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Portanto, apesar das divergências em torno do tema, temos que considerar que a
maioria dos teóricos entendem que a narrativa fantástica é decorrente desse confronto entre o
real e o impossível. Entretanto, como saber se um fenômeno é impossível? Certamente, ao
compará-lo com o real, verificamos que o impossível é aquele acontecimento que não se
explica pelas regras de nosso mundo familiar, que não se aceita, que é inconcebível de ser
explicado pelas leis científicas ou teorias filosóficas que regem o nosso universo físico.
Diante disso, deparamo-nos com o segundo, e fundamental, questionamento a respeito da
definição do gênero fantástico na literatura: o que é o real?
Em seu artigo onde postula a respeito dos limites do real, e suas implicações na
definição e no sentido da atual narrativa fantástica, David Roas (2008) faz o interessante
questionamento: há literatura fantástica depois da física quântica? Isto por que este tipo de
narrativa teve o seu momento de maior efervescência no século XIX, em um universo
newtoniano e mecanicista que obedecia a leis rígidas e lógicas, onde a introdução do elemento
fantástico no centro deste universo, aparentemente estático e imutável, geraria uma
instabilidade, cujo efeito era claramente identificado.
Outro fator que tem provocado transformações profundas na nossa forma de perceber
e sentir a realidade é a Cibercultura. O desenvolvimento tecnológico sem precedentes na área
da informática, principalmente a partir da segunda metade do século XX e início do XXI, tem
"aperfeiçoado" a realidade, virtualizando-a. Substituiu-se o mundo real das coisas, ou seja,
toda a realidade e significados foram substituídos por símbolos e signos, tornando a
experiência humana uma simulação da realidade, levando as pessoas a perderam a noção do
que é real (BAUDRILLARD. 1991).
Roland Barthes (1987) em sua obra Mitologias, chama de ideológico essa tentativa de
tornar natural o realismo. Para Barthes, o realismo é uma espécie de ideologia literária. Isso
porque ele procura passar a ideia de realidade "tal como ela é”, sem deformações, como se
não houvesse o filtro da linguagem, da interpretação por aquele que percebe o real.
O signo que se pretende natural, que se oferece como a única maneira concebível de
ver o mundo, é por isso mesmo autoritário e ideológico. Uma das funções da
ideologia é "naturalizar" a realidade social, fazer com que ela pareça tão inocente e
imutável quanto a própria natureza. A ideologia procura transformar a cultura em
Natureza, e o signo "natural" é uma de suas armas. A continência à bandeira, ou a
aceitação de que a democracia ocidental representa o verdadeiro significado da
palavra "liberdade", tornam-se as mais óbvias e espontâneas reações do mundo.
(EAGLETON, 2006)
Assim, visto por esta perspectiva, temos que considerar que não é apenas o realismo
que é capaz de nos apresentar a realidade, mas também o fantástico, o mágico, pois, como
estamos acostumados com a realidade que o realismo nos apresenta, paramos de nos
questionar a respeito dela, paramos de nos espantar com ela, conformamo-nos com o mundo a
nossa volta. Por isso, precisamos da realidade vista sob a perspectiva do fantástico, do mágico
para que possamos significá-la.
Entretanto, que impacto representaria uma narrativa fantástica, aos moldes do século
XIX, diante de um mundo com transformações tão profundas como as que se sucederam ao
longo do século XX, conforme visto anteriormente?
Para Todorov o gênero fantástico “teve uma vida relativamente breve. Ele apareceu de
maneira sistemática com o Cazotte, para fins do século XVIII; um século depois, os contos de
Maupassant representam os últimos exemplos esteticamente satisfatórios do gênero”
(TODOROV, 2014, P. 174-175), ou seja, para este autor, o fantástico teve o seu fim com o
início do século XX, isto porque as novas narrativas ditas irrealistas contrariavam a condição
que ele entendia como fundamental para a existência deste gênero que era a presença do
assombro, da “hesitação”, uma vez que para ele “o fantástico é a hesitação experimentada por
um ser que só conhece as leias naturais, face a um acontecimento aparentemente
sobrenatural” (TODOROV, 2014, p.31). Mas então, como classificar as narrativas irrealistas
surgidas com o século XX?
Ao contrário do que ocorre com a produção fantástica do século XIX, cujo estudo
encontra as mais variadas contribuições teóricas, o fantástico do século XX não apresenta um
volume de estudos tão significativo a seu respeito. A mais importante contribuição surgiu de
um estudo do filósofo existencialista Jean Paul Sartre, na década de 1940, em um artigo sobre
o romance Aminadab de Maurice Blanchot, onde denomina de “fantástico contemporâneo”
esta nova fase do gênero.
Franz Kafka é o principal nome desta nova forma narrativa. Ao mesmo tempo que,
para Todorov, as obras deste autor tcheco representaram o limite, o fim do gênero fantástico,
para Sartre elas vêm significar a evolução desta forma narrativa, isto porque essa versão
contemporânea é fruto da evolução do próprio gênero, como um resultado do esfacelamento
das experiências vivenciadas pelo homem do século XX, como consequência das desolações
provocadas pelas guerras, pelo caos econômico e social, e pelas flagrantes violações aos
direitos humanos.
Diante deste mundo caótico, "o fantástico vai se domesticar tal como os outros
gêneros, renunciar às explorações das realidades transcendentes, resignar-se a transcrever a
condição humana". (SARTRE, 2005, p. 138). Assim, para Sartre, aquele fantástico como antes
era apresentado, envolto em suas figuras de fadas, duende e gênios, não cabe mais neste novo
contexto, uma vez que este fantástico retornou ao próprio homem, no caso ao "homem-
sociedade" ao "homem-natureza" (SARTRE, 2005, p. 137) desta forma:
Neste contexto, Kafka nos apresenta um mundo envolto em uma atmosfera sufocante e
opressora para nos fazer refletir a respeito do que é o “real” e a “realidade”. Em suas obras, a
questão da condição humana é abordada de maneira singular. Ao contrário do realismo que
nos apresenta um mundo tal como o conhecemos, com uma “realidade” que nos é familiar
para nos falar da própria realidade, em Kafka o que ocorre é a desconstrução, ou
desmantelamento, dessa mesma realidade, ou “normalidade”, causando no leitor um certo
impacto, levando-o a questionar até que ponto esta realidade é verdadeiramente real ou fruto
de um processo histórico ou de um discurso ideológico.
O confronto produzido pela leitura de Kafka é intencional. A falta de surpresa diante
do insólito é o artificio desse novo fantástico, como forma de problematizar o real, de colocar
em cheque realidades consideradas absolutas e inquestionáveis. Ao nos apresentar um mundo
louco, sem sentido, quase sempre irracional e opressor, podemos dizer, parafraseando Günther
Anders (1993), que Kafka torna absurda a aparência aparentemente normal do nosso mundo
absurdo, para tornar visível sua absurdidade2. E ainda, conforme este mesmo autor
Assim, pensando por esta perspectiva, temos que o mundo em que vivemos é o próprio
absurdo, e, por que não dizer um universo insólito do qual só nos damos conta quando a ele
somos apresentados por intermédio do fantástico. O que Kafka está a nos advertir é que
devemos nos espantar com a falta de racionalidade do mundo, cristalizada nas mais diferentes
formas de “realidades” a nós apresentadas.
O mágico é o verdadeiro “realismo” quando ele nos possibilita este confronto, essa
possibilidade de estranhamento diante desta fachada, que comumente tomamos por realidade,
provocando este desmantelamento, que revelará uma nova realidade por trás desta realidade
primeira. O argentino Jaime Alazrak, reforçando o entendimento de Sartre a respeito do
fantástico contemporâneo, ao analisar autores do realismo mágico latino-americano, assevera-
nos que
si lo fantástico asume la solidez del mundo real — aunque para ‘poder mejor
devastarlo’, como decía Callois —, lo neofantástico asume el mundo real como una
máscara, como un tapujo que oculta una segunda realidad que es el verdadero
destinatario de la narración fantástica” (ALAZRAKI, 2000, p. 276)
2 Segundo Anders “Kafka deslouca a aparência aparentemente normal do nosso mundo louco, para tornar
visível sua loucura” ANDERS, 1993, p. 16).
REFERENCIAS
ANDERS, G. Kafka: Prós e contra: os autos do processo. Tradução de Modesto Carone. São
Paulo: Perspectiva, 1993.
BARTHES, Roland. O mito, hoje. In: Mitologias. São Paulo: Bertrand Brasil, 1987.
SARTRE. Jean Paul. “Aminadab, ou o fantástico considerado como uma linguagem”. In:
Situações I. Trad. Cristina Prado. São Paulo: Cosac Naify, 2005.