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O EVANGELHO DE MATEUS
1. Teologia de Mateus.
Jesus se revela. "Então Jesus se aproximou e falou: 'Toda a autoridade foi dada a mim
no céu e sobre a terra`" (Mt 28,18). Jesus se revela, portanto como o FILHO DO HOMEM (Dn
7,14), esse personagem misterioso, símbolo celestial do povo perseguido, que recebe sobre as
nuvens o poder reservado a Deus, o do juízo. No momento supremo da sua vida, quando
finalmente, porque sabe que está já condenado, Jesus aceita diante do sinédrio dizer quem é,
declara: "De agora em diante, vocês verão o Filho do Homem sentado à direita do Todo-
poderoso, e vindo sobre as nuvens do céu" (Mt 26,64). Jesus se apresenta agora como o Senhor
glorificado estabelecido desde esses momentos como juiz soberano sobre o mundo inteiro. Por
isso precisamente pode "vir sobre eles", recolhendo deste modo um título do Deus do fim dos
tempos: "Aquele que vem".
Jesus envia em missão. "Portanto, vão e façam com que todos os povos...". Por ser o
Senhor, Jesus pode enviar à sua igreja como missionária. Mas, qual é essa igreja? É esse
pequeno grupo de discípulos da manhã de páscoa? Não é bem mais uma comunidade cristã, lá
por volta dos anos 80-90, em um cantinho da Galiléia, que celebra ao seu Senhor no culto e
descobre nele a sua missão? Efetivamente, essa igreja está já muito estruturada, com uma
organização sacramental (uma igreja que "batiza") e uma teologia muito elaborada (o dogma
da Trindade está expresso em uma fórmula lapidar que lembra o nosso "Glória ao Pai..."). Uma
fórmula semelhante, na qual as três pessoas estão tão claramente colocadas no mesmo plano,
é única no NT, e foi preciso uma longa pesquisa na igreja para poder expressá-la; sabemos que
no começo somente se batizava "no nome de Jesus" e as cartas de Paulo nos fazem perceber o
processo lento da fé na Trindade. A comunidade que aqui celebra o batismo sabe que
precisamos entrar na relação íntima com esse Deus que é Três.
Essa igreja tem uma preocupação doutrinal: os Onze têm que "ensinar", "fazer
discípulos", "ensinar a observar tudo o que Jesus ordenou". Mais do que os outros evangelistas,
Mateus está preocupado com uma "pastoral da inteligência": é preciso "compreender" o que se
crê, é preciso ser inteligentes na fé. E quem não aceitar toda essa fé e a prática moral que se
deriva dela, se manifesta assim que está "excomungado", que já não está na comunhão da
igreja (Mt 18,15-18).
Finalmente, esta missão é universal: "Façam com que todos os povos se tornem meus
discípulos". É maravilhoso escutar assim, em lábios do ressuscitado, na manhã da páscoa, o
que os discípulos demorarão vários anos em descobrir. Leiamos os Atos dos Apóstolos: durante
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vários anos, Pedro e os demais se sabem enviados em missão, mas só segundo as orientações
de Jesus antes da páscoa: "Não tomem o caminho dos pagãos..., vão primeiro às ovelhas
perdidas de Israel" (Mt 10,5-6). Será necessária toda a força do Espírito para forçar primeiro aos
helenistas (At 6s) e depois a Pedro (At 10-11) a batizar os pagãos, e o dinamismo da igreja de
Antioquia (At 11,19s) para pregar diretamente aos não judeus. Esta universalidade da missão se
verá com clareza só depois da assembléia de Jerusalém por volta do ano 50 (At 15). Portanto,
podemos perguntar-nos se estas palavras do ressuscitado não serão bem mais as "atas do
concílio" colocadas nos seus lábios. Agindo assim, a igreja não seria infiel ao seu fundador, só
estaria explicitando o que não tinha podido falar para eles na manhã da páscoa.
Missão imensa para uma pequena e pobre comunidade! Qual é então a sua segurança?
A. A comunidade de Mateus
Uma norma de vida, para esses cristãos que não foram tocados pelo
ensinamento de são Paulo, é necessariamente uma lei, tão obrigatória e tão praticável como a
lei de Moisés para o judaísmo: não é a lei expressão verdadeira e universal da vontade de
Deus? Essa parece ser precisamente a convicção do redator deste evangelho.
Por muito renovada que esteja, esta lei se apresenta como uma prolongação da primeira.
Talvez não fosse Jesus um rabino especialmente distinguido? Não se expressou segundo as
sentenças tradicionais, com um grande desejo de pureza e de autenticidade? Portanto, o seu
ensinamento tem que desembocar em uma legislação precisa e que ofereça uma verdadeira
segurança. Essa é precisamente, para estes seguidores de uma lei nova, a tentação contra a
qual reage vigorosamente o nosso evangelho: a vontade de Deus é livre e sem limites: "sejam
perfeitos como é perfeito o Pai de vocês que está no céu" (5,48) -é preciso perdoar "até setenta
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vezes sete" (18,22).
Esta reação contra o legalismo, significará então uma ruptura com as comunidades
judaicas da época? Que figura apresenta por este tempo o judaísmo tardio e perseguido,
despossuído da sua cidade e do seu templo?
Pouco antes da queda de Jerusalém, alguns fariseus conseguiram fugir da cidade e
fundaram uma escola em Jamnia, na costa mediterrânea. Esta escola se tornou, depois do ano
70, o refúgio dos fariseus que se libertaram da matança; foi lá que cobrou nova vida o judaísmo
palestino.
Era preciso esclarecer as diferenças entre as escolas rivais, fixar um calendário comum
para as festas e promover uma liturgia sinagogal, definir o "canon judeu das Escrituras". A
necessidade de uma disciplina obrigou a dar maior importância ao rabinato (se institucionalizou
o título de "rabbi") e começou a fixar-se por escrito a tradição da lei judaica. A unidade deste
judaísmo renascente foi se reforçando, estimulada pelas pressões de fora: o paganismo, o
gnosticismo e sobretudo o jovem cristianismo. Assim, naquele judaísmo tão diverso do judaísmo
de tempos de Jesus, subsistiram, entre os movimentos batistas e alguns outros marginais, duas
"seitas" antagônicas: o fariseísmo e o cristianismo. As suas posições foram se endurecendo com
a controvérsia. O judaísmo adotou medidas de autodefesa: por exemplo, a repulsa dos Setenta
ou da tradução grega das Escrituras e a introdução de orações e de ritos impraticáveis para os
cristãos, como a Birkat-Ham-minim 6.
Por sua parte, os cristãos não ignoravam esse sectarismo que tinha nascido em Jamnia;
a sua postura diante dele se manifesta durante todo o evangelho. O farisaísmo se vê
sistematicamente acusado de perversão, de tirania, de ambição.
É totalmente negativa a atitude do evangelho contra judaísmo de Jamnia? A finalidade
do autor não é primordialmente polêmica; o que tenta é instruir a comunidade cristã, guiá-la na
sua vida interna, indicando-lhe as suas próprias obrigações. Aos maus cristãos dirige as
mesmas palavras que contra os judeus (7,5; 24,51) e lhes ameaça com as mesmas
condenações (7,19.21-23; 18,23-25; 25,14-30).
Através das denúcias não se descobre nem espírito de vingança nem incitação à
violência. O evangelho prega amor aos inimigos, e estes são também os judeus (5,44-47; 5,12).
Esta comunidade se apresentou até agora como preocupada consigo mesma, com sua
organização hierárquica e sacramental, com seu vigor moral, com sua sobrevivência frente às
forças adversas.
Não é preciso esperar as últimas palavras de Jesus ressuscitado para ouvir falar dos
pagãos (28,19). Toda a comunidade se preocupa com eles e os acolhe entre os seus membros,
1. O uso do AT.
O traço mais característico do primeiro evangelho é o seu uso tão amplo do AT.
Em 130 passagens ao menos, o autor se refere diretamente à Escritura, dos quais 43 são
citações concretas. Usa normalmente o texto grego da Escritura. Cita a Escritura segundo a
forma judaica, respeitando às vezes até a letra dos textos. As Escrituras são consideradas como
se tivessem uma origem divina imediata. O seu culto, a sua leitura assídua, a sua profunda
assimilação, impregnam por completo a vida das comunidades judaicas; Jesus e os seus
discípulos, como as primeiras comunidades cristãs, tiveram essas mesmas perspectivas. O
autor do evangelho o sabe muito bem e, com razão, pede para si mesmo e para Jesus, a
submissão à sua autoridade de intérprete das Escrituras, à sua função de pregador: "Tudo isso
aconteceu para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta..." (1,22); esta fórmula se
repete onze vezes no evangelho e cinco delas as encontramos nos relatos da infância. Os textos
citados não pretendem, em primeiro lugar, provar ou explicar os fatos narrados, mas dar-lhes o
7 . Quem é este Mateus? É mencionado por todas as listas de apóstolos (Mt 10,3; Mc 3,18; Lc
6,15; At 1,13) e o evangelho de Mateus o qualifica de "publicano", referindo-se ao episódio da
vocação do cobrador de impostos em Cafarnaum (Mt 9,9 pp). Porém, Mc aplica este relato a
Tiago, filho de Alfeu, e Lc a um tal Levi. Não se fala mais de Mateus no NT.
Mas por volta do ano 110 ou 120, Papias, bispo de Hierápolis na Asia Menor, dirá dele
que "pôs em ordem as sentenças (lógia) em dialeto hebraico, e cada uma as interpretou como
podia". A tradição antiga recolheu este testemunho, citado por Eusébio.
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seu caráter sagrado e divino: os desígnios de Deus se cumprem na pessoa e nos atos de Jesus.
Assim, em continuidade com o próprio Jesus, o evangelista insere a mensagem da boa nova na
história da salvação; a autoridade divina de Jesus lhe permite libertar-se da letra da lei e dos
profetas, superando-a e alcançando o caráter universal e profundo do cumprimento messiânico.
A forma semítica deste evangelho sempre impressionou a seus leitores, até o ponto de
que a sua atribuição a um apóstolo não constituiu nenhuma dificuldade nos tempos antigos.
Este semitismo se deve certamente às fontes do evangelista das quais o autor é uma
testemunha fiel, respeitando as propriedades da linguagem e das formas primeiras que
encontrou nele. E sendo ele mesmo semita, as assimilou à vontade.
Novo Moisés
O Filho de Deus
Marcos usa raras vezes este título; todo o seu evangelho vai nos preparando para
proclamá-lo, junto com o oficial romano, ao pé da cruz; mas quer que vamos fazendo
progressivamente este descobrimento na fé. Mateus, pelo contrário, se situa deliberadamente
em uma comunidade cristã onde esta palavra tem o sentido forte que sempre teve para nós (e
não um simples equivalente de "Messias, filho de Davi", como em tempos de Cristo). Tenta
fazer-nos pressentir nesse homem, tão semelhante ao resto, o mistério que leva consigo:
quando nos sintamos desamparados, temos que lançar esse grito como os discípulos no meio
da tempestade (14,33); temos que proclamá-lo, como Pedro, quando nos perguntam sobre a
sua identidade (16,16); como os guardas pagãos temos que reconhecê-lo no crucificado
(27,54). E este mistério profundo é o que dá o seu sentido ao resto dos títulos.
O Filho do homem
A ressurreição é para Jeus a sua entronização como filho do homem, que realiza os
numerosos anúncios que dele se tinham feito (19,28; 24,30; 26,64...). Então Jesus pode ser
realmente a personificação de todos os pequenos, de todos os pobres com os quais se identifica
(25,36-46). E é também isso o que fundamenta a sua "autoridade", permitindo-lhe enviar os
seus discípulos ao mundo inteiro (28,16-20).
Do mesmo jeito que Mateus vê com maior clareza e força do que os outros sinóticos a
imagem da comunidade por trás dos discípulos, também ultrapassa sem deter-se na imagem do
Jesus histórico para chegar ao Senhor vivo da comunidade... Partindo sempre da experiência do
Senhor vivo na comunidade, é como Mateus empreende a exposição das tradições relativas a
Jesus.
Assim, a cristologia se torna nele eclesiologia, a sua reflexão sobre Cristo não pode
separa-se da sua reflexão sobre a Igreja.
Cinco discursos
Os conjuntos: discursos-relatos
Formam cada um desses conjuntos um bloco? Alguns acham que não e propõem em
conseqüência uma estrutura sem levar em conta isso. Outros, mais numerosos, acham, pelo
contrário, que formam seções-relatos, paralelos aos discursos, e concebem o evangelho
composto de "cinco cadernos", compreendendo cada um uma seção-relato seguida de um
discurso (3-7; 8-10; 11-13,52; 13,53-18; 19-25), com um prólogo (o evangelho da infância: 1-2)
e uma conclusão (os relatos da paixão-ressurreição: 26-28).
Dois "episódios-eixo"...
O conjunto dos relatos que precedem ao primeiro discurso, a pregação de João Batista, o
batismo de Jesus e as tentações (Mt 3-4) se torna um "episódio-eixo", que ao mesmo tempo é
introdução ao ministério de Jesus e conclusão do prólogo. É significativo que os elementos deste
conjunto tenham o seu paralelo nos episódios em torno à confissão de fé de Pedro em Cesaréia
(16,13-17,27). Encontramo-nos com a mesma fórmula em ambos os casos: "Daí em diante,
Jesus começou a pregar..." e em ambas as ocasiões isto nos introduz em um ensinamento
solene: depois das suas tentações, Jesus começou a proclamar: "O Reino do Céu está próximo"
(4,17), enquanto que, depois da profissão de Pedro, Jesus começou a ensinar aos seus
discípulos que "devia ir a Jerusalém e sofrer muito..." (16,21). No primeiro caso, Jesus proclama
um ensinamento a todos, e no outro aos seus discípulos.
Por outro lado, se percebe, nestes dois conjuntos, certos episódios semelhantes, mas
vistos desde outra perspectiva: em ambos os casos há uma revelação por parte do Pai (no
batismo a voz celestial o designa como o seu filho muito amado; em Cesaréia são os discípulos
os que por boca de Pedro o confessam como Messias, filho do Deus vivo; mas Jesus acrescenta
que isto foi possível somente graças a uma revelação do Pai); em ambos os casos Jesus é
também tentado (por Satã e por Pedro) e Jesus os rejeita com a mesma frase: "Longe de mim,
Satã"
3. Estrutura do evangelho.
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