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Sobre realidade, realismo e o Fantástico Contemporâneo

“O mágico é o verdadeiro realismo”1. Esta frase do escritor australiano Richard


Flanagan autor de “O livro de peixes de Gould” de 2001, levou-me a questionar a respeito da
noção que temos de real, realidade e realismo, e da função que cada um desses conceitos
exercem no universo literário, mais precisamente no âmbito da literatura fantástica
contemporânea.

Durante muito tempo perdurou o entendimento de que somente alcançaríamos o real, a


dita “realidade” verdadeira, por meio de uma escrita realista, que nos apresentasse o mundo
tal como ele realmente é, sem deformações decorrentes de linguagem ou estilo. Com isso, as
ditas narrativas irrealistas, como as literaturas fantásticas, sempre foram relegadas à um plano
inferior, classificadas como “literatura menor”, por não apresentarem vínculos objetivos com
a realidade. Entretanto, a existência ou não de tais vínculos com a realidade é algo
questionável, uma vez que a própria realidade não é um conceito estanque, podendo ser
redefinido conforme os mais variados fatores.

Ao tentar definir a narrativa fantástica, verificamos que diversas são as vertentes


teóricas que procuram enquadrar este tipo de narrativa levando-se em conta as peculiaridades
decorrentes da interação entre o leitor e o texto, de onde nascerão, verdadeiramente, as
características que definirão este gênero. Essas definições teóricas têm sido sempre, ao longo
do tempo, revisitadas, algumas vezes reforçadas e outras criticadas pelos mais diversos
autores na tentativa de definir, da melhor maneira possível, os desdobramentos decorrentes
dessa interação.

Entretanto, apesar de todas essas definições terem as suas particularidades, de acordo


com a compreensão de cada autor, é interessante destacar que todas elas convergem para um
ponto essencial na definição do fantástico, que é esse confronto entre o real e o "não real" ou,
“inadmissível", "inconcebível" ou impossível, como podemos depreender dos seguintes
autores:

Castex escreve em Le conte fantastique en France: “O fantástico ... se caracteriza


por uma intromissão brutal, do mistério no quadro da vida real” (p. 8). Louis Vax,
em L’Art et la Littérature fantastiques: “A narrativa fantástica ... gosta de nos

1 Reportagem de O Globo, disponível em:


https://oglobo.globo.com/cultura/livros/richard-flanagan-magico-o-verdadeiro-realismo-16567948. Acesso em:
23/05/2018
apresentar, habitando o mundo real em que nos achamos, homens como nós,
colocados subitamente em presença do inexplicável” (p. 5). Roger Caillois em Au
coeur du fantastique: “todo fantástico é ruptura da ordem estabelecida, irrupção do
inadmissível no seio da inalterável legalidade cotidiana”. (p. 161). Vemos que estas
três definições são, intencionalmente ou não, paráfrases uma da outra: há de cada
vez o “mistério”, o “inexplicável”, o “inadmissível”, que se introduz na “vida real”,
ou no “mundo real”, ou ainda na “inalterável legalidade cotidiana”. (TODOROV,
2014, p. 32)

Portanto, apesar das divergências em torno do tema, temos que considerar que a
maioria dos teóricos entendem que a narrativa fantástica é decorrente desse confronto entre o
real e o impossível. Entretanto, como saber se um fenômeno é impossível? Certamente, ao
compará-lo com o real, verificamos que o impossível é aquele acontecimento que não se
explica pelas regras de nosso mundo familiar, que não se aceita, que é inconcebível de ser
explicado pelas leis científicas ou teorias filosóficas que regem o nosso universo físico.
Diante disso, deparamo-nos com o segundo, e fundamental, questionamento a respeito da
definição do gênero fantástico na literatura: o que é o real?

Muito se tem questionado, principalmente nas últimas décadas, a respeito do conceito


de realidade, pelas mais diversas áreas do conhecimento como a física, a neurobiologia, a
filosofia, a teoria da literatura e a teoria da comunicação. Este conceito tem se redefinido ao
longo dos anos de acordo com as descobertas e transformações pelas quais tem passado a
humanidade, e, como dele resulta a definição do fantástico, do mágico, deduz-se então que
também estes conceitos estão a se redefinir ao longo do tempo.

Em seu artigo onde postula a respeito dos limites do real, e suas implicações na
definição e no sentido da atual narrativa fantástica, David Roas (2008) faz o interessante
questionamento: há literatura fantástica depois da física quântica? Isto por que este tipo de
narrativa teve o seu momento de maior efervescência no século XIX, em um universo
newtoniano e mecanicista que obedecia a leis rígidas e lógicas, onde a introdução do elemento
fantástico no centro deste universo, aparentemente estático e imutável, geraria uma
instabilidade, cujo efeito era claramente identificado.

Entretanto, diante das profundas transformações decorrentes dos avanços tecnológicos


que modificaram os padrões científicos, ao longo de todo o século XX e início do século XXI,
não há mais que se falar em realidade como algo sólido e imutável. Dois séculos depois das
teorias formuladas por Isaac Newton, a teoria da relatividade de Albert Einstein veio suplantar
a ideia de tempo e espaço como algo absoluto, como conceitos uniformemente percebidos por
todos os indivíduos. Da mesma forma, a revolução provocada pela mecânica quântica tem
forçado os físicos a abandonarem os seus conceitos do homem sobre a realidade, e a própria
realidade, revelando o indeterminismo e incerteza que tanto têm chamado a atenção para este
campo da física.

Outro fator que tem provocado transformações profundas na nossa forma de perceber
e sentir a realidade é a Cibercultura. O desenvolvimento tecnológico sem precedentes na área
da informática, principalmente a partir da segunda metade do século XX e início do XXI, tem
"aperfeiçoado" a realidade, virtualizando-a. Substituiu-se o mundo real das coisas, ou seja,
toda a realidade e significados foram substituídos por símbolos e signos, tornando a
experiência humana uma simulação da realidade, levando as pessoas a perderam a noção do
que é real (BAUDRILLARD. 1991).

É interessante destacar também a proposta da filosofia construtivista para quem a


realidade só existe por causa da consciência que temos dela, ou seja, ela é uma construção
subjetiva. No entendimento de Paul Watzlawick (1994) autor de A Realidade Inventada, não
há “realidade real”, mas sim, representações da realidade, e ainda acrescenta, este mesmo
autor, que a realidade é uma construção social.

Tal entendimento da realidade como construção é compartilhado também entre vários


autores na área de linguagem e teoria literária, a exemplo de alguns linguistas que defendem
que a realidade é construída pela linguagem e reproduzida pelos discursos.

Retornando à questão do realismo como representação da realidade na literatura, é


importante destacar o papel desempenhado pelo discurso realista, que tenta reproduzir uma
ideologia de verdade absoluta, do mundo “tal como Deus o concebeu”, induzindo-nos à falsa
ideia de que as palavras estão ligadas ao pensamento de forma direta e incontroversa, sendo a
única forma de expressão deste pensamento.

Roland Barthes (1987) em sua obra Mitologias, chama de ideológico essa tentativa de
tornar natural o realismo. Para Barthes, o realismo é uma espécie de ideologia literária. Isso
porque ele procura passar a ideia de realidade "tal como ela é”, sem deformações, como se
não houvesse o filtro da linguagem, da interpretação por aquele que percebe o real.

O mito, segundo Barthes, é o modo de significação típico da ideologia burguesa, pois


por meio dele, ela procura justificar a sua dominação, apresentando-se como uma verdade,
uma “descrição” inocente dos fatos, justificadora de uma realidade que se pretende manter.
Ele é construído tomando-se um signo primeiro (denotativo), que serve de significante para
um segundo signo, cujo significado é intencional (conotativo), valorativo, mas que se esconde
por trás do primeiro signo, apresentado como uma descrição inocente dos fatos. (Barthes,
1987, p. 137). E ainda

O signo que se pretende natural, que se oferece como a única maneira concebível de
ver o mundo, é por isso mesmo autoritário e ideológico. Uma das funções da
ideologia é "naturalizar" a realidade social, fazer com que ela pareça tão inocente e
imutável quanto a própria natureza. A ideologia procura transformar a cultura em
Natureza, e o signo "natural" é uma de suas armas. A continência à bandeira, ou a
aceitação de que a democracia ocidental representa o verdadeiro significado da
palavra "liberdade", tornam-se as mais óbvias e espontâneas reações do mundo.
(EAGLETON, 2006)

Assim, visto por esta perspectiva, temos que considerar que não é apenas o realismo
que é capaz de nos apresentar a realidade, mas também o fantástico, o mágico, pois, como
estamos acostumados com a realidade que o realismo nos apresenta, paramos de nos
questionar a respeito dela, paramos de nos espantar com ela, conformamo-nos com o mundo a
nossa volta. Por isso, precisamos da realidade vista sob a perspectiva do fantástico, do mágico
para que possamos significá-la.

Entretanto, que impacto representaria uma narrativa fantástica, aos moldes do século
XIX, diante de um mundo com transformações tão profundas como as que se sucederam ao
longo do século XX, conforme visto anteriormente?

Para Todorov o gênero fantástico “teve uma vida relativamente breve. Ele apareceu de
maneira sistemática com o Cazotte, para fins do século XVIII; um século depois, os contos de
Maupassant representam os últimos exemplos esteticamente satisfatórios do gênero”
(TODOROV, 2014, P. 174-175), ou seja, para este autor, o fantástico teve o seu fim com o
início do século XX, isto porque as novas narrativas ditas irrealistas contrariavam a condição
que ele entendia como fundamental para a existência deste gênero que era a presença do
assombro, da “hesitação”, uma vez que para ele “o fantástico é a hesitação experimentada por
um ser que só conhece as leias naturais, face a um acontecimento aparentemente
sobrenatural” (TODOROV, 2014, p.31). Mas então, como classificar as narrativas irrealistas
surgidas com o século XX?

Ao contrário do que ocorre com a produção fantástica do século XIX, cujo estudo
encontra as mais variadas contribuições teóricas, o fantástico do século XX não apresenta um
volume de estudos tão significativo a seu respeito. A mais importante contribuição surgiu de
um estudo do filósofo existencialista Jean Paul Sartre, na década de 1940, em um artigo sobre
o romance Aminadab de Maurice Blanchot, onde denomina de “fantástico contemporâneo”
esta nova fase do gênero.

Neste novo fantástico não há espaço para a surpresa ou o assombro no interior da


narrativa. Não se observa aquela hesitação crescente ao longo do texto. O mundo relatado é
exatamente aquele cujas leis conhecemos: um universo familiar, onde o elemento insólito
geralmente é compartilhado desde o início da narrativa, sendo incorporado pelo habitual, pelo
cotidiano, como se dele fizesse parte naturalmente. Por mais extraordinários que sejam os
eventos em que se vê enredados o protagonista, ele “jamais se espanta: é “[...] como se a
sucessão dos acontecimentos aos quais assiste lhe parecesse perfeitamente natural” (SARTRE,
2005, p.144), não se deixa perturbar, mesmo os fatos mais assombrosos acabam por ser
tolerados ou admitidos por ele como perfeitamente possíveis.

Franz Kafka é o principal nome desta nova forma narrativa. Ao mesmo tempo que,
para Todorov, as obras deste autor tcheco representaram o limite, o fim do gênero fantástico,
para Sartre elas vêm significar a evolução desta forma narrativa, isto porque essa versão
contemporânea é fruto da evolução do próprio gênero, como um resultado do esfacelamento
das experiências vivenciadas pelo homem do século XX, como consequência das desolações
provocadas pelas guerras, pelo caos econômico e social, e pelas flagrantes violações aos
direitos humanos.

Diante deste mundo caótico, "o fantástico vai se domesticar tal como os outros
gêneros, renunciar às explorações das realidades transcendentes, resignar-se a transcrever a
condição humana". (SARTRE, 2005, p. 138). Assim, para Sartre, aquele fantástico como antes
era apresentado, envolto em suas figuras de fadas, duende e gênios, não cabe mais neste novo
contexto, uma vez que este fantástico retornou ao próprio homem, no caso ao "homem-
sociedade" ao "homem-natureza" (SARTRE, 2005, p. 137) desta forma:

ao humanizar-se, o fantástico se reaproxima da pureza ideal de sua essência. [...]


nada de súcubos, nada de fantasmas, nada de fontes que choram – há apenas
homens, e o criador do fantástico proclama que se identifica com o objeto fantástico.
Para o homem contemporâneo, o homem tornou-se uma maneira entre cem de
refletir sua própria imagem. (SARTRE, 2005, p. 137).

Neste contexto, Kafka nos apresenta um mundo envolto em uma atmosfera sufocante e
opressora para nos fazer refletir a respeito do que é o “real” e a “realidade”. Em suas obras, a
questão da condição humana é abordada de maneira singular. Ao contrário do realismo que
nos apresenta um mundo tal como o conhecemos, com uma “realidade” que nos é familiar
para nos falar da própria realidade, em Kafka o que ocorre é a desconstrução, ou
desmantelamento, dessa mesma realidade, ou “normalidade”, causando no leitor um certo
impacto, levando-o a questionar até que ponto esta realidade é verdadeiramente real ou fruto
de um processo histórico ou de um discurso ideológico.
O confronto produzido pela leitura de Kafka é intencional. A falta de surpresa diante
do insólito é o artificio desse novo fantástico, como forma de problematizar o real, de colocar
em cheque realidades consideradas absolutas e inquestionáveis. Ao nos apresentar um mundo
louco, sem sentido, quase sempre irracional e opressor, podemos dizer, parafraseando Günther
Anders (1993), que Kafka torna absurda a aparência aparentemente normal do nosso mundo
absurdo, para tornar visível sua absurdidade2. E ainda, conforme este mesmo autor

Confundir [...] graus de realidade é um dos efeitos didáticos intencionais de Kafka.


Uma vez que, como crítico de seu tempo, considera puramente ideológicos
numerosos fenômenos reputados como evidentemente reais, mas julga
extremamente reais outros cuja realidade é encoberta ou borrada, procura abalar a
firme armação do que vale como real ou irreal. Tal “revisão” exige uma espécie de
revisio, isto é, um método novo de ver, o qual aperfeiçoa em sua técnica de
representação potenciada. (ANDERS, 1993, p. 23).

Assim, pensando por esta perspectiva, temos que o mundo em que vivemos é o próprio
absurdo, e, por que não dizer um universo insólito do qual só nos damos conta quando a ele
somos apresentados por intermédio do fantástico. O que Kafka está a nos advertir é que
devemos nos espantar com a falta de racionalidade do mundo, cristalizada nas mais diferentes
formas de “realidades” a nós apresentadas.

O mágico é o verdadeiro “realismo” quando ele nos possibilita este confronto, essa
possibilidade de estranhamento diante desta fachada, que comumente tomamos por realidade,
provocando este desmantelamento, que revelará uma nova realidade por trás desta realidade
primeira. O argentino Jaime Alazrak, reforçando o entendimento de Sartre a respeito do
fantástico contemporâneo, ao analisar autores do realismo mágico latino-americano, assevera-
nos que

si lo fantástico asume la solidez del mundo real — aunque para ‘poder mejor
devastarlo’, como decía Callois —, lo neofantástico asume el mundo real como una
máscara, como un tapujo que oculta una segunda realidad que es el verdadero
destinatario de la narración fantástica” (ALAZRAKI, 2000, p. 276)

2 Segundo Anders “Kafka deslouca a aparência aparentemente normal do nosso mundo louco, para tornar
visível sua loucura” ANDERS, 1993, p. 16).
REFERENCIAS

ALAZRAKI. J. Hacia Cortázar. Aproximaciones a su obra. Barcelona: Antrophos, 1994.

ANDERS, G. Kafka: Prós e contra: os autos do processo. Tradução de Modesto Carone. São
Paulo: Perspectiva, 1993.

BARTHES, Roland. O mito, hoje. In: Mitologias. São Paulo: Bertrand Brasil, 1987.

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulações. Tradução Maria Joao da Costa Pereira.


Lisboa: Relógio d’água, 1991.

EAGLETON, Terry. O Pós-Estruturalismo. In: Teoria da Literatura: Uma Introdução.


Tradução Waltensir Dutra. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

ROAS, David. Lo fantástico como desestabilización de lo real: elementos para una


definición. Ensayos sobre ciencia ficción y literatura fantástica: actas del Primer Congreso
Internacional de literatura fantástica y ciencia ficción (1, 2008, Madrid).

SARTRE. Jean Paul. “Aminadab, ou o fantástico considerado como uma linguagem”. In:
Situações I. Trad. Cristina Prado. São Paulo: Cosac Naify, 2005.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.

WATZLAWICK, Paul. La Realidad Inventada. 3 ed. Barcelona: El Mamifero parlante,


1994.

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