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O cálculo econômico em

uma sociedade socialista e


suas “soluções”
Apresentando o problema

Mises distingue três tipos distintos de estimativas de valor que todo


agente ou empresário pode realiza quando atua: avaliações primárias,
avaliações de consumo e avaliações de produção. Enquanto as avaliações
primárias e avaliações de consumo são realizadas diretamente pelo
agente, ou seja, por meio de um cálculo in natura que exige apenas que
cada agente compare, na sua escala subjetiva de valores, o lugar ocupado
por diferentes fins e meios de consumo necessários para os alcançar, as
avaliações de produção, pelo contrário, são muito mais complexas,
sobretudo numa estrutura produtiva como a moderna, que é composta
por uma rede muito complexa de diferentes etapas produtivas,
interligadas umas às outras de forma muito complicada e que duram
períodos de tempo diferentes. De fato, todas as decisões relativas aos
fatores de produção são complicadas, que existem estimativas que só
podem ser realizadas quando neles se inclui a informação proveniente dos
preços monetários que são resultado do próprio processo do mercado.
Apenas dessa forma é possível eliminar (graças à função empresarial) os
desajustes que existam na estrutura produtiva, estabelecendo-se assim a
tendência de coordenação que possibilita a vida social.
O coração deste processo é constituído pelas estimativas de perdas e
ganhos que os empresários fazem constantemente quando atuam no
mercado dos fatores de produção. De fato, sempre que encontram uma
oportunidade de lucro, os empresários agem para aproveitá-la, adquirindo
fatores de produção a um preço de mercado/custo monetário que,
segundo as suas estimativas, será inferior ao preço de venda que se venha
a obter pelo bem de consumo depois de tê-lo produzido. As perdas, pelo
contrário, indicam que foi cometido um erro no momento de atuação e
que foram destinados recursos escassos à uma produção de determinados
serviços e bens de consumo quando existiam outros que eram "mais
urgentes" ou importantes para serem produzidos (aqueles que geram
ganhos e lucros). Sem moeda, sem propriedade privada e sem liberdade
para o exercício da função empresarial não é possível que se gere,
descubra e transmita constantemente esta informação, nem que se
formem preços de mercado, os quais constituem o elemento essencial do
cálculo econômico.
O cálculo na perspectiva da teoria do conhecimento

O estabelecimento de uma economia socialista implica na eliminação


de verdadeiros preços e moeda. Mises dedica grande parte do seu artigo a
criticar essa proposta. As circunstâncias pouco se alteram se os socialistas
permitissem a existência de "preços" paramétricos, fixados pela
autoridade de controle, e "unidades monetárias" que não são mais do que
unidades de conta, pois desta forma, voltaríamos ao problema da
impossibilidade de criar e transmitir informação nova num contexto em
que a função empresarial não é livre.
O problema colocado pelo socialismo é estritamente econômico: surge
quando existem muitos fins e meios que competem entre si e quando o
conhecimento em relação a eles se encontra disperso na mente de
inúmeros seres humanos e está sendo ex novo, sendo que não é sequer
possível conhecer todas as possibilidades e alternativas existentes nem a
intensidade relativa com que se pretende perseguir cada uma delas.
Quando se pretende resolver um problema de maximização, o engenheiro
assume sempre que existem alternativas no mercado e preços de
equilíbrio, e que ambos são conhecidos. Mas o problema econômico é
muito distinto e consiste precisamente em descobrir quais são as
alternativas de fins e meios, bem como os preços de mercado no futuro.
Ou seja, o problema está em obter a informação necessária para visar e
resolver o problema técnico. O cálculo econômico é uma estimativa
possível graças à informação de que o processo empresarial cria e gera
constantemente, e se este processo é impossibilitado pela força, a
informação não surge e o cálculo econômico se torna impossível.

Primeira tentativa socialista: o cálculo econômico em espécie

O modelo de equilíbrio que Marx considera que pode e deve ser


coercitivamente imposto pelo órgão diretor, não é preciso utilizar a
moeda, uma vez que se assume que toda informação está dada e que não
existe qualquer mudança.
Independente da impossibilidade de a informação necessária estar
disponível para o órgão de coerção central, o problema das propostas que
preveem realizar o cálculo econômico in natura ou em espécie consiste
simplesmente em ser impossível realizar qualquer cálculo, seja soma ou
subtração, entre quantidades heterogêneas. Por exemplo, o órgão diretor
decide entregar, em troca por uma determinada máquina, 40 porcos, 5
tonéis de farinha, uma tonelada de manteiga e 200 ovos, como poderá
perceber se não está entregando, do ponto de vista das suas próprias
valorações, mais do que deveria? Ou se destinasse esses recursos a outras
linhas de atividade, seria possível que o órgão de controle obtivesse fins
de maior valor para si próprio? Eles não tinham sido capazes de apreender
o insolúvel problema de caráter subjetivo, disperso e inarticulável do
conhecimento empresarial, mas não há qualquer desculpa para cair no
erro grosseiro de pensar que poderiam ser realizados cálculos racionais
sem utilizar uma unidade monetária como denominador comum.
Existem diversos bens e serviços de consumo que não podem ser
divididos por igual entre todos e cada um dos cidadãos, sendo um absurdo
pensar num sistema de distribuição que não utilize unidades monetárias.
O cerne do argumento essencial pelo qual o cálculo econômico sem
utilização de preços de mercado e moeda é impossível é focado no caráter
subjetivo, disperso e inarticulável do conhecimento prático humano.

Segunda tentativa socialista: o cálculo em horas de trabalho

A solução proposta pelos teóricos do socialismo (como o próprio Marx)


consiste resumidamente em que o órgão diretor siga a pista do número de
horas trabalhadas por cada trabalhador. Posteriormente, cada trabalhador
receberia do órgão de controle um determinado número de cupons,
correspondente ao número de horas trabalhadas, que poderia ser
utilizado para trocar por uma pré-determinada quantidade de bens e
serviços de consumo produzidos.
De acordo com Mises, o cálculo econômico em horas de trabalho
apresenta dois problemas específicos insolúveis:
1) mesmo no âmbito do quadro da própria teoria objetiva do valor-
trabalho, não se pode aplicar o critério proposto em realação a todos os
processos produtivos nos quais sejam utilizados recursos da natureza que
não sejam reproduzíveis. De fato, é evidente que não será possível a
imputação de qualquer número de horas de trabalho a qualquer recurso
natural (por exemplo, o carvão) que, embora permita alcançar fins, seja
economicamente escasso e não possa ser manufaturado utilizando horas
de trabalho. Ou seja, por não se utilizar trabalho para produzir esses
recursos, não é possível considerar um número de horas de trabalho para
realizar o necessário cálculo econômico que exigiria a tomada de decisões
não arbitrárias em relação aos mesmos.
2) a hora de trabalho não é uma quantidade uniforme e homogênea. Não
existe um "fator trabalho", mas inúmeras categorias e classes distintas de
trabalho que, à falta do denominador comum que constituem os preços
monetários estabelecidos no mercado de cada tipo de trabalho, não
podem ser somadas ou subtraídas devido ao seu caráter essencialmente
heterogêneo. É uma questão que não decorre apenas do fato da eficiência
laboral variar de uns trabalhadores para outros, e até no mesmo
trabalhador de acordo com o momento, as circunstâncias e condições nos
quais desenvolva o seu trabalho, mas do fato das classes de serviços que o
fator trabalho proporcionam serem tão variadas e se modificarem de
forma tão contínua que constituem tipos de serviços heterogêneos. (este
problema é o mesmo do cálculo econômico em espécie)
Os marxistas tentaram combater este problema reduzindo as
diferentes classes de trabalho ao chamado "trabalho simples socialmente
necessário". Porém, esta redução das horas dos diferentes tipos/classes
de trabalho às horas de trabalho mais simples só é possível quando existe
um processo de mercado no qual ambas sejam trocadas a um preço
determinado pelos diferentes agentes econômicos. À falta deste processo
de mercado, qualquer juízo comparativo de diferentes tipos de mercado
será arbitrário, o que implicará obrigatoriamente no desaparecimento do
cálculo econômico.

Terceira tentativa: o cálculo em unidades de utilidade

Com base nos argumentos antecipados por Mises, diversos autores


socialistas consideraram que o problema poderia ser resolvido utilizando
como unidades de cálculo as "unidades de utilidade". A utilidade é um
conceito estritamente subjetivo, que resulta da apreciação realizada por
cada indivíduo sobre uma das unidades de meio de que dispõe no
contexto de cara ação concreta na qual se vê envolvido. Não é possível
medir a utilidade, apenas comparar a que advenha de diferentes cursos da
ação quando da tomada de decisão. Da mesma forma, não é possível
observar a utilidade nos diferentes indivíduos (uma vez que isso exigiria
que fôssemos capazes de nos introduzirmos nas mentes das pessoas e nos
fundirmos com suas personalidades, valorações e experiências). Assim, a
utilidade não pode ser observada, sentida ou medida por nenhum órgão
central de coerção.
Nem sequer o homem que age "mede" a sua utilidade quando da
tomada de decisão. Pelo contrário, realiza apenas comparações entre a
utilidade que acredita que as diferentes alternativas lhe proporcionarão.
Os preços de mercado, por outro lado, não expressam equivalências nem
medem utilidades, são simplesmente relações históricas de troca que não
fazem mais do que demonstrar que as partes que intervieram nas trocas
efetuaram valorações subjetivas diferentes e contratantes, tornando
assim trocas possíveis.
Concluindo, a tentativa de utilizar a utilidade como unidade para o
cálculo econômico se constitui como um problema insolúvel, não só
porque a utilidade não pode ser observada, mas também porque não
existe unidade ou denominador comum de utilidade intersubjetiva que
possa ser medida e utilizado na prática do cálculo econômico.

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