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chegar a produzir, para nós, formas interessantes de idealização da errância

como liberdade.
Estou pensando em algo ligado ao sonho americano de um espaço de
circulação infinito, assim como está encarnado por autores como Jack Kerouac
ou outros herdeiros de Walt Withman, embora Walt Withman como vocês
sabem seja um monumento fálico. Ele carregava o seu próprio dólmen fálico
nas costas. Digamos os autores da "beat generation", Kerouac principalmente,
um livro como On the Road, Pé na Estrada, assim, indo. O que é interessante
é ver como uma geração de neuróticos que se quiseram livres tomaram final­
mente o caminho do álcool ou da droga. Não acredito que a vivência da
droga para esta geração tenha sido uma libertação, como um recurso para
esquecer a função paterna reprimida, para esquecer a lógica mesma da dívida,
portanto a lógica mesma que acabaria impondo uma direção ao percurso.
Não era tanto isso a relação deles com o álcool e a droga. Justamente o
recurso tão fácil ao álcool e à droga não era nada mais do que uma metáfora
pobre do fato de que a sociedade tinha logrado uma abundância, na qual
a relação mesma ao objeto aparecia como uma relação fácil. Aliás este tipo
de sonho só era possível nestes anos, e talvez só fosse possível nos Estados
Unidos, ou na Europa, nos países capitalistas mais desenvolvidos. Os objetos
estavam aí, não só nas vitrines das lojas, mas inclusive caindo das margens
da produção. Então esta relação fácil com o objeto é também uma relação
forçada, pois o acesso aos objetos é o ideal fálico mesmo. Caindo fora ("drop­
ping out"), e especificamente fora do consumo como modelo da orientação
fálica das vidas, estes sujeitos — apesar do errar, de circular "livremente"
— reproduziam, na relação com a droga, o constrangimento mesmo do qual
queriam se soltar. Com a diferença que —ao catálogo dos objetos de consumo
— se substituía um objeto só.

O QUE SERIA UMA CLÍNICA ESTRUTURAL

Carlos Kessler: Queria voltar à questão da estrutura. Você lembrou que


Lacan é estruturalista. E você fala da estrutura psicótica, neurótica, etc. Como
uma clínica pode ser estrutural?
Calligaris: Sobre o estruturalismo de Lacan, efetivamente é impreciso
chamar Lacan de estruturalista, apesar do contexto cultural..., apesar do fato
que Lacan teria sido impossível ou diferente, sem Saussure, sem Lévi­Strauss,
por exemplo, portanto sem pensadores fundamentalmente estruturalistas.
Apesar disso, e como sempre, este tipo de classificação é imprecisa. Tanto
mais que a linguagem não é uma estrutura muito satisfatória, não responde
à expectativa, porque não é uma estrutura como as estruturas do parentesco,
não é uma estrutura fechada, por exemplo. Então, Lacaria _ejtruturalista,
mas estruturalista na medida em que não é historicista, até teve posições

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fortemente anti­historicistas e antigeniticistas. Posições que talvez tenham
sido reativas ao que era a psicanálise nos anos 50 e 60, e particularmente
a psicanálise americana.
Mas, para responder mais concretamente: a psicanálise é uma clínica
estrutural, num sentido muito forte da palavra. Ela não é uma clínica fenome­
nológica, que consideraria fenômenos para tirar uma conclusão nosográfica,
nemuma clínica fenomenológico­estrutural, que existe também. Por exemplo,
úrnãpsicodinâmica, na qual os fenômenos observados permitiriam de concluir
uma categoria nosográfica, e esta categoria seria uma estrutura. Uma clínica
assim também é uma clínica estrutural, mas num sentido fraco, porque é
uma clínica descritiva.
A psicanálise é uma clínica estrutural num sentido forte, na medida em
que o diagnóstico é diretamente na estrutura mesma do sujeito. A hipótese
é a seguinte: a partir do momento em que existe transferência, a fala de <í
um sujeito desdobra experimentalmente a sua estrutura, e nesta estrutura
o analista está incluído. Ele encontra­se na estrutura do sujeito e, a partir
desta posição na qual ele está colocado pela fala do paciente na transferência,
a partir daí, ele pode, eventualmente, formular uma idéia diagnostica.
O diagnóstico não é estrutural só porque a categoria nosográfica seria
uma estrutura. Ele é propriamente estrutural, porque é um diagnóstico na
estrutura, a partir da transferência e na transferência mesma. Não se trata
do fato de que o analista estaria olhando de um terceiro lugar, contemplando
a transferência que organiza a fala do sujeito, e desde este terceiro lugar
diria o que o sujeito é. Importa o lugar em que ele mesmo está colocado <
pela fala do paciente, na medida em que ele está incluído na estrutura mesma
do paciente pela transferência. Fazer um "diagnóstico, para um analista, é
o mesmo que reconhecer a posição em que ele é situado pela fala do paciente.
E por isso que o diagnóstico não é diferente que o trabalho normal de uma
cura. Fazer um diagnóstico e saber mais ou menos o que está acontecendo
na cura na qual o analista é tomado é a mesma coisa.
Mas para que tudo isso seja possível, é necessário alguma coisa, porque
é evidente que a tendência da fala comum não é que o sujeito que fala
desdobre a sua estrutura experimentalmente. A tendência é encontrar um
semelhante imaginário. A procura comum quando se fala é a procura de
uma tampa,"ou seja, que o discurso esteja entre dois semelhantes. Dois seme­
lhantes com uma cumplicidade na suposição comum da significação do que
eles estão falando. Trata­se de evitar que apareça, no enunciado produzido,
que o enunciado e o lugar do qual ele pode tirar sua significação eventual
estão separados. Para evitar isto — o que, é evidente, imediatamente implica
a manifestação do sujeito e não só do semelhante na fala — a maneira melhor
é encontrar um semelhante imaginário. É uma coisa muito fácil de entender,
podemos tomar exemplos no cotidiano. Você entra num táxi e fala com o
motorista: "Puxa que frio!". Você está está esperando que o motorista respon­
da: "É mesmo!". Estamos com dois semelhantes insatisfeitos com o frio em
Introdução a uma Clínica Diferencial das Psicoses I 31
Porto Alegre no fim do mês de agosto. Então está ótimo. Se o motorista
não responde, você vai procurar outro semelhante. Você vai pensar: "Puxa,
este motorista é mudo!" ou "Este motorista é extremamente perigoso, talvez
queira me assaltar". Tudo bem, isto daria o assaltado e o assaltante, que
formam outro casal de semelhantes. Mas se você não vê recursos porque,
por exemplo, os motoristas de Porto Alegre não assaltam, você vai ficar
com uma fala no ar: "Puxa, que frio!". Na melhor das hipóteses, o que
vai acontecer é que, na medida em que não encontrou um semelhante, não
encontrou uma tampa, você também não vai ficar numa posição de semelhante.
Eventualmente vai aparecer no que você falou, um efeito de sujeito. Por
exemplo, apesar do frio, você vai esquecer o seu casaco no lugar onde está
indo, produzir um ato falho, ou então vai fazer um sonho na noite posterior.
Enfim, qualquer tipo de efeito de formação do inconsciente. Formação de
um saber separado do enunciado que você produziu, mas que é mesmo o
saber do qual o enunciado tira a sua significação.
Agora, o mínimo esperado de uma situação analítica, é que ela não
seja a proposta de uma tampa para o discurso do paciente. A partir disso,
o enunciado do paciente está exposto a efeitos. Mas, mais do que isso, a
partir disso verifica­se uma separação entre o enunciado e o saber suposto
do qual este enunciado pode esperar alguma significação, a qual significação
é um efeito de sujeito produzido pela e na rede do saber.
Este saber se configura como uma certa estrutura, que nunca vamos
chegara descrever completamente. mas provida de um certo número de lugares
possíveis e organizados. É esta estrm~ura_e_organização que o sujeito desdobra
ejqjejjrnj^uu^ a s u ã l a la nãcTelícontra uma tampa. Para não
ser tampa, é preciso normalmente ser analista, é preciso ter deixado no vestiário
a sua própria subjetividade, isso é necessário para não responder de um
lugar imaginário.
O que se espera de um analista é no mínimo, então, que ele deixe sua
própria subjetividade no vestiário. Portanto, fundamentalmente, que tenha
feito uma análise. A partir daí, vai ser possível ao analista deixar­se colocar
nos lugares com os quais o paciente enquanto sujeito, e_não enquanto seme­
Jhante, está falando. Quer dizer nos lugares que estão sendo ativados pelos
efeitos de sujeito no discurso do pacientePar a retomar o nosso exemplo,
"Puxa que frio", uma vez evitada a tampa do semelhante, a quem se endereça?
Certamente não ao motorista, nem a qualquer outra figura imaginária, mas
a um lugar na estrutura que vai aparecendo desde que o enunciado vire
enunciação, ou seja, desde que esta frase produza um efeito de sujeito no
falante. A questão vai ser então: a quem se endereça o esquecimento do
casaco ou o sonho da noite depois? A partir da posição na qual o analista
y^ise_jejicomrar_cok2ç^do_pela fala do paciente, a partir dos lugares nos
quais^èle podeselmcontrar tomado, é possível um diagnóstico que seja estrutu­
ral, quéFdTzer, na estrutura mesmo. Cada vez que temos um problema de
diagnóstico diferencial é sempre interessante esquecer o fenomênico. Quando
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chega uma questão de diagnóstico diferencial, como "não sei, parece um
obsessivo, mas por outro lado, é verdade que ele se corta, faz coisas que
implicam diretamente no seu corpo...", eu acho que em qualquer caso de
diagnóstico diferencial deste tipo é preciso esquecer o fenoménico e considerar
principalmente o transferencial.
O que falei hoje foi só a respeito do que poderíamos dizer da posição
de um analista confrontado com um psicótico fora da crise, que nunca esteve
em crise, o analista sendo interpelado pela fala do paciente como um pedaço
do percurso da errância, não como um sujeito suposto ao saber.
Agora, há uma outra questão sobre neurose e psicose em que quero
insistir porque aqui pode haver um mal­entendido. Na neurose, existe alguma
coisa universal, esta amarragem fixa que chamamos de função paterna, que
é, do ponto de vista da significação que esta amarragem central distribui,
o universal fálico. Na psicose não há isto. Um universal positivo próprio
da psicose é extremamente problemático, porque, se não existe uma amarra­
gem central para todos, seguramente nem podemos imaginar que exista uma
significação que seja a mesma para todo sujeito psicótico. Quando falamos
que o psicótico tem que ter uma significação, apesar de parecer circular numa
metonimia e não ter uma amarragem metafórica do mesmo tipo que o neuró­
tico, o certo é que não existirá uma significação que seja a mesma — por
exemplo, a fálica — para todos os psicóticos. Nem outra que não a fálica,
porque, se houvesse uma significação que fosse a mesma para todo sujeito
psicótico, não haveriam psicóticos, pois seriam neuróticos. Se houvesse uma
significação para todos, isto implicaria uma amarragem que, por ser comum,
seria central.

Introdução a uma Clínica Diferencial das Psicoses I 33

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