Santa Cruz, Rio de Janeiro - RJ
projetosetesc@gmail.com

Resumo

O presente trabalho, selecionando fotografias e produzindo documentário, dá continuidade à


construção de memórias para a comunidade escolar da Escola Técnica Estadual Santa Cruz
(ETESC), como lembranças, formação, reflexão e práticas, apresenta, descreve e define o
planejamento para a elaboração de vídeo da ocupação daquela unidade escolar. Descreve,
também, as etapas do processo de seleção das fotografias para o Centro de Memória ETESC,
assim como a metodologia desenvolvida pela equipe. A ETESC localizada na zona oeste do
Rio de Janeiro, atende, durante todo o dia, aproximadamente 1.500 jovens, na modalidade do
ensino médio técnico integrado. Apresenta a potencialidade do audiovisual, em especial, das
fotografias e dos minidocumentários com a finalidade de preservar diversos aspectos humanos,
urbanos, culturais e artísticos, estimulando a crítica e a reflexão, (COUTINHO, 1997), através
de um mergulho na experiência de ocupação secundarista dos e das estudantes durante o
primeiro semestre de 2016. Evidencia o uso das filmagens e de fotografias reconstruindo,
através dos relatos dos atores e personagens da ocupação da ETESC como lembranças vivas.
Propõe, nesta etapa, a utilização do audiovisual como dispositivo para outras modalidades do
currículo praticado, assim como possibilidades de práticas emancipatórios junto às relocações
de metodológicas para a autonomia estudantil.
Palavras chave: Juventudes. Fotografias. Ocupações Escolares.

Introdução

Em junho de 1997, adaptando modelos de qualificações empresariais à realidade do


ensino público, surgia a FAETEC - Fundação de Apoio à Escola Técnica. Localizada na zona
oeste, a maior zona do Estado, a comunidade estudantil utilizaria o espaço onde foi o histórico
Matadouro de Santa Cruz. Tal como o Matadouro foi para as redondezas no Império, a Escola
Técnica Estadual Santa Cruz tornava-se um importante motor de desenvolvimento
econômico e de infraestrutura, oferecendo educação pública e qualificação profissional de
qualidade. Dezoito anos depois, em 2015, diante de escândalos de corrupção e uma forte crise
econômica, todo o país e seus Estados encontravam-se arrochando verbas e tomando medidas
autoritárias para que a economia continuasse caminhando - em São Paulo, estudantes
ocupavam suas escolas contra o escândalo do desvio de verbas das merendas, no Rio de
Janeiro, estudantes da FAETEC protestavam contra a ameaça do fim do curso de
enfermagem. Logo em 2016, estabelecido todo o caos político e econômico no país, todos os
Estados já passavam a apresentar indícios de falência, atrasos salariais, congelamentos de
investimentos e planos de carreira. No Rio de Janeiro, os servidores públicos protestavam,
agonizando com todas as questões de ordem pública. No mesmo ano o fenômeno das
ocupações tomaria conta do Estado do Rio de Janeiro, dos estudantes aos servidores, fazendo-
se uma ferramenta muito útil na luta política do país. Estudantes de todo o Rio encontravam-
se num limbo, e os da FAETEC mais ainda. A greve dos professores impulsionara a escolha
por ocupar a escola, também em apoio. Quando, numa Assembleia em Marechal Hermes,
numa tarde de segunda-feira mês de abril do ano de 2016, após iniciada a greve dos
professores, com o apoio da comunidade estudantil e seus responsáveis, ocorreu uma
assembleia realizada, para a discussão das pautas de professores e estudantes, onde então, foi
tomada a decisão de ocupar a escola, assim como já acontecera em outras no estado e fora
dele (ROITBERG, 2017). Dois estudantes vão da assembleia para a escola, passam a primeira
noite completamente desamparados, até que, aos poucos, começam a chegar as doações e o
movimento vai ganhando força, naturalmente organizando-se e prosperando para atividades
pensadas internamente como oficinas, debates, palestras e aulas de diversas disciplinas
ministradas pelos mesmos. A autoaprendizagem (ENKIS, 2018) passou a ser a tônica do que
antes se dava nas aulas que aconteciam nas salas de aula, nos horários definidos pela
coordenação, numa grade inflexível e inegociável, tanto de conteúdos, quanto de matérias,
disciplinas, assuntos, temas... Paulo Freire alerta para o fato de que “o respeito à autonomia
e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder
uns aos outros.” (1996: p. 59). Exercíamos uma educação antiautoritária, aprendendo a pensar
e, não, a obedecer, conforme Jorge Enkis (2018, p. 8). Aqueles que tinham amplo
conhecimento em dada disciplina, passavam-no para os demais. Estudantes do primeiro ano
do Ensino Médio passando seus conhecimentos para os de terceiro ano do Ensino Médio, e
assim tomava forma à unidade de resistência coletiva.
Desenvolvimento
De acordo com Meihy & Santos (2013), pensando as histórias orais não só como uma
metodologia de apreensão das narrativas com a utilização das mídias digitais possibilitando
colecionar relatos de quem viveu as ocupações, elas, também, facilitam a análise de
representações sociais cotidianas permitindo a compreensão do meio de imediato. De posse
das conversas gravadas e filmadas, vimos, ao longo deste projeto de pesquisa (USP, 2018), que
as memórias vêm não só de onde foram empenhadas responsabilidades e trocas nas
dependências ocupadas da Escola, mas, também, através das conversas, dos diversos
deslocamentos necessários em viagens, excursões em ônibus fretado ou em trem e metrô; em
atos, passeatas e movimentos estudantis em lugares públicos - praças, ruas, avenidas, becos,
feiras -, longe da escola, assim como em manifestações na ALERJ (Assembleia Legislativa do
Estado do Rio de Janeiro), em reuniões no prédio da presidência em bairro distante e nas casas
do estudantes envolvidos. Através das conversas, utilizadas no documentário, logramos a
intenção de desfazer a distância entre quem produz o documentário e quem participa do mesmo
(COUTINHO, 2007). Desta forma, entendemos ser possível consolidar a autonomia estudantil
contando os cotidianos daquela comunidade e seus desdobramentos sociais, políticos e
culturais, numa abordagem transintermultidisciplinar. Para os autores, “as narrativas tornam-se
o núcleo central das atenções, pois delas decorrem as razões e os dilemas embutidos as
justificações” do projeto (Idem, p. 49). Chamou-nos atenção, ao reconstituir a história da
ocupação, o fato de que, com o passar dos dias, toda a organização instalada foi se dissolvendo
em outros tipos de organizações. Todo tipo de pacto ou acordo feito para a manutenção ou
limpeza deu lugar para a resolução natural dos problemas cotidianos da escola. Tudo passou a
ser resolvido sem o auxílio de planilhas ou calendários ou quadros de divisão de tarefas.
A ideia de autogestão na aprendizagem consiste em geram os próprios recursos
para aprender de maneira autônoma sem a intervenção de recursos de
instituições capitalistas e lógicas de dominação, além de incentivar a
imaginação e criatividade ilimitadas. (EIKES, 2013: p. 32; tradução por
ROITBERG).

No processo de autonomia, enquanto indivíduos, dos alunos surgem diversas atividades, antes
proposições. O sentimento de empoderamento deu instrumentos para realização de práticas
pedagógicas e culturais, que futuramente tornam-se herança da construção do estudante em
ocupação. Semanas após todo o alarde pela Ocupação da ETESC, muitos interessados surgiram
oferecendo ajuda para além dos insumos. Convites de universidades e outras instituições para
trazerem atividades compreendidas em palestras, debates e oficinas. O evento “Onde você
esconde seu Racismo?”, com propósito de provocar reflexões acerca do racismo velado que se
reproduz cotidianamente de forma corriqueira fez sucesso com os alunos negros que
exploravam maneiras de consolidar um coletivo, dando-lhes projeções de possíveis atividades
na escola que contemplassem às pautas do movimento negro.
Cada dia de ocupação exigiu criatividade em resolver problemas, mas acima tudo manter
nutrida a motivação dos estudantes ativos. Na falta de mantimentos pelo fim dos estoques de
doações, alunos têm a ideia de cultivar seu próprio alimento. Na sala 315 é feita a primeira
sementeira de couve, cebola, alface, pimenta, acelga e beterraba. E descobre-se outra
possibilidade de ocupação: a da terra.
Pensando em atrair alunos ainda desconfiados dos propósitos da Ocupação; e retardar o atraso
por conta da ausência das aulas. Estudantes reúnem-se e buscam material didático, combinam
com alunos e ex-alunos - e até professores convidados - para constituem uma grade de horários
de aulões que ficou disposta no quadro negro do segundo andar para consulta e contribuição de
interessados. O interesse por artes cênicas dos siris (primeiro ano na escola) foi o arcabouço na
construção da oficina de teatro. Realizada no auditório, reunia diversas prática do universo
teatral. Conduzida por uma aluna de química que com sua experiência no mundo da atuação
instruiu canto, improvisação e dança. Com o desenvolver da oficina uma peça foi elaborada
para apresentação no show de talento que estava sendo organizado pelos alunos ocupantes.
Outras escolas foram convidadas, companhias de dança e artistas independentes que se
juntaram aos alunos da ETESC em uma noite de apresentações. No final a peça não foi
apresentada por insegurança dos atores frente à arrebatadora plateia que lotou o auditório.
Concomitantemente ao desenvolvimento interno das diversas ocupações, negociações na
Assembleia legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ) eram deliberadas entre a defensoria pública,
alunos ocupantes e a FAETEC, culminando no termo de compromisso: acordo realizado entre
estudantes e suas unidades sobre compromissos a serem cumpridos pela FAETEC na
transparência de contas, alimentação, uniforme, infraestrutura, transporte, democracia escolar
entre outros, na condição da desocupação das unidades. No dia 5 de julho de 2016, as unidades
são desocupadas. Após dois anos da ocupação da ETESC, percebemos alguns avanços, dentre
alguns retrocessos, claro! Entretanto, sabemos que toda revolução começa no miúdo, nas
pequenas conquistas e que, muito do que vimos realizar naquele período poderá vir a acontecer
no futuro. No momento, vivenciamos algumas realidades promissoras: a horta torna-se o projeto
EcoETESC, com diversas vertentes em sustentabilidade, agricultura ecológica e Permacultura1.
Os aulões, enquanto não é organizado o projeto de pré-vestibular, ocorrem a qualquer hora na
sala do grêmio, com auxílio de um quadro improvisado de giz. O teatro, agora duas vezes na
semana, na grama, no auditório e onde mais cederem espaço funciona plenamente no horário
do almoço. Os estudantes começam a constituir um modelo real de atuação na escola, à medida
que revivem o sentimento de ocupação que aclama democracia, emancipação e
multiculturalidade.

Objetivos

Geral: Construir a memória estudantil da ETESC representada pela ocupação escolar


ocorrida em 2016, a fim de dotar o Centro de Memória de Santa Cruz de uma exposição
permanente de fotos, documentário e peças patrimonializadas utilizadas pelos estudantes
durante a ocupação.

Específicos: Dar continuidade ao projeto da horta enquanto ato pedagógico, momento de


reflexão sobre os cuidados com o outro, com o corpo, com o planeta e de possibilidade de produzir,
de maneira comunitária e autônoma uma alimentação saudável; Produção de documentário, em
forma de animação gráfica digital, referente à ocupação da ETESC.

Materiais e Métodos

A pesquisa vem sendo desenvolvida desde março de 2017 na Escola Técnica Estadual
Santa Cruz, por estudantes do segundo ano do ensino médio técnico integrado de cursos de
áreas diferentes. Os mesmos vem sendo orientados por dois professores do Setor de Projetos

1
Conceito utilizado em xxxxx
da Escola, realizando o levantamento e estudo dos dados e propósitos da pesquisa em encontros,
leituras obrigatórias fundamentais, rodas de conversa e debate acerca de experiências e saberes
complementares. O desenvolvimento tem acontecido, presencialmente, toda semana, e,
virtualmente, sempre que necessário e, a partir de contradições e semelhanças teóricas,
progredindo o trabalho de resgate da matéria-prima da produção – a memória-, por meio de
símbolos que dialogam com a realidade vivenciada pelos envolvidos no processo de ocupação.
Além de encontros, leituras e rodas de conversa, o progresso da pesquisa se expressa na
coleção de materiais – vídeos, gravações, documentos, fotografias, o relato dos estudantes
ocupantes, pais, mães, responsáveis e professores -, utilizando dispositivos de gravação de
áudio e de filmagem.
Em um trabalho conjunto com a equipe do projeto e o desenhista, de posse do roteiro,
e de todo o planejamento do documentário, inicia-se a etapa da produção do documentário com
a utilização de programa de animação digital, com a técnica draw my life. A seleção de fotos
foi realizada em duas etapas: a primeira, do momento pré ocupação e ocupação através de fotos
que foram doadas para o pesquisador; a segunda, do momento pós ocupação, quando se iniciam
os trabalhos de resgate da história da ocupação. Com a seleção das fotografias pelos estudantes
que protagonizaram a ocupação e que pertencem ao presente projeto, eles mesmos definiram o
critério para a escolha das fotografias que lhes foram apresentadas pelo pesquisador, a saber: a
estética e o potencial de deflagrar lembranças, memórias, histórias... Às selecionadas foram
adicionadas palavras que fazem algum tipo de referência à situação, estudante, ocasião
registrada. Todo este processo foi filmado, gravado e fotografado para o projeto de pesquisa de
pós graduação a que o mesmo se insere (ROITBERG, 2017)
Seguem alguns registros que fazem parte da coleção de material existente:

Figura 1 – Tempo de colher: etapa em que se encontra o projeto da horta comunitária (Foto:
Profª Cláudia Sales)

Figura 2 – Panela doada durante período de ocupação da ETESC. Acervo: Centro de Memória
ETESC. Foto: Prof. Julio Roiberg

Figura 3 – Doação de mantimentos durante a ocupação da ETESC Acervo: Prof. Julio Roiberg
Resultados e Discussão

A discussão acerca da ocupação e do presente projeto suscita a consciência de que o


movimento, fenômeno e processo significa um aprendizado maior que o contato com o
movimento estudantil, com as negociações com o governo, com a política institucional e com
o reconhecimento da política não institucional no cotidiano, tendo sua amplitude e beleza na
construção de uma comunidade escolar mais organizada, independente e ativa, tudo por meio
do nascimento de fortes conexões coletivas de irmandade de pessoas em mesma situação de
opressão sociopolítica, renascimento das noções de individualidade e respeito às semelhanças
e diferenças que a convivência traz.
A ocupação nasceu como pura forma de expressão política porque o grito, a
manifestação e a greve já antes não mais faziam efeito. Através daquele movimento,
consolidou-se e se inovou a forma de organização social e experimentação da educação
culminando em proposta político pedagógica, de modo a questionar aquilo que incutimos em
educação como conceito, trazendo e abrigando outros conhecimentos e referências - ainda não
catalogados. O movimento sempre foi ambicioso demais para caber - no que diziam os autores
- dispostos a pensar as diferentes formas de intervenção política, por isso, fez-se necessário o
assentamento em registro cronológico, o uso da história como instrumento de manutenção e
reprodução de tais acordos inconscientes de vigilância diante dos direitos e da qualidade da
educação.

Conclusões

Entendendo a memória coletiva como motriz para alteração estrutural e sistêmica,


empenham-se, os autores, na elaboração do passado e dotação de sua escola de um acervo que
possibilite bem mais do lembranças e recordações de um passado, ainda que bem presente,
romantizado e alheio às questões urgentes e necessárias que a educação requer, nestes outros
tempos. O projeto, para tanto, abraça tanto nossos e nossas estudantes, assim como toda a
comunidade escolar da ETESC. Acreditamos na força das narrativas, coletadas nas inúmeras
conversas, nas fotografias e no documentário enquanto material audiovisual a deflagrar todo o
potencial de intervenção vivenciado pelos e pelas estudantes que ocuparam o prédio da ETESC.
Rumo a uma gestão democrática, com ampla participação de todos os segmentos,
possibilitamos, com o desenvolvimento de mais esta etapa do projeto, alcançar os propósitos
do mesmo.

Referências

COUTINHO, E. O cinema documentário e a escuta sensível da alteridade. Proj. História. São


Paulo abr. 1997.
Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/download/11228/8234>

DE ARAUJO, C. F. Antropofagia dos sentidos: Ocupar e aprender. Rio de Janeiro, 2016.


Disponível em: < https://www.academia.edu/30716422>. Acesso: 24 de jul. 2017.

ENKES, J. A autoaprendizagem na educação anarquista. Jorge Enkes (ilustração, desenho,


diagramação). Editorial EDA e Autogerida (International anarchistic education). Santiago de
Chile, 2018. <www.educacionantiautoritaria.org> Acesso em 24 de ago. 2018.

FELIZARDO, A.; SAMAIN, E. A fotografia como objeto e recurso de memória. Discursos


fotográficos, Londrina, PR, v.l 3, n. 3, p. 205-220, 2007.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 33ª edição. Paz
& Terra, 1996.

MEIHY, J. C. S; HOLANDA, F. História, escrita, subversão e poder. In: História oral: como
fazer, como pensar? José Carlos Sebe Bom Meihy, Fabíola Holanda. 2. Ed. São Paulo:
Contexto, 2013. P. 98-100.

ROITBERG, J. C. Vídeo, história e narrativas fotográficas: a elaboração do passado através da


memória viva estudantil para o acervo do centro de memória ETESC/FAETEC. Rio de Janeiro,
2017. Disponível em: <https://www.academia.edu/32044167 >. Acesso: 23 de ago. 2018.

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP). Metodologia da Pesquisa e Orientação de Projetos


de Iniciação Científica. Disponível em: apice.febrace.org.br. Acesso: 23 de ago. 2018.

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