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A formação prática do leitor

Jaqueline Rosa Cunha


PUCRS

A proposta de trabalhar com a temática formação de leitor partiu das


minhas experiências como corretora de provas de redação de vestibular. Há
oito anos desenvolvo essa atividade em várias universidades públicas e
privadas do Estado de Rio Grande do Sul, já participei de mais de quinze
processos seletivos e a infeliz conclusão é sempre a mesma: os candidatos
não sabem ler, não compreendem o comando da prova e, em razão disso, não
conseguem se expressar. Durante a correção dos textos, percebi que os
vestibulandos até têm idéias sobre o tema escolhido, mas nem sequer
conseguem formar uma frase coerente sobre o assunto.
A cada ano, ficava mais triste e preocupada com o que lia, em vez de
rir e achar engraçadas as “pérolas do vestibular”, como por exemplo, o título de
uma redação: Sobrevivência de um aborto vivo; ou, então, as frases: “alto
suicídio de si mesmo”, “na Idade Média, o costume era matar as meninas que
nasciam mortas”, “as pessoas devem carregar seus objetivos consigo” 1 , entre
outras frases e redações inteiramente incompreensíveis. Revoltava-me
perceber que aqueles pseudo-textos eram tudo o que os alunos conseguiam
escrever e eram conseqüência da má-formação escolar. Como não posso
mudar o currículo escolar nem a metodologia do ensino fundamental e médio,
decidi fazer o que posso: criar um Curso Prático de Formação de Leitores.
Organizei o curso com base em metodologias que privilegiam vários recursos
audiovisuais e teorias que podem ajudar às professoras a utilizar melhor os
cinqüenta minutos de aula de língua portuguesa. Sei que o tempo de
permanência da professora em sala de aula é escasso, mas acredito que com
um pouco de criatividade e novas metodologias de ensino seja possível
despertar no aluno o interesse pela leitura.

1
Algumas dessas frases são de vestibulares de Universidades de outros Estados, que
veiculam as chamadas “pérolas” na tentativa desesperada de impedir que a qualidade dos
resultados das provas caia ainda mais. Outras são de redações de processos seletivos de
Instituições gaúchas. Ao comparar as frases, constatamos que o problema da má-formação do
leitor e, por conseguinte, a dificuldade de expressão verbal do aluno ocorre de forma geral na
educação brasileira.
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Antes de sair por aí dizendo aos outros o que deveriam fazer, testei as
novas idéias em grupos de crianças e jovens com os quais trabalho, em Rio
Grande/RS, e percebi que a metodologia funcionava. Os leitores “cobaias”
estavam se interessando por leitura seja ela qual fosse e em que meio
estivesse; além disso, começaram a expressar melhor suas idéias e, aos
poucos, aprendiam a argumentar seus posicionamentos. A partir disso,
estruturei o curso.
O primeiro objetivo é realizar a aplicação de técnicas didáticas e
atividades que estimulem a formação do leitor. Em um segundo momento,
acredito que seja importante constituir um banco de idéias sobre a formação do
leitor, possibilitando assim o reconhecimento e a consolidação das técnicas de
estimulação à leitura. Para que esses objetivos funcionem, é necessário
desenvolver atividades práticas que possibilitem a verificação da importância
de a professora conhecer as preferências do aluno com relação a assuntos
gerais e, então, direcionar a leitura.
Outro ponto é apresentar a importância da oralidade na vida do futuro
leitor através da construção de história oral, discussões de temas, audição de
músicas, expandindo o vocabulário por meio do exercício de escolhas do eixo
paradigmático. Esse exercício não é muito difícil, visto que a música está
presente na vida de praticamente todos os alunos; claro que, na maioria das
vezes não é música nacional ou então as letras não são tão inspiradoras para o
trabalho da língua portuguesa, mas é importante não descartar o gosto musical
do aluno. Ao invés disso, a professora deve apresentar outros estilos de
música e outros cantores para mostrar que nem tudo o que é diferente é ruim
e, assim, poderá trabalhar a melodia, a rima e, através da criatividade dos
alunos, interpretar a letra, criar a partir dela outras músicas, combinando outras
palavras, por exemplo. Mesmo que não pareça, isso já é leitura.
Trabalhar leitura de símbolos, propagandas e mensagens extra-
textuais que auxiliam na compreensão dos hipertextos, tais como outdoor,
capas de revistas, charges, constitui outra maneira de exercitar a interpretação
textual dos alunos. Muitas vezes, os leitores nem têm idéia de que conseguem
ler um texto por meio de imagens porque, apesar de entender, não conseguem
explicar o que lhes provoca o riso, em caso de charges, por exemplo. A leitura
de quadrinhos, tão criticada em outra época por educadores e alfabetizadores,

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nesse caso pode ser uma ferramenta para despertar o interesse pela leitura,
além de trabalhar os vários tipos de expressão verbal e não-verbal.
Estamos vivendo na era digital e, por isso, é necessário que as
professoras atualizem suas metodologias de ensino para depois não afirmarem
que os alunos não se interessam pelas aulas. Qualquer aluno, independente da
classe social em que esteja inserido, tem acesso a muita informação que surge
em ritmo acelerado. O que hoje é novo, cai em desuso amanhã. A sociedade,
como um todo, está acelerada e a educação pertence a essa sociedade, por
isso é incoerente desejar permanecer parado no tempo, fazendo uso de
metodologias arcaicas e do “caderninho amarelado”. O educador Rubem Alves
afirma que, na escola tradicional, o professor prepara a aula quase engessada
no conteúdo programático, como se já soubesse o que os alunos vão
perguntar 2 . Essa metodologia não desperta o interesse dos alunos,
ocasionando um grave problema na sala de aula, segundo a educadora Tânia
Zagury, que realizou uma pesquisa pioneira no Brasil, ouvindo mil cento e
setenta e dois professores em todo o país, no ano de 2006. A desmotivação do
aluno gera, de acordo com a pesquisa, a indisciplina, uma vez que é difícil
manter a ordem na sala de aula se os alunos não estão interessados no
conteúdo.
As aulas cansativas podem desaparecer se a professora aliar ao
conteúdo as várias formas de utilização dos meios digitais para auxiliar na
formação do leitor explorando a sua criatividade e a interação com o texto.
Pode-se utilizar novamente as letras de música em comparação com poemas
que as inspiraram ou que se assemelham por temática. Os poemas concretos
também são uma opção de trabalho, principalmente os que estão disponíveis
em sites da Internet e que são apresentados em movimento, criando um efeito
de expectativa e dinâmica que possibilita a interatividade do aluno na formação
dos mesmos.
No entanto, para que a professora tenha condições de optar entre uma
metodologia ou outra é importante ter em seu domínio uma bibliografia
adequada que incentive a prática da leitura, pautada em teóricos
especializados no tema, tais como Marcel Proust, Sobre a leitura; Davi

2
ALVES, Rubem. A escola que sempre sonhei, sem saber que existia. 9ªed. São Paulo:
Papirus, 2006.

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Arrigucci Júnior, Sobre a teoria da interpretação; Harold Bloom, Sobre a


péssima qualidade da literatura infantil ao redor do mundo, entrevista
concedida à Revista Época, entre outros.
A proposta do Curso Prático de Formação de Leitores visa atender as
necessidades de formação de professores na área de alfabetização, Língua
Portuguesa e Literatura do ensino fundamental ao médio, e formação de
leitores independente da faixa etária do aluno. Para tanto, são utilizadas
técnicas práticas que possibilitem às professoras interessadas em participar do
curso compreender a aplicabilidade das mesmas e os efeitos por elas
produzidos nos seus futuros alunos. Dessa forma, estaremos desenvolvendo
uma teoria de formação do leitor baseado na prática de atividades lúdicas
envolvendo todo o tipo de texto, seja ele escrito ou não.
Este curso possui uma importância cultural uma vez que pretende
desenvolver a capacidade de percepção de mundo do leitor que se insere na
comunidade e que precisa interagir com a mesma para que possa ser realizada
a sua inclusão social.
Encerrado este texto, mas deixando a discussão aberta, quero dizer
que não tenho a pretensão de salvar a educação brasileira, nem mesmo a
gaúcha ou, ainda menos, a do extremo-sul do nosso Estado. No entanto,
entendo que, como professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira,
tenho o dever assumido perante a sociedade de colaborar na formação de
novos leitores, pois jurei que “no exercício da minha profissão, desempenharia
com lealdade e dignidade os meus deveres de educadora e pesquisadora,
procurando transmitir a verdade e trabalhar por uma realidade mais objetiva e
auto-realizadora”. 3 Para isso, é necessário, conforme afirma Luiz Alberto Silva
dos Santos 4 , implementar novas metodologias para o processo ensino-
aprendizagem, para instrutores e instruendos da pré-escola à Universidade,
pois é notório que a técnica “mecanicista” de transferir informações, pouco

3
Juramento dos formandos do Curso de Letras, da Fundação Universidade do Rio Grande, em
16 de fevereiro de 2001.
4
Luis Alberto (formação) realiza palestras técnicas e motivacionais nas áreas de liderança e
educação em escolas, empresas e diversas instituições do Rio Grande do Sul.

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explorando o potencial intelectivo do corpo discente, não tem ajudado a


melhorar o perfil intelecto-moral da sociedade. 5
Ao homem é necessário dominar a língua para comunicar-se e a nós,
professoras e professores de Letras, é imprescindível o máximo de empenho e
comprometimento profissional para ajudarmos a sociedade a progredir. A
evolução social passará obrigatoriamente por nós, uma vez que, parafraseando
Kahlil Gibran, cada um desempenha o papel do arqueiro que lança as flechas,
“o arqueiro mira o alvo na senda do infinito e vos estica com toda a sua força
para que suas flechas se projetem, rápidas e para longe” 6 .

Referências
BLOOM, Harold. Leio, logo existo. Veja. Entrevista. 31 de janeiro de 2001, p.
11- 15.

ECO, Umberto. Leitura do texto literário. Lector in fabula. A cooperação


interpretativa nos textos literários. Lisboa: Presença, 1983.

DORFMAN, Ariel & MATTELART, Armand. Para ler o Pato Donald.


Comunicação de massa e colonialismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

JAUSS, Hans Robert et al. A literatura e o leitor: textos de estética da


recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

PROUST, Marcel. Sobre a leitura. Campinas: Pontes, 1989.

RICŒUR, Paul. Teoria da interpretação. O discurso e o excesso de


significação. São Paulo: Edições 70, 1987.

_______. Do texto à ação. Porto: Rés-Editora, 1991.

RÖSING, Tânia M. K.& BECKER, Paulo (Orgs.) Leitura e animação cultural.


Repensando a escola e a biblioteca. Passo Fundo: UPF, 2002.

SANTOS, Luis Alberto Silva dos. Uma revisão de valores. 3ª ed. Porto Alegre:
Calábria, 2008.

SMOLKA, Ana Luiza B. et al. Leitura e desenvolvimento da linguagem. Porto


Alegre: Mercado Aberto, 1989.

ZILBERMAN, Regina & SILVA, Ezequiel Theodoro da (Orgs.) Leitura:


perspectivas interdisciplinares. São Paul

5
SANTOS, Luis Alberto Silva dos. Uma revisão de valores. 3ª ed. Porto Alegre: Calábria, 2008,
p.147-148.
6
GIBRAN, Kahlil. Os filhos. In: _____. O profeta. Porto Alegre: L&PM, 2001. p. 56.

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