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A reabilitação neuropsicológica de pacientes

com transtornos de aprendizagem:


a experiência da Unidade de Reabilitação Neuropsicológica/URN1

Cláudio L. N. Guimarães dos Santos (a), (b), (c), Maria de Fátima Jorge (d)
e Amanda de N. G. M. Bittencourt (d)

(a) Coordenador da Unidade de Reabilitação Neuropsicológica/URN, São


Paulo/SP, Brasil.
(b) Professor/Orientador do Curso de Pós-Graduação em Morfologia do
Departamento de Morfologia da Universidade Federal de São
Paulo/UNIFESP, São Paulo/SP, Brasil.
(c) Professor/Orientador do Curso de Pós-Graduação em Fisiopatologia
Experimental da Faculdade de Medicina da Universidade de São
Paulo/USP, São Paulo/SP, Brasil.
(d) Terapeuta/Pesquisadora associada à Unidade de Reabilitação
Neuropsicológica/URN, São Paulo/SP, Brasil.

Endereço p/ correpondência: Av Pavão, 955 – cj. 56 – São Paulo/SP - 04516-012


e-mail: claudiogs@uol.com.br

RESUMO:
Neste artigo são discutidos os princípios teóricos que, a nosso ver, devem nortear
os procedimentos diagnósticos e terapêuticos voltados para o manejo de pacientes
apresentando disfunções cognitivas, categoria que engloba, evidentemente, os
transtornos de aprendizagem. Tais princípios, que decorrem inteiramente da
adoção da postura filosófica denominada Neo-Reducionismo, fundamentam o
nosso trabalho clínico.

1. As disfunções cognitivas e o Neo-Reducionismo


O principal fundamento da abordagem diagnóstica e terapêutica
utilizada no trabalho que realizamos junto a pacientes que apresentam transtornos

1
Guimarães dos Santos, C.L.N., Jorge, M.F., & Bittencourt, A.N.G. (2003). A reabilitação
neuropsicológica de pacientes com transtornos de aprendizagem: a experiência da Unidade de
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de aprendizagem é a idéia proposta por Guimarães dos Santos (1994, 1995, 1997,
1998, 2000a, 2000b, 2002, 2003) segundo a qual tais transtornos -- assim como
qualquer outro tipo de alteração cognitiva -- não devem e não podem ser
concebidos como entidades nosológicas autônomas e auto-suficientes, devendo,
ao contrário, serem entendidos como pseudo-categorias, como partes inter-
dependentes de estruturas muito mais complexas, necessariamente multiformes e
essencialmente dinâmicas -- as disfunções cognitivas – que se caracterizam, em
última análise, por alterações no funcionamento normal dos processos mentais e
neurobiológicos subjacentes ao fenômeno que se convencionou chamar de
cognição ou inteligência, alterações que se dão, invariavelmente, em um sujeito
específico e determinado – o paciente2 que estamos tratando – e que, por isso
mesmo, não podem ser pensadas de forma abstrata, ou seja, independentemente
das características intrínsecas desse mesmo sujeito.
Evidentemente, a completa compreensão do conceito acima enunciado
pressupõe o conhecimento, por parte do leitor, do significado do termo cognição
(humana) que, também segundo Guimarães dos Santos (1994, 1995, 1997, 1998,
2000a, 2000b, 2002, 2003), deve ser entendido como nomeando a capacidade
fundamental, exibida pelos indivíduos de nossa espécie, que nos faculta a
adaptação às situações as mais diversas, e isso não somente através de nossa
acomodação, mais ou menos passiva, a tais situações, mas, sobretudo, através da
implementação ativa de procedimentos destinados a modificá-las de modo a que
se ajustem às nossas necessidades e objetivos.
A conseqüência imediata da adoção dessa concepção mais ampla do que
aquela comumente empregada é que, sob o rótulo cognição (humana), não se
encontrarão somente as capacidades tradicionalmente classificadas como
cognitivas ou inteligentes -- tais como a linguagem, a memória ou o raciocínio
lógico-matemático – mas, sob esse rótulo, também estarão uma série de outras
funções cujo caráter cognitivo, mesmo que a nosso ver incontestável, não é ainda,
de maneira unânime, reconhecido pela comunidade de pesquisadores -- tais como
a motivação, a emoção, a imaginação, a criatividade, a capacidade de se
relacionar socialmente ou a habilidade de realizar as seqüências necessárias à

Reabilitação Neuropsicológica/URN. In Luiza Elena L. Ribeiro do Valle (Org.), Temas


multidisciplinares de Neuropsicologia e Aprendizagem, 221-230. São Paulo: TECCI.
2
A despeito das críticas que são freqüentemente feitas ao termo “paciente” - ele sugeriria a passividade
do indivíduo perante o profissional de saúde - ele será utilizado no presente artigo não somente por
acharmos que tais críticas são desprovidas de fundamento, mas também por crermos que a alternativa
comumente proposta - o termo “cliente” - acarreta, aí sim, problemas realmente complexos.
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execução de atividades motoras complexas, tais como tocar piano, desenhar,


dançar ou jogar futebol.
Além de impedir que as disfunções cognitivas sejam concebidas de
forma rígida e invariável – passíveis, portanto, de serem situadas, de forma
precisa, no interior de inventários descritivo-classificatórios do tipo CID-10 ou
DSM-IV – a concepção proposta por Guimarães dos Santos enfatiza também o
caráter peculiar e específico que necessariamente assume, em cada paciente, o
complexo mosaico de alterações mentais e neurobiológicas de que se constituem
tais disfunções.

Aliás, como esperamos deixar claro no decorrer desta exposição,


acreditamos ser precisamente essa especificidade de apresentação assumida pelas
disfunções cognitivas relativamente a cada paciente -- especificidade que chega
inclusive, em nossa opinião, a determinar de modo decisivo a natureza do
programa terapêutico a ser implementado -- que faz com que a complexa área do
diagnóstico e da reabilitação de disfunções cognitivas seja aquela, entre todas as
áreas da saúde, onde realmente é válido o aforismo, tão propalado nos corredores
de nossas faculdades e hospitais, segundo o qual não existem doenças e sim
doentes, devendo cada paciente ser considerado uma criatura única e
incomparável e, como tal, ser entendido e sobretudo respeitado em sua
individualidade.

Por outro lado, para que se possa entender os significados bastante


precisos que os adjetivos mental e neurobiológico têm no contexto do presente
trabalho, necessário se faz o conhecimento, ainda que superficial, dos postulados
fundamentais do Neo-Reducionismo, postura filosófica desenvolvida por
Guimarães dos Santos (1994, 1995, 1997, 1998, 2000a, 2000b, 2002, 2003), já
que é nela que se fundamenta o arcabouço teórico onde estão inseridos esses dois
conceitos.

Para o Neo-Reducionismo, as instâncias mental e neurobiológica devem,


ambas, serem encaradas como construtos teorético-observacionais, gozando,
desse modo, de um mesmo status epistemo-ontológico. Em outras palavras, de
acordo com a referida postura filosófica, essas duas instâncias -- a mente e o
encéfalo – não devem ser vistas como “coisas”, como entidades concretas e
definitivas, mas antes como conceitos, ou seja, como conglomerados complexos
de teorias -- e de seus respectivos fatos experimentais -- mais ou menos
articulados, mais ou menos completos, mais ou menos consistentes possuindo, por
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conseguinte, uma natureza necessariamente transitória e imperfeita cuja


constituição, jamais concluída, dá-se através de um processo contínuo e dialético
que outra coisa não é senão o próprio fazer científico.

Além disso, no que se refere à natureza da relação que potencialmente


vincularia as instâncias mental e neurobiológica, ela deverá ser entendida,
segundo a perspectiva proposta pelo Neo-Reducionismo, como a possibilidade,
jamais integralmente efetivada, da realização de reduções ou traduções inter-
teoréticas, sempre parciais e contingentes, objetivando o estabelecimento de
mapeamentos e correspondências entre, de um lado, teorias que descrevem a
instância mental e, de outro, teorias que descrevem a instância neurobiológica.

2. A investigação diagnóstica das disfunções cognitivas em geral


e dos transtornos de aprendizagem em particular
Inicialmente, é importante lembrar que, segundo o enfoque que
caracteriza o nosso trabalho clínico -- que se baseia, como já vimos, nos
postulados do Neo-Reducionismo -- os pacientes que apresentam transtornos de
aprendizagem são sempre vistos como indivíduos portadores de um conjunto
complexo de alterações cognitivas, nem todas igualmente aparentes ou
identificáveis, entre as quais se destacam, por sua saliência, as alterações que
afetam a sua capacidade de aprender e de manipular novas informações.
Desse modo, os procedimentos diagnósticos a que esses pacientes são
submetidos com o intuito de caracterizar, de forma precisa, o peculiar mosaico de
alterações mentais e neurobiológicas que apresentam, não são, ao menos num
primeiro momento, diferentes daqueles que utilizamos em pacientes que
apresentam disfunções cognitivas nas quais predominam outros tipos de
alterações cognitivas, respeitadas, evidentemente, características tais como a
idade, o sexo, o nível de escolarização, a classe sócio-econômica, etc.
Por outro lado, do que foi exposto até o momento resulta evidente que,
para ser bem sucedida, essa investigação diagnóstica deve ser dirigida, com o
mesmo empenho, tanto à instância mental como à neurobiológica, o que somente
poderá ser feito por profissionais de saúde mental que efetivamente possuam uma
visão trans-disciplinar (e não meramente interdisciplinar ou multidisciplinar) do
fenômeno cognição humana, profissionais que, forçoso é que se diga, ainda são
muito raros em nosso meio.
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Segundo o nosso enfoque, uma tal investigação preliminar -- que


chamaremos de Triagem Diagnóstica Geral (TDG) -- deve necessariamente
incluir os seguintes três componentes3:
(a) Uma abordagem inicial de natureza híbrida “mentalístico-
neurobiológica” – e por isso mesmo denominada Abordagem Inicial Híbrida
(AIH) -- dirigida à obtenção de dados passíveis de orientar investigações mais
seletivas das vertentes mental e neurobiológica e que consiste, em última análise,
na compilação de um inventário pormenorizado do repertório comportamental do
paciente, antes e depois da instalação da situação patológica, compilação que é
realizada através da interação discursiva com ele e seus familiares próximos (e,
eventualmente, quando for o caso, com membros pertencentes a outras instâncias
da comunidade sócio-econômico-cultural da qual faz parte, tais como sua escola4,
seu trabalho, sua igreja, etc.). Obviamente, para que essa compilação possa dar
origem a um inventário útil, ela deverá abarcar, entre outras, as seguintes
dimensões do existir do paciente: a sua maneira de ser, de pensar, de sentir, de
agir e reagir, a natureza dos relacionamentos que ele mantém com as outras
pessoas (membros do núcleo familiar ascendente ou descendente, amigos,
parceiros sexuais, colegas de trabalho, desafetos, etc.), as suas aspirações
“materiais”, os vários aspectos que envolvem a sua vida profissional, os seus
interesses culturais (nos mais variados domínios – filosofia, ciência, música,
literatura, teatro, cinema, artes visuais, etc), as suas crenças religiosas, os seus
desejos e as suas paixões, as suas frustrações e os seus medos, os seus
desconfortos e as suas dores, etc. Ora, a partir do exposto, parece-nos claro que o
mérito de um tal inventário, quando adequadamente constituído, é o de tornar
possível a obtenção de uma visão sintética ou global, ainda que provisória e
imperfeita, do paciente a ser tratado, a única, na nossa opinião, capaz de fornecer

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Evidentemente, no processo de interação concreta com cada paciente, o conjunto de procedimentos
diagnósticos constituintes da Triagem Diagnóstica Geral (TDG) poderá ser alterado pela inclusão,
exclusão ou modificação de alguns desses instrumentos, de modo a adequar o conjunto às
peculiaridades que caracterizam o repertório comportamental, normal e patológico, de cada indivíduo.
Aliás, justamente por acreditar que não existem doenças e sim doentes, o enfoque proposto pelo Neo-
Reducionismo vai enfatizar, de maneira veemente, o fato de que a elaboração e a implementação de
procedimentos diagnósticos – e também terapêuticos – desenvolvidos para o manejo de pacientes
portadores de disfunções cognitivas (quaisquer que sejam) não poderá ter sucesso se não for levada em
conta a especificidade de apresentação que essas disfunções vão assumir em cada paciente.
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Claro está que, no caso de pacientes que apresentam transtornos de aprendizagem, cresce
sobremaneira a importância da obtenção de dados abundantes e fidedignos acerca da vida escolar do
paciente, o que significa ir muito além do mero levantamento de informações sobre o seu desempenho
acadêmico.
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indicações seguras sobre os melhores caminhos a serem percorridos nas fases


ulteriores da investigação diagnóstica.
(b) Uma Abordagem Neurobiológica (AN), isto é, especificamente
voltada, como seu nome diz, para a investigação de todos os fatores vinculados à
vertente neurobiológica passíveis de estarem envolvidos na gênese das alterações
cognitivas apresentadas pelo paciente, abordagem cuja implementação, sempre
que possível, deverá ser feita concomitantemente àquela dirigida à vertente
mental, examinada mais abaixo. Sinteticamente, a Abordagem Neurobiológica,
além do exame físico do paciente, vai também incluir a utilização criteriosa do
imenso cabedal de recursos tecnológicos que constituem o universo da
propedêutica armada nesse início de milênio.
(c) Uma Abordagem Mentalista (AM), isto é, aquela especificamente
voltada para a investigação de todos os fatores vinculados à vertente mental
passíveis de estarem envolvidos na gênese das alterações cognitivas apresentadas
pelo paciente, abordagem que, fundamentalmente, constitui o que denominamos
Avaliação Neuropsicológica Global (ANG), cuja estrutura básica deve incluir,
pelo menos, os instrumentos que permitam a avaliação dos seguintes grandes
domínios cognitivos5: (I) processos atencionais e de orientação têmporo-espacial;
(II) funções perceptivas e gnósicas (incluindo todas as modalidades sensoriais);
(III) lateralidade, motricidade e praxias; (IV) funções mnêmicas (verbais e não-
verbais); (V) habilidades lingüístico-discursivas; (VI) habilidades inferenciais
(verbais e não-verbais); (VII) habilidades matemáticas; (VIII) aspectos afetivo-
motivacionais (verbais e não-verbais).

Neste ponto, cremos ser importante destacar alguns aspectos que


caracterizam a Avaliação Neuropsicológica Global, tal qual a concebemos,
procurando, na medida do possível, distinguir o nosso enfoque -- que se
fundamenta, como vimos, nos postulados do Neo-Reducionismo -- de um outro,
que chamaremos de tradicional e que até recentemente constituía a visão
hegemônica a partir da qual era concebida a avaliação neuropsicológica.

Em primeiro lugar, ainda que não desprezando os índices e porcentagens


da psicometria clássica (um dos pilares da visão tradicional), o nosso enfoque,
longe de focalizar a sua atenção na pontuação obtida pelo paciente numa

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É importante lembrar que, segundo o enfoque proposto pelo Neo-Reducionismo, nenhum desses
domínios deve ser entendido como sendo uma espécie de parte ou de módulo cuja reunião resultaria na
cognição humana, mas cada um deles deve, antes, ser visto como um aspecto ou imagem de uma única
e indecomponível totalidade, a saber, a inteligência ou cognição humana.
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determinada prova, privilegia, sobremaneira, a descrição detalhada da morfologia


do desempenho por ele apresentado.
Por outro lado, diferentemente da visão tradicional, que é essencialmente
ateorética, a nossa perspectiva considera de fundamental importância o
desenvolvimento de modelos e teorias capazes de fornecer o quadro conceitual
indispensável à interpretação dos resultados obtidos com a aplicação dos testes
neuropsicológicos.
Em terceiro lugar, ao contrário da visão tradicional, essencialmente
“mentalista”, a nossa abordagem vai perseguir, com a máxima obstinação, o
estabelecimento de correlações entre dados de desempenho em tarefas cognitivas
e dados relacionados à fisiologia encefálica obtidos, durante a realização dessas
tarefas, com o auxílio das modernas tecnologias de neuroimagem dinâmica, tais
como a tomografia por emissão de pósitrons ou a ressonância magnética
funcional.
Além disso, em oposição à visão tradicional, que é objetivista e
universalizante, a nossa perspectiva enfatiza a necessidade de que fatores sócio-
econômico-culturais sejam levados em consideração, quer durante a elaboração,
quer durante a aplicação dos testes neuropsicológicos, já que aceditamos que as
diversas comunidades nas quais se distribuem os seres humanos sobre o nosso
planeta, ainda que constituídas por indivíduos pertencentes à mesma espécie
biológica, freqüentemente apresentam diferenças cruciais na maneira pela qual os
sistemas cognitivos de seus respectivos membros são estruturados.
Finalmente, ao contrário da visão tradicional, cuja estratégia de
avaliação de desempenhos dá-se, quase que inteiramente, por intermédio de
análises de tipo populacional, ou seja, de análises voltadas para a consideração de
grupos mais ou menos numerosos de pacientes, o nosso enfoque vai insistir na
utilização do chamado estudo de caso (único ou múltiplo), visando, com isso,
levar em conta a enorme variabilidade de desempenho apresentada por pacientes e
indivíduos normais durante a realização de tarefas cognitivas.

3. O tratamento das disfunções cognitivas em geral


e dos transtornos de aprendizagem em particular
À semelhança do que dissemos no caso da investigação diagnóstica,
também no que se refere ao tratamento, os pacientes que apresentam transtornos
de aprendizagem serão sempre vistos, segundo o nosso enfoque, como indivíduos
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portadores de um conjunto complexo de transtornos cognitivos, nem todos


igualmente aparentes ou identificáveis, entre os quais se destacam, por sua
saliência, as alterações que afetam a sua capacidade de aprender e de manipular
novas informações.
Conseqüentemente, a elaboração e a implementação dos procedimentos
terapêuticos (mentalistas e neurobiológicos) a que são submetidos esses pacientes
devem obedecer a determinadas regras ou diretrizes cuja validade se estende a
qualquer tipo de disfunção cognitiva. Evidentemente, na exposição que faremos a
seguir procuraremos, tanto quanto possível, focalizar aqueles aspectos de cada
uma dessas regras que devem merecer especial atenção no caso específico em que
predominem, na apresentação de determinada disfunção cognitiva, os transtornos
de aprendizagem.
Em primeiro lugar, gostaríamos de enfatizar o fato de que a elaboração
de qualquer procedimento terapêutico depende, de maneira crucial, da realização
prévia da Triagem Diagnóstica Geral (TDG) examinada na seção anterior, uma
vez que somente a posse de um inventário minucioso capaz de caracterizar, de
maneira aprofundada, o estado mórbido e pré-mórbido do paciente, tornará
possível o desenvolvimento de estratégias reabilitativas realmente eficientes,
posto que concebidas com a necessária especificidade. Em outras palavras, de
acordo com o ponto de vista do Neo-Reducionismo, estratégias padronizadas,
massificadas, que sejam desenvolvidas em “escala industrial” e implementadas de
modo indiscriminado, sem que se respeite a individualidade essencial de cada
paciente, estão, a nosso ver, fadadas ao fracasso.
Um caso especial da diretriz mencionada no parágrafo anterior é o que
se refere à utilização de computadores na reabilitação de pacientes com
transtornos de aprendizagem. A nosso ver, ainda que se trate de pacientes
familiarizados com dispositivos informáticos -- o que nem sempre acontece --
devem os terapeutas, segundo o nosso enfoque, procurar elidir dois erros bastante
comuns, a saber: (a) a substituição pura e simples do contato direto do terapeuta
com o paciente por situações onde o seu principal interlocutor passe a ser o
computador, o que só fará aprofundar o estado crônico de isolamento em que
freqüentemente se encontram os portadores de disfunções cognitivas e (b) a
utilização de programas (softwares) de reabilitação mais ou menos “pré-
fabricados”, cuja estrutura, ainda que flexível, não permita a sua exata adaptação
às características intrínsecas de cada paciente. Desse modo, de acordo com o
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nosso enfoque, a utilização de recursos tecnológicos mais sofisticados deve ser


feita com discernimento e equilíbrio e jamais, como amiúde acontece, com o
intuito de esconder, sob uma pretensa aparência de “modernidade”, a falta de
conhecimento capaz de fundamentar a elaboração e a implementação de
estratégias reabilitativas que possam ser realmente eficientes.
Por outro lado, não podemos jamais nos esquecer de que, enquanto
humanos, somos seres fundamentalmente semióticos, o que inviabiliza de pronto
a elaboração e implementação de procedimentos terapêuticos que não
contemplem essa nossa “fome de significado”. Desse modo, estratégias
reabilitativas que não respeitem as características de cada paciente, que não
possuam vínculos afetivos e motivacionais profundos com esse indivíduo, pouco
sucesso terão. E isso é tanto mais verdadeiro naquelas disfunções cognitivas em
que predominam os transtornos de aprendizagem, já que, em grande número de
situações, as dificuldades apresentadas pelo indivíduo na assimilação de novas
informações se devem principalmente ao fato de que o conteúdo a ser apreendido
não lhe interessa e nem o motiva de modo algum. Todavia, gostaríamos de deixar
bastante claro que a observação feita não pretende de modo algum recomendar
um certo tipo de prática pedagógica, a nosso ver equivocada, que consiste em dar
ao aluno a “liberdade total” na escolha dos conteúdos a serem aprendidos, sob o
argumento de que somente assim poderia ser dele obtida uma firme implicação no
processo de aprendizagem. A nossa opinião em relação a esse ponto é a de que se
tal estratégia pode ser considerada válida em algumas (poucas) situações, ela
certamente se mostra desastrosa em muitas outras: na quase totalidade dos casos,
o sujeito aprendiz se encontra numa posição bem pouco favorável para decidir o
que realmente pode ser útil à sua formação, já que lhe faltam as informações
necessárias para efetuar tal julgamento. Na verdade, quando falamos em motivar
o indivíduo, estamos precisamente querendo fazer referência à utilização de todo
um conjunto de estratégias pedagógicas que visam a tornar relevantes para o
aluno conteúdos que ele, em sua primeira avaliação, havia achado
desinteressantes.
Um outro aspecto crucial diz respeito à importância, para o sucesso
terapêutico pretendido, de que as estratégias utilizadas sejam não somente capazes
de suscitar no paciente a vontade de se adaptar às atividades e dispositivos
propostos pelo terapeuta, mas que elas possam igualmente despertar nesse
indivíduo o desejo de desenvolver os seus próprios instrumentos terapêuticos que,
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com toda a certeza, estarão muito mais sintonizados com as suas possibilidades e
preferências do que aqueles, mais impessoais, que tiverem sido elaborados por
seus terapeutas, ainda que de forma cuidadosa. Em outras palavras, os
procedimentos terapêuticos devem ser capazes de fazer com que o indivíduo
tenha vontade de se tornar o sujeito de seu próprio processo de cura.
Além disso, a reabilitação de indivíduos que apresentam disfunções
cognitivas, sobretudo aquelas em que predominam os transtornos de
aprendizagem, deverá ser realizada, tanto quanto possível, não somente no
consultório, mas também em situações e contextos que efetivamente constituam o
dia-a-dia do paciente – tais como a escola em que estuda ou o clube onde pratica
esportes –, o que certamente exigirá uma estreita sintonia e colaboração entre os
profissionais de saúde implicados no tratamento do indivíduo e os outros atores
sociais, sobretudo seus professores, que também com ele interagem.
Finalmente, para concluirmos este artigo, cremos ser importante
mencionar que a adequada participação da família – nem opressivamente
presente, nem irresponsavelmente ausente – será um fator essencial ao bom
andamento do processo terapêutico, sendo isso tão mais verdadeiro quanto mais
jovem for o paciente. Nunca é demais lembrar que boa parte do tempo diário útil
de uma criança pequena é passado com os pais, cujos exemplos, já insistiam os
romanos6, são capazes de influenciar de maneira profunda o comportamento da
criança, e isso tanto no que fazem como no que deixam de fazer. Com que
argumentos poderá um pai convencer seu filho de que a leitura é algo prazeroso se
ele mesmo nada mais lê além das manchetes esportivas do jornal de domingo?

Referências Bibliográficas

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11

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(compréhension et mémorisation) du discours/texte procédural par le système
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doenças crônicas: terapeuta, cuidador e paciente, in J. A. Levy e A. S. B. Oliveira
(orgs.), Reabilitação em doenças neurológicas. São Paulo (BR): Atheneu, pp.
223-229.

6
Estamos nos referindo ao famoso ditado romano “as palavras movem, os exemplos arrastam”.

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