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«O controlo ou descontrolo da legalidade», por Lúcia Silveira

24-04-2006 | Fonte:

No presente artigo, propomo-nos passar em revista os poderes que a Constituição e a Lei


conferem à Procuradoria – Geral da República e, por consequência, fazer uma apreciação
crítica, reportando-nos sempre que possível a casos concretos, das acções e omissões do
referido órgão do Estado.

Nos termos da Constituição em vigor (artigo 136.º, número 2) «à Procuradoria – Geral da


República compete a defesa da legalidade democrática e, em especial, representar o Estado,
exercer a acção penal e defender os interesses que lhe forem determinados por lei».

No mesmo sentido, a Lei 5/90, da Procuradoria – Geral da República, no artigo 2.º enumera,
pormenorizadamente, as competências daquela entidade. Iremos, todavia, de seguida, referir
apenas as alíneas daquele artigo que nos parecem de maior utilidade para análise do tema que
nos propomos:

Artigo 2.º «Compete à Procuradoria – Geral da República»:

a) exercer o controlo genérico da legalidade, de forma a que a lei seja respeitada pelos
organismos do Estado e entidades económicas e sociais, em geral, utilizando o mecanismo de
protesto, se necessário;

b) exercer a acção penal;

c) ordenar a prisão preventiva em instrução preparatória e fazer cumprir a prisão


ordenada pelos tribunais;

d) validar a prisão preventiva em instrução preparatória ordenada pelas autoridade de


investigação e instrução criminal ou por outras entidades competentes e prorrogá-las, nos
termos da lei;

e) instruir processos criminais, colaborar na instrução e requisitar diligências


complementares de prova;
f) efectuar inquéritos preliminares destinados a averiguar a existência de infracções
criminais, enviando-os aos órgãos de instrução e investigação criminal quando se apurem
indícios suficientes para procedimento criminal.

Decorre da leitura destas alíneas que o Ministério Público é um órgão do Estado, autónomo
em relação aos demais órgãos, porque se move apenas por critérios de legalidade e
objectividade, e que se trata de um órgão auxiliar da Justiça, na medida em que intervém junto
dos tribunais e no processo, concorrendo para a boa aplicação da Lei.

Resulta também daqueles enunciados legais um dos princípios basilares do nosso processo
penal, o princípio da oficiosidade ou estadualidade do processo penal, nos termos do qual a
Procuradoria – Geral da República, na qualidade de Ministério Público, tem o dever de
promover o processo-crime, por sua própria iniciativa, sem quaisquer restrições.

A promoção do processo-crime pressupõe – e isto está no seu âmbito de competência – que o


Ministério Público deve necessariamente desenvolver todas as diligências no sentido verificar
a existência ou não de práticas que constituam crime. O mesmo é dizer que o Ministério
Público não pode, porque seria contrariar a sua missão legal, ficar impávido e sereno em face
de suspeições, notícias e indícios que apontam para a ocorrência de condutas punidas
criminalmente.

Há apenas uma única excepção ao princípio da oficiosidade do processo criminal: é a que


resulta dos crimes de natureza particular. Em relação a esses crimes, a lei processual penal faz
depender o impulso processual (isto é, a promoção do processo) da queixa do particular
ofendido.

Nesses casos, de crimes de natureza particular, o legislador processual penal entende que a
lesão do bem jurídico em causa não atinge tanto a comunidade, senão o particular visado e,
por isso mesmo, apenas esse deve decidir se vale a pena ou não avançar com uma queixa
contra o infractor.

Fora esses casos, o Ministério Público não tem inibições para promover processos-crime;
ninguém está à partida excluído da sujeição à investigação! Todos, bastando que se seja
suspeito, incluindo os mais altos dirigentes do Estado, estamos sujeitos aos inquéritos
preliminares e subsequentes de averiguação da existência de infracções criminais. Vigora aqui
o princípio da igualdade perante a justiça penal.
É evidente que há na Lei da Procuradoria – Geral da República uma norma inconstitucional, o
artigo 5.º, número 2, que diz que «o Procurador – Geral da República recebe do Chefe de
Estado instruções directas e de cumprimento obrigatório». Esta norma configura
manifestamente uma limitação do princípio da autonomia (artigo 137.º, n.º da Lei
Constitucional) e iniciativa processual que assiste à Procuradoria-Geral da República.

Ao abrigo do artigo 5.º, n.º 2, da Lei da PGR, o Chefe de Estado (que é no nosso caso o chefe
do Executivo), podia dar ordens no sentido de proibir que determinada investigação se fizesse,
em relação a certos crimes ou em relação a certas pessoas (o que não deixaria de ser desviante
em relação aos critérios de legalidade e objectividade a que o Ministério Público está sujeito).

Seja como for, não é crível que Chefe do Governo teria, algum dia, dado instruções naquele
sentido, porque isso significaria o encobrimento de práticas criminosas e potenciais
criminosos.

Ora, é frequente ouvirmos na comunicação social, não estatal e estrangeira, denúncias de


práticas criminosas, relacionadas com a corrupção, crime de natureza pública, envolvendo
dirigentes do Estado aos mais diversos níveis, sem, no entanto, tomarmos conhecimento de
que o Ministério Público tenha efectuado inquéritos para se certificar da veracidade daquelas
informações.

Das duas uma, ou o nosso Ministério Público funciona com elevados padrões de eficiência e
organização que não permite a fuga de informação – o que seria desejável, porque nesta fase,
em regra, o processo estaria em segredo de justiça - e coincidentemente as denúncias todas
não têm qualquer base de sustentação que leve a instrução dos processos e a constituição de
arguidos, ou então estamos perante uma deplorável omissão dessa entidade estadual. Sendo
estranha a postura de reiteradas vezes o Digníssimo Procurador-Geral da República pedir que
sejam feitas denúncias junto das instancias competentes de práticas de que na verdade tem
conhecimento por via da comunicação social.

Não há muito tempo, correram notícias tornadas públicas, e não meros boatos, que davam
conta que um alto dirigente do Estado, embaixador num país na África Austral, se tinha
locupletado de dinheiros públicos. A única informação que foi do domínio público é que o
mesmo foi chamado pelo Tribunal de Contas para devolver o dinheiro, não tendo havido
consequência nenhuma. Por que razão não houve o correspondente processo-crime?
Estamos, seguramente, perante uma omissão do exercício da acção penal contra servidores
públicos que são identificados pelo Tribunal de Contas como tendo-se apropriado de dinheiros
públicos, de forma ilícita. Não queremos acreditar que o processo-crime se justifica somente
nos casos de conveniência política.

O Ministério Público deve pautar a sua actuação por critérios de objectividade e legalidade, e
não por critérios políticos ou de conveniência. A justiça, esse nobre fim do Estado e objectivo
primacial da Procuradoria-Geral da República, impõe que não haja «dois pesos e duas
medidas…». Os cidadãos angolanos esperam que o Ministério Público tenha a mesma medida
que usa em relação aos simples cidadãos que cometem crimes, alguns dos quais esperando na
condição de detidos anos a fio pelo julgamento que tarda a acontecer…

Todos sabemos que as nossas cadeias estão superlotadas de presos em regime de prisão
preventiva e condenados, a cumprirem penas por terem cometido pequenas infracções, como
sejam, por terem roubado uma camisa, um brinco, etc. E não estamos, objectivamente, contra
isso em si: esses cidadãos poderiam lá estar legalmente privados da liberdade – embora
defendamos que têm que ser exploradas outras medidas de coacção. O que nos causa
indignação é que os crimes cometidos por altos dirigentes do Estado fiquem impunes. Isso é
sim uma pura INJUSTIÇA!

Mas há mais: o comportamento da Procuradoria-Geral da República, há muito que mais se


parece com o de um órgão do partido governante e não do Estado. Senão como compreender
o facto de o Ministério Público não se pronunciar contra as reiteradas violações abusivas do
direito de manifestação de que são alvo partidos políticos e organizações cívicas não afectas ao
partido governante? Por que razão o Movimento Nacional Espontâneo nunca foi objecto de
impedimento nas suas manifestações públicas, será que só esta organização cívica cumpre
com a Lei, e será que a cumpre?

É absolutamente incompreensível que ainda hoje a Procuradoria – Geral da República não


intervenha para que se ponha cobro aos impedimentos ilegais que constantemente a Polícia
Nacional impõe sobre o PADEPA, em grosseira violação da liberdade de manifestação.

O Ministério Público já devia perceber que certos juízes, em sede de aplicação da lei,
respeitam liberdade de manifestação. É vergonhoso assistir permanentemente a derrotas do
Estado – administração nos tribunais em consequência de práticas arbitrárias dos seus agentes
policiais – PADEPA ganhou já por duas vezes em tribunal, em contraposição a Policia Nacional,
o reconhecimento da liberdade de manifestação. O Procurador – Geral da Republica deveria,
com base nesse precedente de interpretação e aplicação da Lei de Reunião e Manifestação,
tomar posição pública em favor do respeito pela legalidade democrática, fazendo saber que a
Policia Nacional só pode impedir a realização de manifestações dentro das circunstâncias
tipificadas pela lei, que as enumera. O Ministério Público deve defender o Estado de direito
democrático – a conformidade do actos dos poderes públicos com o princípio do Estado de
direito – agindo preventivamente nesses casos. E assistindo os lesados nos processos-crime
por abuso de autoridade contra os agentes do Estado que violam a liberdade de manifestação,
conforme estabelecido por lei!

É óbvio que a própria Polícia Nacional já deveria ter ajustado as suas praticas às decisões dos
tribunais, a favor do PADEPA, e mentalizar-se que, cada vez que aborta abusivamente uma
manifestação, está a agir contra a Lei e, por isso mesmo, a dar um mau exemplo, uma vez que
deve velar pelo cumprimento da Lei e da ordem pública.

Decorre também da Constituição e da Lei, que ao Ministério Público compete o controlo


genérico da legalidade democrática (a Lei refere que deve contribuir para a elevação da
consciência jurídica do povo e do respeito da legalidade). E não se pode queixar de não ter
instrumentos para fazê-lo, porque a própria Lei os define, dizendo que em caso de violação da
lei por parte de entidades públicas pode (deve) socorrer-se do «mecanismo de protesto»
(artigo 51.º da Lei 5/90), e pode (e deve) inclusivamente servir-se da comunicação social, se for
o caso e quando bem o entender, para exercer pressão no sentido do respeito da legalidade
(vide art. 2.º, s).

O «protesto público» é um instrumento que a Lei confere ao Procurador-Geral da República


no âmbito da fiscalização genérica da legalidade, que serve para que estes, no exercício das
suas funções, por iniciativa própria ou mediante queixa de interessados, possam reclamar e
chamar a atenção directamente ao organismo, serviço ou funcionário do Estado, entidade
económica ou social dependente do Estado, que esteja a cometer uma ilegalidade, para que
ajam em conformidade com a Lei.

Assim sendo, como se pode justificar a omissão do Ministério Público em intervir para a
reposição da legalidade em relação ao caso do partido Frente para a Democracia (FpD), que
reclama assento no Conselho da República, tendo, inclusivé, um parecer do Tribunal do
Supremo a seu favor?

Só uma interpretação muito restritiva, mas propositada, do âmbito de competência da


Procuradoria – Geral da República pode explicar a omissão deste órgão do Estado em relação
ao controlo da legalidade democrática; é ao Ministério Público – e não a outra entidade do
Estado – que cabe pronunciar-se sobre as práticas ilegais ou infracções criminais que ocorrem,
em geral, na sociedade. E pode fazê-lo com recurso aos procedimentos que acima referimos,
nomeadamente, inquéritos, investigação, protesto, etc.

Há uma prática, que se torna habitual, na política angolana, que são as divisões intra-
partidárias. Se tais práticas representassem dinâmicas internas de aprofundamento
democrático, seria salutar, contudo, não é o que acontece. O que ocorre, são rupturas
internas, que depois redundam em grupos que se apresentam juntos de entidades oficiais e
públicas com a mesma identidade dos Partidos Políticos nos quais se colocam em divergência e
desafio em relação aos os órgãos dirigentes em exercício. Pior, é constatar que o executivo
toma mesmo partido beneficiando grupos desavindos no mesmo partido, dando-se ao luxo de
determinar, em função de conveniências sazonais, que grupo passa a receber os dinheiros
atribuídos aos partidos pelo Estado. Ora, estamos aqui perante um conflito de interesse
público, que, se não for crime, será certamente uma prática ilícita que deve engajar a mais alta
entidade do Estado, encarregue do controlo da legalidade.

Merece, igualmente, aqui, a nossa chamada de atenção o facto de dois juízes do Tribunal
Supremo acumularem o exercício da função jurisdicional nesse órgão de soberania e
simultaneamente ocuparem funções públicas no Conselho Nacional Eleitoral (CNE), em
flagrante violação da norma constitucional – o artigo 131.º - que consagra a incompatibilidade
de funções jurisdicionais com outras funções públicas, excepto a de docência e investigação
científica. Também neste caso, mais uma vez se confirma a prática intolerável num Estado de
Direito, que se vai tornando regra: o silêncio da Procuradoria-Geral da República. Esta tem
competência, por iniciativa própria, de emitir um parecer e de o publicitar tendo em vista a
defesa da legalidade democrática.

Outro caso recente de manifesta violação da Lei, dos procedimentos administrativos e dos
direitos dos cidadãos são as demolições que têm sido levadas a cabo pelas administrações
municipais da Província de Luanda. Sem qualquer respeito pelos procedimentos
administrativos e sem qualquer fundamentação legal, muitas famílias têm sido vilipendiadas e
humilhadas pela administração – municipal do Estado, sendo-lhes retirada o direito à
habitação e à terra em que construíram as suas vidas, sem que sejam realojadas e tratadas
com o mínimo de dignidade. Mais: as demolições são normalmente efectuadas com forças
policiais ou militarizadas e com recurso à violência. Ora, a Procuradoria-Geral da República,
como acima referimos, tem a função de zelar pelo respeito da legalidade. Mas infelizmente,
apesar dos vários apelos que várias organizações têm dirigido a este órgão do Estado, este tem
respondido com uma monumental omissão.

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