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O EVANGELHO DE MATEUS

1. Teologia de Mateus.

Para descobrir o pensamento de conjunto de Mateus, o mais simples é começar pelo


final. Efetivamente, os últimos versículos do seu evangelho constituem um resumo do essencial
do seu projeto, fazendo-nos descobrir quem é Jesus para ele e qual é essa igreja na qual vive.
São as últimas palavras de Jesus aos seus discípulos. Mas não são um adeus! Ao contrário, o
ressuscitado afirma que está presente na sua igreja até o fim do mundo, porque é o Senhor:
"Então Jesus se aproximou e falou: 'Toda a autoridade foi dada a mim no céu e sobre a terra.
Portanto, vão e façam com que todos os povos se tornem meus discípulos, batizando-os em
nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, e ensinando-os a observar tudo o que ordenei a
vocês. Eis que eu estarei com vocês todos os dias, até o fim do mundo`" (Mt 28, 18-20).
Jesus glorificado convoca aos discípulos no monte. Assim é como se nos apresenta no
começo a igreja: como reunião dos "convocados" e como um povo em marcha; tem que deixar
Jerusalém, que era até então o centro geográfico da fé, o lugar da presença de Deus, para ir à
"Galiléia dos gentios", como era chamada. Uma igreja definida antes de tudo como uma "igreja
para o mundo": essa é a sua missão, como Jesus vai explicar a seguir.
Mas já se adivinha que essa igreja não é um grupo "selvagem", e sim uma instituição.
Têm que reunir-se com Jesus no monte. Esse monte, em Mateus, é muito mais teológico do que
geográfico: é o monte da transfiguração onde Moisés e Elias vêm conversar com Jesus; a
montanha do sermão onde Jesus dá a sua lei nova, explicitando a lei de Moisés no sentido de
uma exigência interior mais intensa; é finalmente o monte do Sinai onde Moisés transmitiu
antigamente ao povo dos convocados a lei de Deus. Aqui, como em todo o evangelho, Jesus se
apresenta como o novo Moisés, que dá a sua lei ao novo povo de Deus.
Mas Jesus é mais do que Moisés; os discípulos "ajoelharam-se" diante dele. Trata-se do
verbo que ainda designa na igreja a adoração. Essa igreja que adora ao seu Senhor no culto
continua sendo, porém, uma igreja de pecadores: "alguns duvidaram". Já no mesmo instante
em que lhe confessavam como Messias Filho de Deus, Pedro lhe estava tentando (Mt 16,23).

Jesus se revela. "Então Jesus se aproximou e falou: 'Toda a autoridade foi dada a mim
no céu e sobre a terra`" (Mt 28,18). Jesus se revela, portanto como o FILHO DO HOMEM (Dn
7,14), esse personagem misterioso, símbolo celestial do povo perseguido, que recebe sobre as
nuvens o poder reservado a Deus, o do juízo. No momento supremo da sua vida, quando
finalmente, porque sabe que está já condenado, Jesus aceita diante do sinédrio dizer quem é,
declara: "De agora em diante, vocês verão o Filho do Homem sentado à direita do Todo-
poderoso, e vindo sobre as nuvens do céu" (Mt 26,64). Jesus se apresenta agora como o Senhor
glorificado estabelecido desde esses momentos como juiz soberano sobre o mundo inteiro. Por
isso precisamente pode "vir sobre eles", recolhendo deste modo um título do Deus do fim dos
tempos: "Aquele que vem".

Jesus envia em missão. "Portanto, vão e façam com que todos os povos...". Por ser o
Senhor, Jesus pode enviar à sua igreja como missionária. Mas, qual é essa igreja? É esse
pequeno grupo de discípulos da manhã de páscoa? Não é bem mais uma comunidade cristã, lá
por volta dos anos 80-90, em um cantinho da Galiléia, que celebra ao seu Senhor no culto e
descobre nele a sua missão? Efetivamente, essa igreja está já muito estruturada, com uma
organização sacramental (uma igreja que "batiza") e uma teologia muito elaborada (o dogma
da Trindade está expresso em uma fórmula lapidar que lembra o nosso "Glória ao Pai..."). Uma
fórmula semelhante, na qual as três pessoas estão tão claramente colocadas no mesmo plano,
é única no NT, e foi preciso uma longa pesquisa na igreja para poder expressá-la; sabemos que
no começo somente se batizava "no nome de Jesus" e as cartas de Paulo nos fazem perceber o
processo lento da fé na Trindade. A comunidade que aqui celebra o batismo sabe que
precisamos entrar na relação íntima com esse Deus que é Três.
Essa igreja tem uma preocupação doutrinal: os Onze têm que "ensinar", "fazer
discípulos", "ensinar a observar tudo o que Jesus ordenou". Mais do que os outros evangelistas,
Mateus está preocupado com uma "pastoral da inteligência": é preciso "compreender" o que se
crê, é preciso ser inteligentes na fé. E quem não aceitar toda essa fé e a prática moral que se
deriva dela, se manifesta assim que está "excomungado", que já não está na comunhão da
igreja (Mt 18,15-18).
Finalmente, esta missão é universal: "Façam com que todos os povos se tornem meus
discípulos". É maravilhoso escutar assim, em lábios do ressuscitado, na manhã da páscoa, o
que os discípulos demorarão vários anos em descobrir. Leiamos os Atos dos Apóstolos: durante
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vários anos, Pedro e os demais se sabem enviados em missão, mas só segundo as orientações
de Jesus antes da páscoa: "Não tomem o caminho dos pagãos..., vão primeiro às ovelhas
perdidas de Israel" (Mt 10,5-6). Será necessária toda a força do Espírito para forçar primeiro aos
helenistas (At 6s) e depois a Pedro (At 10-11) a batizar os pagãos, e o dinamismo da igreja de
Antioquia (At 11,19s) para pregar diretamente aos não judeus. Esta universalidade da missão se
verá com clareza só depois da assembléia de Jerusalém por volta do ano 50 (At 15). Portanto,
podemos perguntar-nos se estas palavras do ressuscitado não serão bem mais as "atas do
concílio" colocadas nos seus lábios. Agindo assim, a igreja não seria infiel ao seu fundador, só
estaria explicitando o que não tinha podido falar para eles na manhã da páscoa.
Missão imensa para uma pequena e pobre comunidade! Qual é então a sua segurança?

Jesus promete. A segurança se baseia unicamente na promessa de Jesus: "Eis que eu


estarei com vocês todos os dias, até o fim do mundo". Esse "eu estarei" é muito forte. Lembra-
nos o Javé do AT. E assim se explica o começo do evangelho: "A virgem conceberá, e dará à luz
um filho. Ele será chamado pelo nome de Emanuel, que quer dizer: Deus está conosco" (Mt
1,23). Agora o ressuscitado se nomeia "Eu-estarei-com-vocês", agora é realmente Emanuel,
"Deus-conosco". Portanto, esta igreja não tem nada que temer; aqui reside a sua segurança
última durante todo o tempo da sua missão, o tempo da igreja, delimitado pelas duas
promessas do seu Senhor: "De agora em diante, vocês verão o Filho do Homem..." (26,64), "Eu
estarei com vocês todos os dias, até o fim do mundo".
Nestes poucos versículos Mateus nos resume o essencial do seu evangelho.
Percebemos que essa mensagem foi longamente meditada e tomou forma em uma
comunidade concreta, mas também que houve um teólogo, a quem chamamos "Mateus" que
recolheu essa mensagem e o soube sintetizar. Através da obra comum dessa comunidade e
desse teólogo se nos apresenta certo "rosto" de Jesus, o Senhor.

A. A comunidade de Mateus

Quando lemos o evangelho de Mateus, encontramos a Jesus no seu marco palestino.


Mas, pertence realmente a uma época esse Cristo que vive na comunidade? Vemos Jesus em
uma comunidade cristã, pregando, atuando, instruindo, curando, presente em todas as partes
e atento a cumprir com a missão que lhe confiou o seu Pai. Jesus atuando, de uma forma
estranhamente moderna e atrativa, tanto nos seus discursos como nos seus atos.
Não há dúvida; este evangelho foi escrito em uma comunidade. De que origem? De que
época? Há alguns indícios, tirados na sua maior parte do próprio evangelho, que nos permitem
fazer uma idéia.

1. Uma igreja cristã de origem judaica.

Trata-se de uma comunidade com um comportamento marcado pelas tradições


judaicas, especialmente pelas tradições litúrgicas. O autor do evangelho, por outro lado, é
provavelmente também judeu de nascimento, de educação, de cultura.
Essa comunidade é uma igreja cristã. Os seus membros são "discípulos" que foram à
"escola do mestre" (11,29; 23,8). Reunem-se para receber dos seus "professores" (5,19) os
ensinamentos em "discursos", mesmo que o que estejam procurando é a "inteligência" da
palavra (13,23).
Este ensinamento é moral e prático. Para o autor do evangelho, israelita de origem, a lei
continua estando viva (5,18), mas é olhada com olhos novos. É certamente o velho código
promulgado antigamente por Moisés, mas levado por Cristo à sua plenitude (5,17), reduzido aos
seus princípios vitais, tirando toda casuística. Jesus é apresentado então como o intérprete
autorizado da lei.
A Lei, assim entendida, são as "palavras" de Cristo que continuam dirigindo-se a eles, os
crentes (7,24-26). Somente essas palavras serão capazes de produzir a verdadeira "justiça"
(5,20), de guiá-los na conduta moral e no caminho da "perfeição" (5,48; 19,21).
Indo à escola de Cristo, se mostram fiéis às tradições antigas sobre a oração, mas
renovando-as: rezar sem ostentação nem palavreria (6,5-7) -o "Pai Nosso" é um modelo de
discreção-, oração pura, acompanhada de um perdão real das ofensas (6,14-15). Na prova e na
tentação, se unem intimamente à oração de Cristo (26,40-41); têm fé no Cristo presente no
meio das suas assembléias (18,20).
É na fé como celebram também a eucaristia (26,19). Mas, o que significa o culto acima
de tudo? Subordinado sempre à caridade, se expressa no perdão e na misericórdia: "Vá primeiro
fazer as pazes com seu irmão" (5,23-24; 9,13).
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O sábado continua estando em vigor, mas a verdade é que o questionam. O que
significa agora o sábado, quando o templo está destruído, e a eucaristia dominical -a comida do
Senhor ressuscitado- reúne realmente à comunidade?
As "boas obras", tradicionais em tempos do judaísmo, o jejum (4,2) e a esmola, estão
normalmente em uso dentro da comunidade, mas "em segredo" (6,24; 6,16-18), do mesmo jeito
que a oração (6,6).
Quanto ao que chamamos de "sacramentos", também estão já organizados. Existe o
batismo (28,19), em referência com o de Jesus (3,13-17), melhor compreendido à luz da sua
morte e da sua ressurreição. Está estabelecida a prática do perdão dos pecados (18,18), já que
há homens que participam na terra da autoridade do filho do homem (9,6-8).
Robustecida com a presença de Cristo "todos os dias, até o fim do mundo", vai se
afirmando esta comunidade que viu nascer o evangelho de Mateus pelos anos 80-90.
Expressão da fé viva de uma comunidade, não estará igualmente escrito este evangelho
face a algumas circunstâncias e realidades novas?
Os cristãos de Jerusalém tinham abandonado a cidade, já antes do ano 70. Alguns se
tinham estabelecido em Pella, ao outro lado do Jordão; outras comunidades cristãs se
dispersaram pela Síria (4,24) se juntaram, inclusive, com a igreja de Antioquia. De fato, as
comunidades helenistas parece que acolheram na Síria -não sem esforço- a grupos de origem
judeu-cristão.
`As dificuldades de assimilação e às tensões internas que tudo aquilo provocaria, temos
que acrescentar algumas outras provas que deixaram marcas no nosso evangelho. As
comunidades, heterogêneas já pela sua origem, vão se misturando cada vez mais; convivem
cristãos bons e maus (13,36-43.47-50). Abre-se caminho uma nova tentação: Jesus está já longe
no passado; faz mais de cinqüenta anos que foi promulgada a sua lei; é ainda válida e
praticável? De fato, desapareceram as primeiras testemunhas e discípulos, se debilitou o
primeiro sopro da igreja. Diminuiu o ideal de perfeição (5,48; 19,21); se procura
simultaneamente a Deus e ao dinheiro (6,24), se adormece no milagroso (7,21-23); sobretudo, a
caridade se enfriou (24,12).
Em uma igreja onde todos são irmãos (23,8) acontece que "os inimigos do homem serão
os seus próprios familiares" (10,36). Acaso o verdadeiro problema será saber quem é o maior?
(20,22). Agora é preciso estimular mais o espírito de serviço (20,26-28), a caridade para com os
pequenos e os mais fracos, para com os pecadores (18,6.10-14), apagar as diferenças e praticar
a correção fraterna (18,15-18). Inclusive vai sendo necessário denunciar a hipocrisia (7,5),
assim como a "iniqüidade", que é desobediência à "vontade do Pai que está nos céus" (7,21-23)
e que pode levar até à perdição (7,13.23; 22,14).
"Gente de pouca fé!": esta é a crítica que lhes faz freqüentemente (6,30; 8,26; 14,31;
16,8; 17,20) que se dirige a esses cristãos agitados pela tempestade (8,23-27) e prontos para
seguir aos falsos profetas (24,11).
"Siga-me!" (8,22; 9,9); "seguiram a Jesus" (4,20-22). Esse é o único remédio que opõe
Jesus à falta de fé dos seus discípulos: pede-lhes essa decisão. Somente os que consentem em
seguí-lo perceberão os seus gestos e os seus sinais de poder.
É verdade que a salvação é sempre atual e que o salvador glorificado está já presente
(1,23; 28,20); mas o mestre que prometeu voltar "demora em vir" (24,48-49; 25,5.19). Essa
demora é motivo de cansaço para muitos. É preciso não criar ilusões: a data é desconhecida
(24,36) e será necessário velar, sem cansar-se da longa espera (24,42; 25,13; 26,38). Por isso é
urgente reforçar agora na igreja as condições que lhe permitam percorrer o seu tempo "até que
ele venha", mesmo que não se trate de dar-lhe tanto uma hierarquia e algumas estruturas como
uma norma de vida pelos séculos.

2. Uma igreja que se opõe ao judaismo oficial.

Uma norma de vida, para esses cristãos que não foram tocados pelo
ensinamento de são Paulo, é necessariamente uma lei, tão obrigatória e tão praticável como a
lei de Moisés para o judaísmo: não é a lei expressão verdadeira e universal da vontade de
Deus? Essa parece ser precisamente a convicção do redator deste evangelho.
Por muito renovada que esteja, esta lei se apresenta como uma prolongação da primeira.
Talvez não fosse Jesus um rabino especialmente distinguido? Não se expressou segundo as
sentenças tradicionais, com um grande desejo de pureza e de autenticidade? Portanto, o seu
ensinamento tem que desembocar em uma legislação precisa e que ofereça uma verdadeira
segurança. Essa é precisamente, para estes seguidores de uma lei nova, a tentação contra a
qual reage vigorosamente o nosso evangelho: a vontade de Deus é livre e sem limites: "sejam
perfeitos como é perfeito o Pai de vocês que está no céu" (5,48) -é preciso perdoar "até setenta
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vezes sete" (18,22).
Esta reação contra o legalismo, significará então uma ruptura com as comunidades
judaicas da época? Que figura apresenta por este tempo o judaísmo tardio e perseguido,
despossuído da sua cidade e do seu templo?
Pouco antes da queda de Jerusalém, alguns fariseus conseguiram fugir da cidade e
fundaram uma escola em Jamnia, na costa mediterrânea. Esta escola se tornou, depois do ano
70, o refúgio dos fariseus que se libertaram da matança; foi lá que cobrou nova vida o judaísmo
palestino.
Era preciso esclarecer as diferenças entre as escolas rivais, fixar um calendário comum
para as festas e promover uma liturgia sinagogal, definir o "canon judeu das Escrituras". A
necessidade de uma disciplina obrigou a dar maior importância ao rabinato (se institucionalizou
o título de "rabbi") e começou a fixar-se por escrito a tradição da lei judaica. A unidade deste
judaísmo renascente foi se reforçando, estimulada pelas pressões de fora: o paganismo, o
gnosticismo e sobretudo o jovem cristianismo. Assim, naquele judaísmo tão diverso do judaísmo
de tempos de Jesus, subsistiram, entre os movimentos batistas e alguns outros marginais, duas
"seitas" antagônicas: o fariseísmo e o cristianismo. As suas posições foram se endurecendo com
a controvérsia. O judaísmo adotou medidas de autodefesa: por exemplo, a repulsa dos Setenta
ou da tradução grega das Escrituras e a introdução de orações e de ritos impraticáveis para os
cristãos, como a Birkat-Ham-minim 6.
Por sua parte, os cristãos não ignoravam esse sectarismo que tinha nascido em Jamnia;
a sua postura diante dele se manifesta durante todo o evangelho. O farisaísmo se vê
sistematicamente acusado de perversão, de tirania, de ambição.
É totalmente negativa a atitude do evangelho contra judaísmo de Jamnia? A finalidade
do autor não é primordialmente polêmica; o que tenta é instruir a comunidade cristã, guiá-la na
sua vida interna, indicando-lhe as suas próprias obrigações. Aos maus cristãos dirige as
mesmas palavras que contra os judeus (7,5; 24,51) e lhes ameaça com as mesmas
condenações (7,19.21-23; 18,23-25; 25,14-30).
Através das denúcias não se descobre nem espírito de vingança nem incitação à
violência. O evangelho prega amor aos inimigos, e estes são também os judeus (5,44-47; 5,12).

3. Uma igreja que se abre aos pagãos.

Esta comunidade se apresentou até agora como preocupada consigo mesma, com sua
organização hierárquica e sacramental, com seu vigor moral, com sua sobrevivência frente às
forças adversas.
Não é preciso esperar as últimas palavras de Jesus ressuscitado para ouvir falar dos
pagãos (28,19). Toda a comunidade se preocupa com eles e os acolhe entre os seus membros,

6 . As "Shemoné 'Esré" eram as dezoito bênçãos que compreendiam as orações da manhã


que rezavam os judeus em tempos de Cristo. Por volta do ano 80 foi acrescentada, por iniciativa
de Gamaliel II, uma nova bênção, chamada "Birkat-Ham-minim", cujo texto era: "que os
caluniadores não tenham esperança, que os malvados sejam aniquilados, que os teus inimigos
sejam destruídos. Que a força do orgulho fique logo e em nossos dias abatida, rompida e
humilhada. Louvor a ti, eterno, que destroças a teus inimigos e derrubas os orgulhosos". Esta
bênção contra os "minim", isto é, os hereges, ia dirigida contra os judeus que tinham passado
ao cristianismo.
Para explicar isto devemos saber que, nas sinagogas, foi se desenvolvendo
progressivamente a função do "targumista", que consistia em traduzir ao aramaico a leitura que
se tinha feito das Escrituras em hebraico. O targumista realizava esta função sem a ajuda de um
texto escrito. É fácil compreender que esta instituição, que fazia possível uma interpretação das
palavras sagradas por qualquer judeu adulto, permitia aos que assim o desejassem fazer filtrar
as suas próprias idéias e as suas interpretações pessoais, aliás essa leitura ia seguida às vezes
de uma pregação. No evangelho vemos a Jesus atuando deste jeito (Mt 13,54s; Mc 6,1-6; Lc
4,16s). Os primeiros cristãos, sobretudo são Paulo, intervieram também nas sinagogas (At 9,20;
13,5.14.44; 14,1; 17,1s.10s; 18,4.19b; 19,8s...). Isso demonstra que os primeiros cristãos
continuavam indo à sinagoga para propagar o cristianismo entre os judeus: tentavam
convencer de que Jesus era o Messias anunciado pelas Escrituras que acabavam de ler.
A finalidade da "Birkat-Ham-minim" foi impedir aos cristãos participar no culto sinagogal
e sobretudo que atuassem de targumistas. Então os cristãos deixaram de ir às assembléias
cultuais judaicas. Porém, parece que nem sequer então se consumou por completo a ruptura,
mas se mantiveram certos vínculos entre a igreja de Mateus e o judaísmo, que Mateus não
desejava romper(Mt 5,17; 23,2-3).
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como testemunha o evangelho: os primeiros que adoraram Jesus foram os magos (2,1-12). São
convidados "todos os que vocês encontrarem" (22,9), "e esta Boa Notícia sobre o Reino será
anunciada pelo mundo inteiro" (24,14; 26,13). De fato, muitos "virão do Oriente e do Ocidente"
(8,11) para ocupar o lugar dos filhos do reino. São "multidões numerosas" (nomeadas 40 vezes
em Mateus) as que seguem a Jesus, anunciando a entrada em massa dos pagãos na igreja
(4,25), ou, pelo contrário, indivíduos como o oficial romano e a cananéia que confessam a sua
fé (8,5-13; 15,21-28) ou ainda o oficial romano e os que com ele olham a Jesus ao pé da cruz
(27,54).
Todos eles vêem em Jesus, como o evangelho de Mateus é o único em afirmar (segundo
Is 42,1-4), o "servo para todas as nações" (12,18-21).
É possível que as comunidades de Mateus tenham sentido a tentação de apresentar-se
como "a luz do mundo" (5,13-16) frente à comunidade judaica que se dava este mesmo
apelativo. Por isso mesmo, elas, mais do que ninguém, tinham que se convencer da autoridade
de Jesus, rei e juiz universal (25,31s) e lembrar o seu último mandato: "vão e façam com que
todos os povos se tornem meus discípulos" (28,19). A comunidade estava disposta para esta
missão; Cristo tinha constituído os seus discípulos como "apóstolos", isto é, como "enviados"
(10,2-5) às "ovelhas perdidas da casa de Israel" (10,6; 15,24); mas aquela era a primeira etapa
de uma missão universal "a todas as nações" (24,9.14; 25,32; 28,19) com a assistência de
Cristo (1,23; 28,20), "todos os dias até o fim do mundo" (28,20).
Para quem foi escrito o evangelho de Mateus?
Sem dúvida nenhuma, em primeiro lugar para as comunidades cristãs da Síria e da
Palestina do norte, das quais fazia parte o próprio autor. Na sua última redação -a única que
conhecemos- agrupa, coordena e sintetiza os relatos da vida de Jesus que se foram repetindo e
transmitindo nas comunidades. Estes relatos, fundados à sua vez solidamente no testemunho
dos apóstolos e dos discípulos, se inscrevem no marco do judaísmo do séc. I e estão
alimentados pelo AT, relido e reinterpretado pelas comunidades à luz da ressurreição de Cristo.
Desta forma, este evangelho é um texto vivo, a expressão de uma longa tradição que se
remonta aos acontecimentos da própria vida de Jesus e que vai se desenvolvendo até a vida
das comunidades de finais do séc. I. Além do texto fixado definitivamente, que a igreja dá a
compreender na sua totalidade, o evangelho continua vivo, já que está destinado a leitores, isto
é, a homens que de geração em geração até nós leram e releram este texto partindo da sua
própria vida, no seio da mesma tradição eclesial.

A. O teólogo Mateus, redator do evangelho.

O autor deste evangelho, ao qual chamamos de Mateus 7, é um autor com procedimentos


estilísticos muito diferentes dos que usam os outros evangelistas. É um teólogo que sintetiza a
mensagem vivida na sua comunidade e que a proclama a essa comunidade.

1. O uso do AT.

O traço mais característico do primeiro evangelho é o seu uso tão amplo do AT.
Em 130 passagens ao menos, o autor se refere diretamente à Escritura, dos quais 43 são
citações concretas. Usa normalmente o texto grego da Escritura. Cita a Escritura segundo a
forma judaica, respeitando às vezes até a letra dos textos. As Escrituras são consideradas como
se tivessem uma origem divina imediata. O seu culto, a sua leitura assídua, a sua profunda
assimilação, impregnam por completo a vida das comunidades judaicas; Jesus e os seus
discípulos, como as primeiras comunidades cristãs, tiveram essas mesmas perspectivas. O
autor do evangelho o sabe muito bem e, com razão, pede para si mesmo e para Jesus, a
submissão à sua autoridade de intérprete das Escrituras, à sua função de pregador: "Tudo isso
aconteceu para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta..." (1,22); esta fórmula se
repete onze vezes no evangelho e cinco delas as encontramos nos relatos da infância. Os textos
citados não pretendem, em primeiro lugar, provar ou explicar os fatos narrados, mas dar-lhes o

7 . Quem é este Mateus? É mencionado por todas as listas de apóstolos (Mt 10,3; Mc 3,18; Lc
6,15; At 1,13) e o evangelho de Mateus o qualifica de "publicano", referindo-se ao episódio da
vocação do cobrador de impostos em Cafarnaum (Mt 9,9 pp). Porém, Mc aplica este relato a
Tiago, filho de Alfeu, e Lc a um tal Levi. Não se fala mais de Mateus no NT.
Mas por volta do ano 110 ou 120, Papias, bispo de Hierápolis na Asia Menor, dirá dele
que "pôs em ordem as sentenças (lógia) em dialeto hebraico, e cada uma as interpretou como
podia". A tradição antiga recolheu este testemunho, citado por Eusébio.
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seu caráter sagrado e divino: os desígnios de Deus se cumprem na pessoa e nos atos de Jesus.
Assim, em continuidade com o próprio Jesus, o evangelista insere a mensagem da boa nova na
história da salvação; a autoridade divina de Jesus lhe permite libertar-se da letra da lei e dos
profetas, superando-a e alcançando o caráter universal e profundo do cumprimento messiânico.
A forma semítica deste evangelho sempre impressionou a seus leitores, até o ponto de
que a sua atribuição a um apóstolo não constituiu nenhuma dificuldade nos tempos antigos.
Este semitismo se deve certamente às fontes do evangelista das quais o autor é uma
testemunha fiel, respeitando as propriedades da linguagem e das formas primeiras que
encontrou nele. E sendo ele mesmo semita, as assimilou à vontade.

3. O Jesus da comunidade de Mateus.

Novo Moisés

A comunidade de Mateus parece ter reconhecido instintivamente em Jesus um novo


Moisés, já que era isso o que correspondia ao que estava vivendo então, enquanto que, por
exemplo, as comunidades de Lucas, que viviam de outra forma, verão nele sobretudo ao novo
Elias. Composta na sua maioria de judeus feitos cristãos, esta comunidade nasce com mil e
quinhentos anos de tradição em suas costas, a do povo de Deus do qual se sente legítima
herdeira . É uma comunidade bem estruturada em torno dos Doze, com certas normas para a
sua vida de grupo, uma doutrina, uma oração em comum... Por isso vê em Jesus o novo Moisés
que dá a esse novo povo a lei nova, antes de tudo no sermão da montanha (5-7), mas também
através desses cinco grandes discursos do evangelho de Mateus que lhe dão uma fisionomia
própria (cinco discursos, do mesmo jeito que havia um "pentateuco", os cinco livros da lei de
Moisés). Jesus aparece como o "mestre de justiça" que ensina a forma de viver no reino de
Deus.
Mas, para recolher uma frase da carta aos Hebreus (3,5), Moisés era "servidor" na casa
de Deus, enquanto que Jesus é "Filho".

O Filho de Deus

Marcos usa raras vezes este título; todo o seu evangelho vai nos preparando para
proclamá-lo, junto com o oficial romano, ao pé da cruz; mas quer que vamos fazendo
progressivamente este descobrimento na fé. Mateus, pelo contrário, se situa deliberadamente
em uma comunidade cristã onde esta palavra tem o sentido forte que sempre teve para nós (e
não um simples equivalente de "Messias, filho de Davi", como em tempos de Cristo). Tenta
fazer-nos pressentir nesse homem, tão semelhante ao resto, o mistério que leva consigo:
quando nos sintamos desamparados, temos que lançar esse grito como os discípulos no meio
da tempestade (14,33); temos que proclamá-lo, como Pedro, quando nos perguntam sobre a
sua identidade (16,16); como os guardas pagãos temos que reconhecê-lo no crucificado
(27,54). E este mistério profundo é o que dá o seu sentido ao resto dos títulos.

O Filho do homem

A ressurreição é para Jeus a sua entronização como filho do homem, que realiza os
numerosos anúncios que dele se tinham feito (19,28; 24,30; 26,64...). Então Jesus pode ser
realmente a personificação de todos os pequenos, de todos os pobres com os quais se identifica
(25,36-46). E é também isso o que fundamenta a sua "autoridade", permitindo-lhe enviar os
seus discípulos ao mundo inteiro (28,16-20).

Messias, filho de Davi

É aquele a quem Deus encarregou de proclamar a vinda do reino e de inaugurá-lo pela


sua paixão-ressurreição, cujo sinal são os atos de poder. Mas não se realizará esse reino da
maneira belicosa e triunfante que às vezes se esperava, porque veio para "servir".

O servo que toma as nossas doenças

Mateus é o único que aplica explicitamente a Jesus os oráculos do servo sofredor de


Isaías (42,1 = Mt 12,18; 53,4 = Mt 8,17). É o salvador que leva consigo as nossas doenças e os
nossos pecados; derrama o seu sangue "pelo povo", para o perdão dos pecados (26,28; cf. Is
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53,12).

O Senhor da sua comunidade

Do mesmo jeito que Mateus vê com maior clareza e força do que os outros sinóticos a
imagem da comunidade por trás dos discípulos, também ultrapassa sem deter-se na imagem do
Jesus histórico para chegar ao Senhor vivo da comunidade... Partindo sempre da experiência do
Senhor vivo na comunidade, é como Mateus empreende a exposição das tradições relativas a
Jesus.
Assim, a cristologia se torna nele eclesiologia, a sua reflexão sobre Cristo não pode
separa-se da sua reflexão sobre a Igreja.

2. Uma possível leitura do primeiro evangelho

Cinco discursos

Todos reconhecem a existência de cinco grandes discursos. Mateus é o primeiro em fazer


esta destribuição, já que faz seguir a cada um deles da mesma fórmula: "Quando Jesus acabou
de dizer essas palavras..." (7,28; 11,1; 13,53; 19,1). Estes discursos vão separados por um
conjunto de relatos (diversos atos e palavras de Jesus).

Os conjuntos: discursos-relatos

Formam cada um desses conjuntos um bloco? Alguns acham que não e propõem em
conseqüência uma estrutura sem levar em conta isso. Outros, mais numerosos, acham, pelo
contrário, que formam seções-relatos, paralelos aos discursos, e concebem o evangelho
composto de "cinco cadernos", compreendendo cada um uma seção-relato seguida de um
discurso (3-7; 8-10; 11-13,52; 13,53-18; 19-25), com um prólogo (o evangelho da infância: 1-2)
e uma conclusão (os relatos da paixão-ressurreição: 26-28).
Dois "episódios-eixo"...

O conjunto dos relatos que precedem ao primeiro discurso, a pregação de João Batista, o
batismo de Jesus e as tentações (Mt 3-4) se torna um "episódio-eixo", que ao mesmo tempo é
introdução ao ministério de Jesus e conclusão do prólogo. É significativo que os elementos deste
conjunto tenham o seu paralelo nos episódios em torno à confissão de fé de Pedro em Cesaréia
(16,13-17,27). Encontramo-nos com a mesma fórmula em ambos os casos: "Daí em diante,
Jesus começou a pregar..." e em ambas as ocasiões isto nos introduz em um ensinamento
solene: depois das suas tentações, Jesus começou a proclamar: "O Reino do Céu está próximo"
(4,17), enquanto que, depois da profissão de Pedro, Jesus começou a ensinar aos seus
discípulos que "devia ir a Jerusalém e sofrer muito..." (16,21). No primeiro caso, Jesus proclama
um ensinamento a todos, e no outro aos seus discípulos.
Por outro lado, se percebe, nestes dois conjuntos, certos episódios semelhantes, mas
vistos desde outra perspectiva: em ambos os casos há uma revelação por parte do Pai (no
batismo a voz celestial o designa como o seu filho muito amado; em Cesaréia são os discípulos
os que por boca de Pedro o confessam como Messias, filho do Deus vivo; mas Jesus acrescenta
que isto foi possível somente graças a uma revelação do Pai); em ambos os casos Jesus é
também tentado (por Satã e por Pedro) e Jesus os rejeita com a mesma frase: "Longe de mim,
Satã"

...que dividem o evangelho em duas grandes partes

Quando lembramos que esta confissão de Cesaréia assinala, no evangelho de Marcos,


um giro decisivo, nos sentimos inclinados a pensar que estes relatos em torno a Cesarea
formam um novo episódio-eixo, que reparte os cinco livrinhos de Mateus em duas grandes
partes. Na primeira, Jesus está sozinho; portanto, é o Pai quem tem que designá-lo diretamente,
e é Satã quem o tenta; depois escolhe os seus discípulos e prega às gentes. Na segunda, está já
formada a comunidade de discípulos; portanto, é esta igreja (inspirada pelo Pai) quem o revela
ao mundo, e é também ela, infelizmente quem o tenta; e Jesus se dedicará desde esse
momento à formação da comunidade.

3. Estrutura do evangelho.
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PROLOGO: O MINISTÉRIO DE JESUS

O seu ser e a sua missão à luz da ressurreição


e da vida da igreja. Os relatos da infância (1-2).

I. JESUS PROCLAMA O REINO DE DEUS E PREPARA A IGREJA (3-16)

Episódio-eixo: DO ANTIGO AO NOVO TESTAMENTO (3-4)

No batismo de João, Jesus é revelado pelo Pai


como seu Filho. Pelas suas tentações no deserto,
Jesus orienta de novo a vida de Israel rumo ao
seu reino. Proclama então a sua vinda e escolhe
os discípulos.

1. Chegou o reino de Deus! (5-9)

Jesus o manifesta com as suas palavras e os seus


atos de poder:
* Sermão da montanha (5-7)
* Dez milagres (8-9)

2. Jesus envia os seus discípulos a pregar. Ele parte


a pregar o reino (10-12)

* Discurso de envio à missão (10)


* Jesus parte em missão (11-12)

3. A opção decisiva diante da pregação do reino (13,1-16,12)

* Discurso em sete parábolas (13,1-52)


* Rumo à confissão em Cesaréia (13,53-16,12)

II. A COMUNIDADE NO REINO DE DEUS (17-28)

Episódio-eixo: A COMUNIDADE CONFESSA O SEU SENHOR (16,13-17,27)

Por boca da comunidade, o Pai revela o seu Filho.


Mas esta comunidade é também Satã que tenta a Jesus.

4. O reino de Deus passa do povo judeu à igreja (18-23)

* Discurso sobre a vida em comunidade (18)


* Da Galiléia a Jerusalém (19-23). Jesus rompe
com os chefes judeus e se consagra ao ensinamento
dos seus discípulos. Grandes controvérsias em
Jerusalém. Parábola dos vinhateiros homicidas.

5. A inauguração do reino de Deus no mistério pascal (24-28)

* Anúncio da vinda definitiva do reino em Jesus (24-25)


* O mistério pascal inaugura o reino (26-28).

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