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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA-PPGH


NÍVEL DOUTORADO
RENATA FERREIRA DE OLIVEIRA

"OS FUZIS E AS FLECHAS” A COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE E A QUESTÃO


INDÍGENA NO BRASIL

Texto apresentado à disciplina História, Política,


Cultura e Memória, ministrada pela professora
Lucileide Cardoso, como requisito parcial para
obtenção de nota.

Salvador
Julho de 2019
Resumo
A intenção desse texto é apresentar os impactos do relatório da Comissão Nacional da
Verdade acerca da grave violação de direitos humanos praticada pelo Estado contra os índios, através
de seus agentes, como também, por particulares interessados em suas terras. Ainda, relacionar a
importância da obra Os fuzis e as flechas, num contexto de disputas de memórias, a partir do dever
de justiça e da necessidade de uma política de reparação por parte do Estado e conhecimento e
aceitação por parte da sociedade envolvente.

Introdução
A Comissão Nacional da Verdade ao concluir o relatório final apontou que os indígenas
brasileiros sofreram várias violações de seus direitos durante as décadas de 1946 e 1988. O capítulo
dedicado aos indígenas inaugura a inclusão dessas populações nos debates oficiais sobre a justiça de
transição e possibilita a ampliação de análise por parte dos estudiosos da ditadura que podem, a partir
do acesso a documentos inéditos, se debruçar sobre uma história social da ditadura.
É preciso demarcar já no inicio desse texto, que os povos indígenas não estavam incluídos
como possibilidade de pesquisa por parte da CNV. A demanda partiu deles próprios, quando
questionaram o porque de ficarem de fora, tendo em vista, que vários povos foram perseguidos e
massacrados por suas atividades políticas, questionando ainda, o porque de a CNV investigar apenas
desaparecidos não indígenas. Para tanto, os índios apresentaram os relatórios do Conselho Indigenista
Missionário, para demonstrar o grau de violência sofrido por varias grupos, como foi o caso do Sul
da Bahia e da região do Amazonas. Assim, solicitaram à CNV que montasse uma equipe para apurar
os crimes cometidos pelo Estado contra as populações indígenas no período investigado a partir do
acesso a documentos produzidos por agentes estatais. O resultado foi um capítulo especifico do
relatório final da CNV sobre as graves violações de direitos humanos praticados contra os indígenas
brasileiros.
O texto da CNV concluiu que o Estado Brasileiro, por meio da CNV, "reconhece a sua
responsabilidade por ação direta ou omissão, no esbulho das terras indígenas ocupadas ilegalmente
no período investigado e nas demais graves violações de direitos humanos que se operaram contra os
povos indígenas articuladas em torno desse eixo comum”(CNV. p 247). É importante ressaltar que o
relatório geral da CNV, ao destacar as violações de direitos humanos dos indígenas, apresenta um
número limitado de casos, entre eles os esbulhos dos territórios dos Ava-guarani, Guarani Kaiowá,
no noroeste do Paraná e no sul do Mato Grosso do Sul, respectivamente.
Acerca das desagregações sociais e extermínio, o relatório aponta o caso dos Xetá (PR),
Tapayuna (MT) e Avá-Canoeiro (TO). Sobre as mortandades causadas pela construção de estradas e
hidrelétricas, aparecem o caso dos Panará (MT), Parakanã (PA), Akrãtikatejê (PA), Yanomani (RR)
e Waimiri-Atroari (AM). Um dado importante que o texto da CNV apresenta é relativo ao papel do
Estado desempenhado pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e Funai. Esses órgãos instituiram
sistemas punitivos e praticas de tortura como se pode averiguar no caso do reformatório dos Krenak
(MG), onde vários índios de diversos povos espalhados pelo Brasil foram encarcerados.
A estimativa de mortos durante o período investigado, foi de 8350 indígenas.1 O caso dos
índios é particular porque as violações não se destinaram a indivíduos, mas a povos inteiros, sobretudo
no que toca ao esbulho de suas terras, nas remoções forçadas, no contágio de doenças, nas prisões,
torturas e maus-tratos. Através das pesquisas em documentos colhidos durante as viagens da CNV,
audiências publicas e depoimentos, o capítulo dedicado aos indígenas, constatou que “em quase todos
os casos, não apenas uma, mas múltiplas violações ocorreram contra um mesmo povo”’ (CNV.
p.215).
Ainda, é preciso ressaltar que o próprio texto da CNV aponta que os efeitos dessas violações,
em diversos casos, são sentidos ainda hoje, mesmo após 25 anos da promulgação ca Constituição de
1988. Entre as principais conclusões da CNV, está a velha visão do Estado de incorporação dos
índios por meio da transformação de seus modos de vida que, na prática, visava a apropriação de seus
territórios. (CNV. p 246).

O contexto histórico
Quando Joao Goulart foi deposto por militares e por diversos setores civis em um golpe de
Estado, o novo governo instaurado antidemocraticamente, sequer imaginava ao certo a quantidade de
índios que existia no país.2 A estimativa versava apenas sobre o numero de “aldeados”, ou seja, os
que habitavam as terras demarcadas pela União. No entanto, havia milhares de índios habitando as
matas, contactados ou não, vivendo com ribeirinhos, extrativistas e várias populações que dividiam
com eles as florestas. A esse tempo, não era raro que esses índios, vistos como “hostis” reagiam ao
assédio dos não índios em seus territórios. Quando os conflitos tensionavam as forças politicas locais
recorriam aos órgãos “amansadores” de índios, o SPI e a sua sucessora FUNAI.3
Esses órgãos, legítimos representantes do Estado, deveriam destinar suas atuações visando a
paz entre índios e não índios. Todavia, em relação às politicas desempenhadas, eles tinham um caráter
obscuro porque, na prática, levavam a cabo as políticas governamentais. Nota-se por exemplo, que o
SPI era um órgão ligado ao Ministério da Agricultura e que a FUNAI, sua substituta, foi criada em
1967, como órgão no Ministério do Interior, o mesmo a cargo do qual estavam a abertura de estradas
e a política desenvolvimentista em geral. (CNV, p. 205)

1
Essa cifra inclui apenas aqueles os casos aqui citados em relação aos quais foi possível à CNV desenhar
uma estimativa
2
VALENTE, Rubens. Os Fuzis e as Flechas. P 46
3
Idem. P. 51
A ideia de pacificar os índios objetivava dar um caráter de heroismo e inovação ao trabalho
dos agentes estatais. Entretanto, sabemos que a maioria dos índios atendidos pelo SPI e FUNAI, já
havia sido contactada ao longo do tempo e que de uma forma ou de outra travara relações com não
índios, desde os tempos remotos da colonização.4 Além disso, o discurso governamental sobre o
estado de guerra entre os índios e os “civilizados” era um meio pelo qual se justificava a força de
atração desses povos pelo SPI, bem como, justificava as ações por vezes de extrema violência, desses
agentes para com os índios. “Assim, é estrutural o fato de os órgãos governamentais explicitamente
encarregados da proteção aos índios, o SPI e posteriormente a Funai, não desempenharem suas
funções e se submeterem ou até se colocarem a serviço de políticas estatais, quando não de interesses
de grupos particulares e de seus próprios dirigentes.” (CNV, p.205)
A Comissão Nacional da verdade apontou a responsabilidade do Estado pela ação de vários
diretores tanto do SPI quanto da Funai. A título de exemplo, podemos citar as gestões do major
aviador Luis Vinhas Neves, do General Bandeira de Mello e de Romero Jucá, onde houve registros
de casos de graves violações de direitos humanos associados à derrubada das matas e à extração de
minérios, à colonização e implantação de obras de infraestrutura em terras indígenas. Isso tudo foi
favorecido pela corrupção dos agentes estatais que não foi punida, bem como, “a vista grossa”
praticada pelos órgãos em relação à extrema violência dos grupos privados contra os índios. “Com
exceção de alguns casos esparsos, a justiça não foi feita.” (idem.)
Como já foi dito acima, a ideia geral dos órgãos estatais era a pacificação dos povos indígenas
e essa consistia em mostrar como a tecnologia dos brancos era capaz de suplantar a resistência
aguerrida dos nativos. Dessa maneira, os postos de atração do SPI funcionavam como uma espécie
de “convite” para que os índios reconhecessem e aceitassem a "superioridade" dos brancos e assim,
participassem desse novo mundo tecnológico.5
Entretanto, cabe ressaltar que as ações articuladas pelo SPI não passavam de ilusões. Há
inúmeros relatos, tais como os citados por Rubens Valente no seu livro os Fuzis e as flechas, de que
as doenças as quais os índios eram vulneráveis, como o sarampo, a varíola e a gripe, eram transmitidas
de forma intencional pelos agentes de contato. Em seu livro, Valente relata que uma expedição
ocorrida no ano de 1965, a primeira do gênero no regime militar, cujo intuito era atrair e “pacificar”
os índios Kararaô, terminou na morte de quase todos os 48 indígenas dessa etnia, infectados pela
gripe. (p. 191) Para essa ocasião, o SPI teria encaminhado um enfermeiro que agravou o problema,
pois ele “pegava a agulha e não esterilizava direito, então a própria agulha contaminava”(idem).

4
MARCHIORO, MARCIO. Questão Indígena no Brasil: uma perspectiva histórica. Curitiba, Intersaberes,
2018, p. 202
5
Sobre essa discussão ver: LIMA, A. C. De S. Um grande cerco de Paz: poder tutelar, indignidade e
formação do Estado no Brasil. Petropólis: Vozes, 1995.
Além desse quadro desolador, relata Valente que a crise sanitária se agravou entre os Kararaô
por causa da falta de comida. Os índios não tinham reservas alimentares e debilitados não conseguiam
caçar, pescar ou mesmo pegar madeira seca para fazer fogo. Era comum os índios quebrarem seus
próprios arcos e flechas para fazer uma fogueira. (idem). O fato é que o projeto de pacificação do
SPI não trazia beneficio algum para os nativos, pois a mortandade na ocasião dos contatos era enorme,
beirando o etnocídio. Tudo isso ainda agravado pela abertura de estradas diretamente para as terras
indígenas facilitando a invasão em razão de interesses diversos como a agricultura em larga escala, a
extração de minérios e madeira.
Nessa mesma esteira de análise, o texto da CNV aponta que o Relatório Figueiredo (O
relatório da Comissão de Investigação do Ministério do Interior de 1967,8 presidida pelo procurador
Jader de Figueiredo Correia), constata a existência de diversos problemas nesse sentido em quase
todo o território nacional. Em especial, o caso do esbulho fundiário ocorrido no sul do Mato Grosso,
que trouxe em anexo uma lista de nomes de não índios beneficiados com terras indígenas, bem como,
as suas vinculações com políticos, juízes, militares e funcionários públicos. (CNV, p. 207)
A violação dos direitos territoriais indígenas está na origem das violações do direitos humanos
desses povos. A exemplo dos já citados casos dos Xetá no Panará e do genocídio dos Avá-Canoeiros
no Araguaia, bem como os reiterados massacres contra os Cinta Larga do MT. (idem) O que facilitou
a usurpação das terras indígenas foram infinitas declarações oficiais fraudulentas que atestavam a
inexistência de índios nas áreas cobiçadas por latifundiários. Para se apossarem dessas áreas e tornar
real a extinção dos índios, ao menos no papel, empresas e particulares organizaram diversas tentativas
de massacre aos índios, com o intuito de exterminá-los fisicamente. No texto da CNV, essas práticas
configuram “um genocídio terceirizado – que chegaram a se valer de oferta de alimentos
envenenados, contágios propositais, sequestros de crianças, assim como de massacres com armas de
fogo” (idem).
Os chefes do SPI exerciam um poder abusivo impedindo os índios de transitar livremente por
seus territórios, prendendo-os de formas ilegais, castigando e praticando tortura. Esses diretores
enriqueceram-se ilicitamente arrendando as terras e o trabalho dos índios para estabelecimentos
agrícolas, além de patrocinar a derrubada ilegal das matas para o corte de madeira. Um outro fator
importante para entender o esbulho das terras indígenas é o fato de a legislação indigenista da época
considerá-los incapazes. Dessa maneira, eles só poderiam gozar de plenos direitos à medida em que
se aproximavam do grau “civilizatório” branco. Os índios eram muitas vezes comparados a crianças
e por isso não tinham responsabilidades plenas por seus atos.6

6
Ver, LIMA, 1995.
Essas classificações provocavam uma série de perdas de direitos indígenas. Quando eram
considerados “integrados” à sociedade, encerrava-se por parte do Estado qualquer questão
envolvendo a posse das terras. Nesse ritmo, muitos grupos foram dados como extintos e por esse
motivo, suas propriedades passaram diretamente para as mãos de fazendeiros e
garimpeiros.(Machioro, p. 207)
Nesse mesmo sentido, o texto da CNV aponta que no ano de 1968, com o endurecimento da
ditadura militar a partir do AI-5, a política indigenista tornou-se mais agressiva, inclusive com a
criação de presídios para índios. O Plano de Integração Nacional (PIN), editado na década de 1970,
preconiza um antigo sonho do governo brasileiro, levado a cabo pelos militares, que era a ocupação
da Amazônia. Esse território, era representado como um espaço populacional vazio, ou seja, ignorava-
se as inúmeras populações indígenas ali habitantes.
O plano do governo era integrar a região amazônica por meio da abertura de estradas,
particularmente a Transamazônica e a BR 163 que ligaria Cuiabá a Santarém, além das BR 174, 210
e 374. A meta do governo era assentar às margens dessas rodovias, umas 100 mil famílias em torno
de mais de 02 milhões de quilômetros quadrados de terras expropriadas (CNV, p. 209). À essa época,
chefiava o Ministério do Interior, o militar e político José Costa Cavalcanti, um dos assinantes do AI-
5, apoiado por Costa e Silva e por Médici. Exercera o cargo de 1969 a 1974. Período em que defendia
que a Transamazônica deveria cortar terras de 29 etnias indígenas, sendo que 11 eram grupos isolados
e nove de contato intermitente. O resultado desse projeto foi a remoção forçada desses grupos. Para
levar a frente esse projeto, a FUNAI, então dirigida pelo general Bandeira de Mello, firmou um
convênio com a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) para a “pacificação"
de 30 grupos considerados arredios. Além disso, a FUNAI tornou-se a executora de uma política de
contato que vitimou inúmeros indígenas, com a atração e a remoção forçada de seus territórios em
prol das estradas e da colonização pretendida (idem).
Os índios, removidos à força, iniciaram uma longa volta para seus territórios tradicionais.
Vejamos como exemplo a remoção dos Krenak que, sob o aval do SPI, foram retirados de seus
territórios, localizados no município de Resplendor em Minas Gerais, e recolocados na região de
Água Formosa no ano de 1957. Essa remoção dos Krenak correspondia à última etapa da ação do
SPI para liberar terras para a colonização e foi realizada de forma violenta, sem nenhum planejamento
ou mesmo consulta aos índios. O resultado foi a piora nas condições de vida dos Krenak, o que os
fizeram retornar para o antigo território em uma viagem que realizaram a pé, de carro e de trem
durante três meses e cinco dias (CNV, p. 210).
A partir de 1969, a política indigenista se renovou para colocar em prática a velha ideia de
integração dos índios à sociedade nacional, “incomodada pela tradição jurídica do Brasil de respeito
às terras indígenas, a tentativa de solução que a política indigenista adota é abolir por canetada os
detentores desses direitos à terra.”(CNV, p 213) A FUNAI, por meio de seus dirigentes insistira em
aplicar os “critérios de indianidade” para descaracterizar os índios. A política de assimilação levada
a cabo por esse órgão, visava atrair, “pacificar" integrar e emancipar os índios. Essas práticas, no
contexto da ditadura, podem ser lidas como um programa de etnocídio (CNV, p. 214).
Diante do exposto até aqui, podemos afirmar que o papel da Comissão Nacional da Verdade,
ao trazer à luz as graves violações dos direitos humanos contra os povos indígenas, no período em
que vigorou a sua investigação, foi fundamental para que a sociedade contemporânea reconheça os
crimes praticados pelo Estado contra os índios, seus povos, seus territórios e seus direitos garantidos
em lei. Além disso, esse reconhecimento significa incluir os povos nativos dentro do processo de
justiça de transição para que o Estado se responsabilize e promova a reparação aos direitos individuais
e coletivos violados pela ditadura.

A CNV: memória e tempo presente


A implantação da Comissão Nacional da Verdade se deu em meio a uma série de disputas
relacionadas à condução do projeto. Tais embates foram averiguados, sobretudo por movimentos de
direitos humanos e representantes da corporação militar. Essas disputas podem ser entendidas para
além de posicionamentos abstratos e interesses diversos, o objetivo era interferir no processo. (DIAS,
2013, p 72)
Não é objetivo desse texto listar os embates ocorridos em torno de qual memória da ditadura
deveria ser enfatizada pela CNV, o que nos cabe é dizer que o trabalho realizado pela CNV é uma
oportunidade de se colocar em contato com uma memória que disputa e atualiza as questões em torno
das violações dos direitos humanos à época da ditadura como também, a memória que os militares
reivindicam. É sabido que desde que fora anunciada pelo governo em 2010, o projeto de uma
comissão nacional da verdade, sofreu diversos ataques, incluindo-se aí até mesmo ministros do
próprio governo.
Diante desse quadro, podemos afirmar que estamos diante de uma memória que é viva, que
se atualiza e conforme salienta Pierre Nora, trata-se de uma história que “fere, que faz sangrar, porque
rema fatalmente na contracorrente da imagem que uma sociedade tem necessidade de construir acerca
de si mesma para sobreviver” (NORA, 1989, P.53). Cabe dizer, que se a CNV é um fato recente na
política brasileira, porém, alguns de seus objetivos eram reivindicados pelos movimentos de direitos
humanos ao menos desde os anos 1970 (DIAS, p. 92).
Houve diversas iniciativas de movimentos, como a edição do dossiê dos mortos e
desaparecidos, a pressão para que o Estado reconhecesse que há desaparecidos políticos chegando
mesmo a recorrer a cortes internacionais. Assim, é possível afirmar que desde a sua implementação
até a finalização dos trabalhos da CNV, a disputa sobre qual memória viria à tona, foi efetivada.
Todavia, acerca dos povos indígenas, o Estado não colaborou para uma efetiva apuração das violações
dos direitos humanos desses grupos, deixando o GT criado na CNV para levantar estas violações, à
míngua de recursos, sem contratar assessores especialistas no tema, sem investimentos na equipe de
trabalho de digitalização de documentos, transmitindo o ônus da pesquisa e reunião de informações
aos indígenas, instituições e pesquisadores que se dispusessem a colaborar.7
Mesmo diante de todas essas dificuldades, a CNV em seu relatório final apontou, conforme
já discutimos nesse texto, a ação genocida do Estado por meio de sues órgãos juntamente com
práticas, igualmente genocidas, realizada por particulares. O impacto dessa violência foi tão grande,
que a CNV recomendou que seja realizado um estudo aprofundado com relação a essa violência
contra os índios e seus direitos. Isso impõe, devido ao volume de conflitos decorrentes do modelo de
desenvolvimento patrocinado pelo Estado para as terras indígenas, uma permanência dos conflitos
nas relações sociais entre os índios e a sociedade envolvente.
Por isso, há a necessidade de continuar a mapear as graves violações contra os índios e seus
direitos durante o período abarcado pela CNV, em todas as regiões do país, envolvendo os povos
indígenas e suas organizações, como também, especialistas na área, com suporte estrutural e de
pessoal para o estudo e sistematização dos documentos que forem encontrados, envolver ainda, as
universidades brasileiras, para que se possa construir mecanismos efetivos de reparação e de não
repetição dessas violências.
A inclusão da questão indígena na revisão histórica do tempo presente, proporcionada pela
CNV, foi uma decisão política diante da disputa de uma memória que teimava por permanecer nas
sombras de uma história que, inviabilizava o conhecimento acerca da real natureza da violência vivida
pelos índios durante os anos de chumbo. Esse direito à verdade poderá abrir portas para que o governo
brasileiro mude a forma como tem conduzido as relações com os povos indígenas frente às disputas
de direitos humanos.
Dessa forma, é de suma importância as produções científicas feitas por índios e não índios, a
partir dos fatos apurados pela CNV, para mostrar como o Estado brasileiro e segmentos da sociedade
agiram entre 1946 - 1988 e ainda agem, quando não reconhece o direito dos índios a seus territórios,
direito originário e também de reparação, além de uma retratação histórica amplamente difundida na
sociedade. Para tanto, as contribuições cientificas podem fornecer subsídios necessários ao Estado e
à sociedade para se comprometerem com essa causa.
Nesse âmbito, quero destacar a obra, aqui já citada, de Rubens Valente. Os fuzis e as flechas:
história de sangue e resistência indígena na ditadura. Publicado em 2017, esse foi um trabalho de

7
Sobre isso ver: ZELIC, Marcelo. Sobre o Relatório Figueiredo, os indígenas na Comissão Nacional da
Verdade e a defesa dos Direitos Humanos. DOI: 10.5433/2176-6665.2017v22n2p347
fôlego, pois ao longo de quase 400 páginas, o autor construiu uma série de quadros que remodelaram
paisagens, cenários e trajetórias de vidas, bem como, de eventos que marcaram a atuação de diversas
pessoas envolvidas na questão indígena entre os anos de 1960 a 1980. A pesquisa, é em parte o
resultado do trabalho de jornalista que Valente desempenhara para diversos jornais de São Paulo. Ele
percorreu cerca de 14 mil quilômetros entre dez estados incluindo diversas aldeias onde realizou
varias reportagens em terras indígenas.
Os fuzis e as flechas foi concebido a partir do uso de um amplo leque de fontes orais cruzadas
com documentos escritos, relatórios e comunicações oficiais sobre casos ou indivíduos específicos.
São documentos, em grande parte, sigilosos e que vieram à tona somente após a ditadura. Em sua
maioria, correspondem a documentos do SPI, da Funai, do Ministério do Interior e Assessoria de
Segurança e Informação, instalada na Funai como braço do Serviço Nacional de Informação. Essa
relação de documentos está disponível ao final do livro, constituindo um material riquíssimo para
pesquisadores que queiram se dedicar a esse período.
Apesar de não ter uma questão central a ser perseguida dentro do eixo de análise proposta por
Valente, o que causa um estranhamento imediato para os historiadores, o autor consegue elaborar
com convicção o fato de o genocídio indígena não ter sido fruto de mero descaso, irresponsabilidade
ou falta de preparo, mas consentido pelo Estado. O texto é iniciado quando o sertanista a serviço do
SPI, Antônio Cotrim, entra em cena. Seguindo os seus passos, já é possível ter em mente qual é a
tônica do texto: o massacre dos índios (nessa parte, os Kararaô, do Pará) em decorrência da política
da denominada “frente de atração”, que levava para o seio das aldeias indígenas, doenças que
terminavam infectando comunidades inteiras.
Não é objetivo desse texto aprofundar na obra de Valente, mas tentar contextualiza-la no
âmbito das memórias em disputas já mencionadas aqui. Para tanto, algumas questões são importantes
de serem levantadas. A título de exemplo está a controvérsia relação dos sertanistas e funcionários
com a política genocida praticada pelo SPI e pela Funai. Valente apresenta um conflito de atitudes
desses sujeitos que, muitas vezes, reagiram de maneira veemente, articulados a antropólogos e
membros da sociedade civil, principalmente a partir dos anos 1970 quando contaram com o apoio de
parte da opinião publica internacional contra as violações praticadas pelo Estado. Ao passo que,
muitas atitudes tomadas por parte dos sertanistas acarretaram na morte de dezenas de índios,
principalmente infectados por doenças, ou pela escassez de alimentos quando eram realizados os
deslocamentos forçados.
Outra questão importante que é demarcada logo na primeira parte do livro, versa sobre figuras
que se tornaram icônicas no indigenismo brasileiro, como os irmãos Villas-Bôas, Francisco Meireles
e seu filho José Apoena Mereiles e o próprio Darcy Ribeiro. Eles são representados como figuras
complexas, ainda que o autor nem sempre consiga escapar de certa heroicização. Foram apresentados
aspectos controversos desses homens, como o caso abusivo dos Villas-Bôas com mulheres indígenas.
A visão dos Meireles de que os índios fatalmente desapareceriam ao se integrarem à sociedade
nacional ou a recusa de Darcy Ribeiro em reconhecer a existência do Povo Ofayé, facilitando a
tomada de terras desse povo por fazendeiros. E ainda, a manipulação dos registros escritos pela Funai
acerca dessas questões, para que não acarretasse em algum escândalo envolvendo figuras importantes
à frente do órgão.
Nessa mesma esteira de análise está a ênfase que Valente dá à trajetórias de lideranças
indígenas que foram referência de luta entre os anos 1970 e 1980. O grande exemplo do livro é a
trajetória do guarani Marçal de Souza (cuja foto serve de capa ao livro). É dado destaque ao seu
engajamento político, sua fala de denúncia ao papa João Paulo II e por fim, o seu assassinato na aldeia
campestre. A outra grande liderança abordada é o xavante Juruna, primeiro deputado federal indígena.
O percurso de sua vida no livro é retratado em todas as suas contradições que evidenciam a
dificuldade de articulação de um indígena fazer política em um terreno, que a princípio, não lhe é
próprio.

Considerações finais
A importância do relatório final da Comissão Nacional da Verdade para a reconstrução de
uma memória quer seja individual ou coletiva é de demonstrar o dever do Estado brasileiro para
manter aceso o direito à memória de luta e resistência por parte dos milhares de brasileiros que foram
presos e torturados, mas é também o dever de aplicar a justiça. Digo isso porque o próprio relatório
apontou que muitas verdades se perderam no Brasil de 1965 a 1985. Outras tantas verdades foram
ocultadas e relegadas ao esquecimento enquanto tantas outras, foram forjadas com o apoio da mídia
que trabalhou para erguer um consenso acerca dos motivos que levaram ao golpe militar como
também à ditadura.
No caso das populações indígenas, parte da população se surpreendeu com a ação dos
militares em suas terras e com o total de números de mortos apontados pela CNV. No entanto, não é
demais relembrar que a CNV investigou apenas alguns casos (os mais críticos) dentro de um vasto
território nacional. Ainda assim, a CNV assumiu ser uma importante colaboradora com o dever do
Estado brasileiro de reconstituir a memória desse massacre, ao passo que esta reverbera as vozes que
hoje clamam por justiça.
Ao fim, em meio a tantos retrocessos em relação aos direitos indígenas, é preciso crer que
ainda há espaço para alguma esperança. Nesse sentido, Rubens Valente na obra Os Fuzis e as Flechas,
aponta “talvez uma vitória” ao destacar o aumento nos índices de natalidade entre as populações que
quase foram extintas. Ao final da ditadura, “os índios estavam vencendo a batalha pela
sobrevivência”. Muitas etnias demonstraram um poder de resistência ao permanecerem em seus
territórios, com seus modos de vida, “dando as costas às promessas das cidades”. Exemplo disso
foram, os índios Kaiowá que haviam regressado a pé para suas terras e passaram a ocupar fazendas
em torno do seu território com a finalidade de recuperar o que haviam perdido. Na Bahia, os Pataxó
Hã Hã Hãe emergiram “quase das cinzas”. No Xingu, muitos costumes e tradições permaneciam e
assim por diante. Muitos outros relatos são tratados no livro, o que nos leva a concluir que mesmo
diante de uma política genocida executada e patrocinada pelo Estado, os índios sobreviveram e
demonstraram a capacidade de conseguir algum tipo de vitória em meio a tantas derrotas.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE - Relatório - Volume II- Textos temáticos - Dezembro


de 2014. Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br
DIAS, Reginaldo Benedito. A Comissão Nacional da Verdade, a disputa pela memória sobre o
período da ditadura e o tempo presente. Revista Patrimônio e Memória. São Paulo, Unesp, v.9, n.
1, p. 71-95, janeiro-junho, 2013.
LIMA, A. C. De S. Um grande cerco de Paz: poder tutelar, indignidade e formação do Estado no
Brasil. Petropólis: Vozes, 1995.
MARCHIORO, Márcio. Questão Indígena no Brasil: uma perspectiva histórica. Curitiba,
Intersaberes, 2018
NORA, Pierre. O acontecimento e o historiador do presente. In. LE GOGG, Jacques et al. A nova
história. Lisboa, edições 70, 1989, p. 45-55
VALENTE, Rubens. Os fuzis e as flechas, : história de sangue e resistência indígena na ditadura.
São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 518pp.
ZELIC, Marcelo. Sobre o Relatório Figueiredo, os indígenas na Comissão Nacional da Verdade
e a defesa dos Direitos Humanos. DOI: 10.5433/2176-6665.2017v22n2p347

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