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Religião e Política na Ditadura Militar do Brasil: A participação dos freis dominicanos no

livro Batismo de Sangue de Frei Betto. (1960/1970)

Danyele Nayara Santos Dias∗

Franscino Oliveira Silva∗

RESUMO

Os estudos acerca da Ditadura Militar no Brasil vêm sendo cada vez mais contemplados no âmbito
acadêmico. Neste contexto a luta armada das esquerdas e a atuação católica ganham considerável
enfoque. Na tentativa de estabelecer uma discussão em torno da relação entre o poder político e o
religioso neste período, o presente trabalho objetiva analisar a atuação de freis da Ordem dos
dominicanos pertencentes à esquerda, durante a ditadura militar brasileira. A complexa relação que
se estabelece entre a fé cristã e a ação política constitui a nossa maior problemática e o trabalho irá
se basear na metodologia de análise do livro de memórias Batismo de Sangue, de autoria do Frei
Betto. É possível então, diante do objetivo proposto, perceber parcialmente, que a presença de um
indivíduo em determinado seguimento religioso não impede a sua participação nas questões de
ordem político-sociais, como é perceptível, nessa forma, de oposição ao regime militar.

Palavras-Chave: Igreja Católica, Ditadura Militar e Dominicanos.

ABSTRACT

The studies about the Military Dictatorship in Brazil have been increasingly included in the
academic scope. In this context the armed struggle of the lefts and the Catholics performance gain
considerable approach. In trying to establish a discussion about the relation between political and
religious power in this period, this study aims to analyze the performance of the Dominican friars
Order belonging to the left, during the brazilian Military Dictatorship. The complex relationship
established between Christian faith and political action constitutes our biggest problem, and the
study will be based on the analysis methodology of the memoir Baptism of Blood, written by Frei
Betto. Is possible then, in front of proposed objective, partially realize that the presence of one
individual in a certain religious action does not impede your participation in political-social issues,
as is perceptible, in this form, of military regime opposition.

Keywords: Catholic Church, Military Dictatorship and Dominicans.

Universidade Estadual de Montes Claros. Acadêmica do 4º período do curso de História.


Universidade Estadual de Montes Claros. Prof. Dr. do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em

História Social da UNIMONTES.


Introdução

O período que contempla a segunda metade do século XX não é um período homogêneo na


história mundial. O cenário internacional possui como pano de fundo a chamada “Guerra Fria”,
tendo como marco o início da década de 1970. Como afirma Eric Hobsbawm: (...) “gerações
inteiras se criaram à sombra de batalhas globais que, acreditava-se firmemente, podiam estourar a
qualquer momento, e devastar a humanidade”. (HOBSBAWM, 1995: 86)
Segundo a historiadora Márcia Pereira da Silva os anos de 1960 foram marcados pelos
constantes confrontos entre as duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética, que saíram
da Segunda Guerra Mundial rumo a Guerra Fria, e vislumbraram então, duas alternativas políticas e
sociais: o socialismo/comunismo e o capitalismo. (SILVA, 2001: 43) O mundo assistiu aos embates
entre esses dois países pela hegemonia mundial.
Ao mesmo tempo no Brasil, os anos de 1964 a 1985 são palco de constantes agitações
político-sociais que ocorrem em virtude do regime de ditadura instalada pelos militares. Destacam-
se neste contexto dentre outros aspectos, a perseguição política,característica perceptível nas mais
variadas formas de tortura feitas a quem se manifestasse contra os ideais propostos pelo regime.
Muitos dos que ambicionam uma possibilidade de ação político-social e de contestação ao sistema
vigente são vítimas principais das mãos dos torturadores, sob a acusação de subversão.
Ademais, no âmbito religioso, a Igreja Católica, não se apresenta de maneira homogênea
frente ao golpe de 1964. Ela mostra um antagonismo no que se refere ao seu posicionamento
político. Segundo Marcelo Ridenti, se é verdade que a alta hierarquia da Igreja Católica deu apoio
ao golpe de 1964, também é sabida a crescente resistência de religiosos e sua conseqüente ligação
com as lutas das esquerdas brasileiras. (RIDENTI, 1993: 151).
Sendo isto, pautado em reflexões sobre a conexão entre religião e política, este trabalho
busca entender como estas se relacionam no contexto histórico em questão, pretendendo desta
maneira analisar a participação de católicos na ditadura militar brasileira na atuação de freis da
Ordem dos dominicanos1 partidários da esquerda, no período da Ditadura militar no Brasil, mais
precisamente nas décadas de 1960 e 1970.
Como fontes e metodologia, utilizaremos o livro de memórias Batismo de Sangue (1982), de
autoria do Frei Betto, militante da ordem dos dominicanos, bem como uma bibliografia pertinente
ao assunto. Por se tratar de um trabalho monográfico em andamento, a pesquisa apresenta
resultados parciais e por isso, algumas questões metodológicas ainda não foram exploradas, mas
optamos para esse artigo o uso do referencial teórico sobre o Brasil nesse período, como os autores
Marcelo Ridenti, Márcia Pereira e Denise Rollemberg, além de perceber a fonte assim como
proposto metodologicamente pela Nova História Política.

Igreja Católica e Golpe Militar

Como já exposto, a Igreja Católica no Brasil durante o período em questão, apresenta


posicionamentos divergentes. Neste enfoque, afirmam Lucilia de Almeida e Mauro Passos,

A igreja católica não é um bloco homogêneo. Nela estão presentes práticas diferentes e
mesmo contraditórias. Existem diferentes comportamentos religiosos e políticos,
influenciados pela forma como seus membros se ligam às classes sociais. (...) O
catolicismo oficial procura se afirmar como poder e, em várias situações, alia-se ao poder
político para combater o liberalismo, o comunismo, e assegurar a ordem na nação
brasileira. (DELGADO; PASSOS, 2003:98)

De um lado, católicos que fazem a chamada “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”
e apoiam o golpe sob o temor de uma ameaça comunista, e de outro, cristãos adeptos à Teologia da
Libertação2, doutrina que vigora desde o Concílio Vaticano II (1962-1965) e da Conferência
Episcopal Latino Americana em Medellín (1968) quando o cenário religioso começa a ser
modificado em favor dos menos abastados da sociedade.
Por conseguinte, a Igreja propõe inovações teológicas a favor dos oprimidos pelo regime, de
maneira que a perseguição política e a negação dos valores humanos sejam erradicadas, e utiliza do

1
Os dominicanos surgiram da Ordem católica dos Pregadores, fundada por São Domingos no início do séc. XIII.
Implantada no Brasil a partir de 1881, esta ordem religiosa tinha em seus pilares a pregação do evangelho e a
preocupação com os pobres.
2
A Teologia da Libertação é uma doutrina apropriada para as realidades sociais, de ideologia esquerdista. Propaga uma
participação mais ativa do cristão, que luta pela causa do próximo, desejando uma maior partilha e justiça social, e
tornando-se um participante politicamente ativo na sociedade.
discurso religioso para legitimar os ideais pregados. De acordo com Márcia Pereira, setores
expressivos da Igreja Católica mostravam-se sensíveis às possibilidades de transformações sociais e
na mesma época começaram a aparecer grupos ligados à esquerda3. (SILVA, 2001: 45).
Neste contexto a luta armada das esquerdas, e acima de tudo, a atuação católica na ditadura militar
ganham considerável enfoque. De acordo com Denise Rollemberg:

A partir do final da década de 1970 e, sobretudo ao longo dos anos 1980, surgiram
inúmeras memórias, biografias e autobiografias sobre a luta armada escritas por ex-
militantes ou por jornalistas contemporâneos. Neste momento, o estudo do tema também
despertou interesse de historiadores e sociólogos, a princípio dos que haviam sido
militantes e, em seguida, de pesquisadores de uma geração posterior que não tinham uma
relação direta com a experiência. Assim, a luta armada tornou-se objeto de pesquisa.
(ROLLEMBERG, 2003:45).

O estudo do papel da Igreja diante da política e das relações Igreja/ Estado na América
Latina tem sido uma constante nas últimas décadas. Neste sentido, a interação da Igreja católica na
sociedade civil durante o regime militar é evidenciada, sobretudo quando a instituição católica entra
em confronto com Estados governados por ditaduras militares.

Poder Político e poder religioso: A ação dos freis Dominicanos

Em René Remónd, na obra Por uma História Política (2003), fica claro que dentro das
novas possibilidades de investigações do político, a atuação de grupos religiosos ganha destaque, se
tornando indispensável para estudos neste mesmo campo. Embebidos desta lógica, concentraremos
nossa análise especificamente na atuação e resistência dos jovens dominicanos universitários: Frei
Betto, Frei Tito, Frei Fernando e Frei Ivo, na Ditadura militar no Brasil. Estes são também
destacados preferencialmente no livro Batismo de Sangue (1982), de Frei Betto.
No tocante à complexa relação que se estabelece entre Religião e Política, seguimos ainda
na perspectiva de René Remónd, em específico na abordagem de Aline Coutrot. Segundo ela, “Hoje
as forças religiosas são levadas à consideração como fator de explicação política em numerosos

3
Entende-se aqui a noção “esquerda” pela perspectiva de Norberto Bobbio, que define a questão da igualdade como
critério analítico do posicionamento acerca da validade da distinção entre direita e esquerda, e onde a esquerda faz um
juízo positivo do ideal da igualdade social, oposto à direita.
domínios. Elas fazem parte do tecido político, relativizando a intransigência das explicações
baseadas nos fatores sócio-econômicos”. (COUTROT, 2003: 331).
Em vista disso, nossa análise irá abordar atuação de freis da Ordem dos Dominicanos, e sua
participação política resistindo à ditadura militar brasileira. Não obstante, esta atuação dos
dominicanos no Brasil não se deu apenas a partir do golpe de 1964. Muitos de seus membros eram
oriundos de grupos da Ação Católica4, criados ao final da década de 1940. Na concepção de Frei
Betto os dominicanos neste período, especificamente, abrigavam os perseguidos políticos em locais
seguros, dentro de sua condição de religiosos e ajudando, sobretudo, pessoas sob risco de prisão, de
tortura e morte.(BETTO, 1982: 50).
O interesse em analisar estes freis está, sobretudo, relacionado ao fato de serem eles os
únicos ligados a Igreja Católica a terem uma aproximação tão direta com um movimento armado,
resistindo ao golpe militar. Diante de sua ação política, sua ousadia em romper com velhos
paradigmas morais cristãos, e conseqüentemente, ao legado que deixaram para o estudo deste
período, a atuação desses freis da Ordem dos dominicanos é propícia à análise histórica.

Fonte literária e Ditadura Militar Brasileira: O Livro de Memórias Batismo de Sangue (1982)

Nossa abordagem histórica, dentre outros fatores, se caracteriza pelas novas formas de
pensar e agir e pelo olhar plural, que ampliou os campos de abordagem e implicou novos tipos de
objetos, metodologias e fontes ao historiador. Desta maneira, enfoca a relação Literatura e História,
sendo a História que coloca as questões e formula as perguntas, e a literatura aparece como fonte.
Dialogamos com o campo da Nova História Política, perspectiva histórica em vigor nos
últimos anos, e que enfoca novas possibilidades de investigações dentro do político, permitindo
dentro desta abordagem, uma conexão entre o político e o religioso. Sendo assim, a história política
que com os Annales entra em ostracismo por priorizar a ação de grandes homens, ganha sentido
diferente em nossa pesquisa, uma vez que trataremos de atores políticos que resistem aos que estão
no poder no período da ditadura, bem como atuam de maneira oposta à alta hierarquia católica no
momento do golpe de 1964.
A obra a ser analisada se constitui em um livro de memórias do autor, Frei Betto, e
conseqüentemente dos atores sociais que participaram do momento da ditadura militar retratado em
4
Ação católica: Nome dado ao conjunto de movimentos criados pela Igreja Católica no século XX, visando ampliar sua
influência na sociedade, através da inclusão de setores específicos do laicado e do fortalecimento da fé religiosa, com
base na Doutrina Social da Igreja.
suas obras. Suas motivações, convicções, cotidiano, resistência e a conseqüente tortura e cárcere,
são abordados pelo autor de forma a contribuir para a construção de um período tão recente e
conturbado da história de nosso país.
Sendo isto, o livro Batismo de Sangue (1982) será a principal fonte deste trabalho por se
tratar de um livro de memórias que é escrito por um dos freis que viveram e atuaram decisivamente
neste momento histórico. Consideraremos as pretensões do autor, o momento político- social ao
qual escreve procurando extrair os principais elementos da obra, bem como os elementos essenciais
que o motivou a escrevê- la.
Em relação ao estudo da memória, a historiadora Márcia Maria Menedes informa que, “Em
primeiro lugar, as memórias são fontes históricas, pois elas nos ajudam a identificar o que tem sido
lembrado, recordado por um ou vários grupos sociais”. (MOTTA, 2012: 26) Ela aponta ainda que,
“Enquanto fontes históricas, elas merecem passar por uma análise crítica, capaz de desconstruir as
memórias consagradas por um coletivo” (...) (MOTTA, 2012: 26). Por conseguinte, Márcia
Menedes nos infere ainda sobre a contribuição das memórias no período específico da ditadura
militar:
Vale dizer que inúmeros trabalhos procuram discutir os embates entre memórias na sua
relação com a experiência da intervenção militar no Estado brasileiro e que uma geração
de historiadores somou esforços para recuperar as dimensões conflitivas daquele passado
e suas marcas – às vezes indeléveis-inscritas no presente. (MOTTA, 2012: 33)

Posto isto, nossa pesquisa priorizará a análise das memórias de Frei Betto transformadas em
livro, para uma maior compreensão da participação e resistência dos já citados dominicanos na
ditadura militar. Entendemos que a memória é fonte histórica, e implica uma análise minuciosa
devido às dificuldades de se trabalhar com a mesma, por se tratar de algo tão subjetivo e propício a
falhas.
Considerações Finais

Portanto, este trabalho se apóia nas seguintes problemáticas: É possível pertencer a uma
religião cristã, em especificidade a católica e mesmo assim inserir-se em questões de cunho político
e social? Como se conciliou fé cristã com ação política revolucionária? E ainda: de que maneira a
memória sobre um determinado período contribui para a construção histórica do mesmo?
Na tentativa de responder a estas questões e pautado em reflexões sobre a relação entre e
religião e política, a análise da participação de católicos na ditadura militar brasileira na atuação de
freis dominicanos ligados à esquerda, constitui o motivo central de nosso trabalho.
O trabalho apresenta resultados parciais, uma vez que faz parte de uma pesquisa
monográfica ainda em processo de andamento. Diante do objetivo proposto, das leituras
bibliográficas e análise da obra, é possível perceber parcialmente, que a presença de um indivíduo
em determinado seguimento religioso não impede a sua participação nas questões de ordem
político-sociais, como é perceptível, nessa forma, de oposição ao regime militar.
Em suma, o trabalho contribuirá para os estudos deste período da história brasileira tanto no
âmbito político, como nas questões historiográficas voltadas à Instituição católica no Brasil.
Todavia, priorizaremos a participação dos atores político-sociais que compõem o cenário específico
da Ditadura Militar, mas, sobretudo, as formas de resistência daqueles que sofreram com o mesmo
em seus mais variados aspectos.

REFERÊNCIAS

ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964 -1984) Bauru, SP: Edusc,
2005.
BETTO, Frei. Batismo de sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighella. 3. Ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
______. Batismo de Sangue: Guerrilha e Morte de Carlos Marighella. 14ª ed. rev. e ampliada. Rio
de Janeiro, Rocco, 2006.
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos- O breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia
das Letras, 1999.
MOTTA, Márcia Maria Mendes, História, memória e tempo presente. In: CARDOSO, Ciro
Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. 2. Ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
REMÓND, René. Por uma História Política. 2 ed. Rio de Janeiro:Editora FVG, 2003.
RIDENTI, Marcelo. O Fantasma da Revolução Brasileira. Campinas: Ed. Unicampi, 1993.
ROLLEMBERG, Denise. Esquerdas revolucionárias e a luta armada no Brasil. In:
SILVA, Márcia Pereira da. Em busca do sonho. Juventude e Repressão em Franca: 1960-1970.
Montes Claros: Ed. UNIMONTES, 2001.

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