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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais


Departamento de Filosofia
História da Filosofia Antiga III
Prof. Daniel Nascimento

Aula 5: A teoria do ato voluntário na Ética a Nicômaco

11/04/2019

1. Panorama do uso dos termos hekon e akon na língua grega (Rickert, 1989, p. 7-34, 79-90).
A. Na maior parte dos casos, diz-se na literatura grega de um agente que ele agiu de forma
involuntária quando se imputa sua ação à forca ou necessidade (bia ou ananke). Este termo, no
entanto, deve ser compreendido num sentido largo. Dentre estes casos estão incluídos as ações
que são:
a1. Feitas sob ameaça, p.ex. no começo do Prometeu Acorrentado de Ésquilo, Hefesto diz a
Prometeu que o está acorrentando involuntariamente, i.e. que só o está fazendo por estar sob
ordens e ameaças de Zeus (18-23).
a2. Feitas por medo de males maiores, p. ex. numa passagem de Tucídides os atenienses
afirmam que não violaram os costumes voluntariamente (ekontes) mas por necessidade, pois
tiveram de se utilizar dos recursos de um santuário para se defender de um ataque e evitar a
morte (IV 98, 1-6).
a3. Motivadas por paixões supostamente incontroláveis ou fortes demais, p. ex. nas linhas de
Teógnis que dizem: “Eu amo um rapaz de pele lisa que tem por hábito me expor na frente de
todos os amigos. Eu aguentarei involuntariamente (aekousia) muitas coisas sem esconder-me.
Pois não é um rapaz feio o que eu amo” (1341-1344).
a4. Sofridas de forma absolutamente passiva, tais como ser carregado (HDem 66-72, 122-125),
contido (Pr. Ac. 12-20) e golpeado (HDem 407-413).
B. Nem sempre que se reconhece um papel decisivo à necessidade em uma ação se supõe que
ela seja feita ou deva ser feita de forma involuntária, p. ex.
b1. No Agamemnon de Ésquilo o Coro roga a Cassandra que ceda voluntariamente à
necessidade e atenda ao chamado de Clitemnestra para entrar na casa de Agamemnon (1070-
1071).
b2. Numa passagem de Tucídides (IV 58, 2-3) se afirma que o povo de Platéia se rendeu
voluntariamente aos espartanos depois que seus mantimentos acabaram e eles não podiam mais
resistir ao cerco montado por seus inimigos.
C. Em alguns casos diz-se também que um agente agiu de forma involuntária quando ele
cometeu um erro causado pela ignorância, p. ex.
c1. Em As Traquíneas de Sófocles se diz por três vezes que Deianira deu veneno
involuntariamente a Hércules, pois ela acreditava se tratar de uma poção do amor (727-729,
935, 1123).
c2. No final do Hipólito de Eurípides a deusa Ártemis vem reconciliar Hipólito e Teseu dizendo
ao filho, Hipólito, que o pai, Teseu, agiu involuntariamente quando pediu a Poseidon pela
morte do filho pois achava que Hipólito tinha estuprado e causado o suicídio de Fedra, mulher
de Teseu (1431-1439).
D. Numa passagem de Tucídides (Hist. III, 40), Cleonte afirma que os atos involuntários devem
ser perdoados. Trata-se de uma afirmação que se pode encontrar também em numerosas
tragédias (p. ex. no fim do Hipólito de Eurípides, Ártemis pede a Hipólito que perdoe seu pai),
e que parece pressuposta por uma parte significativa dos usos dos termos na literatura.

2. A teoria socrático-platônica do ato voluntário

2.1 Os paradoxos socráticos (Primeira Formulação).


(S1) ‘ninguém faz o que é prejudicial para si mesmo voluntariamente’ (o chamado ‘paradoxo
prudencial’)
(S2) ‘ninguém age de forma viciosa voluntariamente’ (o chamado ‘paradoxo moral’).

2.2 O Paradoxo Prudencial (Segunda Formulação).


(...) não há ninguém que, sabendo ou acreditando que há coisas melhores do que o que ele faz
ou pode fazer, decida-se por aquelas, quando depende exclusivamente dele realizar o melhor.
(Protágoras, 358b-c).
(S1’). Ninguém opta por fazer o que é pior para si mesmo quando sabe que a opção em
questão é a pior e sabe, pensa ou opina que uma outra opção que lhe é igualmente possível é
melhor.
(S1’’). Todos sempre tentam fazer aquilo que lhes parece ser melhor no momento em que
agem.

2.3 O paradoxo moral (Segunda Formulação).


Afirmo-te, portanto, Polo, que os oradores e os tiranos são os que menos podem nas cidades,
conforme disse há pouco, pois em geral eles não fazem o que querem mas apenas o que lhes
parece melhor (Górgias, 466d-e).

2.4 O ato voluntário e a busca do bem verdadeiro.


(...) é o nosso bem que nós procuramos no caminhar quando nós caminhamos, esperando ficar
melhor, e quando fazemos o contrário, é ainda com o mesmo fim, o nosso bem, que nós ficamos
em repouso. (Górgias, 468b).

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3. A teoria aristotélica do ato voluntário (EN III 1)

3.1 Aristóteles e os limites da nossa responsabilidade por nossas ações


Como a virtude diz respeito a emoções e ações e como os atos voluntários são censurados e
louvados, ao passo que os involuntários são objeto de perdão e por vezes também de piedade,
é presumivelmente necessário aos estudiosos da virtude definir o voluntário e o involuntário,
bem como é útil aos legisladores tanto para a distribuição de honrarias quanto para a aplicação
de punições. (EN 1109b30-34).

3.2 Os diferentes sentidos hodiernos do termo ‘responsabilidade’

3.2.1 Responsabilidade como imputabilidade causal (direito civil)


a. Essa responsabilidade é determinada por uma conexão causal estrita entre o ato de um agente
e um determinado efeito.
b. Todo dano que possua uma tal relação com o ato do agente, seja ele causado voluntariamente
ou não, deve ser reparado pelo agente e, nesse sentido, o agente é por ele responsável.
c. A reparação é proporcional ao dano causado.
d. A atribuição de responsabilidade não está conectada à atribuição de culpa, i.e. pode-se
considerar um indivíduo responsável neste sentido mesmo que não se acredite que ele tem
culpa pelo ocorrido.

3.2.2 Responsabilidade como imputabilidade moral (direito penal)


a. Quando o ato é voluntário, o agente é considerado culpado e deve pagar a reparação e ser
castigado.
b. O castigo tem em vista a qualidade do ato, e não suas consequências, sendo proporcional à
culpa do agente e à gravidade do ato pretendido e/ou executado, e se justifica mesmo que o ato
tenha sido impedido ou não tenha tido consequência alguma.
c. O castigo visa restabelecer a ordem moral perturbada.

3.2.3 As semelhanças entre estes dois sentidos de responsabilidade (Jonas 1995, 162-163)
Estes dois sentidos dizem respeito a conta a pagar ex-post-facto pelo que é feito, mas não com
a determinação do que se há de fazer. Eu sou responsável pelo meu comportamento e por suas
consequências, mas não pela coisa que exige minha ação.

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A responsabilidade assim compreendida não põe fins, sendo a mera carga formal que pesa
sobre toda ação causal e que afirma que se pode pedir contas acerca delas. Ela é, pois, a
condição prévia da moral, mas ela mesma ainda não é moral.

3.2.4 Responsabilidade como cuidado


a. Implica tanto o dever ser de algo quanto o dever-fazer de alguém em resposta a este dever-
ser, sendo prioritário o direito intrínseco do objeto (Jonas 195, 215), e é definida como “o
cuidado, reconhecido como um dever, com um outro ser, cuidado que, dada a ameaça de sua
vulnerabilidade, se converte em preocupação” (Jonas 1995, 357).
b. Tudo o que é vivo pertence à natureza e possui uma dignidade própria (Jonas 1995, 228),
sendo um fim incondicional intrínseco (Jonas 1995, 148-149), e, por sua carência e
insegurança, pode ser objeto de responsabilidade neste sentido (Jonas 1995, 173), mas seu
protótipo é a responsabilidade do homem pelo homem (Jonas 1995, 172).
c. Só o homem pode ter responsabilidades desse tipo por outros seres vivos (Jonas 1995, 173).
d. O arquétipo básico deste tipo de responsabilidade é a responsabilidade dos pais pelos filhos
(Jonas 1995, 215).
e. A forma mais avançada deste tipo de responsabilidade é a responsabilidade ‘pelo poder’, isto
é, a responsabilidade política pela comunidade política (Jonas 1995, 162-171).

3.5 O critério aristotélico do constrangimento.


É forçado o ato cujo princípio é exterior ao agente, princípio para o qual o agente ou o paciente
em nada contribui; por exemplo, se o vento ou os homens, que dominam a situação, levarem-
no para algum lugar. (EN 1110a1-3).

3.6 A controvérsia acerca das ações mistas


É matéria de disputa se as ações feitas por medo de uma alternativa pior ou por algum fim
nobre – quando por exemplo um tirano que tem os pais e os filhos de um homem sob seu poder
lhe ordena que faça algo vergonhoso sendo que se ele obedecer suas vidas serão preservadas e
se ele recusar eles serão mortos – são voluntárias ou involuntárias. Um caso parecido é quando
uma carga é abandonada durante a tempestade: absolutamente, ninguém abandona
voluntariamente as suas propriedades, mas qualquer homem são o faria para salvar a si mesmo
e aos que restam. (EN 1110a4-11).

3.7 A classificação aristotélica das ações mistas

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As ações deste tipo são mistas mas elas se parecem mais com as ações voluntárias, pois elas
são escolhidas no momento em que agimos, o fim da ação varia com a ocasião e nós dizemos
que as ações são voluntárias ou involuntárias em relação ao momento da ação. Fazemo-las,
portanto, voluntariamente, pois o princípio do movimento das partes instrumentais à realização
da ação reside no agente, e quando o princípio reside no agente está em seu poder fazer ou não
fazer a ação. Tais ações são portanto voluntárias, embora talvez sejam involuntárias
absolutamente, pois ninguém jamais escolheria tais ações em si mesmas e por si mesmas. (EN
1110a11-20).

3.8 Ações mistas e reação moral em Aristóteles


Algumas vezes (a) os homens são elogiados por ações mistas, a saber quando eles se submetem
a algo vergonhoso ou doloroso como o preço por algo grande e nobre; embora (b) se eles o
fazem da maneira oposta nós censuramos, pois submeteram-se ao que é vergonhoso por algo
nada belo, pequeno ou desprezível. Em outros casos, (c) certas ações não são elogiadas mas
sim perdoadas, quando um homem faz o que não deve por medo de penas que a natureza
humana não é capaz de suportar e que ninguém suportaria. Além disso, (d) parecem haver atos
que um homem não pode ser constrangido a realizar, e aos quais ele deve preferir a mais terrível
morte: pois nós achamos ridículo que Alcmeon, na peça de Eurípides, se diga constrangido por
certas ameaças à matar a sua própria mãe. No entanto, (e) é por vezes difícil decidir que atos
devemos escolher realizar e a que penas devemos nos submeter, e (f) é ainda mais difícil nos
atermos ao nosso juízo acerca dessas coisas, pois as penas ameaçadas são dolorosas e o ato ao
qual somos forçados é vergonhoso, e é por isso que (g) o elogio e a censura se aplicam de
acordo com a forma como nós cedemos ou não cedemos ao constrangimento. (NE 1110a20-
1110b1).

3.9 O critério aristotélico da ignorância


O agir por ignorância se mostra distinto também do agir em estado de ignorância, pois quem
está bêbado ou encolerizado não parece agir por ignorância, mas por uma das causas
mencionadas, não sabendo o que faz, mas estado na ignorância do que faz. De um lado, pois,
todo homem perverso ignora o que deve fazer e de que deve abster-se, e por causa de tal erro
os homens tornam-se injustos e, em geral, maus. O termo involuntário portanto não se aplica
quando o agente ignora o que lhe é benéfico, pois a ignorância na escolha deliberada não é
causa do involuntário, mas da perversidade, nem a ignorância geral (pois por sua vausa os
homens são censurados), mas a ignorância das circunstâncias particulares, aquelas nas quais e
acerca das quais se desenrola a ação. Nelas se exerce a piedade e o perdão: aquele que age

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ignorando uma delas age involuntariamente. Talvez então não seja inapropriado determina-las,
quais e quantas são: quem age, o que faz, sobre o que ou em que age, por vezes com o que age
(por exemplo, com um instrumento), com vistas a que (por exemplo, com vistas à salvação) e
como age (por exemplo, calma ou violentamente). (EN 1110b25-1111a6).
A ignorância incide sobre todas estas circunstâncias nas quais se desenrola a ação; aquele que
ignora uma delas parece ter agido involuntariamente sobretudo entre as circunstâncias mais
importantes; o fim parece ser sumamente importante entre as circunstâncias nas quais ocorre a
ação. (EN 1111a15-19).

3.10 Ignorância, escolha e responsabilidade.


Um homem quer abrir um cofre mas não tem a menor ideia de como fazê-lo. Tudo de que ele
dispõe é de uma dinamite. Embora não acredite que vá ter sucesso, como ele não possui
nenhum outro meio a sua disposição o homem decide que não tem nada a perder e tenta abrir
o cofre com a dinamite. Para seu espanto, o cofre se abre. Ora, este seria um caso claro de ação
voluntária mesmo que o agente sequer acreditasse – e nem muito menos soubesse – que fosse
ter sucesso (Heineman, 1986, p. 141).

3.11 Ato voluntário e escolha deliberada.


(...) a escolha deliberada, por um lado, é manifestamente voluntária; por outro, não é o mesmo
que o voluntário, porquanto o voluntário é mais abrangente (...). (EN 111b6-8).

3.11.1 A escolha deliberada (prohairesis)


(a) A prohairesis é a escolha de perseguir algo bom ou evitar algo mal (EN 1112a1-5).
(b) A prohairesis é boa ou ruim dependendo da vantagem proporcionada pelo resultado da
escolha (EN 1112a5-10).
(c) A prohairesis sempre envolve alguma forma de raciocínio, pois consiste em escolher uma
coisa em detrimento de outra (EN 1112a17-18).
(d) Na prohairesis nós não escolhemos os fins de nossas ações, mas sim o emprego de certos
meios em vista de um fim determinado (EN 1111b27-31).
(e) Toda prohairesis é precedida por uma deliberação, e toda deliberação bem-sucedida
termina numa prohairesis (EN 1112a13-16).

3.11.2 A deliberação (boulesis)

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(a) A deliberação é sobre as coisas que estão sob nosso controle, nos são alcançáveis através
de ações (EN 1112a30-35) e sobre as quais o saber não determina totalmente o rumo que deve
ser tomado (EN 1112b1-12).
(b) A deliberação diz respeito aos meios, e não aos fins, e procede da seguinte maneira: caso
se perceba que existem vários meios de alcançar o mesmo fim, considera-se qual o alcançará
melhor e mais facilmente, e se houver apenas um, por que meios este meio deve então ser
alcançado, e assim sucessivamente até que se encontre aquilo que precisa ser feito (EN
1112b13-24).
(c) Toda prohairesis é consequência de uma deliberação, e o objeto que é escolhido é o mesmo
que foi selecionado na deliberação, e que é desejado em consequência da deliberação (EN
1113a9-14).

3.12 A cláusula aristotélica da negligência.


A ignorância é em si mesma punida se pensamos que o agente é o responsável por ela. Por
exemplo, a penalidade é duplicada se o agente estava bêbado, pois o princípio de sua ação
reside nele na medida em que ele podia não embebedar-se e o embebedar-se foi a causa de sua
ignorância. Da mesma forma, os homens são punidos por atos cometidos por ignorância da lei
quando eles deviam conhece-la e era fácil fazê-lo. Em tais casos, e em casos parecidos, os
agentes são punidos porque pensamos que a ignorância é causada pela negligência, e que estava
em seu poder ter cuidado e, da mesma forma, não ter cuidado. (EN 1113b30-1114a4).

3.13 Aristóteles e a diferença entre os atos involuntários e os atos não-voluntários


Todo ato cometido por ignorância é não-voluntário, sendo involuntários apenas os atos que
causam dor e arrependimento. Portanto não se pode dizer de um homem que age por ignorância
e não sente nenhum remorso que ele agiu voluntariamente, pois não sabia o que fazia, e nem
involuntariamente. Pensamos que os atos que são feitos por ignorância e que acarretam
arrependimento são involuntários, e quando não acarretam os chamamos de forma diferente, a
saber de não-voluntários. Sendo os casos diferentes será melhor nomeá-los de forma distinta.
(EN 1110b18-24).

Referências
Jonas, H. 1995. El principio de responsabilidad: ensayo de una ética para la civilización
tecnológica. Barcelona: Herder.
Platão. 2002. Diálogos: Protágoras - Górgias - Fedão. Translated by C. A. Nunes. Belém:
Editora Universitária UFPA.

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Plato. 1983. Lysis, Symposium, Gorgias. Translated by W. R. M Lamb. London: Harvard
University Press.
———. 2002. Protagoras: Translated with Notes by C.C.W. Taylor. Translated by C. C. W
Taylor. Oxford: Clarendon Press.
Rickert, Gail Ann. 1989. Hekon and Akon in Early Greek Thought. Atlanta: Scholars Press.

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