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A emergência de um novo saber geográfico: o retorno da ciência à filosofia

Roberison Wittgeinstein Dias da Silveira, Antônio Carlos Vitte

A EMERGÊNCIA DE UM NOVO SABER GEOGRÁFICO: O RETORNO DA CIÊNCIA À FILOSOFIA.

The emergence of a new geographic knowledge: the return of science to philosophy

Roberison Wittgeinstein Dias da Silveira


Mestre e Doutorando em Geografia pela IG-Unicanp
Campinas/SP – Brasil
silveira_r@yahoo.com.br

Antônio Carlos Vitte


Doutor em Geografia Física pela USP
Professor do Departamento de Geografia, Programa de Pós – Graduação em Geografia – IG – Unicamp.
Pesquisador CNPq
Campinas/SP – Brasil
vitte@uol.com.br

Artigo aceito recebido para publicação em 11/10/2010 e aceito para publicação em 13/04/2011

RESUMO: No cenário atual do conhecimento, a separação outrora traçada entre ciência e Filosofia encontra seu
ponto limite, cabendo agora uma nova unidade. A Geografia, nesse contexto geral do saber, encontra a
justa forma de sua história fracassada enquanto ciência moderna e, ao mesmo tempo, a função pioneira
de para além dos limites caminhar. Perdida em sua falta de unidade investigativa, em sua esquizofrenia
Física/Humana, lida a Geografia com o ponto nodal de toda a dificuldade contemporânea do saber, na
medida em que, nesse nada ser, busca a compreensão geral da unidade posta ao mundo pela relação
do homem com a natureza. Propriamente aqui, onde se funda toda a dificuldade histórica da análise
geográfica, toma forma um saber que transcende a barreira criada pela cisão entre Filosofia e ciência.

Palavras-chave: Filosofia. Ciência moderna. Geografia.

ABSTRACT :In the current scenario of knowledge, the separation between science and Philosophy finds its
limit, searching now a new unit. Geography, in this context of knowledge, presents its failed
history while modern science and, at the same time, its capacity for moving beyond the limits.
Lost in its lack of investigative unit, in its schizophrenia Physical/Human, Geography deals
with the nodal point of all contemporary difficulty of knowledge, in that seeks the understanding
of the world unit by the relationship of man with nature. Just at this point, where all historical
difficulty of geographic analysis is founded, takes form a knowledge that transcends the barrier
created by the split between Philosophy and science.

Keywords: Philosophy. Modern Science. Geography

Sociedade & Natureza, Uberlândia, 23 (1): 37-49, abr. 2011

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Roberison Wittgeinstein Dias da Silveira, Antônio Carlos Vitte

INTRODUÇÃO O caminho tomado pela ciência moderna no


final do século XVIII e início do século XIX gerou
Emerge no debate geográfico um novo tempo, uma série de ramificações e especializações que vi-
imaturo ainda para que a dimensão de sua atividade savam o domínio cada vez maior da esfera empírica
possa ser reconhecida; para que se vislumbre à dis- de investigação e que, em contrapartida, excluía do
tância um ruir que anuncia as formulações que agora universo científico a busca por uma verdade última
se engendram. A Geografia se vê as voltas com um ou pelo fundamento essencial da realidade. A ciência
refazer de si que é retorno, que é retomada do que moderna, pretensamente buscou a verdade, que seria
deixado fora em nome de uma especialização do alcançada por meio da reunião de um conhecimento
saber sob a figura de uma ciência moderna. Hoje, no meticuloso sobre o mundo para a composição de uma
alvorecer de seu novo dia, mostra a face deformada, explicação cada vez mais sóbria e válida acerca da re-
uma caricatura de si em que, símbolo do teatro e da alidade. Tinha-se a ilusão, como em especial acontece
comédia, como é sua história, se parte ao meio em nos campos da Física, da Química e da Biologia, que
duas expressões distintas. se caminha, a cada descoberta, na direção da com-
Trataremos de mostrar que o cenário recente preensão do que somos, do ser-em-sina direção das
da Geografia, e em especial uma proposta geográfica, respostas elementares e essências de toda existência.
anuncia esse quadro de mudanças e faz ver ao olho Ao longo dos tempos, tal premissa demonstrou-se
atento que os sentidos do geográfico precisam mudar impossível, pois os campos disciplinares ficaram des-
porque mudaram, e, o mais importante, que em nosso conectados de suas premissas filosóficas, no momento
tempo se põe como fundamental uma nova postura de gênese moderna das Ciências.
científica, que não por acaso mostra suas primeiras A primeira premissa filosófica, e que parece
manifestações na Geografia. De maneira mais clara, relativamente respondida pelas Ciências, é quanto
pretendemos mostrar o caminho suscitado por uma ao caráter material da realidade (BUNGE, 2010). As
Geografia que pretende, em último sentido, superar ciências modernas em geral, e em especial as Ciências
uma dicotomia que é a representação acabada do pro- Naturais, partem do pressuposto de que seu objeto é
blema geral posto ao saber; falamos, evidentemente, um recorte da realidade. Há aqui um duplo problema
da repisada divisão entre uma Geografia Física e outra filosófico: o de apontar um objeto como real e o de
Humana. Mostraremos como esse debate reúne toda sugerir um recorte analítico dessa realidade. Quando
a dificuldade contemporânea do saber e, mais do que falamos de um objeto de análise que é um recorte
isso, como, por sua manifestação viva no cenário da realidade estamos dizendo, de partida, que aquilo
epistemológico geográfico, começa a despontar em que examinaremos tem uma existência em si real,
sua resposta uma reformulação do saber que será, em ou seja, é atribuída uma primazia da materialidade
pouco tempo, uma necessidade geral de todo conhecer e uma efetividade do que se dá então como objeto.
que se pretenda legítimo e que busque mais do que a Essa primeira postura admite que o objeto indepen-
esfera técnica de controle e atuação. dente do sujeito, o que, filosoficamente falando, é no
mínimo arbitrário. A prova de que realmente assim é
A RUPTURA ENTRE AFILOSOFIA E A CIÊN- compreendido o objeto na ciência moderna pode ser
CIA MODERNA facilmente constatado pela crença de que a compre-
ensão sistemática pela ciência levará à compreensão
A nossa premissa é que há uma tendência geral geral da realidade, enfim, que esta nos conduzirá a
de aproximação dos campos científicos (BOURDIEU, alguma verdade(BUNGE, 1981).
2003) com a filosofia que foram separados durante a Esta crença do cientista fundamenta-se em
formação da ciência moderna. É neste cenário que uma pressuposição filosófica diametralmente oposta
Geografia se edificou como ciência moderna e enfrenta à admissão da esfera empírica como coisa em si ou
seus problemas epistemológicos a partir dessa carência como realidade independente do sujeito. A origem
investigativa de cunho filosófico. dessa validação do domínio empírico como campo

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de análise, em termos filosóficos, é dada por Kant estender a todo campo fenomênico, pois se trata de
(KANT, 1982), que considerou que é a partir do exame um mesmo domínio dado pelos mesmos pressupostos
crítico das faculdades humanas, em especial da razão, a priori da razão.
que se chegará à validade e o dimensionamento do em- A Ciência Moderna e sua esfera técnica de
pírico como única esfera possível de todo e qualquer controle e atuação constroem o fetiche de domínio da
conhecimento. É na validação de um pressuposto a realidade, fato que segundo Heidegger (1997) preen-
priori transcendental (KANT, 1982), enfim, de uma che o vazio da metafísica, a Ciência Moderna trans-
resposta metafísica, que se origina a validade de toda forma-se ela no substituto filosófico da modernidade.
a investigação empírica. Ora, isso é possível porque, Para os defensores do indutivismo restaria apenas a
em Kant (1982), o fundamento de toda e qualquer busca de uma regularidade que seria fornecida pelo
coisa que experimentamos como existente, como próprio objeto, competindo à razão somente o trabalho
empírico, é dado de maneira a priori pelas intuições de traduzir em linguagem lógica e, de preferência,
puras de espaço e tempo. Onde as formas de ligação matemática, as condições gerais de uma ordenação
e articulação do mundo são, em geral, postulados colocada e dada efetivamente pelo mundo. É nesse
necessários dados pelo a priori do entendimento, cenário intelectual que começam a se fortalecer as
conforme enunciado na Analítica dos Princípios, da ciências em seu caráter moderno, com métodos que
Crítica da Razão Pura, particularmente na segunda caminham na direção do objetivo e são construídos
e na terceira analogia da experiência (KANT, 1982, de forma diferenciada de acordo com a demanda do
p.61-70). Tanto a definição do campo da experiência, objeto. Em poucas palavras, deu-se, com a ignorância
quanto às formas de ligação que nele se reconhecem, da discussão filosófica, a tomada dos pressupostos e
diz respeito ao sujeito e filosoficamente, o domínio conceitos como se fossem já prontamente dados e
empírico não tem valor como coisa em si, ou seja, o sem que os cientistas se atentassem para o fato de que
empírico pertence a esfera fenomênica, pressuposta a escolha de um método implica, de antemão, uma
e legitimada pela aceitação dos argumentos expostos visão geral da realidade, pela qual se estabelece os
por Kant 1982)( na defesa de um a priori da intuição, princípios e a forma de proceder diante de qualquer
do entendimento e da razão. objeto e, mesmo, de reconhecer como tal qualquer
Para Kant (1982) a Ciência (de base newtonia- objeto da ou na experiência.
na) não deveria trabalhar com questões filosóficas; erro Mesmo o positivismo lógico guardou alguns
que o próprio Kant (1992, 1995) tratou de concertar dos problemas decorrentes desse fortalecimento da
na medida em que percebeu que a metodologia newto- crença na empiria como coisa em si e, o mais impor-
niana não dava conta de explicar as diversidades da tante, no fortalecimento de uma ilusão que leva a crer
natureza, pois a regulação, a ordenação e mesmo o pôr que as linguagens lógicas e matemáticas são capazes
do mundo não poderiam ser admitidos como resultado de compor uma ordenação pertencente ao mundo.
da experiência e sim como dados a priori, para e no No positivismo, o campo dos fenômenos,
qual nenhum domínio empírico pode algo acrescer. o espaço geográfico assumiu um caráter de coisa
O início de este questionar em Kant, inicia-se com a em si, haja vista que a fundamentação empírica dos
obra Primeiros Princípios Metafísicos da Ciência da princípios e das leis gerais da natureza representaria
Natureza(KANT, 1990), em que o filósofo de Köni- o estágio mais elevado do conhecimento. O método
gsberg, permite ao cientista procurar a verdade, que é positivo pretendia justamente enxergar a ordenação
a composição de explicações e ordenações seguindo no campo dos fenômenos e, numa escala do simples
as orientações gerais da razão a priori. O cientista para o complexo, compor uma explicação científica
não isola um objeto, mas um fenômeno aplicando os acerca da realidade, progredindo, por esse caminho, no
pressupostos da faculdade de entendimento, como rumo da verdade, sem, contudo, atingi-la plenamente.
por exemplo, com o uso dos princípios causais, na Na base de todo conhecimento as ciências puras como
compreensão de um dado fenômeno. A conformidade a matemática e a física deveriam estabelecer os fun-
dos princípios adquiridos em um fenômeno pode se damentos, a base simples do saber, aumentando em

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complexidade na Biologia, na Química, até atingir No entanto, não devemos desprezar o positi-
seu ponto máximo de complexidade na esfera social. vismo lógico, pois há nele uma proposta filosófica,
Significa isso que o agrupamento de informações e a tentativa de oferecer uma filosofia capaz de servir
dados quantitativos, bem como a especialização do como fonte de premissas conceituais para toda e
conhecimento necessária e remetidos a uma visão qualquer ramo disciplinar; de modo específico, a
geral de maior complexidade. linguagem lógico-matemática seria a voz ressoante
A concepção positivista de mundo assumia em todas as áreas do conhecimento, se estendendo
diferentes formas metodológicas de acordo com os desde a Física até a explicação sociológica. A falha,
ramos específicos do saber, como na Física onde como advertimos, foi propor de forma superficial e
o fundamento do método é a experiência, na Bio- rasteira tal sistema, sem as considerações prelimi-
logia a comparação, na Astronomia a observação nares e sem a investigação mais elevada que exige
(BORDEAU, 2008), mas todas as metodologias o tema na Filosofia. Como conseqüência, houve não
assentavam-se no campo comum do valor da em- a unidade que se pretendia, mas um caminho cada
piria como realidade e no reconhecimento de uma vez mais especializado e diferenciado metodologi-
lei que deveria partir do simples para o complexo. camente dentro das inúmeras disciplinas científicas.
Esta concepção representou um recuo significativo Assim, libertas por Kant da investigação filosófica
da complexidade filosófica, legitimando-se teori- e, em muitos casos, justificada erroneamente a partir
camente na proposição de uma ordem do mundo, do positivismo, puderam as ciências direcionar seu
a ser descoberta e desvendada pela linguagem método às demandas do objeto e do objetivo. Como
matemática. dissemos anteriormente, a variação metodológica de
O positivismo Lógico não se pretendia uma acordo com o objeto implicou numa diversificação
separação entre ciência e Filosofia, ao contrário, das concepções de mundo subjacentes às teorias e
imaginava-se, um sistema filosófico que justificava análises em cada ciência. Sem uma investigação
a postura e condução da ciência para além de uma filosófico-metafísica ou erroneamente estruturadas
perspectiva fenomênica limitada ao aparato trans- sobre um sistema positivista, as ciências começa-
cendental do sujeito, afinal, tratava-se de apontar ram, no diferenciar metodológico que exigia seu
os pensamentos teológico e metafísico como for- objeto e seus objetivos, a falar línguas distintas, de
mas retrógadas de proposição do saber humano. maneira que a relação entre elas se tornou mesmo
Entretanto, acabou-se na verdade por suplantar os insustentável, imaginando cada uma em seu domí-
argumentos filosóficos mais elevados, como o fato nio caminhar no rumo da verdade pela compreensão
necessário de o mundo ser dado para nós, antes de cada vez mais apurada e detalhada a partir de seus
mais, pelo pôr em pensamento. A consideração do métodos, cujos pressupostos filosóficos nem de
mundo e de nós como algo outro é já fruto de um longe haviam sido discutidos.
pôr disso tudo por um “eu”, de modo que relegar A ciência geográfica encontrasse com todo
essa importante questão ao universo fantasioso de esse confuso cenário no seu momento de consti-
uma teologia ou a uma pejorativa concepção de tuição moderna e sistemática, divergindo em larga
metafísica é suprimir elementos da investigação medida das proposições que originalmente lhe
filosófica e simplificar erroneamente a compreen- configuraram o objeto e definiram as estruturas
são do que seja a realidade. Assim, a tentativa de metodológicas de sua produção de conhecimento. O
compor um sistema filosófico em unidade com a passo seguinte do artigo deve ser, portanto, mostrar
ciência acabou por distanciar ainda mais estes dois de que maneira se deu a gênese e a constituição de
domínios, deixando de lado a reflexão necessária um saber geográfico moderno dentro desse cenário
sobre as premissas adotadas e admitindo, arbitraria- de ruptura entre ciência e Filosofia e, o mais impor-
mente, que o mundo poderia ser considerado em si tante, começar a indicar as dificuldades e problemas
a partir da empiria e que, como tal, seria regulado epistemológicos decorrentes dessa característica
e retratado por uma linguagem lógico-matemática. forma de sistematização.

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GEOGRAFIA: DE SUA GÊNESE MODERNA À tal tendência, como haveria de ser, estava sendo
DICOTOMIA FÍSICO/HUMANO contrabalançada por propostas que caminhavam na
direção oposta, atreladas então ao que se poderia
Tomando como ponto de partida a sepa- rotular superficialmente como idealismo romântico
ração entre Filosofia e Ciência, podemos destacar alemão (BEISER,2003), para não irmos muito além
uma característica singular na gênese moderna da das esferas filosóficas e adentrar nas concepções
Geografia: sua unidade científico-filosófica. Quando científicas vitalistas que, inclusive, influenciaram
falamos dos fundadores do saber geográfico, quase Humboldt. A tendência contrária a uma ruptura entre
sem nenhuma polêmica, identificamos as proposições Filosofia e Ciência, na verdade avessa à separação do
de Ritter e Humboldt como as grandes aglutinadoras saber como um todo, e inclusive do sentimento e suas
de um conjunto de trabalhos em torno do que seria expressões estéticas e artísticas, foi um importante
o cerne de toda e qualquer investigação que atenda, ponto de referência e mesmo o fundamento intelectual
em seu sentido moderno, pelo nome de geográfica: a e cultural que permitiu à Geografia uma condição de
expressão das interações e relações entre o homem e sistematização moderna extremamente singular, uma
natureza. Sabemos que as propostas de Humboldt e vez que, ao contrário do que se supunha então como
Ritter eram integradoras, ou seja, pretendiam e ana- legítimo campo disciplinar investigativo, com seus
lisavam o mundo em sua interação com o humano domínios específicos, fazia-se, de uma então Geogra-
sob a perspectiva da unidade(ANDRADE, 2006). fia Comparada, no caso de Ritter, ou de uma Ciência
Chamadas por Moreira (2006) de holistas, as propostas Humboldtiana do Cosmos, tomada então como geo-
de Ritter e, em especial, de Humboldt, eram muito gráfica, a construção e constituição de uma ciência
mais do que conhecemos hoje sob o nome de ciência, cuja característica fundamental era, e só poderia ser
eram, isto sim, um confluir filosófico-científico, no pela demanda de seu objeto, a unicidade científico-
caso de Humboldt, também artístico. E não poderia -filosófica. Dizemos que só poderia ser deste modo
ser de outro modo, afinal, a tarefa de pensar o mundo justamente porque a proposição inicial era a tomada
em sua unidade, bem seja, a relação entre homem e do homem e da natureza em seu caráter unitário, o que
natureza como coisas indissociáveis, era uma tarefa a ciência estritamente concebida jamais poderia alcan-
que, então, não podia se limitar ao universo restrito çar metodologicamente, recorrendo, desse modo, ao
da ciência e, tampouco, à pura abstração da Filosofia. aporte teórico de uma rica Filosofia acerca do tema no
Tratava-se, de fato, de não só unir homem e natureza, período (CUNNINGHAM e JARDINE,1990; VITTE
mas pensar como seria possível, na análise do mundo, e SILVEIRA, 2010)
do “Cosmos”, propor em síntese as esferas subjetiva Há vários tratados sobre a gênese da geografia
e objetiva, ideal e material. O objeto colocado en- moderna (MORAES, 2002; 2003), MENDOZA et
tão como a expressão dessa relação entre homem e al.; 1994; GOMES, 2000), mas apesar da qualidade
natureza estava carregado de um debate filosófico e da importância destes trabalhos, entendemos que o
profundo, representado pelas proposições de Kant, principal para a discussão epistemológica da Geografia
Fichte, Goethe, Schelling, Schopenhauer e Hegel, foi deixado de lado. O caminho habitual de discussão
contemporâneos e muitos deles próximos dos referidos do tema passa pela identificação de uma demanda
autores, especialmente de Humboldt. Assim, quando social e política no cenário da França e Alemanha,
se pretende aqui falar de gênese da Geografia moder- em especial no final do século XIX, que culminou
na, fala-se, igualmente, da proposição inicial de uma na recusa metodológica do que seriam então as in-
análise do mundo a partir de uma leitura elevada da vestigações geográficas dos fundadores da moderna
relação entre homem e natureza em uma perspectiva Geografia(MORAES, 2002). Se pretendermos seguir
científico-filosófica (SILVEIRA, 2008). a linha sugerida por Capel (1981), a do caminho assu-
Vimos, entretanto, que havia uma tendência mido pela institucionalização da Geografia no século
geral para a separação entre Filosofia e Ciência no XIX, que, para ele, refletia muito mais uma demanda
período, não nos esquecendo, evidentemente, que social específica do que um debate conceitual de cunho

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geográfico deixará à margem uma importante reflexão Essa continuidade e diferença são por demais
que modificou estruturalmente o saber geográfico evidentes na caracterização da Geografia como ciência
em toda a sua construção histórica. De fato, não há de síntese, quer dizer, o sentido de pensar as formas de
de nossa parte qualquer manifestação que pretenda representação da relação entre o homem e a natureza
negar o fato histórico de que a Geografia tomou lugar foi mantido, contudo, a carência de uma estrutura
na academia a partir das demandas sociais de final do filosófica, gerou a necessidade de compor a Geografia
século XIX. Entretanto, destacamos que a centralidade como um grande compêndio de informações geográ-
das dificuldades epistemológicas que se seguem na ficas, recolhidas então sob as categorias de região, de
Geografia moderna reside efetivamente naquilo que território, por exemplo, a fim de, nessa aglutinação
é secundário em Capel (1981): a “lógica interna do espacial dos dados, promover a representação neces-
conhecimento científico” (p. 80, trad. nossa). Quando sária do objeto de estudo da geografia: a integração e
se pretende colocar em segundo plano os fundamentos expressão das relações humanas e naturais.
conceituais, dizendo que foram menos importantes do As conseqüências dessa tentativa de com-
que as suas fontes materiais e sociais e que, quando preender a expressão da relação entre o humano e o
foram fundamentais acabaram estes conceitos sendo natural, que na origem era uma atividade científico-
retirados das antigas ciências constituídas e não das -filosófica, levaram e condenaram o saber geográfi-
propostas inaugurais de Humboldt e Ritter, deixa-se co, a partir de sua institucionalização a uma carência
de lado o fato de ser justamente essa desfiguração, epistêmica frente as demais Ciências Humanas. To-
aliada a uma manutenção das propostas inaugurais, davia, como no seu processo de institucionalização e
que levou a inconsistência epistemológica da Geo- consolidação a Geografia assumiu as características
grafia moderna. do saber científico moderno, ou seja, distanciou-se
Vimos que há um cenário geral de separação da Filosofia em seu caráter investigativo, usando-a
entre Filosofia e Ciência no momento de formação da somente como cabedal de conceitos e manancial
ciência geográfica moderna; onde a Geografia toma de pressupostos metodológicos, resta que, por seu
forma sistemática com as propostas diferenciadas e necessário pensar sobre a natureza e o humano,
integradoras de Humboldt e Ritter, quer dizer, pro- produziu em si uma fragmentação que vai além da
postas que caminhavam na contramão das tendências diversidade de método e que representa a quebra de
gerais da Ciência em seu processo de sistematização. sua unidade investigativa. Estamos falando propria-
Do mesmo modo, acabamos de destacar que o pro- mente da separação entre uma Geografia Física e
cesso de institucionalização e consolidação do saber outra Humana, esse duplo ser que nada mais é, que
geográfico não caminhou na direção proposta pelos a reunião no bojo do saber geográfico de interesses
fundadores da Geografia, acabando por tomar o rumo e análises que, nem de longe, lembram o propósito
ordinário dos saberes modernos constituídos, empres- que seria central: a expressão da relação entre a
tando aqui e acolá os métodos de análise das ciências natureza e o humano. A unidade que demanda o
então constituídas, como a Geologia e a Historia. objeto da Geografia encontra sua forma então nas
Entretanto,a noção central de um campo de relação categorias geográficas de paisagem, região, lugar,
entre o homem e a natureza, então representados na território e espaço, como se o simples fato de reunir
superfície terrestre foi mantida, muito embora houve sob uma mesma categoria tudo aquilo que meto-
uma despolitização filosófica desta noção e por conse- dologicamente foi concebido e definido a partir de
quencia um empobrecimento epistemológico da Geo- pressupostos filosóficos opostos e excludentes gera-
grafia. O objeto central da Geografia, justamente esse -se, por si, a unidade requerida pelo seu objeto. Aqui
campo de interação natural e humano seguiu como o realmente se encontra o que se poderia chamar a
centro de sua investigação científica, com conceitos e Geografia enquanto ciência de síntese, ou seja, esse
categorias de análise com significados diametralmente aglutinar de informações e conceitos desconexos em
opostos aos empregados pelas formulações originais sua origem metodológica como se tal resultasse em
de Humboldt e Ritter. uma compreensão integrada do mundo.

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A entrada do positivismo lógico (LENCIONI, matemático-estatísticas. Eficiente, essa leitura atendia


1999)nas análises geográficas, de algum modo, pretendia bem ao planejamento, atendia à demanda técnica e
justamente uma unidade metodológica na Geografia, prática e, acima de tudo, era internamente coerente.
permitindo então que as então desconexas natureza e A ciência moderna, em seu abandono da
sociedade pudessem ser concebidas sobre uma base investigação filosófica, não pode caminhar no rumo da
comum e, desse modo, pudessem compor o campo compreensão da realidade e, tampouco, na elucidação
das interações, e não simplesmente a aglutinação das de qualquer verdade, afinal, trata de utilizar o método
informações pelas categorias geográficas. O positivismo para atender as demandas do objeto e do objetivo
lógico pretendia ser uma confluência entre ciência e e nunca de resolver as questões fundamentais da
Filosofia, e, nesse sentido, poderia ter funcionado para realidade ou de chegar ao campo das essências (o
estabelecer uma unidade dos saberes que povoam o uni- debate ontológico-metafísico). Assim, o positivismo
verso da Geografia. Não obstante, as formulações gerais não foi nem mais nem menos eficiente na busca de
positivistas, por seu fraco refletir e propor filosófico, não qualquer verdade, a não ser por partilhar, em conjunto
tinham condições de sustentar como válidas as leituras com as outras ciências e cientistas, a crença de nesse
estritamente simplistas de um mundo posto em uma sentido de caminhar.
linguagem lógico-matemática, especialmente quando Diante desse cenário geográfico, as propostas
pretendiam, nessa leitura, retratar o componente humano de uma via crítica, apoiadas no pensamento de Marx
no campo de interação físico-social. Aqui, o caldo filosó- (QUAINI, 1983) vieram trazer nova luz ao debate
fico requerido para conceber a relação do humano com epistemológico geográfico, na verdade, é nesse mo-
a natureza e, mesmo, para situar e pôr esse humano em mento de crítica que de fato uma consciência acerca
sua complexidade, não foi suficiente, e as contradições das possibilidades e limites da Geografia começa
do que se tinha então como realidade a ser observada verdadeiramente a surgir e a ser conscientemente
distava em grande medida do que propunha explicar enfrentada. A sequência de debates suscitados por La-
a ciência geográfica. Não podemos dizer, que o positi- coste em 1974, que anteriormente já havia destacado
vismo lógico foi um projeto científico pouco eficiente, as contradições e misérias mascaradas pela suposta
ainda que, todo saiba pelas advertências do pensamento metodologia isentam do positivismo, anuncia a crise
crítico, tenha servido a interesses que representam um epistemológica geográfica e denuncia sua falta de
longo processo de dominação ideológica e política. Não orientação metodológica, além do completo abandono
devemos deixar de notar que no positivismo lógico uma dos geógrafos com relação às teorias. A aplicação de
parte considerável do problema epistemológico geográ- modelos no positivismo lógico ou a manutenção das
fico estava reduzida, não em favor de uma solução, mas bases de uma Geografia Tradicional resultavam no iso-
a favor de uma mudança de postura e atitude científica lamento científico geográfico e no abarcar aleatório de
que, de algum modo, resolvia as demandas filosóficas concepções e métodos, além de reforçar uma divisão
do objeto da Geografia. entre uma chamada Geografia Física e outra Humana,
Pensada em seu interesse pragmático e estri- quando em verdade advogavam os geógrafos, há todo
tamente objetivo, a ciência geográfica sob o método momento, que seu saber caminha na relação entre os
positivismo lógico era capaz de colocar numa mesma fatores sociais e naturais.
base, a matemática e a geometrização do espaço,a Em outro sentido, o conhecimento positivista
natureza e o humano. Assim, o humano poderia ser se apresentava subserviente pela resposta acabada
inserido como dado em uma equação matemática, ou dos números e dos dados que fazem ver à frente uma
seja, como uma variável que responderia, através dos suposta resposta isenta, o conhecimento pragmáti-
índices estatísticos, a uma série de tendências que, co que executa, que preenche com suas fórmulas e
por sua vez, encontravam uma série de variáveis e projeções matemáticas as lacunas das respostas não
tendências naturais igualmente exprimidas matema- obtidas. Numa leitura “crítica” ou “radical”, esse co-
ticamente, compondo desse modo um campo de inte- nhecimento, quando pretende conhecer, desconhece,
ração físico-humano a partir dos números e projeções quando pretende resolver, aliena. A consciência de

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nossa condição no mundo já não é posta como ativi- mais, em conformidade com a própria realidade. Não
dade intelectual, porque ao tempo que conhecemos a se trata de elencar e escolher o método segundo o bel
verdade da lei e dos números renunciamos àquela que prazer do pesquisador, mas de tratar o objeto segundo
se comunica diretamente com a mudança da condição a concepção geral filosófica que se reconhece para e
posta. As disparidades entre uma flutuante e abstrata na realidade, trazendo para o método as expressões
formulação teórica e as contradições e demandas de teóricas dessa concepção. Isso é um salto qualitativo
um mundo real em sua miséria e dominação eram o muito grande na proposição científica moderna, uma
ponto central a ser atacado, destacando a esse tempo vez que, ainda sem consciência de fazê-lo, coloca o
que as teorias supostamente imparciais atendiam a problema para as ciências de terem que encontrar uma
interesses bem específicos e que, no plano das idéias, legítima resposta filosófica para a realidade, a fim de,
refletiam os embates reais, materiais, que se sucediam a partir dela, construírem uma análise científica coe-
nas trincheiras do dia-a-dia, nos hábitos, nos valores rente. A grande questão aqui é que o sistema filosófico
e nos sentidos impostos à existência. A idéia de que o proposto, se pretende ser válido, deve ser concebido
positivismo pretendia tratar com isenção a realidade sem qualquer incoerência e, acima de tudo, ser capaz
é atacada por essa via “radical”, na medida em que de agrupar tudo o que se dispõe como realidade, seja
os dados e as fórmulas matemáticas mascaram ten- numa perspectiva subjetiva ou objetiva; seja numa
sões importantes da sociedade e, o mais importante, perspectiva humana ou natural; seja numa perspectiva
se mostram propositalmente incapazes de explicar ideal ou material.
a origem e as formas de superação dessa condição.
Compromissadas e reféns dos interesses do processo PARA ONDE CAMINHA A CIÊNCIA E, COM
de acumulação, as correntes positivistas não deixavam ELA, A GEOGRAFIA?
espaço para uma análise crítica das condições postas,
portanto, ser isento nesse contexto era estar aliado aos Ruy Moreira (2006) em seu Para onde vai o
interesses hegemônicos. pensamento geográfico?, Fazendo um breve apanhado
O que reaparece aqui, sem a consciência dos histórico, que revela, evidentemente, toda a filiação
próprios marxistas geógrafos, é a necessidade de metodológica que o ligou ao pensamento crítico dentro
uma resposta filosófica válida na análise do objeto da Geografia, demonstrou que os desafios são ainda
geográfico. A falta de coerência do positivismo só aqueles colocados no início desse movimento crítico
pode ser encontrada na medida em que ele falseia uma marxista dentro da ciência geográfica. Atestando as-
explicação da realidade, ou seja, na medida em que sim, que não se trata de falar de uma pós-modernidade,
se admite a existência de uma reposta real a ser dada, com demandas outras ou estruturas epistêmicas di-
afinal, se não fosse assim não haveria uma crítica à ferenciadas, mas de uma extrapolação daquilo que
legitimidade do positivismo. já se anuncia na modernidade; trata-se, portanto, de
O que se coloca é que para além das condições uma hipermodernidade, que reclama, igualmente, a
políticas de um mundo bipolar e suas representações superação das condições ideológicas que povoam o
ideológicas, há uma lacuna deixada pela falta de um universo do conhecimento e, evidentemente, sua fonte,
debate filosófico elevado capaz de fundamentar uma o mundo real de que foram paridas.
postura ontológica válida; é nisso que reside a recu- Atentando-nos, a princípio, somente para o
peração de Marx, no sentido de que sua proposição questionamento colocado por Moreira: “Para onde
filosófica é a base de uma compreensão geral aliada vai o pensamento geográfico?”, experimentamos um
aos elementos materiais da realidade em seu caráter pouco do limiar que se põe e das dificuldades para-
científico. O materialismo-histórico-dialético1defende digmáticas (embora aqui não se pretenda uma teoria
que, para além de uma indicação oferecida pelos ob- apoiada na ruptura de paradigmas) de nosso momento
jetivos do pesquisador, o método deve estar, antes de histórico. De fato, para onde vamos? Qual é o caminho
traçado pela ciência e por uma Geografia que vive mais
Em artigo que estamos elaborando faremos uma análise da proposta de sob um nome e sob sua institucionalização do que so-
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uso do materialismo histórico e dialético na geografia.

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bre uma unidade de investigação? Qualquer estudante O campo teórico-metodológico começa a apresentar
do primeiro ano do curso de Geografia ouve e trata carências explicativas no trato das problemáticas e,
dessa falta de unidade investigativa, retratada no mais nesse sentido, projeta-se que a solução não poderá
das vezes a partir da dicotomia entre uma Geografia vir com a manutenção das ferramentas metodológicas
Física e outra Humana. Acertadamente nesse ponto, atualmente dispostas ao pesquisador.
o colocar dessa dicotomia revela muito do que fomos Lentamente a Ciência começa a buscar na
historicamente enquanto Ciência e, mais oportuno proposição de questões filosóficas a tentativa geral de
ainda, o colocar dessa divisão caminha na direção de compreender a realidade para além do objeto específi-
uma resposta à pergunta sugerida por Moreira (2006): co, procurando enquadrá-lo em uma teoria geral capaz
“Para onde vai o pensamento geográfico?”. O que de abarcá-lo como caso singular. Este é o percurso de
devemos agora esclarecer com essa afirmação é: por construção de um sistema filosófico, que os físicos,
que a separação entre uma Geografia Física e outra os biólogos, os químicos, por exemplo., começam a
Humana é tão importante para os rumos da Geografia trilhar. Cada vez mais a sociedade e as ciências co-
contemporânea? De pronto, podemos dizer que a raiz meçam a tomar consciência de que o mundo é uma
da dicotomia no saber geográfico é o ponto de conflu- trama onde se desenvolvem teias e cadeias, relativas e
ência do saber contemporâneo e, mais do que isso, que redefinem os campos científicos e potencializam novas
somente na elucidação desse ponto central poderemos visões epistemológicas (DUTRA, 2010).
entender as demandas atuais de nossa ciência. O resultado mais patente desse processo é
O panorama geral do conhecimento é caracte- notado numa tendência geral em torno da interdisci-
rizado por um extenso domínio de especialidades que plinaridade; no reconhecimento, por parte de alguns,
puderam atingir níveis de detalhamento nunca antes de que é necessário recompor em unidade tudo o que
imaginados, haja vista a consideração do objeto como foi acumulado no campo específico de cada domínio
um recorte específico da realidade e a promulgação científico. As dificuldades dos cientistas como em ge-
de uma liberdade científica com relação às demandas ral não podem ver, é que nunca caminharam na direção
filosóficas. Em geral, podemos dizer que o caráter de uma verdade, mas que compuseram explicações
atual do saber científico encontrou sua justa forma na a partir de métodos diversificados e mutuamente
separação que destacamos entre Filosofia e Ciência, excludentes, afinal, se cada método representa uma
cabendo à primeira somente o fornecimento de pre- visão de mundo, um sistema filosófico subjacente,
missas, gerando assim a chamada Filosofia da Ciência, como poderia então dialogar estas ciências e seus
que procurou um estatuto as demandas do objeto ou mundos contrapostos? Essa dificuldade é ainda maior
dos objetivos traçados na análise. quando pensamos na divisão que tomou forma entre
A Filosofia deixou de representar para a as ciências chamadas Humanas e as ciências Naturais.
Ciência uma explicação de mundo, enquanto, na Excetuando o positivismo que pretenderam integrar
verdade, não deixa de fazê-lo, na medida em que na sobre uma base matemática estes dois domínios, o
consideração do objeto e na definição do método já caminho apresentado por eles, no que diz respeito ao
está o cientista, sem saber, tomando para si e para sua método, é totalmente divergente e excludente.
análise uma visão geral da realidade, pela qual cami- Não há entre estas esferas do saber qualquer
nha e estende o domínio de sua investigação empírica. diálogo possível dentro dos universos metodológi-
O resultado desse livre vôo das ciências em cos aceitos pelos grupos de cientistas pesquisadores
seus domínios específicos começa a esbarrar, já há envolvidos com as ciências da Natureza e as ciências
algum tempo, nos limites da pressuposição filosófica Humanas. Não é difícil entender essa recusa, afinal,
que adotam os cientistas sem o saber; quer dizer, com a ruptura entre ciência e Filosofia, o cientista
a concepção de um mundo dado como passível de natural deixou de se perguntar sobre a condição do
fragmentação em objetos de análise e a medida de homem enquanto proponente do objeto, enquanto su-
uma realidade em si independente não conseguem jeito do ponto de vista filosófico, inserido como agente
mais oferecer a ilusão de uma resposta convincente. indissociável do objeto de análise, e talvez só tenha se

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lembrado disso quando os próprios limites metodoló- aquele mesmo objeto colocado por Ritter e Humboldt:
gicos começaram a anunciar, no campo da Física, que o campo de interação e relação do homem e da nature-
há uma indeterminação posta pela própria presença do za. Como já havia na composição dos métodos usados
observador. Limitada aqui a uma influência objetiva, uma divergência e, em especial, um distanciamento
essa interferência do sujeito no objeto deixa ver que profundo com relação ao debate filosófico, coube aos
há um debate filosófico que foi relegado ao segundo produtores das teorias geográficas a tarefa de tentar
plano. No caso das ciências Humanas, as dificuldades aglutinar tudo isso sob o seu complexo objeto de aná-
impostas pela compreensão da dinâmica do homem, lise: a Geografia como ciência de síntese. Esse confluir
seja como indivíduo, seja como sociedade, permitiu, de tudo que nada é fez da Geografia uma caricatura de
em especial recentemente, a introdução de métodos ciência moderna, afinal, não tinha para si um método
mais refinados no que se refere ao debate filosófico. de análise definido e perambulava vadia em meio às
Todavia, como em geral acontece, não há outras ciências, tentando encontrar respostas para um
qualquer possibilidade de ligação destes métodos com objeto que jamais poderia ser explicado por qualquer
o domínio constituído de um saber físico-natural, que dos métodos então oferecidos. Em verdade, a Geo-
adquiriu grande legitimidade pela capacidade técnica grafia nunca encontrou seu “espaço” enquanto ciência
de intervenção e pela precisão erigida como estandarte moderna, porque não poderia, em tempo algum, ser
da verdade revelada pelos números e suas equações. uma ciência alheia ao debate filosófico, uma vez que
Além disso, no que concerne ao próprio homem, não essa relação é uma demanda do seu objeto. Mais do
coube às ciências Humanas lidar com a colocação que isso, nunca se encontrou como ciência porque o
filosófica do sujeito, do homem, o que seria então domínio de seu objeto compreende dois campos que
uma fundamentação antropofilosófica, ao contrário, assumiram vias distintas dentro do universo científico:
pretendeu considerar o homem pela perspectiva da o natural e o humano. Nesse sentido, nunca poderia
análise científica, seja como ser natural e composto por haver uma unidade do saber geográfico porque os
demandas biológicas e genéticas, seja pela considera- métodos para pensar a natureza e para pensar o hu-
ção social ou psicológica do sujeito, inclusive o sujeito mano carregaram explicações gerais e concepções
proponente da ciência, ou seja, a composição crítica filosóficas de mundo diametralmente opostas: como
a partir de uma sociologia da atividade científica. De poderia então se falar em um discurso geográfico? A
todo modo, resta suprimido a investigação filosófica Geografia, entre as ciências modernas, é a representa-
acerca do homem e a colocação do mundo a partir dele. ção acabada da falência do projeto de integração dos
Mas e para a Geografia, o que representou saberes. Por isso, por esse nada ser que quer ser tudo,
esse processo de ruptura? E o que representa hoje esteve constantemente em crise e nunca se firmou no
em seu cenário de discussão epistemológica? Para a cenário das ciências.
Geografia, a ruptura entre Filosofia e ciência repre- Mas essa característica do saber geográfico é,
sentou a ruína completa de sua proposta de análise. nesse momento de reformulação geral do saber, uma
Essa ruptura, que está no caminho de consolidação vantagem importante. A Geografia esteve às voltas
da Geografia como saber científico moderno, signi- com a dificuldade de integrar métodos excludentes
fica a impossibilidade de responder às demandas de como nenhuma outra ciência e carrega no seu objeto
seu objeto. Vimos que a proposta dos fundadores da uma necessidade filosófica que a obriga teoricamente
Geografia caminhava na direção de uma explicação a caminhar para uma elevação do debate para além
integrada capaz de dar conta da interação e relação do campo estrito da ciência. Além do mais, a diver-
do homem com a natureza, postos mesmo como mu- gência das ciências da natureza e das ciências huma-
tuamente dependentes. Sabemos, entretanto, que em nas significa para a Geografia o reduto de seu labor
sua institucionalização, a Geografia passou a se valer diário, de sua necessidade investigativa. A Filosofia
dos métodos oferecidos pelas ciências já constituídas, é algo do qual a Geografia não pode fugir, como
como a Geologia, a História, compondo grupos e as outras ciências começam também a descobrir. A
departamentos para analisar, a partir destes métodos, Geografia surgiu como ciência filosófica e reencon-

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tra sua condição no fracasso de sua sistematização se pode mais impunemente falar em conhecimento
enquanto ciência moderna. Não há espaço para uma no cenário geral do saber contemporâneo. Vimos,
Geografia no saber científico posto por uma ruptura igualmente, que nesse cenário geral de ruptura entre
entre Filosofia e ciência, resistindo somente por força Filosofia e ciência e no curso do desenvolvimento
institucional e por incorporar em si, interesses político- de uma ciência moderna edificou-se o que então
-estratégicos extremamente relevantes, nesse sentido a chamamos ciência geográfica, cujas limitações e
crítica constante de atender aos interesses do Estado. dificuldades epistemológicas revelam esse conduzir
A colocação da Geografia enquanto saber transcende histórico que descaracterizou o projeto central da
a esfera da surrada ciência moderna, representa na Geografia: compreender a manifestação das interações
verdade a superação de uma condição limitada de e relações humano-naturais. Errando entre métodos
saber e, mais do que isso, de todo e qualquer limite incapazes de abarcar o sentido de sua análise, a Geo-
ou fronteira disciplinar. A solução do problema con- grafia procurou reunir as divergências nas categorias
temporâneo representa para a Geografia a condição geográficas, como a região, o território, por exemplo,
de sua existência, por isso deve despontar nela as manifestando assim um caráter de ciência de síntese,
primeiras respostas efetivas para essa dificuldade geral em outras palavras, transformou-se em uma caricatura
de separação entre Filosofia e ciência, que é, de fato, de ciência, emprestando aqui e acolá métodos que ja-
a fonte de toda a divisão entre as chamadas ciências mais deram conta do que se pretendia então explicar.
humanas e naturais. Reside nessa ruptura a chave para Em outro projeto de sistematização, sob a influência
todo o problema epistemológico da Geografia e sua do positivismo lógico, pretendeu aglutinar o físico
dificuldade continua de se firmar como saber moderno, e o humano a partir da base matemática, falhando
afinal, em seu objeto com demandas filosóficas, nunca aqui pela adoção de um sistema filosófico incapaz
pôde plenamente explicar-se e definir-se dentro de um de abarcar a complexidade das relações humanas e
cenário geral de divisão. Restará que, ao término de muito menos a relação destas com a esfera natural.
todo esse processo, longo ainda, não sobrará uma coisa Consciente de si, essa Geografia errante adentrou as
tal como hoje concebemos sob o nome de Geografia, vias de um saber radical ou crítico, reintroduzindo
mas um campo de explicação geral das relações e o debate filosófico, ainda que limitado ao campo da
expressões desenvolvidas na interação e relação entre investigação e possibilidade dos métodos e restringido
homem e natureza. Em poucas palavras, tomará lugar ao campo das premissas conceituais e metodológicas.
uma atividade científico-filosófica, cujas fronteiras Na verdade, muito menos do que um debate, tratou-
disciplinares deixarão de existir. -se unicamente de interpretar e aplicar os discursos
postos por uma filosofia materialista dialética, ou seja,
CONSIDERAÇÕES FINAIS de alterar a base filosófica de sustentação do método,
adquirindo a vantagem de lidar agora com um sistema
Estamos diante de um cenário geral de mudan- filosófico mais elevado e capaz de fornecer respostas
ça dos saberes científicos constituídos, com demandas significativas para a complexidade humana em sua
tais que os limites disciplinares e os ferramentais interação com o mundo e, portanto, com a natureza.
metodológicos dispostos nem de perto delineiam Não obstante, a consideração de uma materialidade
uma resposta satisfatória. Explicamos essa condição primeira como resposta filosófica para a realidade
do saber a partir da ruptura entre ciência e Filosofia, carece de sustentação, de modo que o eu que põe o
deixando claro que o processo de especialização do mundo é tratado nessa via como o resultado de uma
saber e seu abandono das questões elementares e pri- materialidade tomando consciência de si, ou seja, a
meiras resultaram, de um lado, no avanço de conhe- partir do pressuposto material sem uma justificada e
cimentos específicos e detalhados da esfera empírica sóbria explicação filosófica para esse existir primeiro.
como nunca antes suposto ou imaginado, e de outro, Como conseqüência, temos na Geografia uma con-
numa redução tal da capacidade de pensar o mundo fusão da materialidade com o espaço, revelando que
e o homem em sua complexidade e unidade, que não não existe, como premissa, uma reflexão capaz de dar

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conta da proposição de um eu filosófico, mas somen- GOMES, P. C. da C. Geografia e modernidade. Rio


te de uma subjetividade científica. Nesse sentido, a de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
Geografia Radical ou Crítica falhou na compreensão
e consideração do seu objeto de análise: o campo de GOMES, R.D. Geografia e Complexidade: da di-
interação físico/humano, chamado então de espaço ferenciação de áreas à nova cognição do sistema
geográfico. O artigo pretendeu mostrar que, nesse sen- terra-mundo. Tese de Doutorado (Doutorado em
tido, novas contribuições, ainda que sem a consciência Geografia), Instituto de Geociências, Unicamp, 2010.
de fazê-lo, caminham na superação do problema pelo
único caminho possível: a reaproximação entre ciência HARTSHORNE, R. Propósitos e natureza da geo-
e Filosofia. Totalmente dependente dessa reaproxima- grafia. São Paulo: Edusp, 1978.
ção, a Geografia espera aqui a retomada legitima de
sua análise e, nessa redefinição de si, o inaugurar de HEIDEGGER, M. Kant and the problem of meta-
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