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FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UNIR)

NÚCLEO DE CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

ELISANDRO DESMAREST DE SOUZA

RECONHECIMENTO, JUSTIÇA E LIBERDADE:


A Teoria Crítica de Axel Honneth

Porto Velho, RO
2019
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Fundação Universidade Federal de Rondônia
Gerada automaticamente mediante informações fornecidas pelo(a) autor(a)

S729r Souza, Elisandro Desmarest de.


Reconhecimento, justiça e liberdade: a teoria crítica de Axel Honneth /
Elisandro Desmarest de Souza. -- Porto Velho, RO, 2019.

47 f.
Orientador(a): Prof. Dr. Fernando Danner

Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Filosofia) - Fundação


Universidade Federal de Rondônia
1.Autonomia. 2.Liberdade. 3.Luta. 4.Reconhecimento. 5.Sociedade. I.
Danner, Fernando. II. Título.

CDU 141.319.8

Bibliotecário(a) Luã Silva Mendonça CRB 11/905


Elisandro Desmarest de Souza

RECONHECIMENTO, JUSTIÇA E LIBERDADE:


A Teoria Crítica de Axel Honneth

Trabalho de Conclusão de Curso (TCC)


apresentado ao Departamento de Filosofia da
Fundação Universidade Federal de Rondônia
(UNIR) como requisito parcial para obtenção do
título de licenciado em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Fernando Danner

Porto Velho, RO
2019
Elisandro Desmarest de Souza

Trabalho de Conclusão de Curso (TCC)


apresentado ao Departamento de Filosofia da
Fundação Universidade Federal de Rondônia
(UNIR) como requisito parcial para obtenção do
título de licenciado em Filosofia.

RECONHECIMENTO, JUSTIÇA E LIBERDADE:


A Teoria Crítica de Axel Honneth

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Fernando Danner (Orientador)


Assinatura
___________________________________________________________

Prof. Dr. Leno Francisco Danner


Assinatura
___________________________________________________________

Prof. Marcio de Lima Pacheco


Assinatura
___________________________________________________________

Data: Porto Velho – RO, 09 de Julho de 2019.


Resultado:
__________________________________________________________
“Não é a consciência do homem que lhe determina o ser, mas, ao contrário,
o seu ser social que lhe determina a consciência.” - Karl Marx
Dedico esse trabalho de conclusão de curso à minha mãe Ivanede Desmarest
de Souza, a pessoa que mais se dedicou a ajudar em todos os momentos de minha
vida; ela que me ergueu no momento que estava caído e desacreditado; ela que me
incentivou a voltar a estudar e foi minha inspiração e minha “aluna favorita” quando
eu me preparava para alguma apresentação. Sem ela, eu não teria conseguido
chegar aonde eu cheguei e superar minhas deficiências.
Agradeço primeiramente à minha família que sempre me apoiou em minhas
decisões, principalmente minha mãe Ivanede Desmarest de Souza e meu pai
Manoel de Souza. Penso que sem eles eu nem estaria aqui neste plano, muito
menos enfrentando de cabeça erguida os desafios e conquistando novas
experiências e oportunidades.
Agradeço à todos os meus professores do Departamento de Filosofia: Prof.
Dr. Clarides Henrich de Barba; Prof. Dr. Christian Otto Muniz Nienov; Prof. Dr.
Fernando Danner; Prof. Dr. Leno Francisco Danner; Prof. Dr. Magnus Dagios; Prof.
Dr. Marcio de Lima Pacheco; Prof. Dr. Márcio Secco; Prof. Dr. Paulo Roberto
Konzem; Prof. Dr. Rodolfo de Freitas Jacarandá; Profª Doutoranda Suzy Mara Aidar
Pereira; agradeço também à Profª Drª. Mirela Nunes Giracca (DLE); à Profª Drª
Walterlina Barbosa Brasil e à Profª Drª Márcia Machado de Lima (DECED). Todos
eles contribuíram de alguma forma direta na minha formação acadêmica.
Agradeço especialmente ao meu orientador Prof. Dr. Fernando Danner, que
não sei onde ele viu capacidade em minha pessoa, mas sempre como amigo me
ajudou de forma abnegada nos momentos de necessidade. Em sua orientação,
desde o primeiro PIBIC até esse trabalho de conclusão, sempre agiu com
responsabilidade e seriedade. Cobrou sempre de maneira firme minhas
responsabilidades e incentivava sempre em ir mais além do que eu pensava que
conseguia. Agradeço também a ajuda e os incentivos dos Prof. Dr. Paulo Roberto
Konzem e do Prof. Dr. Leno Danner, tanto em relação às suas orientações
paralelas, como também cobrando o desenvolvimento do TCC.
Agradeço ao meu amigo e companheiro de curso Gustavo Adolfo Suckow
Barbosa, que neste período de quatro anos foi um fiel companheiro de estudo,
sempre me ajudando nos trabalhos, sempre me incentivando e torcendo por meu
sucesso em todas as esferas sociais.
Agradeço a meu irmão e amigo Gabriel da Silva Santos que, além de me
incentivar à ingressar no ensino superior, também me ajuda nas minhas dificuldades
nos trabalhos acadêmicos.
Agradeço à minha noiva Deane Fátima Coelho que, apesar de ter trazido
“caos à ordem”, foi a melhor coisa que poderia ter acontecido em minha vida, pois
sempre está me ajudando e incentivando meus estudos e procurando construir um
futuro sólido comigo.
RESUMO
Desde Luta por Reconhecimento até Direito da Liberdade, passando pelas obras
Sofrimento de indeterminação e Las Patologías de la libertad, Honneth delineia
como sua problemática principal as lutas sociais pelo reconhecimento. Em suas
obras, ele irá mostrar que a luta por reconhecimento, está para além das conquistas
da distribuição igualitária de renda, está assentada na ideia de respeito ao indivíduo
e à dignidade da pessoa humana. Em suas análises da sociedade de nossa época,
Honneth busca refletir sobre os fenômenos culturais e econômicos que lhe são
próprios, e defende a tese de que, para construirmos uma sociedade justa,
precisamos que seus indivíduos sejam capazes de se reconhecer em si mesmo no
outro em suas necessidades, pois todos têm seus conceitos e valores individuais de
liberdade, justiça, cidadania e dos diretos humanos.

Palavras-Chave: Autonomia; Liberdade; Luta; Reconhecimento; Sociedade.


ABSTRACT
From Struggle for Recognition to the Right of Freedom, through the works of
Suffering Indetermination and La Patologías de la libertad, Honneth outlines as its
main problem the social struggles for recognition. In his works he will show that the
struggle, byond the achievements of the egalitarian distribution of income, is based
on the idea of respect for the individual and the dignity of the human person. In his
analyzes of the society of our time, Honneth seeks to reflect on his own cultural and
economic phenomena, and defends the thesis that, in order to build a just society, we
need that its individuals be able to recognize themselves in the another in their
needs, because they all have their individual concepts and values of freedom, justice,
citizenship and human rights.

Keywords: Autonomy; Freedom; Fight, Recognition; Society.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..............................................................................................9

2 A EVOLUÇÃO DA LUTA POR RECONHECIMENTO NO CONTEXTO


SOCIAL.....................................................................................................................13
2.1 A LUTA POR RECONHECIMENTO NA SOCIEDADE
CONTEMPORÂNEA. ............................................................................................13
2.2.1 O amor e a relação de interdependência do indivíduo. ...........19
2.2.2 A esfera do direito e a autorrealização da pessoa. .................20
2.2.3 A solidariedade e a autodeterminação do sujeito. ...................22
2.2.4 O desrespeito da dignidade da pessoa humana ......................24

3 A LIBERTAÇÃO DO SOFRIMENTO ATRAVÉS DO RECONHECIMENTO


INTERSUBJETIVO ...................................................................................................25
3.1 REALIZAÇÃO DA LIBERDADE INDIVIDUAL.......................................25
3.2 O SOFIRMENTO E A LIBERTAÇÃO ...................................................27
3.3 A DOUTRINA DO DEVER ÉTICO E O RECONHECIMENTO
INTERSUBJETIVO ...............................................................................................30

4 AS TRÊS CONCEPÇÕES DE LIBERDADE NA OBRA “O DIREITO DA


LIBERDADE” DE HONNETH ...................................................................................35
4.1 A LIBERDADE NEGATIVA..................................................................36
4.2 A LIBERDADE REFLEXIVA .................................................................39
4.3 A LIBERDADE SOCIAL........................................................................42

5 CONCLUSÃO..............................................................................................45

REFERÊNCIAS ..............................................................................................47
9

1 INTRODUÇÃO

Neste trabalho, expomos o desenvolvimento da teoria crítica da sociedade do


filosofo alemão Axel Honneth (1949), atual diretor do Instituto de Pesquisa Social –
também conhecido como Escola de Frankfurt – da Universidade Johann Wolfgang
Goethe de Frankfurt e tido como o representante da terceira geração da mesma.
Com efeito, neste trabalho, nossa proposta é, em um primeiro momento,
analisar o desenvolvimento da teoria crítica da sociedade de Honneth,
especialmente sua interpretação das teses e argumentos principais da teoria social
do jovem Hegel; em um segundo momento, procuramos apresentar as principais
reatualizações da teoria de Hegel empreendidas pelo filósofo frankfurtiano. Na
realização de nosso trabalho, quatro obras de Honneth serviram de base, a saber:
Luta por Reconhecimento, Sofrimento de Indeterminação, O Direito da Liberdade e
Patologias de la Libertad.
Nestas obras, Honneth procura mostrar a evolução da luta por
reconhecimento no contexto social moderno, uma vez que as práticas de valores
ideais levam à formação da identidade do sujeito e, além disso, à construção de uma
sociedade solidária, que, por sua vez, ao mesmo tempo em que forma um sujeito
autônomo em busca do bem-estar da comunidade, se preocupa com o bem-comum
(a vida boa) dos seus membros.
Para Honneth, os desenvolvimentos e reorientações dados à teoria crítica nos
últimos anos demonstram que ela não apenas se preocupa em eliminar as
desigualdades sociais próprias de nossas sociedades liberais contemporâneas, mas
está também cada vez mais preocupada com a dignidade do indivíduo e com o
respeito pela pessoa humana. Em termos de justiça social, é inegável que o sujeito
participante dessa sociedade tenha como objetivo normativo o reconhecimento, e
não somente a redistribuição de renda. A categoria do reconhecimento tem como
propósito esclarecer o indivíduo sobre seu papel na sociedade, tornando-o
autônomo e, ao mesmo tempo, estabelecendo o pano de fundo de uma sociedade
mais humana, na qual o indivíduo possa ter a possibilidade de conquistar uma vida
digna – a vida boa.
A tese de Honneth é que, por meio de uma luta por autoconsciência,
autodeterminação e autorrealização – valores que constituem a tríade das esferas
10

do reconhecimento –, podemos conquistar, além do reconhecimento intersubjetivo, a


promoção de uma sociedade mais justa e solidária. Ao colocar a luta por
reconhecimento no núcleo de sua teoria, Honneth procura mostrar que o que está
em jogo nas lutas contemporâneas dos diferentes indivíduos e grupos sociais
minoritários é a proteção de sua dignidade e o seu respeito assegurado em todas as
esferas sociais.
Na obra Sofrimento de Indeterminação, Honneth pretende reatualizar1 a teoria
da justiça de Hegel. Na perspectiva do filosofo frankfurtiano, a filosofia do direito do
jovem Hegel está pautada tanto na sua filosofia prática do “espírito objetivo” como na
“eticidade”, entendidas como os princípios da justiça para que a sociedade fosse
justa e, ao mesmo tempo, fundada em uma ideia de vontade livre universal.
Com efeito, a preocupação com o reconhecimento intersubjetivo leva
Honneth, na obra Direito da Liberdade, a desenvolver uma concepção de justiça e
liberdade contrária à concepção de justiça2 e liberdade ideal de Rawls, defendendo
uma relação dialógica entre os sujeitos que procuram valores coletivos. Para Rawls,
o indivíduo liberal não delibera com a comunidade, e sim tão somente consigo
mesmo para poder, através de sua racionalidade e de uma reflexão intrapessoal, ter
uma concepção própria do que é justiça. Em Luta por Reconhecimento, Honneth
mostra como o indivíduo se emancipa em sociedade, tornando-se um sujeito
autônomo, que reconhece no outro suas próprias necessidades. Já em Sofrimento
de Indeterminação, Honneth, ao reformular a teoria da justiça de Hegel, conduziu
sua teoria da justiça na esfera do direito e na autorrealização do sujeito com base na
eticidade para sua construção social e, ao mesmo tempo, propôs também a
construção de um conceito de justiça e liberdade que assume como núcleo a esfera
do reconhecimento intersubjetivo e o conjunto de seus valores comunitários.

1
Tomar por tema e objeto a “reconstrução” em Honneth não significa, portanto, ignorar nem a
primazia do “reconhecimento” nem o necessário ponto de vista “do social”, único a partir do qual tal
primazia se torna primeiramente visível e teorizável. Trata-se, ao contrário, de pressupor sempre que
a “reconstrução” em Honneth pertence à constelação da qual o “reconhecimento” e o “social” não
podem ser arbitrariamente isolados (NOBRE, 2013, p.13).
2
“A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de
pensamento. Embora elegante e econômica, uma teoria deve ser rejeitada ou revisada se não é
verdadeira; da mesma forma leis e instituições, por mais eficientes e bem organizadas que sejam,
devem ser reformadas ou abolidas como injustas. Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada
na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar. Por essa razão, a
justiça nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um bem maior compartilhado por
outros” (RAWLS, 1997, § 2, p.3-4).
11

Honneth afirma que a liberdade do indivíduo, quando não estabelecida


normativamente, bem como quando as relações intersubjetivas não são
devidamente reconhecidas, acaba por resultar em conflitos sociais e, por
conseguinte, em doenças ou patologias da sociedade moderna, que impedem o
sujeito de alcançar a sua autorrealização de forma plena, pois sua liberdade não
pode ser exercida devido a intervenções externas que a sociedade promove. Para
que a sociedade seja justa, a liberdade individual deve ser igual para todos e, além
disso, deve haver um sistema de direito justo capaz de contemplar todos os seus
cidadãos, para que esses possam, nas palavras do próprio Axel Honneth, exercer
sua vontade livre universal.
No capítulo I A Evolução da Luta por Reconhecimento iremos abordar a
construção do sujeito social nas eferas do reconhecimento, enfatiza que em Luta por
reconhecimento mostra que as lutas sociais modernas se davam em termos de
autoconservação, como se pode ver em Hobbes e Maquiavel; já na luta por
reconhecimento, a luta é dialógica nas esferas do reconhecimento: no amor com a
superaçao das carências do indivíduo, adquirindo sua autoconfiança; no direito, na
consquista da sua autorrealização com as relações de interação social; e permite na
esfera da solidadiredade que é esfera mais universal, em que a solidariedade
permite autodeterminação do sujeito, ou seja, ele tem a consiciência e a
capacidadede decidir por si mesmo e fazer sua livre escolha do próprio destino.
No capítulo II, a libertação do sofrimento através do recohecimento
intersubjetivo. Trataremos da reatualização da filosofia do direito hegeliana nas
questões da liberdade indivídual, a qual está ligada intrinsecamente ao conceito de
eticidade, e é dessa forma que o indivído consegue se desprender do sofrimento por
indeterminação, tendo então, condições de se autorrealizar. A centralidade do dever
ético implica em que o indivíduo se molda e ajusta seu caráter, podendo assim,
reconhecer o outro e sua liberdade indivídual, transaformando-se em um sujeito
social esclarecido e consciente de deveres e direitos.
No último capítulo III intitularizado As três concepções de liberdade, será
abordado o conceito da liberdade monológica (em sua esfera negativa e em sua
esfera reflexiva) onde no 1º caso, o indivíduo conversa consigo mesmo e decide por
si só, sem interferência externa que o possa coagir; e no segundo, a liberdade
dialógica (liberdade social), que conforme Honneth, mostra-se como a verdadeira
12

liberdade, pois nela o indivíduo passa a dialogar com a comundade e decidir o que é
melhor num contexto universal.
13

2 A EVOLUÇÃO DA LUTA POR RECONHECIMENTO NO CONTEXTO SOCIAL

Honneth busca refletir sobre o problema das lutas sociais pelo


reconhecimento desde Luta por Reconhecimento até Direito da Liberdade, passando
por Sofrimento por indeterminação e Patologias de la Libertad. Para ele, há uma
mudança fundamental na forma como se travam as lutas sociais no mundo
contemporâneo, ou seja, para além das conquistas da distribuição igualitária de
renda, o que está no cerne dessas lutas é o respeito do indivíduo e a dignidade da
pessoa humana. Nesse sentido, suas análises da sociedade de nossa época deixam
clara sua preocupação em refletir sobre os fenômenos culturais e econômicos que
lhe são próprios e, além disso, apresentam a defesa da tese de que, para
alcançarmos uma sociedade justa, precisamos que os indivíduos sejam capazes de
se reconhecerem em si mesmo no outro em suas necessidades, pois todos têm seus
conceitos e valores indivíduais de liberdade, justiça, cidadania e dos diretos
humanos.
Dessa forma iremos abordar a construção do sujeito social nas esferas do
reconhecimento intersubjetivo que ocorre nas relações sociais de interdependência,
que causa a luta por reconhecimento do indivíduo, o qual procura não somente
igualdade na sociedade, mas também a sua diginidade e respeito, com isso
podendo viver numa sociedade mais justa e alcançar a vida boa.

2.1 A Luta por Reconhecimento na Sociedade Contemporânea.

Em Luta por reconhecimento, Honneth desenvolve sua teoria do


reconhecimento intersubjetivo adotando como pano de fundo as instituições sociais
da sociedade contemporânea. Na perspectiva de Honneth, a evolução das análises
da sociedade elaboradas pela teoria crítica explicitam sua preocupação não apenas
com a eliminação das desigualdades sociais, mas também demonstram claramente
sua preocupação com a dignidade do indivíduo e com o respeito pela pessoa
humana. Nesse sentido, em termos de justiça social, é inegável que o sujeito
participante dessa sociedade tenha como objetivo normativo o “reconhecimento” – e
não somente a redistribuição de renda. A categoria do reconhecimento almeja, por
meio de um processo de reconstrução social, situar o indivíduo em seu contexto
histórico-social, tornando-o um sujeito autônomo, ao mesmo tempo em que
14

estabelece o pano de fundo de uma sociedade mais humana, permitindo ao


indivíduo conquistar uma vida digna – ou seja, a vida boa. Nas palavras de Nobre:
Qualquer que seja o tema por objetos nos escritos de Axel Honneth,
a apresentação está sempre obrigada a orbitar em torno daquilo que
é distintivo de sua proposta no campo da teoria crítica: a
preeminência e primazia da ‘gramática da moral do reconhecimento’.
Isso só é possível, entretanto, forem preenchidos dois requisitos,
sem os quais as ‘luta por reconhecimento’ não emergem: uma
reconstrução do ponto de vista do social. Essa dupla tomada de
partida - pela “reconstrução” e pelo ‘social’  serve a Honneth de
guia não apenas dar sua própria versão do desenvolvimento e da
história da teoria crítica, como para vincular a ‘reconstrução’ com a
“presentificação” que pretende emprestar às teorias que lança mão
(NOBRE, 2013, p. 11).

A tese do neocontratualista é que, por meio de uma luta por autoconsciência,


autodeterminação e autorrealização – tríade das esferas do reconhecimento
proposta por Honneth –, conquistamos não apenas o reconhecimento intersubjetivo,
mas promovemos uma sociedade mais justa e solidária. É justamente neste contexto
que Honneth procura mostrar que todo indivíduo almeja ter sua dignidade e o seu
respeito reconhecido em todas as esferas sociais.
Em Luta por Reconhecimento, Honneth apresenta uma defesa do
desenvolvimento do reconhecimento intersubjetivo como característica essencial do
sujeito. Em sua leitura de Maquiavel – que n’O Príncipe defende a tese da
imutabilidade da natureza humana, uma natureza completamente má pertencente a
um indivíduo egocêntrico e preocupado exclusivamente com seus interesses, o que
significa que, um príncipe, se quisesse permanecer no poder, deveria ser enérgico
em suas decisões, pois, ao contrário, se se mostrasse fraco, ele sucumbiria em seu
governo, de modo que seus inimigos poderiam derrubá-lo do poder. Honneth
argumenta que o que estava no cerne da teoria social de Maquiavel era a
manutenção do poder e a estabilidade do principado; em outras palavras, a
“autoconservação” se inscrevia como o objetivo mais importante do que o próprio
bem-estar dos indivíduos. Diz ele:
A filosofia social moderna pisa a arena num momento da história das
ideias em que a vida social é definida em seu conceito fundamental
como relação da luta por autoconservação; os escritos políticos de
Maquiavel preparam a concepção segundo a qual os sujeitos
individuais se contrapõem numa concorrência permanente de
interesses, não diferentemente de coletividades políticas; na obra de
Thomas Hobbes, ela se torna enfim a base de uma teoria do contrato
que fundamenta a soberania do Estado. Ela só pudera chegar a esse
novo modelo conceitual de uma “luta por autoconservação” depois
15

que os componentes centrais da doutrina política da Antiguidade, em


vigor até a Idade Média, perderam sua imensa força de convicção
(HONNETH, 2009, p. 31).

Com efeito, na teoria social de Maquiavel, um bom governante deve ser


inteligente, competente e firme para poder bem governar; sem essas características
fundamentais, ele perderá o respeito do povo e, conseqüentemente, seu poder. Para
ele, a máxima “melhor ser temido do que ser amado” serve de exemplo para o
Príncipe, pois ele deve ter cuidado com a natureza maldosa do homem, uma
natureza traiçoeira, oportunista, ingrata, movida pelo lucro e em seu próprio bem.
Por isso, sua afirmação de que, para um Príncipe, é melhor que seus governados o
temam, na medida em que, o temendo, eles irão respeitá-lo acima de tudo. Nas
palavras de Honneth:
[...]. Mas as categorias centrais de suas análises comparativas estão
talhadas para essa luta sempiterna por autoconservação, para essa
rede ilimitada de interações estratégicas, em que naturalmente
Maquiavel enxerga o estado bruto de toda vida social, porque elas
não designam nada mais que os pressupostos estruturais da ação
bem-sucedida por poder; mesmo ali onde ele se serve dos conceitos
metafísicos fundamentais da historiografia romana e fala por exemplo
da virtu ou fortuna, ele se refere somente às condições marginais
históricas que, da perspectiva dos agentes políticos, se revelam
recursos praticamente indisponíveis em seus cálculos estratégicos
de poder (HONNETH, 2009, p. 33).

Além de Maquiavel, Honneth também se contrapõe ao modelo de luta social


desenvolvido por Hobbes. No Leviatã, Hobbes percebia, na base do estado de
natureza, uma “luta de todos contra todos”; nesse sentido, o reconhecimento se
daria pelo medo da morte violenta que os indivíduos tinham nesse estado. Com o
pacto social, os indivíduos, por meio de um ato voluntário, entrariam em comum
acordo, constituindo a soberania, abrindo mão de parte de sua liberdade para obter
a segurança, a manutenção de sua propriedade e a paz.
Ao abordar a condição natural em que todos os indivíduos nascem, Hobbes
explica que
A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo
e do espírito, que, embora por vezes se encontrem um homem mais
forte de corpo , ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim,
quando se considera tudo isso em conunto,[...] a diferença entre um
e outro não é suficientemente considerável para que qualquer um
possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não
possa também aspirar [...] (HOBBES, 2003, p. 106).
16

Como podemos perceber nessa passagem, o autor do Leviatã considera que,


embora existam homens mais fortes fisicamente ou mais dotado de razão do que
outros, isto não significa que eles terão alguma vantagem por possuírem essas
características. Para Hobbes, o que se desenrola no estado de natureza é uma luta
de todos contra todos, o medo permanente do ataque e uma desconfiança recíproca
entre eles: somente a construção da soberania do Estado, na submissão dos
indivíduos ao contrato, poria fim a essa guerra. Para Honneth, a teoria social de
Hobbes poderia ser explicada da seguinte maneira:
[...]. Por fim, na terceira parte de seu empreendimento, Hobbes utiliza
a construção teórica desse estado no sentido de uma fundamentação
filosófica da própria construção da soberania do Estado: as
conseqüências negativas manifestas da situação douradoura de uma
luta entre os homens, o temor permanente e a desconfiança
recíproca, devem mostrar que só a submissão, regulada por contrato,
de todos os sujeitos a um poder soberano pode ser o resultado de
uma ponderação de interesses, racional com respeito a fins, por
parte de cada um. Na teoria de Hobbes, o contrato social só encontra
sua justificação decisiva no fato de unicamente ele ser capaz de dar
um fim à guerra ininterrupta de todos contra todos, que os sujeitos
conduzem pela autoconservação individual (HONNETH, 2009, p. 35).

Na sua leitura da teoria social de Hobbes, Honneth demonstra que o homem,


na condição natural, tende à sua própria autoconservação, isto é, o outro sempre
será um inimigo em potencial contra a sua vida; no Leviatã, Hobbes diz que, quando
dois homens desejam a mesma coisa ao mesmo tempo, e na impossibilidade de tê-
la, entrarão em guerra. No estado de natureza hobbesiano existem três causas de
discórdia que fazem os homens serem inimigos uns dos outros quando não se tem
um poder coercitivo capaz de controlá-los, a saber: a competição, a desconfiança e
a glória. Na ótica de Honneth, portanto, Hobbes pretende demonstrar como é o
homem em seu estado de natureza, sua constante inclinação à guerra como
garantia de sua autoconservação; nesse sentido, a única coisa que faz os homens
buscarem a paz é o medo da morte violenta e a esperança de uma vida boa. Diz
Hobbes:
E por causa desta desconfiança de uns em relação aos outros
nenhuma maneira de se garantir é tão razoável como a antecipação,
isto é, pela força ou pela astúcia subjugar as pessoas de todos os
homens que puder, durante o tempo necessário para chegar ao
momento em que não veja nenhum outro poder suficientemente
grande o ameaçar. E isto não é mais do que sua própria conservação
exige e geralmente se aceita. E porque alguns se comprazem em
contemplar o próprio poder em atos de conquista levados muito além
do que a sua segurança exige, outros que, em circunstâncias
17

distintas, se contentariam em se manter tranquilamente dentro de


modestos limites, caso não aumentassem o seu poder por meio de
invasões, não seriam capazes de subsistir durante muito tempo, se
apenas se pusessem em atitude de defesa. Consequentemente,
deve-se conceder a todos esse aumento do domínio sobre os
homens, pois é necessário para a conservação de cada um
(HOBBES, 2003, p. 107-108).

Com efeito, tomando como base a teoria social de Maquiavel e de Hobbes,


Honneth quer mostrar uma transformação significativa no modelo de lutas sociais
travados no mundo contemporâneo: as lutas sociais, que outrora estavam centradas
na autocorservação individual, assumem, em nossos dias, a característica de uma
luta social pelo reconhecimento intersubjetivo. Portanto, o traço distintivo dos
conflitos sociais no mundo contemporâneo se estrutura em torno de uma luta por
reconhecimento intersubjetivo.
[...]. Em princípio não se procedem diferentemente os enfoques da
tradição do direito natural que Hegel designa como “formal”, visto que
eles tomam seu ponto de partida, no lugar das definições acerca da
natureza humana, num conceito transcendental de razão prática; em
tais teorias, representadas sobretudo por Kant e Fichte, as premissas
atomísticas dão-se a conhecer no fato de as ações éticas em geral
só poderem ser pensadas na qualidade de resultado de operações
racionais, purificadas de todas as inclinações humanas; também aqui
a natureza do homem é representada como uma coleção de
disposições egocêntricas ou, como diz Hegel, “aéticas”, que o sujeito
primeiro tem que reprimir em si antes de poder tomar atitudes éticas,
isto é, atitudes que fomentam a comunidade. [...]. Para Hegel, resulta
daí a consequência de que no direto natural moderno, uma
“comunidade de homens” só pode ser pensada segundo um modelo
abstrato dos “muitos associados”, isto é, uma concentração de
sujeitos individuais isolados, mas não segundo o modelo de uma
unidade ética de todos (HONNETH, 2009, p. 40).

Para Honneth, Hegel apresenta um modelo de sociedade de cunho


normativo, isto é, um modelo de sociedade ética na qual, em seu primeiro momento,
os indivíduos exerceriam uma “liberdade universal e individual”; em outras palavras,
a sua liberdade só poderia se realizar na esfera particular do indivíduo. Em seu
segundo momento, Hegel afirma que os indivíduos, no interior de sua sociedade,
através da comunicação e de seus costumes comuns, conseguem exercer, na
coletividade e nas instituições, sua liberdade de forma mais ampliada, mostrando,
assim, que o indivíduo isolado não consegue exercer plenamente sua liberdade.
Para Hegel, portanto, o reconhecimento intersubjetivo seria uma ação recíproca
entre indivíduos, fundamental para todo processo de socialização humana.
18

Na próxima seção, apresento as três esfera de reconhecimento intersubjetivo


desenvolvidas por Honneth: a família, o Estado e a sociedade civil.

2.2 AS TRÊS ESFERAS DO RECONHECIMENTO

Em Luta por Reconhecimento, Honneth apresenta três esferas de


reconhecimento próprios das sociedades contemporâneas, a saber: a família, o
Estado e a sociedade civil. Nosso autor destaca que é no cerne dessas esferas que
se desenvolvem os feixes de relações entre os indivíduos: nelas, os indivíduos
exercitam suas “vontades” e desenvolvem sua “consciência de agir” nos âmbitos
familiar, sexual, do trabalho e do social. Além disso, nas esferas do reconhecimento
intersubjetivo, a evolução do indivíduo começa com aquisição da capacidade de ser
autoconfiante (isto é, quando ele aprende a reconhecer a necessidade do outro em
si mesmo); em um segundo momento, sua evolução individual se dá pela
capacidade de se autorrealizar (isto é, de se sentir capaz de se satisfazer com sua
própria potencialidade); finalmente, seu processo de evolução se estrutura em torno
de sua capacidade de se autodeterminar (isto é, quando ele adquire a capacidade
de decidir por si mesmo a escolha do próprio destino).
Em Luta por Reconhecimento, Honneth faz uma leitura apurada da sociedade
contemporânea, mostrando que é através das esferas do reconhecimento
intersubjetivo que o indivíduo, por meio de sua capacidade cognitiva, desenvolve
uma consciência normativa, em que ele reconhece não só a si mesmo como
também o outro em sua totalidade (Cf. Honneth, 2009, p. 63). Nesse sentido, os
conflitos sociais – a luta por reconhecimento – perduram até que cada indivíduo
reconheça que o outro, assim como ele, também possui, a necessidade e a intenção
de ser reconhhecido como característica de sua singularidade, desejos e vontades.
Aos olhos de Honneth, a tese da luta por reconhecimento – uma “luta de vida e
morte” –, de Hegel, significa que o não-reconhecimento resulta em uma violação
grave da liberdade individual e, até mesmo, se constitui em uma ameaça à própria
ideia de direitos. Diz Honneth:
Uma primeira interpretação dessa espécie decorre da tese
desenvolvida por Andréas Wildt, segundo a qual Hegel não fala aqui
da “luta de vida e morte” num sentido literal, mas somente figurado; a
metáfora drástica refere-se àqueles momentos de uma “ameaça”
existencial, nos quais um sujeito tem de constatar que uma vida
19

plena de sentido só lhe é possível no “contexto do reconhecimento


de direitos e deveres” (HONNETH, 2009, p. 93).

Para Honneth, portanto, é nas esferas de reconhecimento intersubjetivo,


como também na luta pelo reconhecimento, que o sujeito social desenvolve sua
autoconsciência; em outras palavras, ele só começa a reconhecer a vontade do
outro quando ele passa a ter a capacidade de refletir e de agir de forma consciente,
reconhecendo em si mesmo as necessidades do outro em sua totalidade. É nesse
ato de intersubjetividade que o filosofo alemão defende sua ideia de luta por
reconhecimento, uma luta que é motivada por situações de desrespeito mútuo de
algumas pretensões individuais que, por sua vez, resultam em conflitos e/ou numa
reconciliação entre as partes.

2.2.1 O amor e a relação de interdependência do indivíduo.

A primeira esfera do reconhecimento é o amor. Esta esfera é representada


pela carência do indivíduo tanto na esfera familiar como nas relações de amizade.
Honneth ilustra essa primeira esfera de reconhecimento na relação simbiótica entre
mãe e filho. Honneth argumenta que, para Hegel, o filho seria o ápice do amor
entre um homem e uma mulher; este seria, para nosso autor, o retrato exato de uma
família burguesa, constituída pelo pai, pela mãe e pelo filho: aos olhos de Honneth,
“Hegel, neste ponto totalmente teórico clássico da família burguesa, considera o filho
a corporificação máxima do amor entre o homem e a mulher; nele, eles intuem o
amor; (ele é) sua unidade consciente de si enquanto consciente de si’” (HONNETH,
2009, p. 81).
Na esfera do amor, há uma relação de dependência total do filho para com
sua mãe e desta para com ele; no momento em que essa relação simbiótica é
rompida, o filho, por instinto, se sente desprezado e começa a agir de forma
agressiva para com a mãe; com o passar do tempo, tanto o filho como a mãe vão se
reconhecendo como indivíduos que possuem necessidade particulares que precisam
ser satisfeitas, de modo que essa relação passa de uma “dependência absoluta” à
uma “dependência relativa”. Diz Honneth:
[...]. Para Hegel, o amor representa a primeira etapa de
reconhecimento recíproco, porque em sua efetivação os sujeitos se
confirmam mutuamente na natureza concreta de suas carências,
reconhecendo-se assim como seres carentes: na experiência
recíproca da dedicação amorosa, dois sujeitos se sabem unidos no
fato de serem dependentes, em seu estado carencial, do respectivo
20

outro. Além disso, visto que a carência e afetos só podem de certo


modo receber, “confirmação” porque são diretamente satisfeitos ou
correspondidos, o próprio reconhecimento deve possuir aqui o
caráter de assentimento e encorajamento afetivo; nesse sentido,
essa relação de reconhecimento está também ligada de maneira
necessária à existência corporal dos outros concretos, os quais
demosntram entre si sentimentos de estima especial. [...]
(HONNETH, 2009, p. 160)

Na perspectiva de Honneth, nesta primeira esfera de reconhecimento se


estabelece uma relação de autoconfiança, isto é, o indivíduo adquire a capacidade
de confiar em si mesmo, deixando de ser totalmente dependente do outro; além
disso, nessa primeira esfera de reconhecimento, o indivíduo adquire uma primeira
experiência de reconhecimento recíproco, pois é através da carência, da afetividade
e da relação interpessoal que ele pode se reconhecer no outro, satisfazendo tanto
suas necessidades como as dele. Nesse sentido, o conceito de amor não está
somente assentado em uma concepção romântica, íntima e/ou sexual entre dois
parceiros ou mesmo de pais e filhos; ele se desenvolve em todas as relações
primárias, no conjunto de ligações emotivas entre poucas pessoas (Cf. Honneth,
2009, p. 159). A esfera do amor engloba, portanto, não só o conjunto de relações
que se estabelece entre o homem e a mulher ou nas relações entre pais e filhos,
mas também nas relações de amizade – traduzidas na carência de um amigo para
com o outro em uma ligação afetiva.

2.2.2 A esfera do direito e a autorrealização da pessoa.

A segunda esfera de reconhecimento é o direito. Esta esfera está


fundamentada na autonomia formal da pessoa em uma relação positiva de direito.
Para Honneth, é nesta esfera que se motiva a autorrealização da pessoa, isto é,
nesta esfera a pessoa deve reconhecer a relação de direito com a sociedade civil, e
vice-versa, de modo que o direito garanta a segurança normativa que permite que
seu papel como cidadão seja respeitado em sua própria particularidade, ou seja,
independentemente de suas condições sociais. Portanto, é na sociedade civil que o
indivíduo passa a se reconhecer e a ser reconhecido como uma pessoa possuidora
de direitos e deveres, capaz de reconhecer-se-no-outro plenamente.
Com efeito, a esfera do direito está pautada pela autorrealização da pessoa
de direito, a formação de sua identidade, do seu “Eu”. Honneth mostra que na esfera
do direito o sujeito individual começa a se desenvolver e, assim, passa a interagir
21

socialmente de forma mais reativa e espontânea; em outras palavras, é nesse


momento que o sujeito social se desperta e se vê não apenas como indivíduo, mas
como uma pessoa que tem direitos e deveres dentro de sua comunidade; é na
esfera do direito, portanto, que o sujeito social se torna um autor ativo daquele meio.
Diz Honneth:
[...]. A experiência de ser reconhecido pelos membros da coletividade
como pessoa de direito significa para o sujeito individual poder adotar
em relação a si mesmo uma atitude positiva; pois, inversamente,
aqueles lhe conferem, pelo fato de saberem-se obrigados a respeitar
seus direitos, as propriedades de um ator moralmente imputável.
Porém, uma vez que o sujeito partilha necessariamente as
capacidades vinculadas a isso como todos os seus cidadãos, ele não
pode se referir positivamente ainda, como pessoa de direito, àquelas
propriedades suas em que ele se distingue justamente de seus
parceiros de interação; para tanto se precisaria de uma forma de
reconhecimento mútuo que propiciasse confirmação a cada um não
apenas como membro de uma coletividade, mas também como
sujeito biograficamente individuado. Mead coincide com Hegel
também na constatação de que a relação jurídica de reconhecimento
é ainda incompleta se não puder expressar positivamente as
diferenças individuais entre os cidadãos de uma coletividade
(HONNETH, 2009, p. 139).

É na interação social, segundo Honneth, que o individuo desenvolve uma


compreensão satisfatório do seu próprio “Eu”, de modo que ele começa a
reconhecer não somente sua particularidade, mas também a particularidade do
outro. Para Honneth, o modelo de desenvolvimento que faz com que o “Eu” esteja
intrinsecamente mais ligado à singularidade do indivíduo e suas vontades entra em
conflito quando esse mesmo indivíduo começa a viver em comunidade com sua
globalização de vontades; é nesse momento que ele começa a interagir e
compreender que o seu “Eu” é apenas mais um dentre tantas outras singularidades.
É justamente aqui que Honneth percebe uma transformação importante na forma
como o “Eu” concebe a si mesmo e os outros: o cerne dessa transformação está em
que o “Eu” se transforme em um “Me”, isto é, em um indivíduo mais preocupado com
o desenvolvimento social.
Essa passagem do “Eu” singular para o “Me” particular faz com que o
indivíduo não pense apenas em si mesmo; ele passa a ter outros interesses e, em
consequência disso, começa a procurar novas formas de reconhecimento. Honneth
ilustra esse argumento dizendo que nossa sociedade ainda tem uma ideia de que a
família é um retrato exato da organização da família burguesa tradicional; porém, no
núcleo de nossas sociedade, encontrarmos famílias formadas e comandadas
22

apenas pela mãe e os filhos, ou, para além disso, famílias formadas por casais
homossexuais que adotam seus filhos – Honneth chama esse tipo de família de
“colcha de retalho”. Para Honneth, mesmo compartilhando um ideal diferente de
família, devemos tratar essas diferentes formas de associação famíliar como tendo
propriedades e características particulares e que, portanto, são merecedoras de
reconhecimento e de respeito mútuo. Isso porque o primeiro laço que os liga é o
amor; além disso, não podemos esquecer que essas famílias devem ser respeitadas
em suas particularidades, tendo sua dignidade assegurada não só pelo Estado, mas
também pela sociedade civil. Não estaríamos diante de um reconhecimento de
direto? Isso não seria um movimento de reconhecer-se-no-outro? Nas palavras de
Honneth:
O conceito ético de “outro generalizado”, ao qual Mead teria chegado
se tivesse considerado as antecipações idealizadoras do sujeito da
autorrealização que se sabe sem reconhecimento, partilha com a
concepção de eticidade de Hegel as mesmas tarefas: nomear uma
relação de reconhecimento recíproco na qual todo sujeito pode
saber-se confirmando como pessoa que se distingue de todas as
outras por propriedades ou capacidades particulares (HONNETH,
2009, p. 149).

O ideal teórico-normativo que Honneth e outros comunitaristas propõem como


forma de reconhecimento intersubjetivo pode ser interpretado como um movimento
em que eu consigo me ver no outro: da mesma forma que exijo que minha
individualidade seja respeitada, devo aprender também que o respeito às
singularidade e às particularidades dos outros indivíduos devem ser reconhecidas e
respeitadas, sob pena de estes não desenvolverem uma identidade sadia e plena de
sentido.

2.2.3 A solidariedade e a autodeterminação do sujeito.

A terceira esfera de reconhecimento é a solidariedade. Por meio da


solidariedade, o indivíduo alcança sua autodeterminação, ou seja, é o momento que
o indivíduo, mesmo fazendo parte de uma sociedade, adquire a capacidade e a
autonomia necessária para decidir seus atos para consigo mesmo. Com efeito, é
nesse momento que o indivíduo coloca em prática a ideia de relações solidárias –
que envolvem ainda o amor e o direito na práxis social; além disso, ele acaba por
reconhecer que cada indivíduo da sua sociedade tem os seus próprios interesses
primários (o respeito e a dignidade) que devem ser respeitados sob pena de
23

surgirem patologias sociais gravíssimas (a pobreza, a discriminação, a miséria, a


desigualdade social etc.). Segundo Honneth:
Certamente, “Solidariedade” não é apenas um título possível para a
relação intersubjetiva que Hegel tentou designar com o conceito de
“intuição recíproca”; por si mesma, ela se apresenta como uma
síntese dos dois modos precedentes de reconhecimento, porque
partilha com o “direito” o ponto de vista cognitivo do tratamento igual
universal, mas com o “amor”, o aspecto do vínculo de assistência.
Hegel entende por “eticidade”, na medida em que não se rendeu
ainda a uma versão substancialista do conceito, o gênero de relação
social que surgue quando o amor, sob pressão cognitiva do direito,
se purifica, constituindo-se em uma solidariedade universal entre os
membros de uma coletividade; visto que nessa atitude todo sujeito
pode respeitar o outro em sua particularidade individual, efetua-se
nela a forma mais exigente de reconhecimento recíproco
(HONNETH, 2009, p. 153-154)

Portanto, para Honneth, o reconhecimento recíproco, mesmo após o indivíduo


ter conquistado sua autorrealização, só se efetiva por meio de um processo de
autodeterminação que se desenvolve na esfera da vida social. Nesse sentido, esse
indivíduo não somente se reconhece nas relações primárias, mas também no âmbito
de relações mais complexas (por exemplo, no feixe das relações jurídicas); em
outras palavras, ele deixa de ser apenas um indivíduo e começa a ser reconhecido
como sujeito social, isto é, como um ser social e livre. Conforme Honneth, assim
resumimos : o reconhecimento da solidariedade faz com que o sujeito social, apesar
de ser um indivíduo singular e pessoa em sua particularidade, seja também
universal, pois é através dessa universalidade que esse sujeito reconhece de forma
reflexiva que os outros também possuem suas vontades singulares, que numa
sociedade normativa todos temos múltiplos deveres e direitos dentro dessa estrutura
social (Cf. Honneth, 2009, p. 183 - 185).

Para Honneth, a ideia normativa de solidariedade diz respeito não somente ao


cidadão de uma determinada comunidade, possuidor de direitos e deveres iguais; o
núcleo normativo da solidariedade exige que o indivíduo seja tratado como um
membro de igual valor no processo político, portanto, sem discriminação de gênero,
de etnia, de poder econômico etc., podendo ou não haver privilégios e exceções.
Em suma, as três esferas do reconhecimento giram em torno da ideia de
intersubjetividade, isto é, o indivíduo começa a ter a propensão de refletir e de agir
através de sua consciência absoluta, reconhecendo em si mesmo as necessidades
do outro em sua totalidade. Como vimos, é nesse ato de intersubjetividade que
24

Honneth defende sua ideia de luta por reconhecimento: sua motivação principal se
encontra nas situações de desrespeito mútuo de algumas pretensões individuais,
que originam conflitos ou possibilidade de reconciliação entre as partes.

2.2.4 O desrespeito da dignidade da pessoa humana

No capitulo 6 da obra Sofrimento de indeterminação, intitulado de “Identidade


pessoal e desrespeito: violação, privação de direitos, degradação”, Honneth mostra
como uma sociedade injusta trata seus indivíduos: “ofensas” e “rebaixamentos” são
suas características peculiares; nessas sociedade, impera o “desrespeito”, que nada
mais é do que o não-reconhecimento intersubjetivo. Diz ele:
Ora, é visível que tudo o que é designado na língua corrente como
“desrespeito” ou “ofensa” pode abranger graus diversos de
profundidade na lesão psíquica de um sujeito: por exemplo, entre o
rebaixamento palpável ligado à denegação de direitos básicos
elementares e a humilhação sutil que acompanha a alusão pública
ao insucesso de uma pessoa, existe uma diferença categorial que
ameaça perder-se de vista no emprego de uma das expressões. Em
contrapartida, a circunstância de que pudemos efetuar graduações
sistemáticas também no conceito complementário de
“reconhecimento” já aponta para as diferenças internas existentes
entre algumas formas de desrespeito. [...] (HONNETH, 2009, p.214)

Para Honneth, são essas situações de desrespeito e desprezo que fazem


com que ocorram, na base da sociedade, as lutas pelo reconhecimento
intersubjetivo. Aos olhos do nosso autor, as lutas contemporâneas pela integração
na sociedade dos diferentes indivíduos e grupos minoritários se travam em torno do
respeito de suas identidades e pela preservação de suas características culturais;
além do reconhecimento de seus direitos e liberdade, esses diferentes indivíduos e
grupos exigem a garantia de sua dignidade e o respeito de suas individualidades: na
perspectiva de Honneth, estamos falando de sujeitos singulares que, como os
demais, têm o direito de realizar suas vontades. No âmbito da teoria social normativa
desenvolvida por Honneth, portanto, encontramos a tese de que é pela luta pelo
reconhecimento que esses indivíduos e grupos terão seus direitos e deveres
resguardados em plenitude; uma sociedade mais justa e solidária só será possível
quando todos os indivíduos tiverem suas pretensões reconhecidas.
25

3 A LIBERTAÇÃO DO SOFRIMENTO ATRAVÉS DO RECONHECIMENTO


INTERSUBJETIVO

No capítulo anterior, tratei de mostrar como se desenvolve o processo de


constituição intersubjetiva dos indivíduos nas diferentes esferas do reconhecimento.
Vimos que o que estava em jogo em cada uma delas era a pretensão ao
reconhecimento recíproco (autoconfiança, autorrealização e autodeterminação) e de
uma concepção de vida boa pautada pela consciência de que todos têm sua
vontade livre. A boa vida e a vontade livre são, portanto, a expressão máxima de
uma ordem social justa, na medida em que permitem que seus indivíduos tenham o
direito de expressar sua liberdade plenamente. Neste capítulo, analisando os
argumentos principais da obra Sofrimento de indeterminação, procuro apresentar a
reatualização da filosofia do direito do jovem Hegel proposta por Honneth. Nesse
sentido, meu objetivo consiste em mostrar que Honneth procura na filosofia
hegeliana da prática do espírito objetivo e da eticidade fundamentar os princípios
normativos de uma sociedade justa e uma ideia de vontade livre universal.

3.1 REALIZAÇÃO DA LIBERDADE INDIVIDUAL

Em Sofrimento de indeterminação, Honneth desenvolverá sua teoria


normativa da justiça na esfera do direito e da autorrealização do sujeito. A categoria
da eticidade é a base para a construção de sua teoria da sociedade. Além disso,
nosso autor se esforçará em construir um conceito de justiça e de liberdade que dê
conta tanto da esfera do reconhecimento intersubjetivo como do conjunto de seus
valores comunitários. A reconstrução da filosofia do direito de Hegel, na perspectiva
de Honneth, nos permite melhorar a discussão da filosofia política contemporânea,
reatualizando aquilo que foi abandonado pelos diferentes teóricos da sociedade e da
política contemporâneos, como, por exemplo, a subordinação da liberdade individual
ao poder autoritário do Estado. Diz Honneth:
[...]. O que se convencionou como primeiro preconceito frente à
Filosofia do direito de Hegel exprime-se na afirmação que a obra traz
consigo, voluntária ou involuntariamente, consequências
antidemocráticas, uma vez que os direitos de liberdade individual são
subordinados à autoridade ética do Estado; [...]. A segunda reserva,
que impede hoje aquele discurso atualizador da Filosofia do direito,
possui antes um caráter metodológico e relaciona-se com a estrutura
de argumentação do texto como um todo; os passos da
26

fundamentação desenvolvidos por Hegel, objeta-se, só podem ser


adequadamente reconstruído e avaliados se forem referidos às
partes correspondentes à sua “Lógica”, mas que entretanto se tornou
completamente incompreensível em razão do seu conceito
ontológico de espírito; [...] (HONNETH, 2007, p. 48-49).

Segundo Honneth, ao afirmar que a autonomia do indivíduo está subordinada


à autoridade ética do Estado, Hegel trabalha com um conceito de Estado que talvez
não fosse muito adequado para compreendermos nossa atualidade sócio-política; na
Filosofia do Direito, o Estado hegeliano é Estado burguês; Honneth considera que o
Estado democrático de direito se configura na esfera mais adequada para o
desenvolvimento e o exercício da liberdade individual, pois é nele que encontramos
um contexto ético-político e uma pluralidade étnica mais abrangente. Axel Honneth
procura em sua teoria normativa de reconhecimento que todos os cidadãos sejam
autônomos na sua individualidade, porém ele só realiza essa autonomia plena na
sociedade civil.
Como dissemos anteriormente, é pela reatualização da filosofia do direito de
Hegel que Honneth procura fundamentar a filosofia política atual, principalmente no
que se refere à ideia de uma vontade livre universal que se desenvolve na esfera do
direito; com essa nova reorientação da filosofia política, Honneth quer garantir as
condições indispensáveis para que os indivíduos se autorrealizem plenamente, isto
é, a filosofia política deveria se preocupar em criar um ambiente saudável onde
todos tenham a possibilidade de realização de sua liberdade individual.
Para Honneth, a filosofia do direito de Hegel mostra que o espírito objetivo
está pautado na ideia de liberdade individual e de direito racional em quatro
premissas. Diz ele:
[...] primeiramente, em razão do fato de os sujeitos já se encontrarem
constantemente ligados em relações intersubjetivas, uma tal
justificação dos princípios universais de justiça não deve partir da
representação atomista [...]. Decorreu disso em segundo lugar, o
objetivo, [...] como justificação daquelas condições sociais sob as
quais os sujeitos podem ver reciprocamente na liberdade do outro
um pressuposto de sua autorrealização individual. [...] em terceiro
lugar, [...] princípios normativos de liberdade comunicativa na
sociedade moderna não devem estar ancorados em preceitos
externos voltados para o comportamento ou em meras leis de
coerção [...]; e finalmente, em quarto lugar [...] que, uma tal cultura de
uma liberdade comunicativa, denominada de “eticidade”, teria que
poder ser previsto um espaço essencial para aquelas esferas sociais
de ação nas quais os sujeitos, sob condições do mercado capitalista,
pudessem perseguir reciprocamente seus interesses egoístas
(HONNETH, 2007, p. 54-55).
27

Na perspectiva de Honneth, Hegel mostra que o indivíduo só poderá


desenvolver plenamente sua vontade livre na medida em que sua ação livre resultar
num processo de autodeterminação racional, que deverá ser posto em prática na
sociedade. Para Honneth, na Filosofia do Direito, o “espírito objetivo” assume um
papel fundamental na reconstrução da autorreflexão do que acontece nas
instituições e nas práticas sociais; em outras palavras, o espírito objetivo reconstrói
sistematicamente tudo que é necessário para a realização da vontade livre de cada
um dos indivíduos – o que podemos chamar de “vontade livre universal”. Por sua
vez, a vontade livre seria também uma ação reflexiva por parte do indivíduo, que
adquire a capacidade de se autodeterminar e, assim, satisfazer completamente sua
vontade através de uma reflexão em si mesmo, podendo, dessa forma, reconhecer
se em si mesmo no outro.
Além disso, Honneth mostra que, na Filosofia do Direito de Hegel, é possível
perceber que a existência de uma vontade livre está intimamente articulada às
relações comunicativas, nos quais o sujeito individualmente tem sua liberdade
própria. Isso possibilita sua capacidade de se relacionar com os demais membros de
sua sociedade e lhe capacitam melhor para participar de forma igual nas discussões
sociais, proporcionando, assim uma, autorrealização pessoal nas esferas do
reconhecimento intersubjetivo.

3.2 O SOFIRMENTO E A LIBERTAÇÃO

Para Honneth, o exercício da liberdade nos remete à compreensão de que


nós nos encontramos diante de um feixe de relações sociais cujos princípios se
encontram estruturados em uma série de direitos e de deveres que devem ser
observados, antes da libertação de sua dependência. Aos olhos de nosso autor, no
indivíduo a libertação adquire tanto um significado negativo como um significado
positivo; ela se estrutura, nessa dinâmica, em um sentido terapêutico, de retorno à
liberdade real. Diz Honneth:
Nesse duplo significado da expressão “libertação”  a qual indica ao
mesmo tanto negativamente o desvincular de duas perspectivas que
restringem a liberdade e são altamente unilaterais, como também
positivamente, o voltar-se para a liberdade real (eticidade) deve ser
reconhecida pela primeira vez em todo o volume a função terapêutica
que Hegel procurou atribuir à sua doutrina da eticidade. Em sua
Filosofia do direito, Hegel desenvolveu em referência à compreensão
28

moderna da liberdade um procedimento com o qual desde


Wittigenstein também na filosofia se empregou o conceito “terapia”:
partindo da verificação de um “sofrimento” determinado no mundo da
vida social, segue-se primeiramente que esse “sofrimento” é o
resultado de uma perspectiva equivocada derivada de uma confusão
filosófica que visa apresentar então a proposta terapêutica de uma
mudança de perspectiva que consistisse na recuperação de uma
familiaridade com o conteúdo racional de nossa práxis da vida
(HONNETH, 2007, p. 99-100).

Na perspectiva de Honneth, o conceito de libertação está ligado ao conceito


de eticidade; conforme vimos, em Hegel a libertação assume um significado tanto
negativo como positivo de liberdade, pois o indivíduo só pode se desprender desse
sofrimento por indeterminação quando ele tiver a possibilidade de se autorrealizar:
ao adquirir a capacidade de autorrealização, ele também estará adquirindo a
capacidade de se autodeterminar, podendo, com isso, afirmar sua vontade livre. Em
Patologias de la libertad, Honneth descreve como se estrutura o reino da liberdade
realizada. Diz ele:
Considerando que, como o próprio Hegel diz no § 4: "a base do [...]
direito é a vontade, que é livre, de uma maneira que [o sistema
[legal]] é o domínio da liberdade realizada". Com esta expressão,
Hegel já revela que ele quer algo mais que uma mera determinação
ou a proteção ou a garantia da liberdade individual; o sistema do
direito deveria antes ser um reinado, no qual a liberdade dos
indivíduos pode ser realizada, de tal forma que tenha que incluir
determinações ou elementos públicos que possam valer como
objetivos dessa autorrealização livre (HONNETH, 2016, p.30)3.

Com efeito, é no âmbito da vida pública que o indivíduo pode alcançar sua
libertação completa do sofrimento e realizar sua vontade livre, pois é por intermédio
das relações intersubjetivas que o sujeito social reconhece o outro em si mesmo. É
justamente aqui que Honneth opõe-se ao atomismo individualista de Rawls. Na
teoria da justiça como equidade, Rawls argumenta que uma sociedade é bem-
ordenada e, portanto, justa quando cada pessoa tiver um direito igual ao conjunto
mais abrangente de liberdades básicas iguais compatíveis com um sistema de
liberdades semelhantes para as outras – “princípio de liberdades iguais” – e, ao

3
En tanto que, como el mismo Hegel dice en el §4: la base del derecho […] es la voluntad, que es
libre, de tal manera que […] [el sistema jurídico] es el reino da libertad realizada. Con esta
expresión, Hegel ya da conocer que quiere algo más que una mera determinación o de la protección
o de la garantía de la libertad individual; el sistema del derecho debe más bien crear un reino ,
en el que pueda realizarse la libertad de los individuos, de tal manera que tenga que incluir
determinaciones o elementos públicos que puedan valer como metas de esa autorrealización libre. .
(Honneth, 2016, p. 30; trad. minha)
29

mesmo tempo, que o conjunto das desigualdades sociais e econômicas deveriam


ser ordenadas de modo que sejam (a) consideradas vantajosas para todos (e)
vinculadas a posições e cargos acessíveis para todos – princípio da igualdade de
oportunidades (Cf. Rawls, 2000, p. 64). Contrariamente à Rawls, que afirma que os
princípios da justiça são escolhidos em uma posição original sob um véu da
ignorância, portanto, é o resultado de uma construção reflexiva individual, Honneth
direciona sua atenção para a realização da vida boa de todos os indivíduos em
sociedade e, ao mesmo tempo, na promoção e no exercício de sua vontade livre
através da eticidade e do reconhecimento intersubjetivo. Nas suas palavras:
Se a realização da liberdade individual está ligada à condição de
interação, uma vez que os sujeitos somente podem se experienciar
como livres em suas limitações em face de outro humano, então
deve valer para toda a esfera da eticidade o fator de ter de residir nas
práticas de interação intersubjetiva; aquelas possibilidades de auto-
realização individual, que essa esfera pôs à disposição, devem ser
compostas em certa medida pelas formas de comunicação nas quais
os sujeitos podem ver reciprocamente no outro uma condição de sua
própria liberdade (HONNETH, 2007, p. 107).

O reconhecimento intersubjetivo, na perspectiva filosófica de Honneth,


necessita primordialmente da consciência humana, pois é através dela que o
indivíduo pode bem se relacionar com a sociedade, ou seja, ter uma boa interação
social para poder começar a se libertar do sofrimento em que vive. Honneth mostra
que esse lado prático do reconhecimento está conectado ao comportamento do
indivíduo na sociedade: é na interação com os outros nas diferentes esferas da
sociedade que ele percebe que suas ações podem determinar a construção de
sentido do reconhecimento intersubjetivo. Conforme Honneth, Hegel mostra que o
indivíduo só é digno do reconhecimento intersubjetivo quando ele mesmo se faz
reconhecer o que vale (Cf. Honneth, 2007, p. 108); em outras palavras, ao se
reconhecer como indivíduo de valor, ele toma consciência do seu valor no
relacionamento com o outro. Diz Honneth:
A expressão “comportamento”, utilizada aqui, esclarece a tentativa
de Hegel ao empregar adicionalmente no mesmo lugar o conceito de
“tratamento”: reconhecer-se reciprocamente não significa somente
relacionar-se com o outro numa atitude determinada de aceitação,
mas implica também e, sobretudo, comportar-se diante do outro de
um modo que exija moralmente a forma correspondente de
reconhecimento (HONNETH, 2007, p.108).
30

As atitudes de eticidade praticadas pelo indivíduo podem conduzi-lo


gradualmente ao reconhecimento recíproco e à construção da esfera da ética do
reconhecimento intersubjetivo; para além da questão de ser “digno”, as questões do
dever se inscrevem como o próximo passo da ação intersubjetiva de reconhecimento
– em Hegel, esses deveres adquirem um efeito libertador para indivíduo e se
configuram em uma ferramenta fundamental para uma melhor interação social, que
possibilita ao indivíduo alcançar a autorrealização. Honneth diz que Hegel considera
o dever como sendo algo vazio, que deveria obrigatoriamente ser preenchido por
uma determinação ética. Nas palavras de Honneth:
[...] A conexão esboçada desse modo salta aos olhos logo que são
consumadas as modificações conceituais que Hegel efetua diante a
ideia kantiana de “dever”: enquanto em Kant, tal como se lê
novamente no §148, o “dever” representa um “princípio vazio da
subjetividade moral”, na Filosofia do direito “as determinações éticas”
[devem] se apresentar como relações necessárias”; isso dispensa,
continua Hegel, ter de acrescentar a cada determinação ética a
conclusão de que “assim essa determinação é um dever para os
homens” (HONNETH, 2007, 110-111).

Com efeito, Honneth mostra que as relações intersubjetivas de


reconhecimento estão conectadas aos deveres morais, na medida em que se
desenvolvem como uma ação social que se encontra presa a algumas normas
obrigatórias; em outras palavras, seguem uma doutrina do dever.

3.3 A DOUTRINA DO DEVER ÉTICO E O RECONHECIMENTO INTERSUBJETIVO

No capítulo anterior, argumentei que o reconhecimento intersubjetivo na


esfera do direito estava fundamentado na autonomia formal da pessoa e mostrei que
em seu núcleo se originava um processo de autorrealização plena da subjetividade
dos indivíduos. Nesta seção, apresento a tese de que a “doutrina do dever ético”
possibilita alcançar, por meio de uma reflexão consciente da liberdade, a
autorrealização, na forma normativa de um reconhecimento intersubjetivo, na esfera
do direito. Diz Honneth:
Se nessas determinações incluirmos ainda a reflexão que antes
havia valido em referência à necessidade de possibilitar a
autorrealização, então já surge um quadro relativamente completo de
pressupostos que a esfera da eticidade tem de poder cumprir. Hegel
parece estar convencido de que só podemos falar de estruturas
éticas, de relações éticas da vida, onde são dadas ao menos as
seguintes condições: deve ter um padrão de práticas intersubjetivas
31

que possibilite aos sujeitos se realizarem na medida em que se


relacionam mutuamente, de modo a expressar reconhecimento por
meio de sua consideração moral (HONNETH, 2007, p. 112).

Aos olhos de Honneth, a autorrealização do sujeito se desenvolve


primeiramente no âmbito das relações intersubjetivas que se originam tanto de suas
experiências da liberdade individual como da reflexão que ele faz consigo mesmo –
Honneth define esse processo como uma experiência do “ser-consigo-mesmo”;
trata-se de um tipo de experiência no qual o indivíduo é concebido como um sujeito
livre de quaisquer coerções externas na realização de sua vontade livre. Para
Honneth, em seus escritos Hegel mostra o indivíduo se ajusta e molda seu caráter
por meio de um processo de socialização pela eticidade; em outras palavras, por
meio da eticidade, o indivíduo se constrói como um sujeito social consciente dos
seus direitos e deveres. Honneth ressalta que a construção de um sujeito social
consciente é o resultado das experiências recíprocas de reconhecimento
intersubjetivo que se constituem na esfera da eticidade; em outras palavras, essas
experiências recíprocas de reconhecimento subjetivo permitem a autorrealização
individual.
Pela reconstrução da teoria social de Hegel, Honneth quer mostrar que os
indivíduos devem aprender a conviver com indivíduos que possuem diferentes
vontades e, ao mesmo tempo, devem saber que cada indivíduo possui uma vontade
singular que também quer que seja realizada. Nesse contexto, se o reconhecimento
intersubjetivo não for efetivado adequadamente, podem se originar mazelas sociais
que se constituirão em horizontes de negação de autorrealização individual e, ao
mesmo tempo, de promoção de patologias e desigualdades sociais profundas. Para
Honneth, um sujeito social esclarecido, cuja vontade é pautada em suas ações
éticas, pode ajudar na construção de uma sociedade mais ética, justa e livre. Nas
palavras de Honneth:
[...]. Se a série das condições enumeradas em meras palavras-
chaves, então vale para a esfera da ética que ela que ela tem que
residir em práticas de interações que têm de poder garantir a
autorrealização individual, o reconhecimento recíproco e o processo
de formação correspondente; e entre as três afirmações principais
têm que existir nesse caso entrelaçamentos estreitos, no momento
em que Hegel parece estar convencido de que se encontrar em si
numa relação de condição recíproca. Ora o fato de que já estamos
em condições de reconstruir essa pretensão normativa antes mesmo
de toda prova de implementação da teoria nos deve levar ao
prejulgamento de que Hegel procederia em seguida com um tipo de
32

construtivismo moral; não é verdade que ele esboça primeiramente


uma série de princípios de justiça bem fundamentados para depois
se perguntar como têm de ser arranjadas as condições sociais de
sua realização (HONNETH, 2007, p. 115).

Honneth está preocupado com as patologias sociais (alienação, anomia,


reificação, etc.) características de nossas sociedades, na medida em que elas
ameaçam a autorrealização do sujeito e sua vontade livre, incapacitando-o de
reconhecer intersubjetivamente a vontade do outro. Em outras palavras, essas
patologias sociais prejudicam a formação social normativa de uma sociedade; por
isso, na perspectiva de Honneth, o dever ético, o reconhecer o outro-em-si-mesmo
etc., se configuram como os pilares que sustentam a construção social do indivíduo
moderno e do sujeito social contemporâneo, através da ação ética e da experiência
do “ser-consigo-mesmo”.
[...] Entre a “família”, a “sociedade civil” e o “Estado” não deve haver
relações de nivelamento normativo, mas uma relação hierárquica; as
esferas individuais encontram-se aí dispostas ao longo de uma linha
ascendente para cuja escala deixam-se encontrar na Filosofia do
direito uma série de razões que podem ser mantidas sem referência
ao silogismo (Schlussformen) lógico (HONNETH, 2007, p. 117).

A família seria, portanto, o ponto de partida para que o indivíduo possa se


relacionar de forma ética, tanto em uma relação de amor como em uma relação de
amizade. Para Honneth, esse tipo de relação primária aparece na filosofia de Hegel
como uma forma de “eticidade na forma natural”; em outras palavras, essa esfera
trabalharia como se fosse uma inclusão, isto é, representaria o primeiro local onde o
indivíduo poderia superar suas carências mais imediatas. Honneth afirma que essa
forma de relação de amizade entre um homem e uma mulher, que num primeiro
momento se estrutura em torno da carência de ambos, pode resultar em um
relacionamento de amizade que, finalmente, pode acarretar na união de ambos,
transformando a relação de reconhecimento intersubjetivo em um casamento
duradouro. Dessa forma, a singularidade de um suprirá a singularidade do outro,
fazendo com que um possa se reconhecer no outro, de modo que a satisfação dos
seus impulsos individuais, por meio da relação sexual entre os parceiros, pode
resultar no nascimento de um filho, dando origem à formação de uma pequena
família. Diz Honneth:
Por essa razão, a família deve seu lugar como base elementar de
toda eticidade ao fato da relação à natureza da carência humana;
33

sem o reconhecimento intersubjetivo ao qual chegam as pulsões no


espaço interior da família, a formação de uma “segunda natureza”,
de um fundo socialmente partilhado em costumes e comportamentos,
não seria possível (HONNETH, 2007, p.118).

Portanto, com a formação da família, as relações éticas entre os indivíduos


adquirem uma consolidação cada vez maior na esfera de reconhecimento
intersubjetivo; para Honneth, o dever ético entre esses indivíduos passa a ser um
ponto primordial para o estabelecimento de outras relações intersubjetivas nas
demais esferas.
A esfera da sociedade civil, que no sistema Lógico de Hegel se configura na
segunda esfera do reconhecimento intersubjetivo e do dever ético, também está
baseada no “sistema de carência”. De acordo com Honneth, na esfera da sociedade
civil se estruturam relações de troca (por exemplo, as relações de mercado) que
procuram suprir as carências que não podem ser supridas na esfera da família –
Honneth chama de “nível superior de individualização” esses tipos de relações de
troca que se desenvolvem no interior de uma determinada comunidade. Diz ele:
Hegel deixa-se conduzir pela ideia de que lá no âmbito da circulação
medida pelo mercado o sujeito se apresenta como pessoa de direito
individualizada, enquanto aqui, no espaço interior da família, existe
apenas como membro dependente de uma comunidade que não
escolheu. Trata-se, em outras palavras, de um nível superior de
individualização, de chances de realização de interesses
egocêntricos que, na visão da “sociedade civil” de Hegel,
proporcionam uma certa reflexividade diante dos espaços de
comunicação da família. [...]. Neste sentido, pode ser correto numa
primeira aproximação insistir na diferença entre satisfação de
interesses egoístas e de carências intersubjetivas como a diferença
central; além disso, esboçam-se também já as diferenças entre
ambas as esferas, que se residem simultaneamente no tipo de
entrelaçamento entre reconhecimento e autorrealização (HONNETH,
2007, p. 120).

Segundo Honneth, o indivíduo que sai de um reconhecimento na esfera da


singularidade, cuja carência era suprida no próprio no contexto familiar,
progressivamente, pelo contato que mantém com a sociedade civil, passa a
desenvolver novas carências nas relações do mercado de trabalho; desta forma, ele
pode desenvolver suas habilidades tornando-se útil para a sociedade; aos olhos de
Honneth, ao se mostrar útil para a sociedade, o indivíduo passa a ser reconhecido
pelos demais como alguém de valor; ao mesmo tempo, ele passa a reconhecer os
demais membros como cidadãos que têm direitos e deveres, deixando, assim, de
34

ser um indivíduo exclusivamente preocupado com seus desejos singulares,


passando a exercer funções públicas, despreocupado de suas carências naturais
particulares; é nesse momento que ele se torna um membro ativo na sociedade.
Honneth diz que as relações de reconhecimento intersubjetivo nas esferas da
família e da sociedade civil preparam o terreno para a construção de um sujeito que
necessariamente estará incluído na esfera de um Estado. Para ele, o indivíduo, de
forma racional, poderá desenvolver suas habilidades empregando-as em benefício
universal. É nesta esfera que nosso autor diz que o indivíduo realmente consegue se
reconhecer como um sujeito social em sua universalidade; em outras palavras, é
nesta esfera que ele poderá fazer uso de seus direitos e deveres e se
autodeterminar.
Até agora, procurei mostrar que, em cada uma das esferas, as relações de
reconhecimento visam suprir um conjunto específico de carências; na esfera da
família, as relações entre as necessidades dos cônjuges ou dos pais e dos filhos são
dispostas através de uma carência natural ou de uma relação íntima entre esses
indivíduos que confiam uns nos outros: nas palavras de Honneth, “[...] amar uma
outra pessoa significa comporta-se em face desta tendo consciência de que sem ela
‘eu me’ sentiria insuficiente e incompleto” (HONNETH, 2007, p. 125); na esfera da
sociedade civil, o reconhecimento desenvolve-se através das relações de mercado
de trabalho; nas relações de trabalho, os indivíduos se autorrealizam desenvolvendo
sua autonomia e tornando-se uma pessoa de direito individualizada; na esfera do
Estado, âmbito da universalidade do sujeito social, os interesses particulares dos
indivíduos não se sobrepõem aos interesses coletivos. É nessa esfera que se origina
a ideia de “liberdade pública”, na qual as relações políticas assumem a conotação de
“vontade” democrática.
35

4 AS TRÊS CONCEPÇÕES DE LIBERDADE NA OBRA “O DIREITO DA


LIBERDADE” DE HONNETH

Em O Direito da Liberdade, Honneth apresenta três conceitos de liberdade, a


saber: a liberdade negativa, a liberdade reflexiva e a liberdade social. Segundo
Honneth, a liberdade negativa consiste na busca, por parte do indivíduo, de seus
próprios interesses sem a interferência de impedimentos exteriores; em outras
palavras, trata-se de uma ideia de liberdade que “repousa numa arraigada intuição
do individualismo moderno” (HONNETH, 2015, p.46), visto que este tipo de liberdade
se encontra diretamente ligada à autonomia do indivíduo, não encontrando nenhuma
força externa que o coaja, uma vez que ele é dono de sua “vontade”. Por sua vez, a
liberdade reflexiva “se estabelece, antes de tudo, somente pela relação do sujeito
consigo mesmo”, ou seja, “é livre o indivíduo que consegue se relacionar consigo
mesmo de modo que em seu agir ele se deixe conduzir apenas por suas próprias
intenções” (HONNETH, 2015, p.58-59); trata-se de um tipo de liberdade que se
apresenta quando a pessoa faz uso de sua racionalidade para decidir o que é
melhor para sua afirmação; além disso, neste conceito de liberdade, a pessoa só
pode ser considerada livre quando ela é capaz de reconhecer em si própria suas
vontades. Finalmente, a liberdade social, ou nas próprias palavras de Honneth, “[...]
nessa nova concepção da teoria do discurso da liberdade, “social” é a circunstância
segundo a qual determinada instituição de realidade social já não é considerada
mero aditivo, mas condição e meio para o exercício da liberdade” (HONNETH, 2015,
p. 81); esta concepção de liberdade se estabelece quando o sujeito faz uso do
exercício tanto de sua liberdade reflexiva como de sua liberdade negativa no âmbito
social, nas relações institucionalizadas, tais como nas relações de mercado, nas
relações familiares e nas relações com o Estado.
Honneth afirma que os valores das sociedades liberal-democráticas acabam
se fundindo em um único valor: o valor da liberdade (entendido como autonomia do
indivíduo). Para ele, cada esfera da nossa sociedade tende a ter uma noção de
liberdade individual que se estrutura de acordo com nossas experiências e, por isso,
o conceito de justiça pode se dividir em múltiplas esferas, procurando uma “maneira
justa” de legitimar essa liberdade no contexto de nossas sociedades
contemporâneas (Cf. Honneth, 2015, p.10). Nosso autor argumenta que uma teoria
da justiça deve se preocupar em analisar a sociedade de forma a procurar princípios
36

puramente normativos, os quais possam mensurar a legitimidade moral do


ordenamento social. Diz ele:

A intenção de elaborar uma teoria da justiça como análise da


sociedade coincide com a primeira premissa, uma vez que a
reprodução das sociedades até hoje está ligada à condição de uma
orientação comum de ideias e valores basilares. Essas normas éticas
não apenas determinam ‘de cima’, sob a forma de ‘ultimate values’
(Parsons), quais medidas ou desenvolvimentos sociais podem ser
concebidos, mas também são determinados de baixo, precisamente
como objetivos de educação mais ou menos institucionalizados,
pelos quais se organizaria a vida do indivíduo no seio da sociedade
(HONNETH, 2015, p.19).

Partindo do princípio acima, Honneth pôde dizer que os movimentos sociais –


tais como os movimentos feministas, o movimento LGBT, os direitos humanos, os
movimentos sindicais etc. – procuram uma forma justa de exigir do governo e da
sociedade que a justiça se faça de tal maneira que a liberdade seja dada de forma
igual a cada um de seus indivíduos, e essa só pode ser legitimada quando a
autonomia do indivíduo for reconhecida como algo fundamental no interior dessa
sociedade. Nesse setido, a concepção de justiça e liberdade Honneth é oposta à
concepção ideal de justiça e liberdade de Rawls: enquanto Honneth defende uma
relação dialógica entre os sujeitos que procuram valores coletivos, Rawls parte do
princípio de que cada pessoa possui direitos invioláveis (por exemplo, a liberdade),
fundados no princípio da justiça, que nem mesmo o bem-estar da sociedade como
um todo pode ignorar.

4.1 A LIBERDADE NEGATIVA

Na perspectiva de Honneth, na sociedade moderna existem um conceito


monológico liberdades – tal como a liberdade negativa – que é exercido quando,
através de um ato reflexivo, o indivíduo toma por correto aquilo que pode ser mais
benéfico para ele, visto que não haveria nenhum impedimento externo ou coação
que pudesse interferir em sua vontade. Citando Hobbes, Honneth afirma que, no
âmbito de uma liberdade negativa, “um homem livre é aquele que não é impedido de
fazer o que tem vontade de fazer naquelas coisas que é capaz de fazer graças à sua
força e seu engenho” (HONNETH, 2015, p. 44); assim, nem mesmo os obstáculos
internos, como medo ou falta de confiança, podem impedir que a racionalidade do
indivíduo o torne livre para tomar suas próprias decisões. Como mostramos nos
37

capítulos anteriores, a efetivação da vida boa está pautada nas realizações das
vontades livres dos indivíduos; cada esfera de reconhecimento intersubjetivo carrega
consigo um tipo de necessidade que deve ser suprida. A liberdade do indivíduo,
nesse sentido, se configura em uma busca da realização dos interesses próprios
sem nenhum impedimento; em outras palavras, esse ideal de liberdade é
monológico por que o indivíduo delibera exclusivamente consigo mesmo, sem
nenhum impedimento externo. Nas palavras de Honneth:
A ideia de que a liberdade do indivíduo consiste na busca de seus
próprios interesses sem que haja impedimentos “de fora” repousa em
arraigada intuição do individualismo moderno. Segundo essa ideia, o
próprio sujeito detém um direito à especificidade, à qual ele se apega
por seus desejos e intenções que são elevados. Por essa razão, em
Hobbes, o livre estabelecimento de objetivos, que podem valer como
fins legítimos de ações livres, inspirou, no sentido contrário ao de
suas próprias convicções, o surgimento de um pesamento da
liberdade cuja principal preocupação é a defesa das idiossincrasias
(HONNETH, 2015, p. 46).

Portanto, para o filósofo frankfurtiano, nesse princípio de liberdade negativa,


que é dirigida exclusivamente pelos seus desejos, o indivíduo almeja efetivar sua
vida boa dentro de sua singularidade, numa tentativa clara de realizar sua vontade
sem reconhecer a vontade do outro. Honneth afirma que o século XXI seria o
apogeu do individualismo; desse modo, aos seus olhos, a concepção hobbesiana de
liberdade negativa deve ser superada, pois essa liberdade tem apenas o objetivo
daquilo que o indivíduo quer para si. Na esfera da liberdade negativa, o indivíduo
“conversa” e “delibera” consigo mesmo; é ele quem dita o que é melhor para si sem
se preocupar com os resultados das ações que ele venha adotar; em outras
palavras, basta o ato puro de realizar seus desejos para que ele queira usar sua
condição de liberdade. Honneht utiliza também o conceito sartreano de liberdade
negativa: segundo ele, “no páthos existencialista, a liberdade incondicionada chega
a um fim, num processo que se iniciou já com a determinação imperceptível pela
qual apenas impedimentos externos poderiam limitar as ações de um homem”
(HONNETH, 2015, p. 49-50); nesse sentido, podemos perceber que o indivíduo
poderia satisfazer sua vontade apenas realizando suas escolhas próprias sem
interferências externas.

Na filosofia política de Nozick, Honneth percebe que a liberdade negativa


tinha também como função a realização de suas vontades sem impedimentos
38

externos; com efeito, “[...] para um ator assim caracterizado, ser livre significa poder
realizar todos os objetivos de vida egocêntricos e caprichosos que forem
compatíveis com a liberdade de seus cidadãos” (HONNETH, 2015, p. 50). Portanto,
nesta esfera de liberdade, o indivíduo apresenta tanto uma forma racional de ver a
vida como também uma maneira específica de satisfação de seus desejos, não
podendo, de forma irracional, querer algo motivado apenas por seus impulsos e
desejos egoístas: “como limitações ‘externas’ da liberdade, deve-se considerar o
confronto dos sujeitos com a expectativa de submissão de seus desejos ou inteções
a padrões minímos de racionalidade” (HONNETH, 2015, p. 51). Assim, Nozick
considera fundamental que os indivíduos realizem seus desejos de forma racional,
evitando, com isso, que se viole o direto de outros.

Na ótica de Nozick, portanto, a ideia de uma liberade negativa (ou liberdade


indiviual) seria o ponto de partida para um ordenamento do Estado; no núcleo de
sua relfexão, o homem aparece como sendo um ser atomístico, ou seja, um ser que
busca apenas que seus interesses sejam realizados. Nas palavras de Honneth:

[...]. O espectro de alternativa chega assim ao Estado de coersão


hobessiano, cuja justificação ocorre sem a fundamentação assentada
em princípios morais, até o “Estado minímo” de Roberto Nozick, que
em sua fundamentação normativa é muito dependente de restrições
morais no estado de natureza. Em nosso contexto, é extremamente
significativo que os procedimentos de justificação assim delineados
permitam evidenciar a que tipo de justiça social é possível visar sob
perspectiva da liberdade negativa (HONNETH, 2015, p. 54).

Como podemos perceber, tanto a teoria de Hobbes como a teoria da Nozick


apresentam um caráter individualista; nessas teorias, os indivíduos vislumbram tão
somente a proteção e a garatia de sua própria liberdade. Com efeito, na teoria do
reconhecimento intersubjetivo de Honneth, a liberdade negativa não seria a
liberdade normativa que possa torrnar um Estado ou comunidade mais justa.

Para Honneth, esse indivíduo, motivado pelo seu ímpeto singular de realizar
suas vontades, deve começar a aprender que ele não se encontra sozinho em uma
sociedade; ele precisa aprender que outros indivíduos também possuem suas
vontades singulares e também eles querem que elas sejam realizadas. A liberdade
negativa, portanto, pode motivar conflitos que podem limitar ou até mesmo prejudicar
o processo de autodeterminação individual. Nas palavras de Honneth:
39

Todas as insuficiências reveladas pela ideia de liberdade negativa


remetem, em última instãncia, ao fato de ela cessar antes do limiar
legítimo da autodeterminação indiviudal. Para se conceber esse tipo
de liberdade que contivesse um elemento de “autodeterminação”,
seria necessário apreender também o objetivo do agir como rebento
da liberdade: o que o indivíduo realiza, quando age “livremente”,
poderia ser visto como resultado de uma determinação, que ele
próprio realiza para si (HONNETH, 2015, p. 57).

Em resumo, a liberdade negativa seria somente uma espécie de libertação


das forças que coagem o indivíduo a não adotar determinadas ações; desta forma, a
liberdade negativa pode inclinar o indivíduo a decidir somente por si mesmo como
realizar sua vontade livre. No entanto, essa realização é apenas individual, na
medida em que ele não se preocupa em realizar essa liberdade no mundo.

4.2 A LIBERDADE REFLEXIVA

Honneth aborda o conceito de liberdade negativa e o conceito de liberdade


reflexiva como contraponto para justificar a verdadeira liberdade, a saber, a
liberdade social (analiso essa esfera da liberdade na próxima seção). A liberdade
reflexiva se configura em uma ampliação do conceito normativo de liberdade
negativa; na perspectiva filosófica de Honneth, a liberdade reflexiva está ligada à
capacidade do indivíduo em usar suas orientações internas para desenvolver, ao
mesmo tempo, tanto sua ideia de autonomia como sua ideia de autorrealização,
fazendo com que o sujeito aja de forma que siga somente sua própria vontade; essa
vontade deve ser livre e deve acontecer no mesmo momento da intenção de fazer.
Honneth descreve a diferença entre os conceitos de liberdade negativa e reflexiva
da seguinte forma:
A liberdade negativa é elemento originário e indispensável da
autoconcepção moral da modernidade; nela se expressa a ideia que
o indivíduo deve desfrutar do direito de agir sem restrição externa e
sem depender de coerção para provar os motivos de “seu bel-prazer”
enquanto não violar os mesmos direitos de seus concidadãos. Ao
contrário do que se tem aí, na verdade a ideia de liberdade reflexiva
se estabelece, antes de tudo, somente pela relação do sujeito
consigo mesmo; segundo a ideia, é livre o indivíduo que consegue se
relacionar consigo mesmo de modo que em seu agir ele se deixe
conduzir por suas próprias intenções (HONNETH, 2015, p.58).

Podemos afirmar, portanto, que na esfera da liberdade negativa é livre o


indivíduo que consegue se relacionar consigo mesmo, pois ele é somente conduzido
40

por sua vontade sem coerção externa; a liberdade individual, nesse sentido, pode ter
diversas formas de manifestações; entretanto, a ideia de liberdade reflexiva deixa
claro que o indivíduo não pode ter somente a vontade ou se deixar levar por seus
desejos; ele tem que, de forma racional, fazer dessa vontade uma ação que o
beneficie sem transgredir o direito do outro; servindo-se sempre de sua autonomia e
de sua autenticidade, o indivíduo deve sempre buscar sua autodeterminação e sua
autorrealização. Referindo-se à Isaiah Berlin, Honneth argumenta que este
apresenta outras definições da liberdade reflexiva; Berlin chama de liberdade
“positiva” aquela liberdade que está ligada à “autonomia” do indivíduo e à
“autorealização” do mesmo; em outras palavras, o indivíduo segue a vontade
própria, dialoga consigo mesmo e identifica o que é melhor para seus interesses de
forma reflexiva, livrando-se, progressivamente, de seus apetites (Cf. Honneth, 2015,
p. 59 - 60). Com efeito, essa reflexão faz com que o indivíduo perceba a diferença
entre autonomia e heteronomia; ele torna-se capaz de controlar seus desejos e,
assim, aqduire a capacidade de poder se autolegislar de forma racional. Honneth
usa Rousseau para demonstrar em que consiste a expressão “ser livre”. Diz ele:
“[...] o sujeito humano deve ser considerado ‘livre’ uma vez que possui fortuna e à
medida que tem a capacidade de se dar as leis de seu agir e se fazer ativo em
conformidade a ela” (HONNETH, 2015, p. 63).
A autonomia, nessa perspetiva, assume o significado de uma capacidade
ética de cumprir aquilo que o individuo próprio se determina. Kant vai aprimorar o
conceito de vontade de Rousseau: em Kant, apesar de um indivíduo ser considerado
como um indivíduo autônomo, ele deve ter a capacidade reflexiva de se
autodeterminar de uma forma que crie máximas de caráter universal que irão guiar
suas atitudes não somente em relação a si mesmo, mas à toda sociedade. Nas
palavras de Honneth:
[...] Na condição de ser racional, portanto pertecente a um mundo
intelligível, o homem só pode pensar a causualidade de sua própria
vontade mediante a ideia de liberdade; pois a independência das
causas determinantes do mundo sensível é [...] a liberdade. Com a
ideia de liberdade estão inseparavelmente ligados o conceito de
autonomia e o princípio universal da moralidade, que serve de
fundamento à ideia de liberdade de todas as ações de seres
racionais, assim como a lei natural serve de fundamento a todos os
fenômenos (HONNETH, 2015, p. 65).

Na perspectiva de Honneth, a visão kantiana de liberdade reflexiva estaria


assentada na máxima de como o indivíduo deseja respeitar e espera ser respeitado
41

pelos demais componentes da socidedade; em outras palavras, o que está em jogo


é o respeito recíproco. Como podemos exercer nossa vontade livre? Como podemos
nos autodeterminar e nos autorrealizar sem que isso prejudique o indivíduo ou a
sociedade? Com efeito, em relação à liberdade reflexiva, Honneth afirma:
A liberdade reflexiva, que em Kant é inteiramente monológica,
adquire assim um significado teórico-intersubjetivo que lhe permite
estar mais fortemente ancorada nas estruturas sociais do mundo
real, já que o sujeito individual só chega à autonomia da
autolegislação ao socializar-se numa comunidade comunicativa na
qual aprende a se compreender como destinatário das normas gerais
que, simultaneamente, foi ele próprio que constituiu com todos os
demais (HONNETH, 2015, p.70).

Historicamente, a liberdade reflexiva é a primeira das liberdades, e é através


dela que o indivíduo, de forma racional, vai interagindo com os demais membros de
sua sociedade. Em sua ação e reflexão racional, o indivíduo não só pensa no “eu”,
mas em “nós”; essa forma de liberdade se apresenta como uma autolegislação
coletiva. Além disso, esse tipo de reflexão faz com que o indivíduo compreenda que
o outro também possui desejos que querem ser realizados. Contrariamente aos
demais animais, o indivíduo realiza efetivamente suas vontades dentro de uma
esfera de reconhecimento, seja ela a mais singular ou a mais universal. Sentir-se
realmente livre, ter sua autonomia e sua autorrealização respeitadas se constitui
como o horizonte da vontade de todos dentro das esferas sociais de
reconhecimentos recíprocos – em Honneth, essa vontade é conhecida como
vontade autêntica. A liberdade reflexiva está intimamente ligada ao conceito de
liberdade e justiça, especialmente à justiça social, que representa a realização de
todas as liberdades indivíduais. Diz Honneth:
No cerne dessa questão existe a ideia de que a autonomia moral
resulta metodologicamente numa concepção processual de justiça. O
processo de autodeterminação individual é transferido para os graus
superiores do ordenamento social, em que é concebido como
procedimento de formação da vontade comum na qual os cidadãos,
em condições iguais, deliberem sobre os princípios de um
ordenamento social que lhes pareça”justo” (HONNETH, 2015, p. 73).

Com efeito, a esfera da vontade coletiva começa a superar, de forma amena,


o sistema de egoísmo social, de modo que a cooperação e a deliberação pública
começam a aparecer como a forma mais justa de realização da vontade, sem deixar
que sejam perdidas as liberdades indivíduais. A liberdade reflexiva se constitui, para
o indivíduo, em um processo que o ajuda na sua formação social e lhe fornece as
42

condições de autorrealização, sem que isso possa causar prejuízos para os demais
membros dessa sociedade.

4.3 A LIBERDADE SOCIAL

A liberdade social é um tipo de liberdade que o sujeito exerce compartilhando


com os outros; através do exercício de sua autonomia, o sujeito vai buscar a
realização da comunidade, e não somente sua própria realização. A liberdade social
não é apenas mais um conceito de liberdade; ela é o exercício formal da liberdade.
Nela, o sujeito social pode realizar realmente sua vontade livre. Nesse sentido,
diferentemente das liberdades negativa e reflexiva, que são conceitos monológicos
de liberdades, a liberdade social precisa da interação social, ou seja, do
reconhecimento intersubjetivo, pois é somente nessas condições que podemos
exercitar realmente nossa liberdade moral. Honneth diz que “sou livre somente à
medida que estou em condições de orientar minha ação para objetivos
estabelecidos de maneira autônoma ou em relação aos desejos autênticos”
(HONNETH, 2015, p. 83-84).
Baseado nas intuições hegelianas, nosso autor cita como exemplo de
liberdade social as relações de “amor” e “amizade”, na medida em que, aqui, há uma
interferência externa sobre o indivíduo, que reconhece no outro as suas próprias
vontades; Honneth usa o termo “estar consigo mesmo no outro” para designar uma
forma de reconhecimento recíproco entre os indivíduos. A liberdade social, portanto,
só pode ser realizada no seio de uma sociedade ou comunidade, de modo que esse
reconhecimento intersubjetivo só pode dar-se no meio das instituições. O “conceito
social de liberdade”, nas palavras de Honneth, significa:
[...] em última instância, o sujeito só é “livre” quando, no contexto de
práticas institucionais, ele encontra uma contrapartida com a qual se
conecta por uma relação de reconhecimento recíproco, porque nos
fins dessa contrapartida ele pode vislumbrar uma condição para
realizar seus próprios fins. Desse modo, na forma do “ser em si
mesmo no outro” sempre se pensa numa referência a instituições
sociais, uma vez que somente práticas harmonizadas e consolidadas
fazem que os sujeitos compartilhados possam se reconhecer
reciprocamente como outros de si mesmos. E somente essa forma
de reconhecimento é a que possibilita ao indivíduo implementar e
realizar seus fins obtidos reflexivamente (HONNETH, 2015, p. 87).

É por isso que Honneth afirma que o reconhecimento intersubjetivo, bem


como a luta por esse reconhecimento, ocorre principalmente na esfera da
43

solidariedade, visto que é através de instituições como a família, a escola, a igreja, o


Estado, o mercado etc., que o indivíduo pode se reconhecer e reconhecer os outros
como iguais e portadores de direitos e liberdades. É nesse sentido que poderemos
ver a sociedade formada por sujeitos conscientes de seus direitos e deveres, de
forma a desenvolver uma sociedade mais justa, onde as patologias sociais sejam
amenizadas ou até extinguidas do seio dessa sociedade, prevalecendo a dignidade
da pessoa humana e o respeito mútuo. Diz Honneth:
Aquele que se aspira liberta-se da relação de gozo, que se torna
imendiatamente ser um de ambos no ser-para-o-outro absoluto de
ambos ou se converte em amor; e nessa visão o gozo é consciência
nessa contemplação de si mesmo no ser do outro.” [...]. É apenas
sob a condição histórica que a prática social substitui esse tipo de
padrão pelo ideal moderno e romântico de amor que podemos
relacionar dois sujeitos de modo que possam, reciprocamente, ver no
outro sua liberdade erótica para realização. Sendo assim, já a
primeira concepção de amor por Hegel contém a referência a uma
instituição pensada como condição social, pois só assim pode existir
uma relação de reconhecimento (HONNETH, 2015, p. 87-88).

Portanto, a liberdade social é uma forma de liberdade institucionalizada,


baseada na eticidade e no reconhecimento intersubjetivo, em que o justo aparece
como algo que ofereça igualmente aos indivíduos a oportunidade de participação
nas instituições de reconhecimento. Honneth afirma que a liberdade, em Hegel, em
um contexto intersubjetivo, torna-se um conceito mais amplo, pois é na esfera social
que o indivíduo se torna realmente livre e começa a reconhecer o “ser em si mesmo
no outro”.
Na sociedade, as instituições devem promover as relações de
reconhecimentos intersubjetivos para que seus indivíduos possam exercer de forma
mais plena a sua liberdade. Na forma institucionalizada de uma relação
intersubjeitva, cada indivíduo procura realizar sua vontade livre; sua aspiração da
liberdade individual fará com que esse sujeito, em sua construção social, procure
uma forma de liberdade mais ampliada. Honneth, tal como Hegel, considera que o
sujeito somente se sentirá realizado na esfera da vida pública. Diz ele:
Hegel exige também a função de tal generalização de desejos e
intenções das instituições que concentram toda a sua doutrina da
liberdade. Assim, em última instância, ele se deixa conduzir pela
ideia aristótelica segundo a qual os sujeitos, sob a influência de
práticas institucionalizadas, aprendem a alinhar seus motivos a seus
fins internos. Desse modo , ao final de um processo de socialização
desse tipo tem-se um sistema relativamente estável e costumeiro de
aspirações que fazem que seus sujeitos pretendam o que antes
44

estava assentado em hábitos normativos das práticas (HONNETH,


2015, p. 93).

Para Honneth, além dos indivíduos estarem ligados aos outros pelo
reconhecimento intersubjetivo, eles crescem juntamente com sua sociedade através
de um ciclo de socialização realizado nas instituições, podendo, assim, universalizar
a liberdade social em uma sociedade pluralizada, mediante a prática da
reciprocidade. Com isso, durante toda a sua vida, o indivíduo vai poder se realizar
em sua vontade livre e conquistar a vida boa.
Em Honneth, portanto, conforme argumentei até agora, a liberdade está
ligada à autorrealização do indivíduo e à superação de suas carências, pois as
relações de interdependência dos indivíduos nas instituições da sociedade, a
procura da realização de suas vontades, bem como a exigência do respeito e a
efetivação da dignidade da pessoa humana fazem com que as lutas pelo
reconhecimento intersubjetivo e a realização da vontade livre transformem uma
sociedade, através da eticidade, em uma sociedade justa e livre.
45

5 CONCLUSÃO

Os escritos de Honneth se propõem a reatualizar a teoria social de Hegel,


mostrando a evolução de sua teoria crítica através da luta pelo reconhecimento, no
qual o indivíduo tende a reconhecer que o outro possui aspirações à realização de
suas vontades tal como ele. Nas esferas do reconhecimento intersubjetivo, Honneth
delineia a evolução do reconhecimento, primeiramente, na esfera do amor e da
amizade, representada tanto pelas necessidades como pelas carências do indivíduo,
de forma que, através do reconhecimento intersubjetivo, ele possa desenvolver uma
relação de autoconfiança; em segundo lugar, pela sua particularidade no direito,
Honneth procura mostrar que, através das relações de mercado, a pessoa pode
evoluir e desenvolver suas habilidades, alcançando, assim, sua autorrealização
plena; a terceira e última esfera do reconhecimento intersubjetivo é a esfera da
solidariedade; pelo sua característica de universalidade, o sujeito adquire sua
autodeterminação.
Em sua reconstrução da teoria critíca, Honneth procura mostrar, nas
condições sociais da existência das liberdades individuais, representadas pela
liberdade negativa e pela liberdade reflexiva, que o indivíduo tem sim sua vontade e
ela deve ser realizada; entretanto, essas liberdades são superadas através da
eticidade e do reconhecimento intersubjetivo, na tomada de consciência de que esse
indivíduo não está só no mundo, e sim inserido em um contexto social mais amplo e
complexo, no qual ele participa e tem direitos e deveres que precisam ser
respeitados. Este tipo de liberdade é definido como liberdade social ou vontade
coletiva.
Honneth mostra que a teoria crítica da sociedade está preocupada com a
superação das patologias sociais próprias de nossa modernidade política, social,
cultural, econômica; além disso, ele procura mostrar como o reconhecimento
intersubjetivo individual e social pode mudar a forma como cada um trata seus
pares, procurando, através de uma concepção de justiça normativa, respeitar a
liberdade de seus indivíduos, podendo, assim, formar uma sociedade com mais
dignidade e respeito à pessoa humana, de modo que todos possam exercer seus
direitos sociais de uma forma plena. Nesse sentido, aos seus olhos, em cada esfera
social há uma forma de reconhecimento intersubjetivo de onde os indivíduos vão
suprindo suas carências. Em suma, a liberdade, a construção do sujeito social, o
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respeito da particularidade da pessoa de direto, a universalidade do sujeito e a sua


autonomia – eis o que está no núcleo da teoria crítica do reconhecimento de
Honneth. Nas nossas sociedade liberais contemporâneas, a liberdade só adquire
legitimidade na medida em que é construída de forma dialógica; para além do bem-
estar do indivíduo, é a autorrealização da sociedade, através de sua
autodeterminação, que é o cerne da ação e da reflexão em termos de justiça social,
conclui Honneth.
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REFERÊNCIAS

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Vitorino. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

HOBBES, Thomas. Leviatã; organizado por Richard Tuck. Tradução de João


Paulo Monteiro, Maria Beatriz Nizza da Silva, Claudia Berliner; revisão da
tradução Eunice Ostrensky. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

HONNETH, Axel. O Sofrimento de Indeterminação: uma reatualização da


Filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Editora Singular, Esfera Pública, 2007.

_____. Luta por Reconhecimento: A Gramática moral dos conflitos


sociais. Tradução de Luiz Repa; apresentação de Marcos Nobre. 2ª ed. São
Paulo: Editora 34, 2009.

_____. O Direito da Liberdade; tradução Saulo Krierger. São Paulo: Martins


Fontes. 2015.

_____. Patologias de La Libertad; editado por Jesús Hernàndez; Benno


Herzog. 1ª ed. Ciudade Autónoma de Buenos Aires: Las Cuarenta, 2016.

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução Maria Júlia Goldwasser; revisão


da tradução Zélia de Almeida Cardoso. 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes,
2004.

NOBRE, Marcos. “parte 1, Reconstrução em dois níveis: Um aspecto do


modelo crítico de Axel Honneth”. In.: MELO, Rúrion. (coord.) A Teoria Crítica
de Axel Honneth: Reconhecimento, liberdade e justiça. 1ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2013, p. 11- 54.

RAWLS. John. Uma Teoria da Justiça; tradução Almiro Pissetta e Lenita M. R.


Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

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