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Todo dia um pesadelo, todo dia um sentimento, todo dia um questionamento, todo dia um novo.

“Em Iridonia, vivem os fortes...” isso era o que ele dizia. Aquele homem misterioso, que nunca falara seu nome, que
nunca dissera de onde via. Dizia ele toda vez que mandava as duas apóstolas à superfície. Naquele lugar, nem mesmo os
moradores, originados de lá sobreviviam a superfície por algo mais que alguns minutos. Seus ventos poderosos faziam os
constantes cacos de areia, vitrificados pelo calor extremo, voarem como se fossem penas, ora apenas voando, ora as vezes
ferindo, ora muito de certo matando. As duas foram criadas juntas, Ya’Ksha Marvellus e M’riana Athrius, embora tivessem uma
relação estranha. Como irmãs, até determinada idade, nunca foram inimigas, apesar de todas as suas desavenças. Viviam os três
em uma caverna próxima a um topo de cordilheira.

M’riana era Zabrak, com seus pequenos chifres saindo de suas têmporas tanto quanto de cada lado da testa. Muito
maior que sua irmã, ela sempre tomava vantagem em qualquer competição que exigisse diretamente o uso da força ou do
tamanho, algo de que se vangloriava. Já Ya’Ksha, a irmã menor, não era menor apenas por ser muito mais nova, mas também
porque era humana e ainda por cima prematura e cega. A pequena nascera cega graças a uma deformidade em seus olhos. Os
mesmos, olhados de fora, eram ressecados, opacos, sem brilho. Do centro uma massa branca se espalhava para todos os lados,
como um rio tortuoso, cuja área exterior era um estranho azul. Frágil, pequena, incompleta, Ya’Ksha sempre sofrera nas mãos
de seu tutor e de sua irmã mais velha, mesmo que não a considerasse tal.
Seu tutor, entretanto, escondia um intenso poder. Era capaz de estranhamente mover as coisas com a mente, além de
certas vezes saber coisas que não tinha como saber, como quem roubou a última fatia de carne do vaso, ou onde estava
escondida a culpada.

Enquanto cresceram, nunca tiveram muitas desavenças, embora não se dessem exatamente bem. Quando ficaram
velhas o suficiente para segurar um pedaço de pau como arma e atacar uma a outra, seu tutor as mandou pela primeira vez
a superfície. Disse-lhes: “Tolas! Acham mesmo que são fortes o suficiente? Acham que o mundo vai ser tão bondoso
quanto os aconchegos dessa caverna? Acham que as pessoas serão tão carinhosas com vocês quanto eu fui? Subam até o
topo da montanha. Sentem lá e fiquem quietas. Hoje não terá almoço. Vocês irão para lá e só voltarão quando o sol não
mais criar sombras em vocês”. A contragosto e culpando uma a outra, as duas irmãs subiram. Só a subida já era
excruciante, aranhando seus rostos múltiplas vezes. M’riana, que possuía o dom da visão, ia na frente, guiando o caminho,
fazendo sinal para a irmã não cair, sinais estes sempre traduzidos em insultos. Ya’Ksha subia as escadarias engatinhando,
com medo, apreensiva. Embora não pudesse enxergar, quando apoiou a mão fora do degrau da montanha e escorregou, a
falta do chão de apoio lhe causou terror. Era um mundo que ela não conhecia, não podia conhecer, não podia sentir. Teve
medo de altura sem mesmo saber o que altura significava. Chegando ao topo da montanha, com o ar mais leve e rarefeito,
com os ventos cortantes, que embora fortes, não pareciam tão terrificantes quanto seu tutor falara, mas de longe o pior era
o calor. Mesmo tão alto na montanha, sendo um planeta que ficava muito próximo da estrela, o calor era notadamente
muito mais forte que dentro da caverna.
M’riana era mais vigorosa e resistente, podendo ficar sentada, ereta, meditando sobre seu erro, sobre seu
problema, já Ya’Ksha encolhida em posição fetal, não conseguia nem colocar um centímetro de sua pele para fora de suas
vestes sem ser açoitada bruscamente pelo vento. Ali ficaram horas. À medida que o tempo passava, até M’riana ia se
encolhendo devido às ocasionais feridas causadas pelo vento. O entardecer que nunca chegava e sempre parecia estar mais
longe era algo que Ya’Ksha nem podia imaginar como se parecia. Enquanto sua irmã ainda se segurava para se manter à
medida que o sol baixava, Ya’Ksha já estava deitada inerte, talvez viva, talvez morta. M’riana se protegendo do vento,
cobrindo os olhos e a boca, não viu quando o sol havia se posto e deixou o tempo passar além do necessário. Quando o
tutor chegou ao topo da montanha, viu as duas, uma deitada, provavelmente morta e uma sentada se segurando a vida.
Acudiu M’riana e arrastou Ya’Ksha pelo chão pelos degraus até a caverna.
Enquanto cuidava dos ferimentos de M’riana, explicou a ela que a partir daquele dia ela teria de subir todo dia a
partir do almoço para aprender a sobreviver e deixar de ser fracos. Contra as expectativas de todos, Ya’Ksha acordou
chorando, com um susto, como se tivesse tendo um pesadelo. Naquele momento a fogueira dentro da caverna apagou e
apenas um grito desesperado, pedindo socorro fora ouvido. No surto, Ya’Ksha levantara e arrastara-se para a parede da
caverna, recuando perante o nada. Seu mestre, mais surpreso do que enfurecido, lhe bateu como punição por ela não ter
aguentado com a força de sua irmã. Entre desculpas, soluços e gritos ela passou a noite.
A partir daquele momento, todo dia era um motivo diferente. Fraqueza, incompetência, lágrimas, reclamações,
rebeldias, tudo era uma razão para espancamento. Para não ter uma das refeições, para ter que passar mais horas no topo
da montanha. Como era a que mais sofria, Ya’Ksha acabava se rebelando cada vez mais, mas infelizmente nunca tinha
força para revidar com a devida capacidade. Com o tempo algumas lições vieram: “O mundo não será bondoso com você,
portanto não seja bondoso com o mundo”, “O mundo só será bom com você quando quiser algo, nunca confie em
ninguém”, “Só faça com os outros o dobro do que pretendem fazer com você”. Todo dia acordava gritando a noite e
apanhava, nutria ódio e aprendia um novo sarcasmo, todo dia se perguntava o porquê de viver daquela forma, todo dia
nutria um terrível ódio pelos dois, todo dia o sol nascia novamente.
Anos a fio, sobrevivendo. Sempre apanhando por sobreviver, sempre apanhando por se rebelar, sempre
apanhando por tentar se fortalecer. Ao passar do tempo, cresceu, não crescera tanto quanto poderia, embora tenha se
desenvolvido fisicamente e seu corpo tenha tomado os inícios da feição adulta, ela não ficou muito maior. Se usasse
roupas grossas ou vestes maiores, nessa idade, não parecia nem mesmo adulta, podendo passar-se por uma criança.
Embora seu tamanho pudesse se tornar uma vantagem para pessoas comuns, para aqueles dois que a conheciam desde
pequena e sabiam de suas capacidades, não se seguravam, não a tratavam como menor.
Com o tempo, os treinos de sobrevivência passaram a ser treinos de concentração. Os treinos de concentração,
passaram a ser treinos de combate e os treinos de combate passaram a ser duelos, muitas vezes seguidos até que uma das
duas estivesse à beira da morte, quase sempre Ya’Ksha.
Apenas após de começarem os treinos viram o quão seu mestre era poderoso. Ele nunca caia quando desafiado,
era intocável e mesmo que pudessem derrota-lo desarmado, caso colaborassem, algo que nunca acontecia, a arma dele era
muito mais letal que outra. A primeira vez que ele a sacou, não foi um treino, não foi um acaso, não foi um reflexo. Na
presença das duas, elas apenas viam a arma pendurada em sua cintura, até que um dia, cansado das frequentes rebeldias,
Ya’Ksha apenas sentiu a ameaça de seu mestre, ouviu um zumbido poderosíssimo e um calor intenso próximo a seu rosto.
Não chegava nem a encostar nela e ela não podia ver seu brilho, mas também não tina dúvida de que um toque daquela
arma era muito mais perigoso que as horas que passavam no topo da montanha.
Como um surto, dentre pesadelos e pesadelos, Ya’Ksha conseguia mentalizar a caverna. Sabia a qual distâncias
ficavam suas paredes, ouvia o respirar de seu mestre e de sua irmã, ouvia o fim do crepitar da fogueira na madrugada,
aquela sempre acesa pouco antes do jantar. Com o tempo, concentrou-se nessa sensação, concentrou-se nessa energia,
concentrou-se nesse acontecimento. A cada madrugada, não dormia, treinava. Apanhava no dia seguinte por estar
sonolenta, mesmo que agora não estivesse mais sofrendo pelos eventuais pesadelos da madrugada, já que não dormia. A
cada dia que treinava, se tornava mais chata durante os duelos. Espancada por ganhar, espancada por perder, percebeu que
o problema não era incompetência, já que mesmo que perdesse a maioria das lutas, ganhava outras e apanhava do mesmo
jeito.
Um dia, porém, ela notou algo estranho. Enquanto sentia cada pedacinho daquela caverna, sentia suas pedras
soltas, suas armas no canto, sua garrafa d’água. Ela pensou em estender esse sentimento até a garrafa, imaginou sua mão
seguindo até a mesma e com um gesto de sua verdadeira mão, conseguiu senti-la, mesmo estando longe. Estranhando a
sensação, imaginou como se puxasse a garrafa para si, até que o toque do couro frio e a textura de pelos em volta estava
tão nítida que não era mais dúvida, a garrafa estava lá.
Mais noites, mais dias, mais castigos, mais treinos, mais sobrevivência, mais vitória, mais dor, mais madrugadas
varadas a frio, cada vez maior uma curiosidade iminente perante aquela nova capacidade, aquele novo poder. Cada vez
mais ironicamente sorridente, cada vez mais sarcástica, cada vez mais empregando, minuciosamente sua capacidade nos
duelos, desviando unhas dos golpes de M’riana, aparando as pancadas de seu mestre pouco antes de sua pele, aprendendo
que mesmo que só façam com ela, o dobro do que ela planeja fazer com eles, só o farão se souberem o que ela quer fazer.
Seu sorriso virou uma máscara, suas intenções ocultas. Até o primeiro dia que conseguiu dormir em paz depois de tantos
anos de sofrimento.
Mais um dia a frente, mais um treino, mais um duelo. M’riana já não suportava o sorriso dela a aquela altura,
considerando-o um tipo de zombaria. Aquela ironia iminente, aquele tom de voz baixo e irônico, em meio a um tom
rachado de tantos anos que passou gritando. A decisão dela fora tomada. Daquele dia ela não passaria.
Após horas no topo da montanha, desceram muito antes do sol se pôr, pois era hora do combate. Tranquila,
sorridente e irônica, Ya’Ksha firmava sua pose como alguém indefeso, com as mãos nas costas e o rosto de queixo baixo,
esbanjando os olhos que como um reflexo, fixavam sua frente, com aquele olhar branco e morto. M’riana sempre fora
muito violenta, começando sempre de frente, usando seu tamanho como vantagem, atacando de cima. Ya’Ksha, que agora
tinha perfeita ciência de seus ataques, inclinava o corpo para um lado, para o outro, dobrava-se, girava os pés e caminhava
em volta dela tal como um predador brinca com sua presa. A Zabrak então, já agressiva por natureza, fez algo que a
pequena cega não esperava, sacou uma lâmina de sua cintura e partiu para o ataque. A intenção dela era clara, seus gestos
mais decisivos, seus golpes cada vez mais mortais. Após alguns momentos desviando por pouco, Ya’Ksha decidiu
responder a altura. Com um movimento brusco, jogou sua mão para o lado e puxou a arma de seu tutor tal como fazia
com sua garrafa e seus pertences. Seu tutor, surpreso pela ação, não teve nem tempo de reagir. Antes que M’riana tivesse
chance de desviar, a luz brotou do cabo e perfurou-a na altura do pescoço, cauterizando quase que imediatamente. Com o
momentum de seu movimento a mesma rolou adiante e caiu da montanha, para uma morte ainda mais certa. Brandindo a
arma de seu mestre em mãos, desligando-a e girando-a no ar como um brinquedo. Ya’Ksha o encarou e conseguiu daquele
momento sentir seu ódio, seu desprezo, tudo que sentia em relação a ela esse tempo todo, amplificado pelo sentimento de
perda que sentia em conjunto. Entretanto, não fora o ódio do mestre que ganhou aquele embate. Embora o ódio dele
fosse descomunal, ele era mais cego que ela para o monstro que estava criando. Como um surto de ódio, ele avançou nela
a aquela distância. Um arrepio a percorreu do fundo do estômago até a ponta dos dedos e negando a se segurar, ela
apontou aquele poder para seu mestre e conseguiu ouvir o som estalado do ar a sua frente, sentiu o cheiro da carne de seu
mestre queimando e também sentiu o ódio dele se transformar em medo, pavor, no mesmo sentimento que ela tinha antes,
o de que mesmo sabendo que nenhuma ajuda viria, desesperadamente clamava por ajuda. A cada momento que aquele
sentimento crescia em seu antigo tutor, nela crescia um êxtase estranho. Sentir a dor e o pânico de sua vítima lhe causou
um intenso e demasiado prazer. Como um surto estranho, ele canalizou sua dor para tentar para-la, mas a mesma dor lhe
fez apenas mirar cegamente o poder, que demoliu a caverna atrás dele, deixando ambos presos do lado de fora da
superfície e ainda mais, sem acesso a lugar nenhum.
Quando aquela energia cessou, seu mestre já não era mais, inerte ao chão, liberando aquele cheiro pútrido de carne
queimada. Presa do lado de fora, roubou as vestes de seu mestre para tentar se proteger das tempestades, rolando o corpo
do mesmo penhasco abaixo logo em seguida. Algumas horas se seguiram até que ela sentiu um pulso, uma batida, uma
sensação no fundo de sua mente, até que uma coisa começou a descer dos céus, parando bem a sua frente. Da mesma,
uma ponte veio até a plataforma natural onde ela estava, descendo algum tipo de humanoide com uma veste estranha,
dura. Ela, atônita, confusa, desesperada e alerta, levantou-se e sacou a arma de seu antigo tutor, ao primeiro sinal de
aproximação. Tentando soar amigável, o soldado andou devagar até ela com uma mão em seu rifle e outra estendida a
frente, como quem se aproxima de um animal acuado, um terrível erro. Mutilado pelos primeiros brandires do sabre,
decapitado pelos segundos, só teve tempo de clamar por reforços, que vieram imediatamente. Da nave, descera, três iguais
a ele já portando suas armas e mirando em posição de ataque, outro erro. Reconhecendo apenas o calor vindo daquele
estranho armamento, instintivamente ergueu o sabre como defesa, jogando o disparo para o lado. Ao notar que conseguia,
não teve outro pensamento, avançou contra os mesmos, defletindo os disparos, atacando sem pena, matando os dois
primeiros que a subestimaram. Uma outra presença cresceu, maior e mais ameaçadora. Uma voz apenas gritou “Já chega!”.
Um impulso, uma pancada a jogou para trás, colidindo-a com a parede da caverna, ela sentindo essa nova
presença, não sentiu ameaça, não se sentiu amedrontada. Aquele poder que sentiu de dentro da nave se aproximou e a
única coisa que ela conseguiu sentir fora admiração. Quando a presença desceu, aquela respiração mecânica e pesada criou
uma aura de presença no local e o som de outro sabre ligando foi o suficiente para ela entender que era outro, mais um,
mas não qualquer um. Embora não soubesse quem era, sabia que aquele poderia leva-la a um caminho de muito mais
poder do que ela já havia imaginado, um caminho de grandeza muito maior do que a miséria que foram seus primeiros dias
de vida, um caminho no qual ela seria capaz de se superar e não deixar que ninguém mais a tratasse daquele jeito, porque
sentiriam nela ou o que ela sentia de seu antigo mestre ou o que ela estava sentindo agora: admiração.
Estatelada, ela abaixou sua arma, desligou-a e prostrou-se ao chão, com as mãos acima da cabeça. Ouviu a arma
daquela presença desligar, seguido pelas seguintes palavras: “Venha, criança... Você ainda tem muito o que aprender...”

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