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| ESPECIAL |

DE ONDE VÊM AS EMOÇÕES E OS PENSAMENTOS


ANO XIII
No 317

RELACIONAMENTO
Cientistas mapeiam
atitudes frequentes
de casais felizes

CORPO
Como o “fator azar”
pode causar processos
de adoecimento

ANIMAL Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas


Grupo
Em que seu cachorro
pensa? Provavelmente
em você

A ÍNTIMA
LIGAÇÃO ENTRE
SEU CÉREBRO
E SUA BARRIGA
Alimentos e bactérias
FCƃQTCKPVGUVKPCNKPƃWGO
na saúde mental
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carta da editora

Tão pequenos, tão poderosos

U
m texto budista milenar, dedicado à divindade Cherezing-Singanada, pede
pela saúde dos enfermos: “Possam os seres que criam doenças, os que
vagam pelo ar e os microrganismos que habitam nosso corpo desenvolver
compaixão por aquele que está doente”, entoam os monges em monastérios tibeta-
nos. A compreensão do quanto os seres invisíveis que habitam o interior de nosso
organismo interferem em nossa saúde – não apenas física, mas também mental – é
hoje comprovada. Pesquisadores sabem que as bactérias que povoam a flora intes-
tinal influenciam fortemente nossa capacidade de memorização e aprendizagem,
bem como variações de humor, nos tornando mais (ou menos) suscetíveis aos de-
safios emocionais do dia a dia.
É como se houvesse um universo dentro da barriga de cada pessoa, um mundo
povoado por milhares de discretos hóspedes, de mais de 400 espécies. Embora invi-
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síveis, chegam a pesar, juntos, até dois quilos!
“Os seres que vivem em nosso intestino fazem a interface entre a alimentação
e a genética”, afirma a neurocientista Jane Foster, da Universidade MacMaster de
Hamilton, no Canadá, em um dos artigos sobre o tema de capa desta edição. A
pesquisadora constatou que os ratos de laboratório privados de bactérias intestinais
são mais curiosos e menos cuidadosos – expondo-se assim a mais situações de ris-
co – que as espécies com colonização normal no intestino.
Além disso, verificaram que o fator de crescimento BDNF (brain derived neuro-
trophic factor) se acumula no hipocampo de ratos de laboratório e que, nesse meio-
-tempo, há variação da composição dos receptores na amígdala, área cerebral forte-
mente envolvida nas reações de medo. O contrário também é verdadeiro: o estresse
influencia a composição bacteriana do trato intestinal. Especialistas acreditam que
efeitos similares ocorram com seres humanos.
Se os microrganismos afetam nossa maneira de pensar e sentir, vivendo silencio-
sos dentro de nós, de fato parece importante cuidar bem deles. Sábios os monges
que, em suas rezas, pedem a compaixão desses seres invisíveis.

Boa leitura.

GLÁUCIA LEAL, editora-chefe


glaucialeal@editorasegmento.com.br
@glau_f_leal

3
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sumário junho 2019

6 4 atitudes
dos casais felizes
Amor não basta, relacionamento
requer investimento emocional e
compromisso consciente de fazer
dar certo. Alguns comportamentos
parecem facilitar muito essa tarefa

24 Do que os bebês
se lembram
Os pequenos captam e entendem
grande parte de informações que
recebem, mas não as absorvem por
Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas completo

capa 28 O que os
cachorros pensam
Exames de neuroimagem revelam o que
se passa na cabeça dos cães quando
12 Como a barriga ouvem um comando; seu principal foco
afeta o cérebro de atenção são os seres humanos
Cientistas comprovam que bactérias
da flora intestinal podem influenciar 32 O azar de adoecer
fortemente a memória, o humor e a saúde
Cientistas acreditam que a má sorte
mental, participando até de mecanismos
pode ser levada em conta quando
que deflagram o estresse
se estuda a incidência de câncer na
população
17 Alimentação para
o equilíbrio mental 36 Hormônio do
Pesquisadores investigam a importância amor aumenta
da dieta em quadros de fadiga crônica anseio
e depressão. Ainda não está claro se por vingança
os seres invisíveis que habitam nosso Oxitocina não enfatiza apenas emoções
organismo são tanto causa como pró-sociais que entendemos como
consequência de problemas emocionais e positivas; também pode incrementar
cognitivos sentimentos de inveja e crueldade
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www.mentecerebro.com.br Edição no 317, junho de 2019,


ISSN 1807156-2.
relacionamento

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4 atitudes dos
casais felizes
Ao contrário do que prega o imaginário popular, a vida a
dois não é um desses presentes do universo que, uma vez
alcançado, está garantido por tempo infinito. Mesmo com
muito amor envolvido é preciso investimento emocional
e requer o compromisso consciente de fazer dar certo.
Alguns comportamentos facilitam muito essa tarefa
6
relacionamento

M
anter uma relação longa e estável é uma tare-
fa trabalhosa. “É preciso tempo e esforço para
compreender e apreciar a pessoa ao nosso
lado”, deixa claro o psicólogo John Gottman,
um dos maiores pesquisadores das relações amorosas no
mundo. Professor emérito da Universidade de Washington,
coordenou uma equipe que entrevistou casais ao longo
de vários experimentos, alguns deles filmados. A análise
dessas interações resultou em modelos, escalas e fórmu-
las para apontar fatores relacionados à estabilidade conju-
gal, o que valeu o popular apelido de love lab (laboratório
do amor) ao Laboratório de Pesquisa Familiar liderado por
Gottman. De acordo com o psicólogo, conflitos são ineren-
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tes a todo relacionamento. O que conta é a maneira de lidar
com eles. “Um dos principais determinantes da felicidade
em uma relação é a capacidade que ambos têm de reparar
e sair de estados negativos”, diz. A seguir, algumas suges-
tões de Gottman em prol de uma melhor convivência e do
fortalecimento do respeito e cumplicidade.

1.Pequenos gestos
Gottman constatou que casais fe-
lizes demonstram, em média, uma
proporção de cinco interações po-
sitivas para cada negativa. “Isso pra-
ticamente saltou das páginas de
análise de dados”, diz, explicando
que essa relação é recorrente em
relacionamentos, incluindo aqueles
em que os envolvidos são bastante

7
relacionamento

independentes, distantes ou críticos. Interações favoráveis


podem ser gestos simples: “Um sorriso, um aceno de ca-
beça ou apenas um som para mostrar que está ouvindo a
pessoa amada”, sugere o pesquisador. Também é importan-
te estar atento ao hábito de agradecer pelas delicadezas,
seja uma carona, um copo de água ou uma massagem nos
pés. Em geral expressamos gratidão em relação a pessoas
de quem somos socialmente distantes, mas às vezes deixa-
mos de lado esse comportamento com aqueles com quem
temos maior proximidade. Vale lembrar que gentilezas, nas
atitudes ou palavras, favorecem a sensação de bem-estar.

2. O encontro no meio do caminho


O psicólogo evoca o “equilíbrio de Nash”, conceito utiliza-
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do para compreender a lógica dos processos de decisão
e ajudar a resolver conflitos de interesse na economia, na
ciência política e na sociologia. Por muito tempo, foi ampla-
mente aceita a ideia de que as negociações eram, em sua
maioria, situações de soma zero, ou seja, para um ganhar
o outro teria de perder. Nos anos 50, porém, o matemático
John Nash provou, usando a teoria dos
jogos, que havia outra proposta: em
É importante estar
um contexto em que nenhum jogador
atento ao hábito
pode melhorar a sua situação dada a
de agradecer pelas estratégia seguida pelo jogador adver-
gentilezas daqueles sário, a melhor estratégia é não investir
de quem somos no prêmio maior. O princípio, também
mais próximos; conhecido como equilíbrio coopera-
palavras e ações tivo, rendeu a Nash um Prêmio Nobel
delicadas favorecem em 1994. No campo dos relacionamen-
a parceria tos, esse equilíbrio pode ser traduzido

8
relacionamento

por cooperar para encontrar soluções parcialmente vanta-


josas para ambos e não apenas para uma das partes. Em
outras palavras, quando na maioria das vezes os interesses
do casal se sobrepõem aos individuais, os dois tendem a
ficar mais satisfeitos.

3. Olhar e escutar
“Buscamos chamar a atenção e o interesse da pessoa
amada o tempo todo”, diz Gottman. Em sua pesquisa, ele
descobriu que os casais felizes percebem essas investidas
e retribuem em 86% das vezes. Os que se divorciam res-
pondem apenas 33% do tempo nos sete primeiros anos de

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O equilíbrio pode ser traduzido
por cooperar para encontrar
soluções parcialmente
vantajosas para ambos e não
apenas para uma das partes

convivência. “É o momento em que optamos por ouvir nos-


so par desabafar sobre um dia ruim em vez voltar a atenção
para a televisão”, exemplifica a psicóloga Dana R. Baerger,
professora assistente de psiquiatria clínica e ciências com-
portamentais na Escola Feinberg de Medicina da Universi-
dade Northwestern. “Temos a escolha, em qualquer inte-
ração, de nos conectarmos com nosso parceiro ou não. A
constância da segunda opção pode, ao longo do tempo,
corroer lentamente o relacionamento, mesmo sem haver
um conflito claro.”

9
relacionamento

4. Valorização
Grupo Unico de aspectos
PDF Acesse: positivos
@jornaiserevistas
A observação de casais em suas casas revela que os in-
divíduos que se concentram nos aspectos desfavoráveis
não conseguem enxergar ações positivas do companheiro.
Uma característica nítida dos casais felizes é que procuram
relevar os aborrecimentos e focar o lado agradável da rela-
ção. Não se trata de negar o que não está bem, mas sim de
não dar espaço excessivo ao que incomoda e colocar de
lado as experiências satisfatórias. “Se um dos dois acorda
irritadiço em uma manhã de domingo, por exemplo, isso
não é motivo suficiente para estragar toda a programação
do dia, o que seria pouco vantajoso para ambos”, comenta
Gottman. Ele alerta também para o risco de guardar má-
goas e usar o ressentimento para ferir ao outro e a si mes-
mo. Em seus estudos, o psicólogo constata que os casais
mais satisfeitos são aqueles em que ambos se esforçam
para cuidar emocionalmente do parceiro.
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capa

Como
a barriga
afeta o
cérebro
Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas

Cientistas comprovam que bactérias da


flora intestinal – presentes em alimentos
como iogurte, queijo e bebidas lácteas –
podem influenciar fortemente a memória, o
humor e a saúde mental, participando até de
mecanismos que deflagram o estresse
por Stefanie Reinberger
capa

H
á um fervilhar de vida dentro da sua barriga.
Os milhares de hóspedes silenciosos instala-
dos em seu intestino chegam a pesar juntos
até dois quilos. Algo considerável, ainda que
cada inquilino seja tão minúsculo que só possa ser visto ao
microscópio. Essa comunidade que mora dentro de nós é
extremamente diversificada: só no cólon existem mais de
400 espécies de microrganismos. E, segundo as estima-
tivas, até hoje foi descoberta apenas uma pequena parte
dessas criaturas.
Antigamente os médicos consideravam que essas for-
mas de vida eram a causa de diversas doenças depois que,
em 1876, o médico e microbiólogo alemão Robert Koch
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demonstrou que as bactérias provocam doenças infeccio-
sas. Na ocasião falava-se em “toxiemia
intestinal” e “intoxicação intestinal”.
Para combater as supostas doenças,
alguns profissionais aconselhavam
aos pacientes a retirada do cólon.
Hoje sabemos que os microscópi-
cos organismos residem no trato di-
gestivo. Os lactobacilos e as bifido-
bactérias – presentes em alimentos
comuns, como iogurte, queijo e be-
bidas à base de leite – constituem a
flora intestinal, uma população ab-
solutamente natural – e necessária.
Instalam-se ali logo após o nasci-
mento e impedem que eventuais
agentes patogênicos, absorvidos

13
capa

pelos recém-nascidos atra-


vés do próprio alimento, se
propaguem no organismo. Leite, iogurte
Estes micro-organismos e queijos são
contribuem para a diges- fontes de
tão, estimulam a motilidade lactobacilos e
intestinal, nos protegem de bifidobactérias,
substâncias prejudiciais e fundamentais
reforçam o sistema imuno- para a saúde
lógico. Produzem, entre ou-
física e, segundo
tras coisas, diversas vitami-
inúmeros
nas e fornecem energia às
células da mucosa intesti-
estudos,
Grupo Unico PDF Acesse:
nal. Enfim, as bactérias das também para
@jornaiserevistas
nossas vísceras são vitais a estabilidade
para o nosso bem-estar. emocional
As vantagens não se limi-
tam ao organismo. Há for-
tes indícios de que o fervi-
lhamento visceral influencie
também o humor e até pro-
cessos cognitivos. O pes-
quisador Emeran Mayer, da
Universidade da Califórnia
em Los Angeles, estudioso
das interações entre intes-
tino e cérebro, escreveu um
artigo panorâmico, no qual
afirma que “micróbios in-
testinais influenciam na for-

14
capa

Conheça
o seu
intestino•
FLORA INTESTINAL mensageiro produzido elevados no sangue no caso
Mais de 400 espécies de pelo organismo, uma de doenças autoimunes
bactérias habitam nosso espécie de “fertilizante do e no curso de infecções
intestino, ao lado de outros cérebro”. Essa molécula bacterianas e virais.
micro-organismos. Além de se liga a receptores
contribuírem para a digestão, específicos da membrana • LACTOBACILOS E
Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas
elas nos defendem dos
agentes patogênicos. Alguns
celular, conectando
células nervosas entre si e
BIFIDOBACTÉRIAS
Fazem parte dos micróbios
desses seres microscópicos contribuindo para a defesa intestinais, e fermentam
produzem aminoácidos e e a formação das redes o açúcar produzindo o
vitaminas, fundamentais neurais. ácido lático. Ambos estão
para a sobrevivência. presentes no iogurte e são
• TRIPTOFANO E importantes pelo efeito
• NERVO VAGO SEROTONINA probiótico, reforçando a
Os micro-organismos se Algumas bactérias intestinais flora intestinal. Lactobacilos
comunicam também fora produzem o aminoácido e bifidobactérias acidificam
do intestino, com outras triptofano, o precursor da o ambiente intestinal e
partes do corpo. O nervo serotonina, mais conhecida previnem a instalação
vago recebe os sinais e os como o “hormônio da de outras bactérias,
retransmite ao cérebro, felicidade”. No organismo potencialmente prejudiciais.
mas regula também a humano, a serotonina está
atividade do intestino, para presente, sobretudo, no • RECEPTORES DE GABA
o qual envia informações do aparelho digestivo. Estes pontos de ancoragem
cérebro. nas membranas das células
• INTERLEUCINA 6 (IL-6) nervosas ligam em particular
• FATOR DE CRESCIMENTO Este mensageiro do sistema o ácido gama-aminobutírico
NEURAL BDNF imunológico tem um papel (GABA), um mensageiro
O fator de crescimento importante nas reações cerebral. Quando são
BDNF (brain derived inflamatórias. Os valores ativados, inibem a
neurotrophic factor) é um de IL-6 resultam mais excitabilidade dos neurônios.

15
capa

mação das lembranças e no estado emotivo”.


Sabemos hoje que os seres microscópicos se comuni-
cam entre si e com o organismo por intermédio de diversos
tipos de “mensageiros”. Milhares de células nervosas rece-
bem sinais dos organismos unicelulares e os retransmitem
Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas
ao cérebro através do nervo vago. Desse modo, os micror-
ganismos influenciam processos inflamatórios e algumas
bactérias produzem o triptofano, aminoácido precursor da
Os micróbios se serotonina, o “hormônio da felicida-
comunicam entre si de”, que pode ser acumulado no in-
testino. Assim, tudo leva a crer que
e com o organismo por
esse microbioma afete o nosso bem-
intermédio de diversos
-estar. “Se os micróbios intestinais de
“mensageiros”; fato influenciam problemas psicoló-
milhares de células gicos, é possível estabelecer as ba-
nervosas recebem ses de uma terapia dirigida”, espera
esses sinais Mayer. Ele reconhece, porém, que
dos organismos ainda há muito a compreender sobre
unicelulares e os essa correlação e, certamente, esse
retransmitem ao fator não pode ser considerado isola-
cérebro através damente. (Leia mais sobre o tema na
do nervo vago próxima página.)

16
capa

Alimentação
para o equilíbrio
mental
Pesquisadores investigam
a importância da dieta
Grupo Unico PDF Acesse:em@jornaiserevistas
quadros de fadiga
crônica e depressão. Ainda
não está claro se os seres
invisíveis que habitam nosso
organismo são tanto causa
como consequência
de problemas emocionais
e mentais

17
capa

O
que comemos afeta a composição da popula-
ção de microrganismos de nosso aparelho di-
gestivo. O mais inusitado, porém, é que a flora
intestinal tem influência sobre o desenvolvimen-
to do cérebro e, portanto, sobre nosso comportamento. “Os
seres que vivem em nosso intestino fazem a interface entre a
alimentação e a genética”, afirma a neurocientista Jane Fos-
ter, da Universidade MacMaster de Hamilton, no Canadá. Ela
e seus colegas descobriram que os ratos de laboratório pri-
vados de bactérias intestinais são mais curiosos e menos cui-
dadosos – expondo-se assim a mais situações de risco – que
as espécies com colonização normal no intestino. Além disso,
verificaram que o fator de crescimento BDNF (brain derived
Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas
neurotrophic factor) se acumula no hipocampo de ratos de
laboratório e que, nesse meio-tempo, há variação da compo-
sição dos receptores na amígdala, área cerebral fortemente
envolvida nas reações de medo.
“A flora intestinal O contrário também é verdadeiro:
faz a interface entre o estresse influencia a composição
a alimentação e a bacteriana do trato intestinal. Ao ex-
genética”, afirma a por ratos de laboratório a uma situ-
ação estressante, a equipe dirigida
neurocientista Jane
pelo microbiólogo Michael Bailey,
Foster; ela descobriu
quando na Universidade do Estado
que os ratos de de Ohio, constatou que se multipli-
laboratório privados cavam determinadas espécies de
de bactérias intestinais bactérias no intestino dos roedores.
são menos cuidadosos Os pesquisadores registraram tam-
e se expõem a mais bém o aumento dos mensageiros
riscos que os demais do sistema imunológico, por exem-

18
capa

MAIS PROTEÇÃO: as bifidobactérias, típicas de flora intestinal saudável, são ingeridas


pelos recém-nascidos com o leite materno e parecem ter potencial antidepressivo

Grupo Unico PDF 6,Acesse:


plo, a interleucina @jornaiserevistas
que intervém nos processos inflamató-
rios – como se o organismo se preparasse para a situação
de risco de possíveis ferimentos.
Que o estresse favorece a queda de resistência imunoló-
gica é um fato conhecido e há tempos se suspeita de uma
relação entre os fatores inflamatórios e a depressão. Entre-
tanto, outra descoberta de Michael Bailey lança uma nova
luz sobre os mecanismos de ação. Quando os ratos estres-
sados eram tratados com antibióticos, o nível dos mensa-
geiros imunológicos não aumentava. Evidentemente, na pri-
meira parte do experimento as bactérias eram responsáveis
pelo excesso de mediadores da inflamação.

Micróbio contra estresse


Os microrganismos intestinais podem também ter efeitos ex-
clusivamente positivos. É o caso das bifidobactérias – típicas de
flora intestinal saudável, os recém-nascidos as ingerem já com

19
capa

o leite materno – que teriam potencialidades antidepressivas:


pelo menos nos ratos, como demonstrou em 2010 a equipe
dirigida pelo farmacologista irlandês John Cyran, da Universi-
dade College de Cork.
Os cientistas separaram filhotes de rato das respectivas
mães, provocando forte estresse nos animais; como conse-
quência, o nível de interleucina 6 em seu sangue aumentou,
enquanto caiu o nível do neurotransmissor noradrenalina no
tronco cerebral, exatamente como
Os milhares de seres
ocorre em pessoas com depressão.
minúsculos que Esses roedores tinham tendência à
hospedamos dentro depressão, como revelou um teste
de nós têm lugar comum: se eram colocados em uma
Grupo Unico
estável PDF Acesse:
no delicado banheira com@jornaiserevistas
água, permaneciam na
sistema capaz de superfície menos tempo que os ani-
contribuir para o mais de controle, não estressados.
equilíbrio entre corpo, Mas algo diferente ocorria com os
mente e emoção filhotes de rato cujo alimento havia
sido enriquecido com a bifidobac-
téria. Os roedores nadavam energicamente na banheira e,
além disso, seu nível de IL-6 e de noradrenalina era nor-
mal. Um estudo posterior realizado pelos mesmos pesqui-
sadores irlandeses demonstrou que o alimento probiótico
favorecia o aumento do fator de crescimento neural BDNF
no hipocampo, estrutura importante na aprendizagem, e em
média menor nas pessoas com depressão.
John Cyran e seus colegas visaram também os Lactobacillus
rhamnosus, bactéria que produz ácido lático. Nesse caso, os
pesquisadores demonstraram pela primeira vez em 2011 que
os microrganismos intestinais enviam sinais do abdômen ao

20
capa

cérebro através do nervo vago. Os ratos que recebiam alimen-


to enriquecido com lactobacilos eram não apenas mais resis-
tentes que os alimentados com comida sem o acréscimo de
bactérias, como ficava evidente seu comportamento menos
assustado. Foi constatado, porém, o aumento do nível de cor-
ticosterona, o hormônio do estresse.
Os pesquisadores descobriram no cérebro dos roedores
quantidade maior de receptores de GABA, os pontos de an-
coragem do neurotransmissor ácido gama-aminobutírico, em
Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas
particular nas regiões onde os receptores de GABA são mais
escassos nas pessoas com depressão. Também quando os
estudiosos irlandeses cortaram o nervo vago dos ratos de la-
boratório, os efeitos positivos dos lactobacilos permaneciam.
“Estes resultados ressaltam o papel das bactérias intestinais
na comunicação entre intestino e cérebro, além disso, são um
primeiro passo para desenvolver estratégias baseadas nos mi-
cróbios específicos para o tratamento dos distúrbios psicológi-
cos”, confirma o pesquisador.

Em busca de equilíbrio
Porém, ratos obviamente não são pessoas. A possibilidade
de transferir os resultados para o ser humano ainda deve
ser comprovada, embora alguns resultados preliminares se-
jam encorajadores. Um grupo de pesquisa da Universida-
de de Swansea, no País de Gales, recrutou 132 voluntários
saudáveis para um experimento interessante. Metade dos

21
capa

Um estudo realizado por participantes consumiu,


durante três semanas,
cientistas irlandeses demonstrou
um placebo, enquanto a
que o alimento probiótico
outra parte ingeriu uma
favorece o aumento do fator de bebida à base de leite
crescimento neural BDNF no probiótico. Antes e de-
hipocampo, estrutura importante pois desse período os
na aprendizagem e, em geral, psicólogos conduziram
menor nas pessoas deprimidas um teste para avaliar a
saúde mental dos volun-
tários. O resultado revelou que o humor de quem havia be-
bido o leite probiótico tinha melhorado sensivelmente, em
particular aqueles que antes apresentavam visão predomi-
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nantemente pessimista.
PARA SABER MAIS Efeito comparável foi observado por cientistas canadenses
A incrível conexão da Universidade de Toronto, em um estudo-piloto realizado
intestino cérebro. Camila
Rowlands. Ísis, 2017. com um pequeno grupo de pacientes que sofriam de síndro-
Ingestion of lactobacillus me de fadiga crônica. Os participantes, que por dois meses
strain regulates emotional
behavior and central gaba tinham ingerido uma bebida à base de leite enriquecido com
receptor expression in
a mouse via the vagus lactobacilos, no final do estudo estavam menos deprimidos e
nerve. Bravo J. A. e
outros, em Proceedings temerosos que os integrantes do grupo que recebeu placebo.
of the National Academy
of Sciences, vol. 108, Porém, ainda faltam estudos que ampliem a compreensão de
págs. 16050-16055, 2011.
como microrganismos influenciam o cérebro humano.
Brain-gut-microbe
communication in health Diante das últimas descobertas, já não é surpresa o fato de
and disease. Grenham S.
e outros, em Frontiers in milhares de seres minúsculos que hospedamos dentro de nós
Physlology, vol. 2, 2011.
terem lugar estável no delicado sistema capaz de contribuir
Reduced anxiety-like
behavior and central para o equilíbrio mental. Embora a resolução de questões psí-
neurochemical change in
germ-free mice. Neufeld quicas não possa ficar restrita ao âmbito da alimentação, cien-
K. M. e outros, em
Neurograstroenterology tistas concordam que a estreita relação entre corpo e mente
and Motility, Vol. 23,
págs. 255-265, 2011. parece cada vez mais óbvia.
Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas
desenvolvimento infantil

Do que
os bebês
se lembram
A maior capacidade
Grupo Unico PDF
de memorização Acesse: @jornaiserevistas
coincide com a
aquisição progressiva
das noções de tempo,
espaço e de eu, por
volta dos 9 meses;
para pesquisadora, os
pequenos captam e
entendem grande parte
de informações que
recebem, mas não as
absorvem por completo

24
desenvolvimento infantil

C
rianças pequenas memorizam. Se não se lem-
bram de nada antes dos 3 anos é devido à dificul-
dade de reter as informações nesse período. Esse
fenômeno intriga pesquisadores e tem suscita-
do pesquisas como as da neurocientista americana Patrícia
Bauer, da Universidade Duke, e da psicóloga Lisa Oakes, da
Universidade da Califórnia.
Os estudos revelam que na amnésia infantil o processo de
esquecimento supera a capacidade de formação de memó-
rias. Segundo Bauer, memórias são constituídas com base
em complexa rede de estruturas cerebrais que se desenvol-
vem aos poucos, em diferentes regiões do cérebro infantil.
Entre 6 e 18 meses essas estruturas vão se ligando umas às
Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas
outras. Nesse período os bebês adquirem grande habilidade
para formar memórias de curto e longo prazo. Até os 9 meses,
porém, as recordações são frágeis; perdem-se logo devido

25
desenvolvimento infantil

à imaturidade cognitiva. Já as
crianças de 2 anos memori-
zam eventos por mais tempo.
No lugar de lembranças de
apenas um dia, recordam coi-
sas experimentadas um ano
antes. A maior capacidade de
memorização coincide com a
aquisição progressiva das no-
ções de eu (aos 8, 9 meses),
de tempo e espaço. Para Oa-
kes, bebês captam e entendem grande parte de informações
que recebem, mas não as absorvem por completo.
Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas
Os experimentos de Bauer incluíram testes com blocos
ilustrados e medições eletrofisiológicas. Após observar como
eram montados, os bebês imitavam a tarefa. A partir de então,
recebiam os mesmos objetos. O objetivo era testar a duração
da memória e até que ponto retinham a informação sobre a
montagem do jogo. Já Oakes, levando em consideração que
os bebês tendem a se ater mais a coisas novas que a conhe-
cidas, mediu o interesse por objetos; quanto tempo retinham
na mente aqueles anteriormente apresentados.
Segundo Lia Bevilaqua, do Centro de Memória do Instituto
de Pesquisas Biomédicas da Pontifícia Universidade Católi-
ca do Rio Grande do Sul (PUC-RS), isso demonstra que, ao
contrário do que se acreditava, crianças com menos de 1 ano
têm capacidade de evocar memórias episódicas e autobio-
gráficas, e ao final do segundo ano de vida a habilidade para
formar e expressar memórias de longa duração já está quase
completamente desenvolvida.

26
Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas
animal

O que os
cachorros
pensam
Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas

Exames de neuroimagem
revelam o que se passa
na cabeça dos cães
quando ouvem um
comando; seu principal
foco de atenção são os
seres humanos

28
animal

A
quela carinha expressiva e olhinhos que pare-
cem sempre querer dizer algo fazem com que
donos de cães se perguntem o que seu bicho
de estimação “imagina” quando escuta sua voz.
Agora, cientistas interessados em compreender a relação
entre o homem e esses animais, com base na perspec-
tiva dos cachorros, tentam descobrir, utilizando técnicas
de escaneamento cerebral, o que pensam nossos amigos
caninos. Os pesquisadores divulgaram suas descobertas
na revista on-line  PLoS ONE .
Levando em conta que o adestramento de cães pelo
exército para desempenhar funções complexas como sal-
Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas
tar de helicópteros e aviões é uma prática comum, o neu-
rocientista Gregory Berns, do Centro de Neuropolítica da
Universidade Emory, con-
siderou que não seria difícil
treinar esses animais para
entrar acordados em um
tubo de ressonância mag-
nética para que pesquisa-
dores tentassem descobrir
o que pensavam.
Berns e seus colegas en-
sinaram dois cães a ficar
completamente imóveis
dentro do aparelho: Callie,
uma fox terrier de 2 anos, e
McKenzie, um border col-
lie de 3, Também os treina-

29
animal

Um dos objetivos do estudo


é compreender como os
animais processam
a linguagem e de que
maneira as expressões
faciais humanas são
entendidas por eles

Grupo Unico
ram para PDF Acesse:
responder @jornaiserevistas
a sinais – mão esquerda apontando
para baixo significava receber uma recompensa; ambas
as mãos direcionadas para a horizontal indicava tratamen-
to neutro. Eles descobriram que, no momento em que os
cachorros visualizavam o sinal de gratificação, a região do
núcleo caudado (associada a recompensas em seres hu-
manos) mostrava atividade. A mesma área não revelava
alterações quando os cães não viam o sinal do tratamento
especial. O vídeo do experimento pode ser acessado em:
http://www.youtube.com/watch?v=UsJf9NwTFhw&featu-
re=player_embedded
“Quando observamos os primeiros resultados, notamos
que as imagens eram diferentes de qualquer outra obtida
em estudos anteriores. Ninguém, até onde eu sei, já havia
capturado fotos do cérebro de um cachorro que não esti-
vesse sedado”, diz Berns. Os resultados também indicam
que os bichos prestam muita atenção aos sinais humanos.

30
animal

Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas


Segundo os pesquisadores, a descoberta abre portas
para futuros estudos sobre a cognição canina e respon-
de perguntas sobre a profunda ligação afetiva dos se-
res humanos com os cães. Outro objetivo do estudo é
compreender como os animais processam a linguagem
e de que maneira as expressões faciais são representa-
das em sua mente. O amor por essas criaturas de quatro
patas tem raízes profundas nos primórdios da evolução
humana e Berns acredita que isso pode ter moldado
como os nossos ancestrais desenvolveram a linguagem
e outras ferramentas da civilização. “O cérebro do cão
revela algo especial sobre como homens e animais se
reuniram e a história evolutiva entre ambas as espécies
pode fornecer um espelho único da mente humana”, ar-
gumenta o neurocientista.

31
corpo

Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas

O “azar”
de adoecer
A má sorte pode ser levada em conta
quando se estuda a incidência de
câncer na população? Por incrível
que possa parecer, um grupo de
respeitados cientistas acredita que sim
32
corpo

A
o longo dos anos, o acaso tem desafiado a ciên-
cia. Recentemente, pesquisadores da Universi-
dade Johns Hopkins e da Escola de Saúde Públi-
ca Bloomberg, nos Estados Unidos, fizeram uma
afirmação polêmica. Claro, há fatores ambientais a serem
levados em conta, hábitos de risco, influência da alimenta-
ção e do sedentarismo e aspectos genéticos e biológicos.
Mas, segundo os cientistas, a ocorrência da maior parte dos
tipos de câncer pode ser atribuída, pelo menos em parte, à
“má sorte”. Em um artigo publicado no periódico científico
Science, estudiosos afirmaram acreditar que a explicação
para esse fator aleatório está na maneira como os tecidos
do corpo se regeneram.
Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas
A pesquisa revela que dois terços de todos os tipos de
câncer analisados são originados por mutações genéticas
e a explicação para essa alteração pode estar na manei-
ra como as células se regeneram. O estudo que levou a
essa conclusão tem o objetivo de
A análise da incidência explicar a razão de alguns tecidos
média de câncer do corpo serem mais vulneráveis
em vários tecidos ao câncer do que outros.
orgânicos mostrou Células mais antigas e desgas-
tadas são constantemente substi-
que em dois terços
tuídas por células-tronco, que se
das situações a
dividem para formar novas estru-
doença seria causada turas celulares. Mas em cada divi-
pelo “acaso”, já que são há o risco de que ocorra uma
as células-tronco mutação anômala, que aumenta
sofriam mutações o perigo de aparecer um câncer.
imprevisíveis O ritmo dessa renovação varia de

33
corpo

acordo com a região do corpo, sendo


mais rápida no intestino e mais lenta
no cérebro, por exemplo. Os pesquisa-
dores compararam o número de vezes
que essas células se dividem em 31 te-
cidos do corpo durante a vida média
de uma pessoa com o índice de inci-
dência de câncer nessas partes do cor-
po e concluíram que dois terços dos
tipos de câncer seriam causados pelo
“azar” de células-tronco em processo
de divisão sofrerem mutações impre-
visíveis. Apesar da observação, cientis-
Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas tas de todo 0 mundo ressaltam que um
estilo de vida saudável aumenta muito
as chances de uma pessoa não desen-
SIGMUND FREUD acreditava que somos conduzidos
por nossos desejos inconscientes sem nos darmos volver a doença. Ou seja, favorece “a
conta deles; por meio do amadurecimento psíquico
nos apropriamos de nossa história, nos tornando sorte” de se manter saudável.
mais autônomos

Melhores amuletos
Para a psicanálise não existe acaso – pelo menos não da ma-
neira como estamos acostumados a considerar essa ideia.
Sigmund Freud postula que somos conduzidos por nossos
desejos inconscientes sem nos darmos conta deles. E, não
raro, nos sentimos completamente à mercê das situações,
imersos em certo grau de alienação. Porém, por meio da aná-
lise ou do próprio processo de amadurecimento, tendemos
a nos apropriar de nossa história, nos tornando mais autôno-
mos tanto para fazer escolhas e arcar com os resultados de-
las, quanto para aceitar, sem grande sofrimento, que não é

34
corpo

Para a psicanálise não existe


acaso, pelo menos não da
maneira como estamos
acostumados a considerar
essa ideia. Freud postula que
somos conduzidos por nossos
desejos inconscientes sem nos
darmos conta deles

possível ter tudo sob nosso controle. E não se trata de abrir


Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas
mão dos próprios desejos porque não podemos dominar as
consequências – pelo contrário.
A capacidade de receber de bom grado os benefícios que
a vida oferece – sem desvalorizar “a medalha de bronze por-
que não é de ouro” – costuma perpetuar a sensação de sa-
tisfação. Nesse sentido, uma das maneiras mais eficientes de
atrair a sorte está na escolha no nível racional, na opinião do
psicólogo inglês Richard Wiseman. Professor da Universidade
de Hertfordshire, na Inglaterra, ele trabalhou como ilusionista
na época da graduação e, mais tarde, conduziu um comple-
xo estudo sobre os mecanismos possivelmente relacionados
à sorte. Segundo Wiseman, desenvolver conscientemente o
hábito de nos atermos àquilo que nos faz bem, sem nos ape-
garmos excessivamente ao que provoca dor e desconforto.
Para o psicólogo, o empenho em ser saudável e a confiança
de que merecemos essa oportunidade são bons amuletos
contra o “azar” da doença.

35
neuroquímica

Oxitocina não enfatiza


apenas emoções
pró-sociais, que
entendemos como
positivas;
Grupo age de acordo
Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas
com a situação em que
a pessoa se encontra
e pode incrementar
sentimentos de inveja e
crueldade

Hormônio
do amor faz
aumentar anseio
por vingança 36
neuroquímica

C
onhecido como “hormônio do amor, a oxito-
cina favorece a criação de vínculos, deflagra
sentimentos de confiança e fortalece a ligação
da mãe com seu bebê. Mas também pode ter
efeito bastante adverso: pode contribuir para aumentar
sentimentos negativos, como inveja, desejo de vingança
e satisfação com o sofrimento daquele que nos fez mal. A
constatação vem de um estudo desenvolvido por pesqui-
sadores da Universidade de Haifa, em Israel.
Durante o experimento, 59 voluntários participaram de
um jogo que prevê ganhos e perdas monetárias. Os pesqui-
Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas
sadores perceberam que os participantes do experimento
sentiam mais inveja depois de serem derrotados por um
oponente virtual se tivessem recebido uma dose de oxi-
tocina. Os integrantes do grupo que usou placebo tiveram
essa reação bastante atenuada.
A oxitocina também impulsio-
Estudos anteriores nou sentimentos de prazer com
feitos com animais já o infortúnio alheio quando as
mostraram esse “efeito pessoas ganharam mais dinhei-
ro que seu oponente. “Esse hor-
duplo; fêmeas de
mônio não enfatiza apenas emo-
ratos que receberam
ções pró-sociais, que entende-
uma infusão da mos como positivas; tem efeito
substância no cérebro sobre sentimentos em geral e
foram mais agressivas age de acordo com a situação
com os intrusos da em que a pessoa se encontra”,
mesma espécie diz a especialista em cognição

37
neuroquímica

Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas


Simone Shamy-Tsoory, que coordenou a pesquisa. Ela re-
conhece, porém, que nem sempre é fácil pesquisar o tema
em razão da dificuldade das pessoas de admitir diante
de um pesquisador aspectos sombrios da personalidade,
como inveja e regozijo com a infelicidade alheia.
Experimentos anteriores realizados com animais já su-
geriam esse “efeito duplo” da oxitocina. Fêmeas de ratos
que receberam uma infusão de oxitocina em uma área do
cérebro onde o hormônio age, foram mais agressivas com
os intrusos da mesma espécie.  A maioria das pesquisas
com seres humanos, entretanto, tem mostrado que o hor-
mônio nos torna mais propensos a confiar nos outros, a ser
mais tolerantes, a avaliar as pessoas com benevolência e
a se lembrar do rosto daqueles com quem interagimos. O
artigo sobre o estudo realizado em Israel foi publicado no
periódico científico Journal of Biological Psychiatry .

38
Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas
especial • neurociência

Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas

De onde vêm
emoções e
pensamentos
Neurocientistas recorrem a novas ferramentas
para analisar o funcionamento dos circuitos
neurais e desenvolver tecnologias que
registrem a atividade do cérebro

por Rafael Yuste e George M. Church

40
especial

A
pesar de mais de um século de pesquisas inin-
terruptas, a dificuldade em estabelecer ligação
entre a biologia e o comportamento em huma-
nos é ainda grande. Sofisticados exames de ima-
gem mostram atividade em locais específicos do cérebro,
É o caso de quando nos sentimos rejeitados ou falamos
um idioma estrangeiro, por exemplo, e essas constatações
podem dar a impressão de que a tecnologia atual fornece
percepções essenciais sobre o funcionamento do cérebro,
mas não é bem assim.
Um exemplo notável desse descompasso é um estudo
muito divulgado, que identifica uma célula do cérebro em
particular capaz de disparar um impulso elétrico em respos-
ta ao rosto da atriz Jennifer Aniston. No entanto, pesquisa-
dores ainda são completamente ignorantes a respeito de
Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas como a atividade elé-
Já temos técnicas para registrar a trica pulsante desse
atividade de neurônios individuais neurônio influencia
em humanos vivos, mas, para nossa capacidade de
avançar de forma significativa, a reconhecer o rosto
área precisa de novas tecnologias de Aniston e depois
relacioná-lo a uma
cena da comédia Mistério no Mediterrâneo, em cartaz na
Netflix. Para que seu cérebro reconheça a atriz, provavel-
mente é necessária a ativação de um conjunto enorme de
neurônios, todos se comunicando por um código neural que
ainda não foi decifrado.
O “neurônio de Jennifer Aniston” também exemplifica a
encruzilhada que a neurociência atingiu. Já temos técnicas
para registrar a atividade de neurônios individuais em hu-
manos vivos, mas, para avançar de forma significativa, a área
precisa de novas tecnologias que permitirão a cientistas

41
especial

SANTIAGO RAMÓN Y CAJAL,


neuroanatomista pioneiro,
chamou a atividade elétrica
dos neurônios de “selva
impenetrável, onde muitos
investigadores se perderam”

Grupo Unico
monitorar PDF Acesse:
e também @jornaiserevistas
alterar a atividade elétrica de milhares
ou mesmo milhões de neurônios – técnicas capazes de de-
cifrar o que o pioneiro neuroanatomista espanhol Santiago
Ramón y Cajal chamou de “a selva impenetrável, onde mui-
tos investigadores se perderam”.
Esses métodos inovadores poderiam, em princípio, co-
meçar a preencher a lacuna entre o disparo de neurônios e
a cognição: percepção, emoção, tomada de decisão e, por
fim, a própria consciência. Decifrar os padrões exatos da ati-
vidade cerebral subjacente ao pensamento e ao comporta-
mento também fornecerá percepções críticas sobre o que
acontece quando circuitos neurais deixam de funcionar em
distúrbios psiquiátricos e neurológicos – esquizofrenia, au-
tismo, Alzheimer ou Parkinson.
Apelos para um salto tecnológico no estudo do cérebro
começam a ser ouvidos fora dos laboratórios. Há pouco mais
de três anos, o governo dos Estados Unidos anunciou o início

42
especial

EFEITO JENNIFER ANISTON: uma célula específica é capaz de disparar impulso


elétrico em resposta ao rosto da atriz, mas pesquisadores ainda não entendem detalhes
do processo que permite a um neurônio em particular reconhecer um rosto

de um projeto de grande escala: o Brain Research through


Advancing Innovative Neurotechnologies Initiative, ou Iniciati-
va BRAIN, um grande empreendimento de pesquisa.
Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas
O projeto, com um nível de financiamento inicial de mais
de US$ 100 milhões, visa o desenvolvimento de tecnologias
para registrar sinais de células cerebrais em número muito
maior e até de áreas completas do cérebro. O BRAIN com-
plementa outros grandes projetos em neurociência fora dos
Estados Unidos.  O Human Brain Project (Projeto Cérebro
Humano), financiado pela União Europeia, é uma ação de
U$ 1,6 bilhão, já com mais de uma década, voltado para o
desenvolvimento de uma simulação de todo o cérebro em
computador. Projetos de pesquisa ambiciosos de neurociên-
cia também foram lançados na China, no Japão e em Israel.
Investigar como células cerebrais processam o conceito
de Jennifer Aniston – ou algo comparável àquilo com que
nos deparamos por meio da experiência subjetiva ou per-
cepções do mundo externo – é atualmente um obstáculo
intransponível. Exige deslocar a medição de um neurônio
para a compreensão de como um grupo dessas células

43
especial

Uma percepção ou
recuperação de memória de
infância podem ser discernidas
com a observação da atividade ASSIM COMO NO CÉREBRO: no caso do elemento
dos circuitos cerebrais que químico carbono, os mesmos átomos podem se
ligar tanto para criar a dureza do diamante como

transportam sinais elétricos ao a maciez do grafite, que se desgasta facilmente,


formando palavras no papel. Essas propriedades
não dependem de átomos individuais, mas do
longo de cadeias neurais conjunto de interações entre eles.

pode se envolver em interações complexas que dão ori-


gem a um todo integral maior – que cientistas chamam de
propriedade emergente. A temperatura de qualquer mate-
rial ou o estado magnético de um metal, por exemplo, só
Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas
surge a partir de interações de uma multidão de molécu-
las ou átomos. Considere o elemento químico carbono: os
mesmos átomos podem se ligar tanto para criar a dureza
OS AUTORES do diamante como a maciez do grafite, que se desgasta

RAFAEL YUSTE é
facilmente, formando palavras no papel. Dureza ou maciez,
professor de essas propriedades emergentes não dependem de átomos
ciências biológicas
e neurociência na individuais, mas do conjunto de interações entre eles.
Universidade Columbia
e codiretor do Instituto
de Circuittos Neurais
O cérebro provavelmente também apresenta proprieda-
da Fundação Kavli. des emergentes totalmente ininteligíveis a partir de inspeção
GEORGE M. de neurônios individuais, ou mesmo de uma pintura gros-
CHURCH é professor
de genética na seira de baixa resolução da atividade de enormes grupos
Universidade
Harvard e fundador de neurônios. A percepção de uma flor ou a recuperação
do PersonalGenomes.
org.com, uma fonte de uma memória de infância podem ser discernidas ape-
de acesso aberto
para dados sobre nas observando-se a atividade dos circuitos cerebrais que
genomas humanos,
neuroimagens transportam sinais elétricos ao longo de cadeias complexas
e caracteres
comportamentais e de centenas ou milhares de neurônios.  (Leia mais sobre o
cognitivos.
tema nas páginas seguintes.)

44
especial • neurociência

O mapa
do cérebro

Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas

Na tentativa de gravar a atividade de circuitos de


percepção e memória e entender a origem de
comportamentos complexos e funções cognitivas,
pesquisadores desenvolvem um traçado de
conexões anatômicas, sinapses, neurônios

45
especial

O
cérebro é um universo e, como tal, uma forma efi-
ciente de melhor compreendê-lo pode ser criar
um mapa. Cientistas já trabalham nessa área de-
nominada conectonomia. O Projeto Conectoma
Humano, lançado nos Estados Unidos, pretende fornecer justa-
mente um diagrama da fiação estrutural do cérebro. Mas, como
no caso do verme, esse mapa é só um ponto de partida. Apenas
ele não conseguirá documentar os sinais elétricos em constante
variação que produzem processos cognitivos específicos.
Para fazer esse registro são necessárias técnicas sofistica-
das de medição de atividade elétrica, superiores às tecnolo-
gias disponíveis – que permitem observar um quadro preciso
da atividade de grupos relativamente pequenos de neurônios,
ou imagens não nítidas de áre-
O nanodiamante, um as cerebrais grandes, mas ain-
novo material importado
Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas
da sem a resolução necessária
da óptica quântica pela para identificar circuitos cere-
neurociência, é altamente brais tão específicos. Registros
sensível a mudanças em em boa escala atualmente são
campos elétricos que feitos inserindo eletrodos finos
ocorrem enquanto uma como agulhas nos cérebros
de animais de laboratório para
célula cerebral oscila
acompanhar o disparo de um
neurônio isolado, o impulso elétrico acionado após a célula re-
ceber sinais químicos de outras células cerebrais.
Quando um neurônio é estimulado adequadamente, a tensão
elétrica através da membrana exterior da célula se inverte. Essa
mudança de tensão induz canais de membrana a introduzir só-
dio ou outros íons carregados positivamente. A entrada, por sua
vez, produz um “pico” elétrico que percorre o axônio – a proje-
ção longa da célula – estimulando-o a enviar um sinal químico
próprio para outros neurônios e assim continuar a propagar o

46
especial

O PEIXE-ZEBRA é um dos organismos


favoritos dos neurobiólogos porque é
transparente em estado larval, permitindo
a fácil inspeção do seu interior

sinal. Registrar apenas um neurônio é análo-


go a tentar seguir o enredo de um filme em
alta definição enquanto observa apenas um
pixel. Fica impossível ver o filme como um
todo. Também é uma técnica invasiva que
pode provocar danos ao tecido cerebral as-
sim que os eletrodos penetrarem nele.
No outro lado do espectro, métodos que regis-
tram a atividade coletiva de neurônios em todo o cérebro
também são inadequados. No familiar eletroencefalograma
Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas
(EEG), inventado por Hans Berger na década de 20, eletrodos
são fixados no crânio e medem a atividade elétrica combinada
de mais de 100 mil células nervosas logo abaixo – o EEG re-
gistra as oscilantes “ondas” de amplitude ascendente e des-
cendente que ocorrem em poucos milésimos de segundos,
embora não possa decidir se qualquer neurônio individual está
ativo. A ressonância magnética funcional (RMf) – que produz
manchas coloridas iluminando áreas ativas do cérebro – regis-
tra atividade neurológica de forma não invasiva, mas apenas
lentamente e com baixa resolução espacial. Cada elemento
de imagem, ou voxel (um pixel tridimensional) é um conjunto
de cerca de 80 mil neurônios. Além disso, a RMf não localiza
a atividade neuronal diretamente, mas apenas mudanças se-
cundárias no fluxo sanguíneo no interior desses voxels.
Para obter um quadro de padrões emergentes de atividade
cerebral, cientistas precisam de novos dispositivos sensoriais
que consigam gravar a partir de conjuntos de milhares de neu-

47
especial

rônios. A nanotecnologia, com novos materiais quase sempre


inferiores às dimensões de moléculas individuais, pode ajudar
nas gravações em grande escala. Matrizes de protótipos fo-
ram construídas incorporando mais de 100 mil eletrodos em
uma base de silício; esses equipamentos conseguiram regis-
trar a atividade elétrica de dezenas de milhares de neurônios
na retina. Maior refinamento dessa tecnologia permitirá o em-
pilhamento dessas matrizes em estruturas tridimensionais, di-
minuindo os eletrodos para
As nanopartículas podem ser evitar danos aos tecidos e
combinadas com corantes, estendendo eixos para pe-
produzindo moléculas netrarem profundamente
híbridas para que sirvam como no córtex cerebral, a super-
“antenas”
Grupo para amplificar
Unico PDF Acesse:fície mais externa do cére-
@jornaiserevistas
sinais de baixa intensidade bro. Esses progressos pos-
quando um neurônio é ativado sibilitariam a gravação de
centenas de milhares de
neurônios em humanos, discernindo as propriedades elétricas
de cada célula.
Eletrodos são apenas um modo de monitorar atividades
neuronais.  Técnicas além dos sensores elétricos abrem cami-
nho nos laboratórios. Biólogos tomam emprestadas técnicas
desenvolvidas por físicos, químicos e geneticistas e começam
a visualizar neurônios vivos em animais acordados, vivencian-
do suas rotinas diárias.
Um indício do que pode surgir ocorreu há alguns anos, quan-
do Misha Ahrens e seus colegas, no campus Janelia Farm do
Howard Hughes Medical Institute, em Ashburn, Virgínia, usaram
uma larva de peixe-zebra para imageamento microscópico do
cérebro inteiro. O peixe-zebra é um dos organismos favoritos

48
especial

dos neurobiólogos porque é transparente em estado larval,


permitindo a fácil inspeção do seu interior. No experimento, os
neurônios do peixe-zebra foram geneticamente modificados
para fluorescência quando íons de cálcio penetraram na célu-
la após um disparo. Um novo tipo de microscópio iluminou o
Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas
cérebro do animal, projetando uma lâmina de luz sobre todo o
órgão enquanto uma câmera fazia fotos a cada segundo dos
neurônios se iluminando.
A técnica usada, denominada imageamento de cálcio, é pio-
neira e foi criada por um de nós (Yuste), possibilitando a grava-
ção de 80% dos 100 mil neurônios do peixe-zebra. Mas, quan-
do em repouso, muitas regiões do sistema nervoso da larva do
peixe-zebra acendiam e apagavam em padrões desconheci-
dos. Desde que Berger apresentou o EEG, pesquisadores sa-
bem que o sistema nervoso está, basicamente, sempre ativo.
O experimento com o peixe-zebra traz esperança de que no-
vas tecnologias de imagem possam ajudar no desafio maior
da neurociência – a compreensão do disparo persistente e es-
pontâneo de grandes grupos de neurônios.
Esse experimento é apenas o começo, pois neurocientistas
necessitam de melhores tecnologias para descobrir como a
atividade cerebral dá origem ao comportamento. Novos tipos
especial

de microscópios precisam ser projetados para imagens si-


multâneas tridimensionais da atividade neuronal. Além disso,
o imageamento de cálcio opera lento demais para rastrear o
disparo rápido dos neurônios e é incapaz de medir os sinais
inibitórios que contêm a atividade elétrica na célula.
Neurofisiologistas, trabalhando em parceria com geneticis-
tas, físicos e químicos, tentam melhorar técnicas ópticas que,
em vez de mensurar o cálcio, registrem a atividade neuronal
diretamente pela detecção de alterações na tensão elétrica da
membrana. Corantes que alteram suas propriedades ópticas
conforme a voltagem oscila – depositados sobre o neurônio
ou integrados por meio da engenharia genética na membrana
celular – podem melhorar o imageamento de cálcio. Esta téc-
nica alternativa, conhecida como imageamento de voltagem,
Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas
pode permitir que pesquisadores registrem a atividade elétrica
de cada neurônio em um circuito neural completo.

RESSONÂNCIA MAGNÉTICA FUNCIONAL (RMF)


A ressonância magnética funcional (RMf ) ilumina áreas ativas do cérebro, registrando sua
atividade de forma não invasiva, mas a resolução espacial é baixa

50
especial

O imageamento de voltagem
ainda está engatinhando. Quími-
cos devem melhorar a capacida-
de dos corantes de mudar a cor
ou outras características enquan-
to um neurônio dispara. Biólogos
moleculares estão trabalhando na
construção de sensores de ten-
são geneticamente codificados;
essas células leem uma sequên-
cia genética para produzir uma proteína fluorescente, enviada
à membrana exterior das células. Lá, essas proteínas alteram a
intensidade em que se tornam fluorescentes, em resposta a al-
Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas
terações na tensão elétrica de um neurônio.
Como com os eletrodos, materiais não biológicos avan-
çados originários da nanotecnologia podem ajudar. Em lu-
gar de corantes orgânicos ou marcadores genéticos, um
novo tipo de sensor de voltagem pode ser feito de pontos
quânticos – pequenas partículas semicondutoras que exi-
bem efeitos da mecânica quântica e podem ser adaptados
precisamente em suas propriedades ópticas, como a cor ou
intensidade de luz emitida. Os nanodiamante, outro novo
material importado da óptica quântica, são altamente sen-
síveis a mudanças em campos elétricos que ocorrem en-
quanto a célula oscila. As nanopartículas também podem
ser combinadas com corantes orgânicos convencionais, ou
geneticamente modificados, produzindo moléculas híbridas
em que uma nanopartícula pode servir como “antena” para
amplificar sinais de baixa intensidade, produzidos por coran-
tes fluorescentes, quando um neurônio é ativado. 

51
cinema DESLEMBRO.
Brasil/França/Qatar, 2018. 96 min.
Direção: Flávia Castro
Elenco: Jeane Boudier, Sara
Antunes, Eliane Giardini e outros.

A dinâmica
do esquecimento
Assim como o resgate de memória de infância
aprofunda o desenvolvimento psíquico
pessoal, a apropriação da história de um povo
abre caminho para seu amadurecimento
Grupo Unico PDF Acesse: @jornaiserevistas

A
memória é traiçoeira: desconstrói o que foi vivido, em especial na
infância – tal qual se faz com um jogo de montar – e reconstrói a
experiência a partir de novos arranjos. Porém, nesse processo, mui-
tas peças se perdem nos meandros da mente. Para preencher as lacunas
que provocam angústia, buscamos sentidos, recorremos a fantasias, lem-
branças encobridoras. Em geral, as construções psíquicas que nos recon-
fortam oferecem um sentido de continuidade. Mas, em alguns casos, o que
prevalece é uma espécie de caldo psíquico onde fragmentos de sensações,
restos fugidios de cena e sons emergem misturados e faltantes. E a memó-
ria – meio real, meio inventada – nos assombra nem tanto pelo que revela,
mas pelo que pode esconder. É o que acontece com a personagem Joana,
interpretada por Jeane Boudier, em Deslembro.
O primeiro filme da diretora Flávia Castro aborda um momento delicado
para um casal de militantes de esquerda, exilados na França, durante ditadura
militar. Pais de três filhos (Joana, a adolescente filha do primeiro casamento
da mãe, Paco, filho do padrasto chileno e o caçula Leon, filho de ambos), o

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casal se prepara para retornar ao Brasil, após a anistia. Inicialmente, Joana
resiste: fala francês com a mãe que a interpela em português, na tentativa de
afastar-se do país de origem onde o pai, desaparecido político, foi torturado e
morto por militares.
No Rio, onde a família se estabelece, rende-se ao idioma do país de origem
à medida que faz descobertas: amizades, namoro, sexo, cigarro, maconha.
Aproxima-se da avó paterna, uma mulher vivaz e afetiva. Falar com ela sobre
o pai se torna uma possibilidade para Joana, em contraste com o silêncio que
cerca o assunto na maioria das conversas com a mãe.
Aos poucos, em meio às dificuldades próprias da adolescência, a protago-
nista se permite resgatar recordações da infância. Na tarefa de construção a
posteriori, questiona-se: teria ela, aos 3 anos, denunciado, involuntariamen-
te, o próprio pai às autoridades que
A memória, composta tanto de
Grupo Unico
elementos Acesse: o@jornaiserevistas
PDFfantasiados,
reais quanto
assassinaram? Uma palavra errada
teria deflagrado a tragédia? É justa-
às vezes nos assombra não só pelo
mente a palavra (a possibilidade de
que revela, mas pelo que pode
verbalizar seus temores) que retira
esconder; é o que acontece com
Joana da imersão nas fantasias de
a personagem Joana, interpretada
culpa. Ao falar, ela é acolhida pela
pela jovem Jeane Boudier
avó e pela mãe.
Em Recordar, repetir e elaborar, de 1914, Freud, afirma que a dinâmica do es-
quecimento abarca dois processos psíquicos: um associado a impressões e ex-
periências, vinculado à exterioridade e outro vinculado a fantasias, impulsos
emocionais e pensamento, são entendidos por Freud como “atos puramente
internos”. Ainda que essa divisão seja mais didática do que prática, é possível
pensar que haja a predominância da subjetividade num grupo e a necessidade
da vinculação com o mundo externo no outro. Tão apropriado em tempos de
necessária reflexão sobre o esquecimento da truculência ainda recente no país
e o risco de trágicas repetições, Deslembro evoca o elo entre o acontecimento
passado (intuído e temido) e o momento presente, que permite a continuidade
do desenvolvimento psíquico, abrindo espaço para o acesso à própria história.

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