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82 ^€DITORA

Teoria feminista
As (des)construções dos conceitos pelas mulheres

I n v e n t o n s vite n o s phrases39

Luce Irigaray

E n c o n t r e m a m u s a d e n t r o d e vocês. D e s e n t e r r e m a voz q u e
e s t á s o t e r r a d a e m v o c ê s , ISlã 0 a f a l s i f i q u e m , n ã o tentem
vendê-la p o r alguns a p l ^ j ^ p s o u p a r a t e r e m seus n o m e s
impressos.

Gloria Anzaldúa

M e u c a m i n h o n ã o p o d i a ser fácil. P r a m u l h e r p o b r e j a m a i s
foi fácil. E u s o u f e m i n i s t a d e s d e a a d o l e s c ê n c i a . D e s d e o d i a
cm que meu pai disse: "Quando você casai; vai obedecer ao
seu m a r i d o " , e eu respondi: " N ã o vou casar de jeito n e n h u m " .

Orides Fontela

Diferentemente de Beauvoir, que não quis (ou não pôde) em


sua época ousar aventurar-se no que significa a singularidade das

39. Inventemos depressa nossas frases.


PRECONCEITO CONTRA A "MULHER": Diferença, Poemas e Corpos 83

mulheres no mundo capitalista, falocêntrico e racista, considero que


o que melhor caracteriza a prática e a teoria feministas contempo-
râneas seja exatamente essa ousadia. E isso tem a ver com a afir-
mação da diferença, a abertura para a poesia, a literatura, a arte,
enfim, em nossas teorizações. E também abertura para o desejo^
não o desejo no sentido psicanalítico, de volta a uma situação pra»
zerosa vivida anteriormente, mas desejo que Guattari propõe
chamar "todas as formas de vontade de viver, vontade de criar,
vontade de amar-, vontade de inventar outra sociedade, outra per=
cepção do mundo, outros sistemas de valor" (Guattari e Roinik,
1993, p. 215). Desejo e política tecidos juntos, pois, de acordo com
Guattari, "o desejo permeia o campo social, tanto em práticas
imediatas, quanto em projetos muito ambiciosos" (1993, p. 215),
Imagino que quando Virginia Woolf concluiu seu livro dizendo que
a poesia de Judith, a irmã de Shakespeare, estava viva em nós,
entre as outras coisas que diz, ela quis dizer que precisamos conti-
nuar a escrever numa linguagem como poesia, uma linguagem que
desconstrua os conceitos que foram construídos em nossa socieda-
de. A descontrução passa a ser uma ferramenta-chave do feminismo
e, talyez por isso, em nossas aulas sobre a teoria feminista, as pessoas
geralmente estranhem a linguagem ao entrar em contato com
nossos textos. Essa linguagem nova não é uma linguagem comum
— no duplo sentido de que não é a linguagem do dia a dia nem
uma linguagem de todas as mulheres. Esta última, com a qual so-
nhamos no início do feminismo, era, na verdade, a .linguagem das
mulheres burguesas, e, como mostra Haraway, se tornou um pesa-
delo e o silenciamento de muitas mulheres.
Por isso, a contribuição das mulheres não brancas (women of
colou?•) em sua maioria lésbicas, nos Estados Unidos, na década dê
1980, foi inestimável nesse processo de desconstrução, ao criticarem
o racismo, a homofobia e o colonialismo nas produções cias mulhe-
res intelectuais brancas do Primeiro M u n d o (e de nós mesmas, fe-
ministas do Terceiro Mundo, que com estas últimas nos identificâ-
84 SANDRA AZERÊDO

vamos). Elas propuseram u m a escrita que contivesse u m a linguagem


nova, como poesia, u m a linguagem que se recusasse a se a d a p t a r
p u r a e simplesmente às regras da instituição universitária e, sobre-
tudo, que estivesse atenta às relações de p o d e r presentes nessa
instituição. Tal linguagem poderia funcionar como resistência nes-
sas relações, como propõe Anzaldúa em sua " C a r t a p a r a as mulhe-
res escritoras do terceiro m u n d o " , publicada na revista Estudos Fe-
ministas, em h o m e n a g e m aos vinte anos de publicação da coletânea
This bridge called my back, em 1981, que Anzaldúa coeditou com
Cherríe M o r a g a . C o m o escreve Anzaldúa,

...muitas de nós — mulheres de cor que dependuramos diplomas,


credenciais e livros publicados ao redor dos nossos pescoços, como
pérolas às quais nos agarramos desesperadamente — arriscamos
estar contribuindo, para a invisibilicjade de nossas irmãs escritoras.
"La vendida", a vendida.
(...) Como nos atrevemos a sair de nossas peles? Como nos atrevemos
a revelar a carne humana escondieja e sangrar vermelho como os
brancos? E preciso uma enorme energia e coragem para não aquies-
cer, para nãó se render a uma definição de feminismo que ainda
torna a maioria de nós invisíveis (Anzaldúa, 2000, p. 231).

E m sua introdução ao debate sobre o conceito de "consciência


mestiça" de Anzaldúa, que ela desenvolveu em seu livro Borderlands/
Lafrontera: The New mestiza, publicado em 1987, Costa e Ávila fazem
u m a excelente exposição sobre o "feminismo da diferença" nos
Estados Unidos. Elas m o s t r a m que o feminismo d a diferença fran-
cês, do qual faz parte Irigaray, "teve o efeito de intensificar o então
discurso dominante da diferença de gênero e de sua estrutura bi-
naria" nos Estados Unidos (Costa e Ávila, 2005, p. 692). D e acordo
com elas, foram as intervenções das feministas não brancas, como
Anzaldúa, que possibilitaram ao feminismo sair dessa estrutura
binária, que privilegiava a diferença sexual, e abrir espaços p a r a se
considerar as diferenças múltiplas entre as mulheres, dentro de u m a
PRECONCEITO CONTRA A "MULHER": Diferença, Poemas e Corpos 85

" a b o r d a g e m interseccional, a qual expandiu o conceito de gênero


e passou a formulá-lo c o m o parte do conjunto heterogêneo das
relações móveis, variáveis e t r a n s f o r m a d o r a s do c a m p o social"
(Costa e Ávila, 2005, p. 693).
E m 1974, Luce Irigaray publicou Speculum de 1'autrefemme [Es-
péculo da outra mulher). C o m o se sabe, o espéculo é aquele instrumen-
to introduzido na vagina d a mulher p a r a visualizar seu aparelho
genital. A idéia desse i m p o r t a n t e e polêmico livro é, segundo Iriga-
ray, "introduzir u m espéculo no livro p a r a alterar sua economia, de
m o d o a fazer fracassar a m o n t a g e m d a representação segundo os
parâmetros masculinos". Ao m e s m o tempo, como Irigaray escreve,

" A / u m a mulher jamais se encerra [re(n)ferme] num livro".

O livro é importante p o r q u e Irigaray escreve n u m a linguagem


nova, que tenta driblar a linguagem falocêntrica e fazer u m a per-
f o r m a n c e d a diferença, utilizando o espéculo, i n s t r u m e n t o de
m a n u t e n ç ã o do poder médico sobre o corpo das mulheres e do qual
as feministas americanas se apropriaram p a r a usá-lo e m seus grupos
de reflexão. E o livro é polêmico p o r q u e essa linguagem nova sobre
a diferença custou a Irigaray problemas c o m a instituição psicana-
lítica e c o m a universidade, que reagiram contra ela, através da
exclusão e d a marginalização. Acredito que esse acontecimento se
deva m e n o s ao privilégio d a diferença de gênero, de que falam
Costa e Ávila, do que ao entendimento da diferença no sentido mais
amplo de atravessar fronteiras. O u seja, a reação de hostilidade ao
livro de Irigaray se deve à sua linguagem. É essa linguagem que
assenta e visualiza fronteiras que a m e a ç a as instituições e da qual
elas precisam se defender.

Por isso, a universidade resiste a ela e o que vemos ê u m eerte


isolamento das teorizações feministas, como mostra Costa, se refe-
rindo às instituições acadêmicas nos Estados Unidos, onde a tseó=
digo diferente" das p r o d u ç õ e s de mulheres n a teoria feminista
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"passam desapercebidas ou são desconhecidas" (Costa, 2002, p.


65). Recentemente, n u m debate sobre os novos caminhos d a Uni-
versidade, após a palestra do professor Boaventura de Sousa Santos,
levantei a questão de se as produções feministas, que ele tinha
m e n c i o n a d o c o m o u m dos aspectos revolucionários do m u n d o
contemporâneo, deveriam p e r m a n e c e r apenas p o r conta das m u -
lheres feministas, e sua resposta, ao ler m i n h a pergunta, foi simples-
mente u m a interjeição — Humm!!!... — se referindo, provavelmen-
te, à impertinência de u m a pergunta como aquela n u m debate onde
havia questões mais "gerais" a serem discutidas.

Nesta última parte- cio livro, tratarei do que considero como


os principais conceitos criados pelas feministas p a r a d a r e m conta
do preconceito contra a mulher, ou melhor, veremos como a teori-
zação feminista desconstrói conceitos que servem de base p a r a a
m a n u t e n ç ã o do preconceito — gênero, identidade, diferença e
experiência — transformando-os em seus próprios conceitos e m
sua luta. Veremos como eles remeter^ pps aos outros e que é im-
portante m a n t e r essa inter-relação enjré eles.
C o m e ç a r e m o s com o conceito dp gênero, que vem p e r t u r b a r
as certezas da ciência sobre sexo e sexualidade. Nos estudos femi-
nistas, esse conceito foi inicialmente proposto p o r Gayle Rubin,
n u m artigo publicado em 1975, n u m a coletânea organizada p o r
R a y n a Reiter, c o m o título Toward an antropology of women {Por uma
antropologia de mulheres). O livro foi publicado em Nova York, costa
leste dos Estados Unidos. N a m e s m a época, em 1974, em Stanford,
na costa oeste, outra coletânea importante é publicada: Woman,
culture & society {Mulher, cultura e sociedade), organizada p o r Michelle
Rosaldo e Louise Lamphere. Vários artigos nessa última coletânea
tratam de como a oposição público/privado sustenta o preconcei-
to contra a mulher.
A grande importância do trabalho de Rubin foi definir o con-
ceito cie "sistema cie sexo/gênero", que ela considera como sendo
PRECONCEITO CONTRA A "MULHER": Diferença, Poemas e Corpos 87

u m c o n j u n t o de arranjos [presente em toda sociedade] através do


qual a m a t é r i a - p r i m a biológica d o sexo e procriaçao h u m a n a é
m o d e l a d a pela intervenção social h u m a n a e satisfeita de u m a f o r m a
convencional, n ã o importa q u ã o bizarras algumas dessas convenções
possam ser (Rubin, 1975, p. 165).

A expressão "identidade de gênero", como nos mostra H a r a -


way em seu artigo escrito especificamente sobre a palavra "gênero"
foi proposta pelo psicanalista Robert Stoller no Congresso Interna-
cional de Psicanálise, em Estocolmo, em 1963, a partir dos dados
de um projeto de pesquisa constituído em 1958 no Centro Médico
para o Estudo de Intersexuais e Transexuais, da Universidade da
Califórnia, em Los Angeles (UCLA). O conceito de identidade de
gênero vinculava o sexo à biologia (hormônios, sistema nervoso etc.)
e o gênero à cultura, considerando o trabalho desta última sobre a
primeira. Haraway tem alertado para o perigo de se cair em uma
nova dicotomia, e, além disso, de se manter "o discurso de identi-
dade de gênero como sendo intrínseco às ficções de coerência he-
terossexual", como argumenta Butler, perdendo-se todo o potencial
que o conceito abre para construir narrativas "para todo u m con-
junto de gêneros não coerentes" (Haraway, 2004b, p. 219). Assim
como Haraway, Buüer tem mostrado como a relação sexo e gênero
é complexa e que gênero não é u m simples atributo que vem subs-
tituir sexo. Para elas, gênero não é um substantivo, mas u m verbo,
como coloca Butler,

gênero n ã o é u m substantivo, mas t a m b é m n ã o é u m a série de atribu-


tos vagos, pois vimos que o efeito substanciai do gênero é porforrna«
tivamente produzido e obrigado pelas práticas reguladoras d a cee«
rência de gênero. Assim, n o discurso h e r d a d o d a m e t a í M e a d a
substância, o gênero prova ser performativQ — isto é, constituindo
a identidade que se p r o p õ e q u e ele seja. Neste sentido, gênero é
sempre u m ato, e m b o r a n ã o u m ato feito por ura sujeito cjue possa
ser considerado como preexistindo o ato (Butler, 1990, p, 24-25),
88 SANDRA AZERÊDO

Pode-se perceber a virada que o conceito de gênero possibili-


tou ao ser pensado, n ã o como u m simples atributo, ligado ao sexo,
que, hoje em dia, pode ser visto nos primeiros meses de vida do
bebê através do ultrassom — "olha o pintão do Pedro!", c o m o
disse entusiasmado o médico p a r a o casal — m a s como sendo
"performativamente produzido" por práticas reguladoras — inclu-
sive o comentário entusiasmado do médico — p e r m a n e n t e m e n t e
reiteradas.
Essa visão do gênero como sendo desagarrado do sexo nos
conduz diretamente ao segundo conceito — identidade. Realmen-
te, p a r a u m a visão sem crítica, o sexo pode ser considerado como
o atributo mais conspícuo da identidade da pessoa, de q u e m ela é,
p a r a usarmos a definição operacional de Antônio C i a m p a , que
considera a identidade como sendo resposta à pergunta " Q u e m
sou eu?" A gente logô "vê" que u m a pessoa, é mulher ou h o m e m .
Assim como vê se ela é b r a n c a ou negjra, ou pobre ou rica, e m b o r a
h a j a muitas pessoas que "passem" pejo que "não são", ou melhor,
que n ã o sejam o que as pessoas as veem como sendo — o travesti
e as pessoas que são vistas como brancas, mas, n a realidade são
mestiças. A própria noção de "passar P o r " {passing, em inglês, que
é u m a noção importantíssima nos Estados Unidos principalmente
em relação à raça) 40 j á indica a instabilidade do conceito de identi-
dade e sua p e r m a n e n t e ligação com o conceito de diferença.

40. P o d e m o s considerar passing como um acontecimento através do qual as pessoas


n e g a m seu p e r t e n c i m e n t o a u n i g r u p o d o m i n a d o , g e r a l m e n t e dc n ã o brancos, e se identifi-
c a m com o g r u p o d o m i n a n t e , de brancos, c o m base e m sua a p a r ê n c i a semelhante às das
pessoas desse grupo. Esse a c o n t e c i m e n t o se dá d i f e r e n t e m e n t e no Brasil e nos Estados U n i -
dos, pelo fato de a definição dc raça e cor no Brasil se apoiar na a p a r ê n c i a (fenótipo) e, e m
g r a n d e m e d i d a , n a classe social d a pessoa, e nos Estados U n i d o s se apoiar no " s a n g u e "
(genótipo). U m a lei estadual n o r t e - a m e r i c a n a , de 1970, p o r exemplo, definiu q u e e r a m
negras as pessoas c o m 1 / 3 2 de sangue negro, m e s m o q u e essas pessoas tivessem a a p a r ê n c i a
de brancas ( O m i e W i n a n t , 1994, p. 53). Passing é, p o r t a n t o , u m m o d o de lidar c o m a dife-
rença e com a visualização e assentamento de fronteiras. E m seu trabalho "Passing, queering:
nella lLarsen's psychoanalytic challenge", Butler analisa c o m o u m a p e r s o n a g e m do r o m a n -
ce Passing, de Larsen, "passa nüo a p e n a s p o r q u e tem pele clara, mas p o r q u e ela se recusa a
PRECONCEITO CONTRA A "MULHER": Diferença, Poemas e Corpos 89

Trinh M i n h - h a considera que a diferença seja o que "solapa a


própria idéia de identidade, diferindo infinitamente as camadas de
totalidade que f o r m a m o E u " (Trinh, 1988, p. 72), Segundo ela,
argumentando n a m e s m a linha de Foucault, a diferença n ã o deve
ser usada c o m o " u m instrumento de segregação p a r a exercer o
poder na base de essências raciais e sexuais". A diferença, n a verda-
de, é " u m instrumento de criatividade p a r a questionar múltiplas
formas de repressão e d o m i n a ç ã o " (Trinh, 1988, p, 73), A diferença,
portanto, n ã o separa dois grupos — u m d o m i n a d o e u m dominan-
te: mulheres/homens, pretos/brancos, homossexuais/heterossexuais
— mas ela assenta fronteiras. C o m o diz, poeticamente, Trinh;

No momento em que a nativa (insider) dá um passo para fora, ela não


é mais u m a mera nativa {insider). Ela necessariamente visualiza &
partir de fora ao mesmo tempo que olha para fora a partir de dentro.
Não sendo bem a mesma, nem bem outra, ela fica nesse limiar in-
determinado onde ela constantemente oscila entre o dentro e o fora.
(...) Ela é, em outras palavras, essa inapropriada outra ou mesma
que se movimenta com pelo menos dois gestos: o de afirmar "Eu
sou como você", enquanto persiste em sua diferença e o de não
' ignorar "Eu sou diferente" enquanto desmantela toda definição de
alteridade feita até então (Trinh, 1988, p. 76).

E m b o r a n ã o possamos prescindir da n o ç ã o de identidade,


especialmente q u a n d o estamos tratando de movimentos políticos
de luta contra o preconceito, essa noção deve ser p@rmanentemen=
te desconstruída, o que, c o m o a r g u m e n t a Butler, "estabelece como
políticos os próprios termos através dos quais ela é articulada"
(Butler, 1990, p. 148).
MoufTe vai mais além e a r g u m e n t a que "a§ condições que
regem a constituição de toda identidade silo a afirmação de u m a

introduzir sua negritude n a conversa, e assim retira a m a r c a ConvorsHCional q u e p o d e r i a


contrariar a pressuposição h e g e m ô n i c a de q u e ela seria b r a n c a " (Butler, 1993j p. i 11),
90 SANDRA AZERÊDO

diferença" (Mouffe, 1999b, p. 269). Utilizando a idéia de "exterior


constitutivo", inspirada no trabalho de Derrida, Mouffe argumen-
ta que "é impossível distinguir completamente o interior do exterior
e toda identidade se desestabiliza irremediavelmente por seu 'exte-
rior'" (Mouffe, 1999b, p. 271). Ela considera que

U m a vez que tenha sido compreendido que toda identidade se es-


tabelece por relação e que a condição de existência de toda identi-
dade é a afirmação de u m a diferença, a determinação de algum
"outro", e que este outro funciona como seu "exterior", é possível
compreender o surgimento do antagonismo (Mouffe, 1999b, p, 269).

Mouffe argument-a-que, diferentemente de uma visão liberal,


é preciso reconhecer esse antagonismo e não negar "que toda de-
finição de um 'nós' implica a delimitação de uma 'fronteira' e a
designação de u m 'eles'. Essa definição de um 'nós' sempre acon-
tece, portanto, em um contexto de diversidade e conflito" (Mouffe,
1999a, p. 42-43). E é com esse antagonismo que construímos a
democracia radical que Mouffe propõe, ou seja, não com identida-
des estáveis, mas com a diferença, através do assentamento e visua-
lização de fronteiras.
Finalmente, trataremos da experiência, na qual se apoia am-
plamente o preconceito. O que é paradoxal em relação ao precon-
ceito é que seu sentido de ser "um conceito ou opinião formados
antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos
Fatos" sempre se apoia cie alguma forma na autoridade da expe-
riência, como vimos em Espinosa. Realmente, a experiência pare-
ce nos mostrar que as pessoas contra as quais temos preconceito,
isto é, contra as quais formamos idéias preconcebidas, sem conhe-
cimentos dos fatos, são pessoas que ocupam posições de exclusão
na sociedade. São pessoas geralmente desvalorizadas, dominadas,
que sofrem todo tipo de discriminação, com as quais não nos iden-
tificamos ou, pelo menos, não gostaríamos de nos identificar. São,
enfim, o outrem de nós, "bestas sem linguagem". O que é parado-
PRECONCEITO CONTRA A "MULHER": Diferença, Poemas e Corpos 91

xal nisso está na forma como concebemos a experiência, como algo


incontestável porque apoiada em fatos e, mais importante, porque
vivida diretamente pelo sujeito, o que lhe dá a autoridade de afirmar
com certeza sobre a existência das pessoas, colocando-as em cate-
gorias — m u l h e r / h o m e m , homossexual/heterossexual, p r e t o /
branco etc.
No entanto, como mostra Joan Scott, experiência não é um
termo inocente e está amarrada ao conceito de identidade, além de
ter um papel importante na escrita da história da diferença. O ar-
gumento central de Scott, que é historiadora, é que tomar a expe-
riência como evidência torna o fato da diferença também, evidente,
"ao invés de uma maneira de explorar como se estabelece a diferen-
ça, como ela opera, como e de que forma ela constitui sujeitos que
veem e agem no mundo" (Scott, 1999, p. 26). Não basta, portanto,
apenas afirmar a diferença ou torná-la evidente através da experiên-
cia, pois, como escreve Scott, esclarecendo seu argumento,

T o r n a r visível a experiência de u m g r u p o diferente expõe a existên-


cia de mecanismos repressores, mas n ã o seu f u n c i o n a m e n t o interno
/ ou sua lógica; sabemos q u e a diferença existe, mas n ã o a entendemos
como constituída relacionalmente. Para tanto, precisamos dar con-
ta dos processos históricos que, através do discurso, posicionam su-
jeitos e p r o d u z e m suas experiências. Não são os indivíduos que têm expe-
riência, mas os sujeitos é que são constituídos através da experiência. A
experiência, de acordo com essa definição, torna-se, não & origem
de nossa explicação, n â o a evidência autorizada (porque vista ou
sentida) q u e f u n d a m e n t a o conhecimento, mas sim aquilo que bus-
camos explicar, aquilo sobre o qual se p r o d u z conhecimento. Pensar
a experiência dessa f o r m a é historická-la, assim como as identidade»
que ela p r o d u z (Scott, 1999, p. 27, grifos meus),

Mas, como podemos historicizar a experiâncÍÉt? Gome a pré=


pria Scott pergunta, de modo a "escrever sobre a identidade sem
essenciá-la" (Scott, 1999, p. 40)? Sua resposta nos interessa sobre-
92 SANDRA AZERÊDO

maneira porque ela se refere ao conceito de diferença tal como o


temos estudado ao longo deste trabalho, isto é, ela traz a necessi-
dade de nos perguntarmos sobre o acontecimento lingüístico que
é a experiência, que constitui o sujeito em sua diferença. Como ela
escreve,

Sujeitos são constituídos discursivamente, a experiência é um acon-


tecimento lingüístico (não acontece fora de significados estabelecidos),
mas não está confinada a uma ordem fixa de significados. Já que o
discurso é, por definição, compartilhado, a experiência é coletiva
assim como individual. Experiência é uma história do sujeito. A
linguagem é o local onde a história é encenada. A explicação histó-
rica não pode, portanto, separar as cjuas (Scott, 1999, p. 42).41

Para Scott, a quesjão passa, então, $ ser a de descobrir a forma


de analisar a linguagem, valorizando a literatura, indo em busca
do literário, pois esse tipo de análise favorece o entendimento do
processo de mudança. É que um elemento importante nesse tipo
de análise é a indecibilidade — o abandono da necessidade de re-
solução entre duas ou múltiplas possibj|idades que se abrem com o
acontecimento. Scott chama isso de u|láa experiência de "conver-
são", de u m momento de "epifania", depois do qual a pessoa passa
a ver de forma diferente, com clareza (que não deve ser confundida
com transparência, pelo contrário). Clarice Lispector gosta de usar
"epifania" p a r a falar dos acontecimentos em sua escrita. Em
"Amor", por exemplo, Ana, uma dona de casa de classe média, um
dia, depois de ver um cego mascando chicletes, vai parar no Jardim
Botânico e, ao atravessar os portões, se depara com

um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas


dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas,

41. Fiz u m a p e q u e n a alteração n a t r a d u ç ã o , consultando o original e m Feminists theorize


thepolitical (Feministas teorizam o político), a coletânea i m p o r t a n t e o r g a n i z a d a p o r Butler e Scott
e publicada e m 1992 (New York a n d L o n d o n : Routledge).
PRECONCEITO CONTRA A "MULHER": Diferença, Poemas e Corpos 93

o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse u m a


entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante. (...)
A moral do jardim era outra. ... E por u m instante a vida sadia que
levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver
(Lispector, 1994, p. 36-37).

Mas acredito que esse "literário" de que fala Scott esteja pre=
sente em toda arte. N a verdade, a arte é feita desses momentos de
epifania, de "tornar visível", como diz Paul Klee.
O belíssimo ensaio de Haquira Osakabe, "Esse pudor exceg*
sivo...", no número especial de Cadernos Pagu, "corporificando gê-
nero", organizado por Adriana Piscitelli e Maria Filomena Grego-
ri, indica a necessidade de abrirmos mão da busca de resolução,
especialmente quando estamos tratando da experiência de gênero.
Através da leitura dos poemas de seu amigo Álvaro Pinto Sobrinho,
numa tentativa de "imprimir com mais força as tênues pegadas que
involuntariamente ele deixou apenas delineadas com seus versos",
Osakabe, ainda que "constrangido", procura quebrar o silêncio que
se fez em torno do amigo depois de sua morte. Não há espaço aqui
para seguirmos as pegadas, mas a própria forma de escrita de
Osakabe se faz nessa linha de historicizar a experiência, mostrando
que a "superposição particular dos gêneros" nos comoventes poemas
constitui o "jeito particularmente indireto de ser" do amigo. E m
nenhum momento Osakabe tenta resolver a questão do masculino
e feminino nos poemas, fazendo, assim, uma análise da experiência
nos termos propostos por Scott. É uma análise eemo essa — b&»
seada na amizade — que estou pretendendo fazer em minha pes-
quisa com o Grupo de Mulheres na Delegacia.
Os exemplos de inspiração para essa análise são incontáveis e
considero dois filmes —Fale com ela, de Pedro Almodóvar, e tüllBUÁ
I e II, de Quentin Tarantino — especialmente importantes. Sfio
ambos filmes polêmicos justamente porque os diretores tfim a co=
ragem de se arriscar no assentamento e visualização de fronteiras,
tratando a mulher como o lugar da diferença e da singularidade.
94 SANDRA AZERÊDO

Em ambos os filmes, o corpo da mulher passa por um período


longo de coma, mas com sinais óbvios de vida — elas respiravam
e se alimentavam, e, além disso, em Fale com ela, a moça menstrua-
va e em Kill Bill 1, ela cuspia na cara das pessoas. Enquanto Taran-
tino mostra como esse corpo vivo pode ser tratado como mero
objeto, com violência — a violência cio enfermeiro, que alugava o
corpo da moça para os homens fazerem sexo —, Almodóvar mos-
tra como esse corpo vivo pode ser tratado como sendo parte da
ordem do discurso e, portanto, como sendo preciso continuar a
falar com ela — através da conversa sobre temas de que ela gosta-
va, da massagem, do cuidado, de colocá-la para tomar banho de
sol e até para conversárxom a toureira, que estava vivendo uma
experiência semelhante de estar em coma. Esta era a luta do rapaz/
enfermeiro. Falar com a moça, com o corpo — vivo — da moça
através da relação amorosa, que, no filme, assim como no filme
mudo clentro do filme, não se desvincqja da relação sexual.
Por isso, não considero como sendo violência a relação sexual
que o rapaz tem com a moça. Especialmente porque Almodóvar
faz a cena da relação sexual evocar ess^ indecibilidade que conduz
à epifania. Além disso, no número assustador de casos de abuso e
estupro cie mulheres e crianças que aparecem na Delegacia de
Mulheres, os homens, assim como o enfermeiro em Kill Bill /, não
estão absolutamente preocupados em cuidar; eles não estão pen-
sando na dimensão da vida, e não pensam no bem-estar das crian-
ças e das mulheres. Pelo contrário, eles estão buscando apenas o
próprio prazer, usando as mulheres ou as crianças como puro obje-
to descartável sem a menor consideração sobre as conseqüências
daquele ato violento na vida dessas mulheres e crianças. Embora,
diferentemente da moça no filme de Almodóvar, todas elas falem e
peçam que eles não façam aquilo, eles não falam com elas, eles não
as escutam. Eles apenas impõem sua própria vontade através da
força, assim como fez o personagem Bill ao responder com um tiro
na cabeça da moça à sua fala de que o bebê que ela estava espe-
PRECONCEITO CONTRA A "MULHER": Diferença, Poemas e Corpos 95

r a n d o era seu. Por isso t a m b é m considero como resistência sua


trajetória de vingança contra os que covardemente fizeram u m
massacre p a r a impedir sua autonomia.
E m síntese, p a r a mim, os filmes Fale com ela e Kill Bill tratam
cio desejo e são u m a intervenção n o sentido de m u d a r situações de
dominação, através da responsabilidade pelo assentamento e visua-
lização de fronteiras. U m a ação que exige muita criatividade e
muita coragem, pois trata-se de visualizar o que geralmente n&o
queremos ver. Almodóvar e Tarantino n ã o estão preocupados ape-
nas com a moral, com o visível, c o m o que está escrito n a lei, que,
e m Fale com Ela, p r e n d e e isola o rapaz, que acaba se suicidando e
que, certamente, n u m filme que n ã o se abrisse p a r a a fabulação
como o de Tarantino 4 2 , prenderia e mataria a m o ç a que m a t a tanta
gente — sozinha, apenas c o m a espada, que ela exigiu ser feita
especialmente p a r a ela, e às vezes com as próprias mitos -•-- p a r a
afirmar sua diferença. Almodóvar e Tarantino têm a coragem de
irem mais além e nos colocarem u m a questão ligada à dimensão
ética da vida. N ã o é de f o r m a alguma fácil responder a esta questão,
p o r é m é preciso que ela seja colocada. Mais u m a vez, são as ques-
tões, mais do que as respostas, o que mais interessa.
Os quatro conceitos que acabamos de estudar são f u n d a m e n -
tais p a r a se fazer u m a análise d a violência, n a qual desemboca o
preconceito contra a mulher. Passaremos agora a tratar dessa ques-
tão, fechando essa parte do trabalho sobre a desconstrução dos
conceitos.
A questão d a cumplicidade das mulheres c o m sua própria
opressão, de que fala Beauvoir, aparece, sobretudo, n a discussão
sobre o problema do vitimismo, levantado por Gregori em 86U 68=
tudo antropológico sobre a violência de gênero n o S% 0.òi Ivítúhtítf d@

42. O t e r m o " f a b u l a ç ã o " é usado p o r Deleuze, t o m a n d o - o d o cineasta canadense Pici'-


re Perrault, que, segundo Deleuze, a r g u m e n t a q u e "é preciso p e g a r íüguétll e m 'flagrante
delito de f a b u l a r ' " p a r a se f o r m a r u m discurso de minoria, q u e resista no "discurso do s e n h o r
ou d o colonizador" (Deleuze, 1998, p. 157).
96 SANDRA AZERÊDO

São Paulo, que atendia mulheres que viviam situações de violência.


Gregori sugere que q u a n d o a mulher se prende a este discurso vi-
timista, ela não se implica em sua história e coloca o outro sempre
como o responsável, criando u m a dicotomia: vitima versus algoz.
Para esta autora,

O pior não é ser vítima (passiva) diante de um infortúnio; é agir para


reiterar uma situação que provoca danos físicos e psicológicos. O
difícil para esse tipo de vítima é exatamente o fato de que ela coo-
pera na sua produção como não sujeito. Isto é, ela ajuda a criar
aquele lugar no qual o prazer, a proteção ou o amparo se realizam
desde que se ponha como vítima (Gregori, 1993, p. 184).

Gregori mostra como a posição de vítima é construída discur-


sivamente através da queixa. N a queixa, h á u m a narrativa que
expõe fatos como prova de que a pessoa que está n a r r a n d o está
isenta de culpa, A mulher quer acreditar e fazer acreditar que n ã o
tem n e n h u m a responsabilidade n a situação.

O lado perverso da queixa consiste nessa exterioridade de que se


nutre e que provoca, num certo sentidp, o aprisionamento do outro,
daquele que escuta. O melhor termó é çfilaçamento. (...) A queixa
é eficaz quando eloqüente, quando capaz de enlaçar o ouvinte,
transformando-o em cúmplice (Gregori, 1993, p. 191).

Essa é u m a questão complexa, que, em nossa pesquisa n a


Delegacia, estamos tentando entender, contrapondo ao conceito de
queixa o conceito de d e m a n d a social, proposto p o r André Lévy,
que a entende como tendo dois registros — u m registro econômico,
que se refere a u m objeto concreto, e u m registro psicológico, do
desejo, que tem que ser interpretado, pois n e m m e s m o a mulher
conhece o seu sentido. A queixa p o d e ser assimilada à d e m a n d a de
objeto, a u m a encomenda, que exige a submissão de q u e m a ouve,
sem que se considere o registro psicológico, do desejo de q u e m a
formula. A queixa se caracteriza pela ausência de compromisso da
PRECONCEITO CONTRA A "MULHER": Diferença, Poemas e Corpos 97

mulher com a situação na qual está — de fato — envolvida. Ao se


queixar, a mulher coloca a responsabilidade — ou, o que é mais
problemático, a culpa •— do que está vivendo apenas no outro, sem
ter condições de entender seu próprio desejo. Ela se coloca apenas
no papel de vítima. A própria Delegacia reforça esta noção de ví-
tima, pois, sendo uma instituição policial, está equipada para roce*
ber das mulheres o registro de u m a denúncia contra o agressor (o
"indiciado"), que é geralmente narrada em tom de queixa — elas
são literalmente consideradas "vítimas", Trabalhar com a noçâe
de queixa tem sido problemático para nós no Setor de Psicologia
na Delegacia. Se, por um lado, não podemos evitar a queixa nem
ignorá-la por estarmos trabalhando dentro da Delegacia, por outro
lado, nada podemos fazer com a queixa no sentido de possibilitar-
mos alguma mudança na situação a partir das próprias mulheres,
a não ser transformar a queixa em demanda social. Acreditamos
que esse conceito nos possibilite retomar o sentido de experiência
proposto por Scott, na medida em que busca entender a experiên-
cia de violência não como algo subjetivo, vivido por um sujeito
pronto, mas sendo forjada historicamente no âmbito de relações de
podei: que constituem o sujeito discursivamente, sujeito este que é
ao mesmo tempo sujeitado e tem agência.
Alessandra Araújo, em sua dissertação de mestrado na UFMG,
levanta importantes questões ao conceito de vitimismo de Gregori
a partir de seu estudo de casais que comparecem a o J E C R I M (Jui-
zado Especial Criminal) de Belo Horizonte. Tomando o trabalho de
Gregori num contexto mais amplo do que o que havíamos conside-
rado em nossa pesquisa até então, Araújo retoma a citação de
Gregori que reproduzimos acima, colocando-a no contexto de que
ela considera ser o argumento central de Gregori, isto ê. o problema
da violência entre homem e mulher ser um problema de comunica»
ção entre o casal que se dá numa "cena", que, apoiando-se nos
Fragmentos de um discurso amoroso, de Rolancl Barthei, Gregori define
como sendo, para dois sujeitos que brigam, "o exercício de um di»
98 SANDRA AZERÊDO

reito, a p r á t i c a d e u m a l i n g u a g e m d a q u a l eles são c o p r o p r i e t á r i o s "


(Gregori, 1993, p. 178). A c i t a ç ã o d e G r e g o r i q u e A r a ú j o utiliza p a r a
s u s t e n t a r seu a r g u m e n t o se a m p l i a e n t ã o e g a n h a a l g u m a s ê n f a s e s :

O leitor pode estar se perguntando: será que, no limite, os parceiros


n ã o se l a n ç a m nessas situações violentas porque gostam? Será que
vitimas t a m b é m são os maridos n a m e d i d a e m que, ao que se indica,
as mulheres e s p e r a m deles, e m d e t e r m i n a d a s circunstâncias, os
gestos e manifestações de agressividade? Todas essas e outras indagações
podem ser feitas. C o n t u d o , é o corpo d a mulher que sofre maiores
danos, é nela que o m e d o se instala. E, paradoxalmente, é ela que
vai se aprisionando ao criar sua p r ó p r i a vitimização. O pior n ã o é
ser vítima (passiva) diante de u m infortúnio; é agir p a r a reiterar u m a
situação que provoca danos físicos e psicológicos, O difícil p a r a este
tipo de vítima é exatamente o fato de que ela coopera n a sua pro-
dução como u m n ã o sujeito. Isto é, ela ajuda a criar aquele lugar no qual
o prazer, a proteção ou o amparo se realizam desde que se ponha como vítima.
Esse é o "buraco negro" da violência contra a mulher: são situações em que a
mulher se produz — e não é apenas produzida — como não sujeito (Gregori,
apuei Araújo, 2005, p. 73. A ênfase é de Araújo).

Araújo considera que, " m e s m o reconhecendo que é sobre o


c o r p o d a m u l h e r q u e a v i o l ê n c i a é e x e r c i d a e o m e d o se i n s t a l a ,
G r e g o r i ( 1 9 9 3 a ) a i n d a d e f e n d e u m a s u p o s t a c u m p l i c i d a d e e n t r e os
p a r c e i r o s " ( A r a ú j o , 2 0 0 5 , p. 73), c o n s i d e r a n d o , a l é m disso, os h o -
m e n s t a m b é m c o m o s e n d o v í t i m a s . P a r a A r a ú j o , n ã o se p o d e

n e g a r que h o m e n s g o z a m de privilégios sociais f r e q ü e n t e m e n t e


negados às mulheres e, portanto, aceitar que as cenas de violência
simplesmente f a ç a m parte de u m jogo cie comunicação e / o u de u m
jogo erótico entre pares é desconsiderar toda a historicidade da cate-
goria gênero que evidencia a conversão de diferenças em desigual-
dades (Araújo, 2005, p. 73).

A r a ú j o n ã o n e g a q u e as m u l h e r e s a t u e m n a s r e l a ç õ e s d e vio-
lência n e m que a d i c o t o m i a v í t i m a / a l g o z seja " e x t r e m a m e n t e p e -
PRECONCEITO CONTRA A "MULHER": Diferença, Poemas e Corpos 99

rigosa". O que ela crítica em Gregori é seu foco apenas em "um


dos pares da relação, no caso a mulher (que parece tomar como
uma categoria homogênea)", correndo "o risco de redimir o outro
da responsabilidade que também lhe cabe. Isto, além de injusto, é
bastante arriscado" (Araújo, 2005, p. 73). Finalmente, Araújo ques-
tiona o fato de Gregori tomar o confronto entre a mulher e o homem
como mera provocação, pois ele pode estar caracterizando uma
disputa pela reconfiguração de determinado campo de pocler'1,3,
Como ela coloca

Por que, nestas situações, somente as mulheres deveriam se calar? Para


se "preservarem"? O silêncio nem sempre lhes garante a proteção,
Assim, diferente do que afirma Gregori, quando não se calam, em vez
de contribuírem na própria produção como não sujeitos, estas mulhe-
res podem estar justamente reivindicando o contrário, Aquilo que a
autora chama de "provocação" talvez seja u m questionamento ou um
posicionamento contrário: atitudes estas típicas de sujeitos, A violência
aparece, então, como u m a tentativa de impedir a emergência de
significados e sentidos que ameacem a hegemonia masculina. Impor-
tante ressaltar que os casos analisados por Gregori podem ser inter-
, pretados de outra maneira: mais do que exigir que seus companheiros
sejam provedores, talvez aquelas mulheres estejam tentando renegociar
os contratos conjugai e familiar (Araújo, 2005, p. 73-74),

Araújo, então, está tentando compreender como a experiência


da violência constitui essas mulheres não apenas como não sujeitos,
como argumenta Gregori, mas também como sujeitos com agência,
com "atitudes tipicamente de sujeito". Isso amplia nosso entendi-
mento das situações de violência em que desemboca o preconceito.

43. M e v e m à cabeça o relato de u m a das mulheres elo g r u p e , q u e estava êcmifariande


a v o n t a d e do marido, que disse a ela: " E u vou te s a n g r a r " , O mstis eurifJiíu é q u e esta m u l h e r
e r a u m a profissional b e m sucedida — c o m curso superior @ u m excelente emprege, que a
p e r m i t i a arcar c o m todas as despesas d a família, jA q u e o mtirlclo TO0 trabalhava n e m fora
n e m d e n t r o de casa. Infelizmente n ã o p o d e m o s a i n d a d a r n o m e s íts mulheres do G r u p o p o r
u m a q u e s t ã o de ética n a pesquisa.
100 SANDRA AZERÊDO

A violência contra mulheres se dá nessa tentativa de delimita-


ção de fronteiras que não podem ser atravessadas sob pena de algum
tipo de punição, que pode ser até a morte. Haraway relata que u m
dos primeiros instrumentos encontrados pela arqueologia foram as
cintas de segurar bebês, que estavam ali espalhadas entre machados
e lanças. Esse acontecimento pode estar nos falando da diferença,
de fronteiras entre mulheres e homens que faziam uso desses obje-
tos, para tornar a questão das coletoras e dos caçadores, do privado
e do público, como irresolvida, sem possibilidades de ser resolvida
numa origem distante. Será que vale a pena resolvê-la? O que tem
resultado cie nossas tentativas de resolução, que têm gerado tanta
violência?
Foi pensando em todas essas questões que criamos o Grupo
cie Mulheres na Delegacia, que teve sua primeira sessão no dia 20
de abril de 2001. Comemoramos o primeiro aniversário do grupo
com u m bolo de maçã, distribuindo a receita entre as pessoas que
compareceram à festa na Delegacia. N a receita contamos o que
simboliza o bolo e também nossa idéia dp dar u m nome ao Grupo,
no seguinte texto:

Junto com essa receita, contamos uma história diferente da história


de Branca de Neve e os Sete Anões. Ern nossa história, a bruxa não
é m á e horrorosa, nem oferece uma maçã envenenada para Branca
de Neve dormir até que chegue o Príncipe. Não, em nossa história
buscamos amizade 44 entre mulheres bruxas, mulheres negras, mulhe-
res brancas, mulheres mestiças, mulheres mães, mulheres filhas,
mulheres índias, mulheres estrangeiras, mulheres nativas, mulheres
prostitutas, mulheres empregadas domésticas, mulheres do campo,
mulheres cia cidade, mulheres donas de casa, mulheres pobres, mu-
lheres ricas, mulheres homossexuais, mulheres heterossexuais, mu-
lheres professoras, mulheres estudantes, mulheres policiais, mulheres

44. Originalmente usamos o t e r m o solidariedade, p o r é m , no processo de t r a n s f o r m a ç ã o


por que está passando nossa pesquisa, esse é u m dos conceitos que está sendo revisto, ou
melhor, desconstruido, pai a d a r lugar ao conceito de amizade.
PRECONCEITO CONTRA A "MULHER": Diferença, Poemas e Corpos 101

artistas — enfim, entre todas as mulheres do mundo — valorizando


nossas diferenças para lutarmos contra a violência que muitas de
nós sofremos pelo simples fato de sermos mulheres, Em nossa histó-
ria, ao invés de usar maçãs, seja para atacar outras mulheres, como
a bruxa da história fez, seja para seduzir o homem, como fez Eva,
as mulheres fazem um delicioso bolo com as maçãs para comemo-
rarem juntas o aniversário do Grupo, que passa a se chamar Grupo
de Mulheres As Faladeiras, em homenagem à escultura Los Bavardes,
de Camille Claudel.

A idéia do n o m e do g r u p o tinha surgido n a sessão do dia 8 de


março, dia internacional da mulher, q u a n d o h o m e n a g e a m o s Ca-
mille Claudel p o r ela ter feito esculturas que mostram mulheres
j u n t a s em situações de aproximação. Les Bavardes è talvez sua escul-
tura mais conhecida. São quatro mulheres sentadas, conversando,
u m a delas falando alguma coisa que as outras ouvem atentamente,
as cabeças próximas, n u m a atitude de cumplicidade. A tradução
do título em português é "As Bisbilhoteiras", que n ã o consideramos
adequado, devido ao sentido pejorativo relacionado à intriga e fo-
foca. "Faladeira", p o r outro lado, é u m a palavra que só existe no
feminino em Português {Novo Aurélio, Século XXI) — n ã o existe "fa-
ladeiro" em nossa língua. E o sentido dessa palavra, de "mulher
que fala muito e fala c o m indiscrição" se aproxima b e m mais do
sentido de "bavarde" em Francês, que é "a pessoa que conta com
indiscrição" e "fala q u a n d o devia se calar" {Petit Robert 1).
N o dia da festa de primeiro aniversário expusemos t a m b é m o
cartaz que o grupo produziu em três sessões consecutivas — u m a
colagem sobre cartolina feita com figuras recortadas cie várias re-
vistas — p a r a convidarmos outras mulheres p a r a participarem do
grupo, Q u e r í a m o s que a figura dissesse o que era o grupo p a r a nós,
A primeira figura escolhida p o r u m a das mulheres foi u m a e n o r m e
boca de h o m e m gritando: "Cala a boca, incompetente!" Essa é a
figura que fica b e m no canto superior esquerdo, iniciando a m e n -
sagem de nosso cartaz. Q u a n d o viu a figura, a mulher comentou!
102 SANDRA AZERÊDO

"É assim que ele fala p r a mim. É só ele que pode falar". Q u a n d o
estávamos terminando o cartaz, pedimos a essa mulher que fizesse
u m a m a r c a de beijo de batom na parte do cartaz em que dávamos
as boas vinclas às mulheres, mas ela se recusou a fazer isso, alegan-
do que achava seus lábios grossos demais, E logo se dispôs a em-
prestar seu batom p a r a que alguma de nós — da equipe da Uni-
versidade — deixássemos a nossa marca, com nossos lábios de
pessoas que não e r a m negras como ela. As fronteiras que aparecem
no grupo, portanto, n ã o dizem respeito apenas à diferença de gê-
nero, mas de raça e classe, j á que a grande maioria das mulheres
que p r o c u r a m a Delegacia são mulheres de classe baixa.

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