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Berenice Pretto Soares

MAL ESTAR NA CONTEMPORANEIDADE: ANSIEDADE E


MEDICALIZAÇÃO

Ijuí, 2017
UNIJUÍ - UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO
GRANDE DO SUL

DHE – DEPARTAMENTO DE HUMANIDADES E EDUCAÇÃO

CURSO DE PSICOLOGIA

MAL ESTAR NA CONTEMPORANEIDADE: ANSIEDADE E


MEDICALIZAÇÃO

BERENICE PRETTO SOARES

Professor Orientador: Daniel Ruwer

Trabalho de conclusão de curso apresentado


como requisito parcial para conclusão do
curso de formação de Psicólogo

Ijuí 2017
AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, aos meus pais que sempre me apoiaram, ao meu


marido, que sempre me incentivou e esteve ao meu lado nos momentos difíceis, a
meus filhos, pelos momentos de ausência involuntária, ao professor Daniel Ruwer,
pela orientação, e aos demais professores pelo conhecimento compartilhado.
RESUMO

O presente trabalho aborda o papel que a medicalização exerce no


tratamento das doenças psíquicas, notadamente a ansiedade. Desenvolve temas
relacionados a esse papel, desde o estudo de Freud sobre as origens do mal estar
do sujeito, até as características históricas e antropológicas que deram origem às
características do mal estar hoje. Discute quem é esse sujeito contemporâneo,
membro de uma sociedade que exige padrões de comportamento, onde não há
espaço para o desejo e a infelicidade. Interroga, ainda, as respostas da sociedade
padronizada a esse mal estar e, finalmente, as discussões a cerca da inibição dos
sintomas da ansiedade, com ênfase no papel dos fármacos.

PALAVRAS CHAVE: Psicanálise, Medicalização, Ansiedade, Mal Estar,


Sociedade, Fármacos.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 6

O MAL ESTAR NA CONTEMPORANEIDADE ......................................................................... 7

RESPOSTAS AO MAL ESTAR .............................................................................................. 16

CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 28

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................................... 29


6

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa, de cunho bibliográfico, desenvolve um estudo


sistematizado sobre como o sujeito lida com a mal estar na contemporaneidade e o
consumo de medicamentos para esse fim. O trabalho direciona-se às
publicações de Freud (1927-1931) a cerca de “O mal estar na civilização” e a teoria
de Calligaris (1999) sobre a característica primordial da colonização das Américas,
como sendo a busca por se fazer valer pelo reconhecimento, pelo luxo, e não pela
subsistência (necessidade). Aporta-se, ainda, a Elizabeth Roudinesco (1999-2000)
para entender as características do sujeito moderno, exposto às exigências da
sociedade padronizante.

Em um segundo momento, pensa a definição de ansiedade conforme Freud


(1925-1926). Inicialmente descrita como resultante de uma descarga, um
represamento inadequado da libido; num segundo momento, relacionando ao
aparecimento da ansiedade com o que denominou “situações traumáticas”, ou seja,
situações em que a psique é engolfada por uma afluência de estímulos demasiado
grande para que os possa dominar ou descarregar, quando, então, a ansiedade,
automaticamente, se desenvolve.

Retoma o tema da medicalização com Roudinesco (1999-2000), não uma


crítica radical sobre a utilização de medicamentos, mas dando ênfase no modo
como eles são utilizados. Por fim, debate o papel da medicalização na vida das
pessoas; o porquê da demanda cada vez maior pela medicalização; até onde deve ir
a medicalização e se apenas ela, a medicalização, resolve.
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1. O MAL ESTAR NA CONTEMPORANEIDADE

1.1 O QUE É O MAL ESTAR

Em “O mal estar na civilização” (1930) Freud aposta na tese de que a cultura


produz um mal estar nos seres humanos, defende que existe uma incompatibilidade
entre as exigências da pulsão e as da civilização. Então, para a prosperidade da
sociedade, o indivíduo precisa ser sacrificado, o homem tem que pagar o preço da
renúncia da satisfação pulsional, quando a vida sexual do homem e sua
agressividade são severamente lesadas. A civilização trava uma luta constante do
homem, isolado em sua liberdade, substituindo o poder do indivíduo pelo da
comunidade. O ser humano seria inimigo da civilização, uma vez que em todos nós
existiriam tendências destrutivas, anti sociais e anti culturais.

Freud nos diz que o indivíduo preserva seus sentimentos intactos, sua origem
permanece imutável em sua mente. Ele evolui constantemente, sujeito à cultura, às
leis e padrões sociais, mas o instinto humano permanece guardado. Para que o
homem responda à imagem padronizada que a sociedade dele espera, ele reprime
seus instintos por meio da satisfação do objeto do mundo externo, quando, então
dá-se a construção do ego.

O amor pelo objeto externo torna-se o centro de tudo para a satisfação interna
e o sentimento sexual em amar e ser amado dá origem a três comportamentos
distintos: a preferência aos relacionamentos emocionais com outras pessoas; o
narcisista, autosuficiente, que busca sua satisfação em seus processos mentais
internos; e, finalmente, o homem de ação, que nunca abandonará o mundo externo,
onde pode testar sua força. O risco é que o indivíduo, em sua busca, deparar-se-á
com a frustração, punição, culpa, compulsão, neurose obsessiva, transtornos,
sintomas esses que são manifestações do desejo externo na insatisfação de seu
ideal, não realizado, ou realizado insatisfatoriamente, na maneira em que é buscado.
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Freud destaca a função da religião como perpetuadora da sociedade humana.


É a defesa do homem contra o estado de desamparo infantil que persiste até a vida
adulta. A religião, assim, responderia ao desejo por um pai super poderoso, que
oferece segurança, proteção e que poupa os homens de uma neurose individual,
sob pena de deixá-los num estado de infantilismo psicológico, submetidos ao que
ele chamou de um delírio de massa. Freud afirma que a natureza do homem exige
este tipo de controle para que ele possa viver em sociedade; dessa forma, caso
extinta a religião, o homem necessitaria criar outro sistema de normas com as
mesmas características para a defesa mútua.

Assegura que a civilização busca evitar o sofrimento e promete segurança,


empurrando o prazer para segundo plano. Como a satisfação pulsional é sempre
limitada e acessória, as possibilidades de felicidade são restritas. Nesse sentido, o
sofrimento humano vem de três vertentes principais: do corpo, fadado ao declínio e
destruição; do mundo externo, incontrolável em seus acontecimentos; e dos
relacionamentos, nem sempre baseados no amor e sujeitos a competição com o
próximo. Ao mesmo tempo, revela alguns métodos existentes na sociedade para
evitar o sofrimento e buscar a felicidade, mesmo que episódico: uso de drogas, a
sublimação das pulsões (satisfações substitutivas para desejos não realizados), o
trabalho, as fantasias, o delírio da realidade, o amor e as enfermidades neuróticas.

Destaque para a sublimação, como método para as necessidades instintivas


e os impulsos inaceitáveis encontrarem uma "saída", um modo "normal" de
expressão. Aquelas tendências e impulsos primitivos inaceitáveis - com finalidades,
por exemplo, pessoais, egoístas, proibidas, "irregulares" - são transformadas e sua
energia é dirigida a atividades digamos científicas, altruísticas, políticas, artísticas,
etc. Já o amor, (ah, o amor!) ao mesmo tempo em que o coloca como um dos pilares
do convívio comunal, por outro lado, o coloca em oposição aos interesses da
sociedade, que o ameaça com suas restrições às satisfações pulsionais.

Freud aborda três aspectos fundamentais dentro da noção de civilização: a


angústia, enquanto reação a uma situação de perigo ou traumática; a agressividade,
como forma de afirmação violenta; e o sentimento de culpa, ou seja, a percepção
pelo “eu” da não correspondência das exigências de seu ideal.
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É a partir do conceito de superpego que o autor passa a desenvolver o termo


sentimento de culpa, tido por ele como o principal aspecto da relação do indivíduo
com a sociedade. Em outras palavras, o sentimento de culpa refere-se à tensão
entre o ego e o superego, baseado na necessidade de punição. Freud ainda
distingue dois princípios do sentimento de culpa: o medo da autoridade exterior,
portanto, anterior à formação do superego, e o medo do superego. No primeiro caso,
a simples renúncia à pulsão resolveria o sentimento de culpa, no entanto, no
segundo, a renúncia não bastaria, já que, se o desejo resiste, a culpa se mantém, ou
seja, ações e intenções se equivaleriam.

Para Freud, civilização e sentimento de culpa estão estreitamente


relacionados. O crescente fortalecimento de culpa desenvolve um superego
influente, o que ajuda a civilização a alcançar seu objetivo de inibição das pulsões e
que propiciaria o desenvolvimento cultural.

1.2 Características do mal estar contemporâneo

Para abordarmos os sintomas do mal estar hoje, necessitamos contar com a


ajuda de Contardo Calligaris (1999) que formula a hipótese segundo a qual a
característica primordial moderna da colonização das Américas reside no fato de
que ela não foi determinada por necessidades básicas de subsistência, mas, ao
contrário, foi antes impulsionada por uma "necessidade de luxo" (CALLIGARIS,
1999, p. 15) motivada pelo desejo, isto é, por um sonho moderno de se fazer valer e
de reconhecimento.

À primeira vista, as duas razões propostas para a viagem de Colombo – a


materialista e a idealizada – pareciam oporem-se, como necessidade se opõe a
desejo.

O cínicos diriam que os modernos conquistaram novos mundos para melhor


responder a suas necessidades; os idealistas diriam que a modernidade
segue um desejo que nenhum objeto satisfaz, um desejo de se afirmar, de
ser reconhecido por seus atos e não pela legitimidade que a tradição
conferia de antemão. Na verdade, esta contradição é aparente
(CALLIGARIS, 1999, p. 12).
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Conforme se observaria a mais tarde, a viagem de Colombo e as outras que


seguiram em direção às Américas, trouxe uma grande diferença entre a colonização
da África e Ásia de um lado e das Américas, especialmente a do Norte, do outro. A
primeira, caracterizava-se por reproduzir a ordem deixada nos países de origem,
permitindo aos nativos trabalhar para os conquistadores, por não exterminá-los,
permitindo brincar de casta superior, até a descolonização.

A colonização das Américas, especialmente a do Norte, foi outra. Degredados


e miseráveis vieram para fazer fortuna e não para reproduzir uma caricatura das
hierarquias deixadas em seus países de origem. Por isso os nativos eram
dispensáveis. Foram eles, e sua cultura, exterminados. Exceção, foi a escravatura,
uma tentação e um pecado capital, ainda a ser expiado.

Calligaris (1999, p. 14) evoca a Fenomenologia do Espírito de Hegel, segundo


ele a “melhor interpretação antropológica da subjetividade moderna”, para explicar
que o lugar social de cada um passa a ser decidido pelo reconhecimento que ele
obtém dos outros, e os objetos de desejo passam a valer como meios para
conseguir um lugar ao sol. De fato, o desejo passa a exceder a qualquer
necessidade. Seja ela de arroz e feijão, seja nosso desejo de ter acesso a uma
maior dignidade social.

Ao contrário do que se poderia supor, não é necessário escolher entre as


duas motivações. Se por um lado havia o ideal pelo desejo de novos conhecimentos,
eventualmente, o ideal, menos nobre, de poder ajudou a impulsionar os
navegadores.

Para o sujeito moderno o luxo não é supérfluo, mas necessário. Ele não é
mais um ser definido por regras tradicionais, mas um ser amparado pela distribuição
de bens, ou, o que é mais radical na sua análise, "não é mais a classe social que dá
direito ao luxo, mas é o acesso ao luxo que decide a classe e o lugar social de cada
um" (CALLIGARIS, 1999, p. 16). Para o autor, a modernidade é uma nova
organização psíquica e a colonização das Américas é o retrato dessa nova
subjetividade. O fundamento dessa hipótese apoia-se na seguinte assertiva: "a
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especificidade cultural é a organização psíquica de um sujeito, sua metapsicologia"


(CALLIGARIS, 1999, p. 18).

A colonização das Américas é a metáfora de uma nova subjetividade,


eminentemente histórica; o sujeito não se define pelo mundo que encontra, mas pelo
mundo que ele mesmo faz ou transforma. É o sujeito transformando o mundo em
que ele se encontra, não mais importando onde nasce, mas as aventuras que o
levam para fora de casa, o modo que vive suas potencialidades e desfruta das
oportunidades, onde o projeto faz parte integral do ser.

Aí reside a grande diferença entre a colonização norte americana e a nossa,


latino americana. Enquanto na primeira a memória é constante, mas o presente é a
tentativa de fazer diferente, de romper com o passado, na segunda, padecemos da
continuidade do passado, muitas vezes, chamado a justificar o presente.

Freud constatava, no começo do século passado, que o sujeito sofria das


reminiscências, no sentido de nostalgia do ser. Uma nostalgia que se apresenta na
forma de passado cuja verdade agora é perdida. Nesta perspectiva, a angústia (e a
depressão, como sua variante retórica) pode ser considerada como a forma principal
do mal-estar moderno e colonial: um permanente sinal de alarme – segundo a
definição de Freud – para um sujeito a quem nunca é dado descansar
(CALLIGARIS, 1999, p. 22).

Com a angústia que lhe é própria, cada indivíduo moderno lida como pode, ou
seja, segundo as modalidades próprias a sua particularidade. Nesta tarefa, a
psicanálise pode lhe ser de grande ajuda. O extraordinário da descrição freudiana do
sujeito moderno, aliás, é que ela é suficientemente complexa para continuar valendo
para seus diferentes sujeitos.
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1.3 Quem é esse sujeito moderno

A depressão pode ser considerada como a forma principal do mal-estar


moderno e colonial, um permanente sinal de alarme, para um sujeito a quem nunca
é permitido descansar, numa eterna busca por sua verdade, dissimulada pela
tradição perdida.

Elisabeth Roudinesco (1999-2000) tira a psicanálise da intimidade dos


ambientes especializados, a livra das apaixonadas discussões teórico-científicas, e a
traz para a crônica moderna. Através de questionamentos a respeito da sociedade
contemporânea, formadora de “deprimidos” sedentos de normalização
farmacológica, ela desloca essa perspectiva patológica do sujeito para a própria
sociedade; ou seja, não é apenas o sujeito quem está deprimido, mas a sociedade
em si é depressiva. Uma sociedade cega pela padronização de comportamentos e
de crenças voltadas para a regulamentação de atitudes diante dos supostos padrões
de normalidade. Espaço em que os afetos da alma passaram a ser explicados
apenas por substâncias químicas, funções cerebrais e respostas biológicas.

Na visão de Roudinesco(1999-2000), corpo e alma são atingidos por essa


estranha forma de sentir, em que se misturam a tristeza e a apatia, a busca da
identidade e o culto a si próprio, o sujeito deprimido não acredita mais na
legitimidade de nenhuma terapia. Apesar disso, ele busca, ansiosamente, vencer o
vazio de seu desejo. Da psicanálise vai se transferindo para a psicofarmacologia, da
psicoterapia para a homeopatia e/ou o espiritismo, num continuum de medicinas
paralelas, sem dar-se conta da origem de sua infelicidade. Tempo, aliás, que já não
tem, apesar do lapso de vida e do lazer que se alongam. O sujeito depressivo não
sabe o que fazer com as liberdades conquistadas.

É por isso que assistimos, nas sociedades ocidentais, a um crescimento


inacreditável do mundinho dos curandeiros, dos feiticeiros, dos videntes e dos
magnetizadores. Frente aos dogmas erigidos pela religião e diante das ciências
cognitivas, que valorizam o homem-máquina em detrimento do homem desejante,
vemos florescer, em contrapartida, toda sorte de práticas, ora surgidas da pré-
história do freudismo, ora de uma concepção ocultista do corpo e da mente:
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magnetismo, sofrologia, naturopatia, iridologia, auriculoterapia, energética


transpessoal, sugestologia, mediunidade, etc.

Essas práticas têm como denominador comum: o oferecimento de uma


crença – e, portanto, de uma ilusão de cura – a pessoas mais abastadas, mais
desestabilizadas pela crise econômica, que ora se sentem vítimas de uma
tecnologia médica demasiadamente distanciada de seu sofrimento, ora vítimas da
impotência real da medicina para curar certos distúrbios funcionais. (Roudinesco,
1999-2000, p. 14-15)

O homem de hoje transformou-se no contrário de um sujeito, onde a


individualidade substituiu a subjetividade, apregoando-se a si mesmo uma
independência sem desejo. Longe de desejar-se um sujeito livre, desatrelado de
suas raízes e do meio, ele se torna senhor de um destino baseado em normas
comportamentais. Permanece ligado a redes, grupos, coletivos e comunidades, sem
conseguir afirmar sua verdadeira personalidade.

Roudinesco (1999-2000) nos traz alguns aspectos pungentes da sociedade


dita moderna e democrática. Marcada pelas receitas instantâneas e pela busca do
sucesso econômico, tem tentado banir de seu horizonte a realidade das desgraças,
da morte e da violência. Tende-se a criminalizar a ideia de conflito social,
substituindo a política pela deontologia e o julgamento histórico pela sanção judicial.
Passou-se da era do confronto para a era da evitação.

Todo indivíduo tem o direito de não mais se entusiasmar com nada mais que
represente o pacifismo e a moral humanitária. Por consequência, o ódio ao outro se
tornou furtivo, ferino e, ainda mais, perigoso. O outro passou a ser sempre uma
vítima, e é aí que se gera a intolerância, pela vontade de estabelecer no outro a
harmonia absoluta de um eu narcísico, cujo ideal seria destruí-lo antes mesmo de
sua existência.

Se já existe o medicamento adequado para, segundo a neurobiologia, reparar


todas as disfunções psíquicas oriundas de anomalias do funcionamento das células
nervosas, porque deveríamos buscar soluções litigiosas, entrar em luta com o
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mundo? Pois, que a infelicidade que fingimos exorcizar, retorne de maneira


fulminante no campo das relações sociais e afetivas, recurso ao irracional, culto das
pequenas diferenças, valorização do vazio e da estupidez. A calmaria, às vezes,
pode ser mais terrível que a maior das tempestades.

A depressão tornou-se a epidemia psíquica das sociedades democráticas. É


claro que a histeria não desapareceu, porém, ela é, cada vez mais, vivida e tratada
como uma depressão. Com esta substituição de paradigmas, valorizam-se os
processos psicológicos de normalização, em detrimento das diferentes formas de
exploração do inconsciente. No entanto, o inconsciente ressurge através do corpo.
Daí, o relativo fracasso das terapias que se debruçam com compaixão sobre a
cabeceira do sujeito depressivo, não conseguindo curá-lo, nem conceber as
verdadeiras causas de seu tormento. Conseguem, apenas, melhorar seu estado,
deixando-o esperar por dias melhores. (Roudinesco, 1999-2000, p. 18)

Roudinesco (1999-2000) nos diz que a invenção freudiana de uma nova


imagem da psique pressupôs a existência de um sujeito capaz de internalizar as
proibições, sempre imerso no inconsciente e dilacerado pela morte de Deus,
permanece em guerra consigo mesmo. Daí decorre a concepção freudiana da
neurose, centrada na discórdia, na angústia, na culpa e nos distúrbios da
sexualidade, que foi substituída, nas sociedades democráticas, pela concepção de
um indivíduo depressivo, que foge de seu inconsciente e está preocupado em retirar
de si a essência de todo conflito. Condenado ao esgotamento pela falta de uma
perspectiva revolucionária, ele busca na droga ou na religiosidade, no higienismo ou
no culto de um corpo perfeito o ideal de uma felicidade impossível.

Constata Alain Ehrengerg (1997, p. 17) que o drogado é, ainda hoje, a figura
simbólica empregada para definir as feições do anti-sujeito. Antigamente, era o louco
que ocupava esse lugar. Se a depressão é a história de um sujeito incontrolável, a
drogadição é a nostalgia de um sujeito perdido.

Em vez de combater o isolacionismo, que leva à abolição da subjetividade, a


sociedade liberal assemelha os fumantes, alcoólatras e consumidores de
psicotrópicos a toxicômanos, considerados, desde então, como perigosos para eles
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mesmos e para a coletividade. Problema será inventar, no futuro, medicamentos


para tratar da dependência dos que, eventualmente, se houverem curado de seus
vícios – alcoolismo, tabagismo, sexo, comida, etc.
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2. RESPOSTAS AO MAL ESTAR

Nesse capítulo abordamos os sintomas da ansiedade, suas relações com o


ego, id e superego, via análise do tema central da obra de Freud em Inibição,
Sintomas e Ansiedade, 1925-1926, onde trabalha, também, as diferentes classes de
resistência, a distinção entre repressão e defesa e as relações entre angústia, dor e
luto. Debatemos, na sequencia, questões a cerca da tentativa silenciar os efeitos da
ansiedade, especialmente, via medicalização.

2.1 A ansiedade no sentido freudiano

Para Freud, em seus primeiros textos, era clara a tentativa de traduzir a


psicologia em termos fisiológicos, afirmando que a neurose de ansiedade estaria
relacionada com a descarga da tensão sexual. Apresentava a angústia como um
processo físico, resultado da libido acumulada; mais tarde, passa a imputar ao fator
psicológico (repressão) o motivo do acúmulo da excitação, porém, sem abandonar a
teoria de que a angústia surge de uma conversão da energia acumulada, utilizando
ainda, o termo angústia como sinal de desprazer.

De onde vem a energia empregada para transmitir o sinal de desprazer?


Podemos afirmar que uma defesa contra um processo interno importuno será
esculpida sobre a defesa adotada contra um estímulo externo, e de que o ego
reprime os perigos internos e externos, de igual modo, paralelamente. No caso de
perigo externo, o organismo recorre a tentativas de fuga. A primeira coisa que ele
faz é retirar a concentração das energias mentais da percepção do objeto perigoso;
posteriormente, descobre que constitui um plano melhor realizar movimentos
musculares de tal natureza que tornem a percepção do objeto perigoso impossível,
mesmo na ausência de qualquer recusa para percebê-lo – que é um plano melhor
afastar-se da esfera de perigo. A repressão é um equivalente a essa tentativa de
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fuga. O ego retira sua catexia (pré-consciente) do representante instintual que deve
ser reprimido e utiliza essa catexia para a finalidade de liberar o desprazer
(ansiedade) (Freud, 1925-1926, p. 114).

Freud (1925-1926) afirma que as situações de perigo apesar de serem


diversas, têm em comum o medo da perda do objeto amado (separação) ou de seu
amor e afirma que a experiência de nascimento seria o protótipo de todas as
angústias. Salienta, ainda, a importância de distinguir os sintomas das inibições.
Para ele, a inibição seria restrição de uma função do ego, não sendo,
necessariamente, patológica. Entre as inibições das funções do ego, destaca: a
sexual, de nutrição, de locomoção e de trabalho.

Freud relata que existe uma relação entre inibição e angústia, uma vez que as
primeiras podem surgir como uma tentativa de evitar a angústia. Para ele as
inibições têm diferentes origens: podem surgir em decorrência de uma tentativa do
ego em evitar um conflito com o id, com o superego ou podem ocorrer em função de
um empobrecimento da quantidade de energia.

A inibição específica de um órgão físico corresponde ao primeiro caso “o ego


renuncia a essas funções (...) a fim de não ter de adotar novas medidas de
repressão – a fim de evitar entrar em conflito com o id” (Freud, 1925-1926, p.93).
Isto acontece em função do significado sexual do órgão, decorrente de uma intensa
erotização deste, em que seu funcionamento representaria a realização de um ato
sexual reprimido (assim, por exemplo, escrever teria o significado da copulação).

Freud classifica as inibições que visam evitar um conflito do ego com o


superego como tendo uma finalidade de autopunição e as exemplifica com as
inibições de atividades profissionais, nas quais a pessoa não se permite ter êxito no
trabalho. Entre aquelas que ocorrem em função de um empobrecimento da
quantidade de energia, cita o luto, em que a pessoa perde energia com a perda do
objeto amado e por isso precisa reduzir a energia gasta em outras coisas.

Para Freud, um sintoma, ao contrário de uma inibição, é um sinal de algo


patológico e que não ocorre dentro do ego ou atua sobre este. O sintoma teria um
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caráter de extraterritorialidade na medida em que existiria fora e independentemente


do ego.

Um sintoma é motivado pela repressão, sendo um sinal e um substituto de


uma satisfação pulsional. Desse modo, afirma que o sintoma é uma constituição
substituta ou de obrigação na medida em que cria algo no lugar do processo
pulsional ameaçador, suprime-o ou desvia-o de seus objetivos. O sintoma seria sinal
de que a repressão falhou, de modo que a pulsão teria encontrado “um substituto
muito mais reduzido, descolado e inibido, e que não é mais reconhecido como uma
satisfação e (...) sua realização apresenta, ao contrário, a qualidade de uma
compulsão” (Freud, 1925-1926, p.98).

Freud destaca que o processo de repressão ocorre no ego, que é a sede da


angústia. “A angústia é um estado afetivo e como tal, naturalmente, só pode ser
sentida pelo ego” (Freud, 1925-1926, p. 139). As primeiras repressões acontecem
antes do estabelecimento do superego, sua origem estaria relacionada à quantidade
de energia. Na repressão, o ego recusa a catexia provocada no id, transformando o
que seria sentido como prazer (por meio da satisfação pulsional), em desprazer. A
repressão atua sobre o impulso e sobre seu representante psíquico.

Freud (1925-1926) aponta para a existência de um ganho secundário


proveniente da doença, que ocorre em função do ego incorporar o sintoma (torna-o
parte dele mesmo), de forma que o sintoma torna-se indispensável ao ego. O ego
defende o sintoma na medida em que este se torna um substituto da pulsão
reprimida - assume seu papel, exigindo assim, satisfação constante. “... esses laços
conciliatórios entre o ego e o sintoma atuam do lado das resistências e não são
fáceis de afrouxar” (Freud, 1925-1926, p.102).

Retomando o caso do Pequeno Hans e do Homem dos Lobos, Freud observa


a presença de sentimentos ambivalentes frente a figura paterna e afirma que nesses
pacientes, o impulso hostil contra o pai sofreu repressão ("impulso assassino do
Complexo de Édipo") por meio do processo de ser transformado em seu oposto
(eles temiam os animais ao invés de agredi-los). Ele salienta que o sintoma, nesses
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casos, não seria o medo, mas sim, o deslocamento (substituição) da figura do pai
pela de um animal (cavalos no primeiro caso e lobos, no segundo).

O autor também destaca a repressão pela qual passou a libido, regredindo da


fase fálica para a oral. Para Freud, a força motriz da repressão nestes casos clínicos
teria sido o temor de castração, o que confirma sua hipótese de que a origem da
repressão estava na angústia, no medo de um perigo (castração).

Foi a angústia que produziu a repressão e não, como eu anteriormente


acreditava, a repressão que produziu a angústia (...) É sempre a atitude de
angústia do ego que é a coisa primária e que põe em movimento a
repressão. A angústia jamais surge da libido reprimida. (Freud, 1925-1926,
p.111).

Freud afirma que existe uma grande relação entre angústia e sintoma, já que
estes se formam com a finalidade de evitar a angústia: os sintomas “reúnem a
energia psíquica que de outra forma seria descarregada como angústia. Assim este
seria o fenômeno fundamental e o principal problema da neurose” (Freud, 1925-
1926, p.142). A angústia, diz ele, é condição necessária para o surgimento do
sintoma, pois é ela que desperta o mecanismo prazer-desprazer, que paralisa os
processos do id.

Freud afirma que a finalidade de destruição do complexo de Édipo e o temor


de castração são aspectos em comum na formação dos sintomas dos três tipos de
neurose (fobia, neurose obsessiva e histeria). No entanto, descreve sintomas
peculiares a cada neurose.

Com relação aos sintomas da neurose obsessiva, os classifica em dois


grupos: os negativos (proibições, precauções e expiação) e as satisfações
substitutivas (disfarce simbólico). Afirma que nestes sintomas uma ação impõe algo
e outra que desfaz a primeira (“mágica negativa”). Essa tentativa de desfazer algo
que foi feito aparece na obsessão de repetir. Freud também aponta para o
isolamento, artifício de defesa utilizado pelos obsessivos e que difere das histéricas,
que utilizam, primordialmente, a amnésia (embora o efeito seja o mesmo).
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Freud diferencia a histeria da neurose obsessiva também ao dizer que, na


segunda, o ego atua mais na formação dos sintomas e que o próprio processo de
pensar se torna hipercatexizado e erotizado. O autor destaca o “tabu de tocar”
(medo de contaminação, por exemplo), tão frequentemente encontrado nestes
pacientes e que visa impedir as catexias agressivas e amorosas.

O autor afirma, também, que, nas neuroses obsessivas, além da repressão


como defesa, o ego utiliza-se da regressão, em que a conformação genital é lançada
ao nível anal-sádico. Para ele, a neurose obsessiva é marcada por um grande
conflito entre o id e o superego. Afirma que o rigor do superego destes pacientes é
decorrente do fato deste comportar-se como se a repressão não tivesse ocorrido,
como se conhecesse o caráter agressivo da pulsão. Nestas neuroses há um
fracasso da defesa e o ego fica extremamente limitado, procurando satisfação nos
sintomas.

Além da destruição do complexo de Édipo verifica-se uma degradação


regressiva da libido, o superego torna-se excepcionalmente severo e rude, e
o ego, em obediência ao superego, produz fortes formações reativas de
consciência, piedade e anseio. (Freud, 1925-1926, p.116).

Com relação ao temor de castração das mulheres, Freud alterna sua opinião,
conforme o que considera castração: temor da perda do pênis ou medo de
separação. Em alguns momentos, afirma que a angústia de castração não existiria,
uma vez que estas já são castradas e em outros, diz que está presente e aparece
pelo medo da perda de amor.

Afigura-se provável que, como um determinante da angústia, a perda do


amor desempenha o mesmíssimo papel na histeria que a ameaça da
castração nas fobias e o medo do superego na neurose obsessiva. (Freud,
1925-1926, p.141).

Com relação à fobia, o autor salienta que há uma distorção com relação à
localização da ameaça, que evidencia duas vantagens. Por um lado, evita um
conflito com relação à ambiguidade de sentimentos perante o pai (é amado e
21

odiado) e, por outro, impede o ego de gerar angústia, já que o perigo interno é
projetado para outro externo, de forma que passa a ser possível fugir do perigo - o
que não ocorre quando este surge de dentro (ao preço de uma inibição do ego,
como fez Hans, impondo uma restrição a este). “A angústia que pertence a uma
fobia é condicional: ela só surge quando o objeto dela é percebido” (Freud, 1925-
1926, p.125)

Já na neurose obsessiva o perigo é localizado no superego, ficando


internalizado. “Se criam sintomas a fim de evitar uma situação de perigo cuja
presença foi assinalada pela geração de angústia” (Freud, 1925-1926, p.128). Freud
amplia a descrição da angústia a concebendo como uma reação a um perigo
específico para cada fase da vida:

Assim o perigo de desamparo psíquico é apropriado ao perigo de vida


quando o ego do indivíduo é imaturo; o perigo da perda de objeto, até a
primeira infância, quando ele ainda se acha na dependência de outros; o
perigo de castração, até a fase fálica; e o medo do seu superego, até o
período de latência. Não obstante, todas essas situações de perigo e
determinantes de angústia podem resistir lado a lado e fazer com que o ego
a elas reaja com angústia num período ulterior ao apropriado; ou, além
disto, várias delas podem entrar em ação ao mesmo tempo. (Freud, 1925-
1926, p.140).

Freud salienta que desprazer e angústia não são sinônimos. Apesar da


angústia ter características de desprazer, ela não possui apenas esta qualidade.
Apresenta também atos de descarga (sensações físicas presentes e ligadas a
órgãos específicos do corpo, como o respiratório) e as percepções desses atos.

Devemos estar inclinados a pensar que a angústia se acha baseada em um


aumento de excitação que, por um lado, produz o caráter de desprazer e,
por outro, encontra alívio através dos atos de descarga (Freud, 1925-1926,
p.132).

Finalmente, o ser adulto não oferece qualquer proteção absoluta contra um


retorno da situação de angústia original. Todo indivíduo tem, com toda
probabilidade, um limite além do qual seu aparelho mental falha em sua
função de dominar as quantidades de excitação que precisam ser
eliminadas (Freud, 1925-1926, p.146).
22

Freud afirma que a repressão, ao mesmo tempo em que inibe os processos


do id considerados ameaçadores, os deixam independentes, livres da domínio do
ego.

Isto é inevitável pela natureza da repressão, que é, fundamentalmente, uma


tentativa de fuga. O reprimido é agora, por assim dizer, um fora da lei; fica
excluído da grande organização do ego e está sujeito somente às leis que
regem o domínio do inconsciente (Freud, 1925-1926, p.149).

Frente a uma situação de perigo o id seguirá o curso de suas pulsões por


meio da compulsão à repetição. “O fator de fixação na repressão, portanto, é a
compulsão à repetição do id inconsciente” (Freud, 1925-1926, p.150).

A análise teria como função suspender as repressões, tornando as


resistências conscientes, de forma que o ego recupere seu poder sobre o id. No
entanto, Freud observa que mesmo após tornarem-se conscientes, o ego não
abandona a repressão que apresenta-se no poder de compulsão à repetição. Esta
compulsão é denominada por ele como a resistência do inconsciente.

O autor descreve cinco espécies de resistências, três que provém do ego


(resistência da repressão, resistência da transferência, ganho proveniente da
doença – oriundo da assimilação do sintoma ao ego), uma do id (repetição) e uma
do superego (sentimento de culpa, necessidade de punição). Freud aponta para três
fatores que desencadeiam uma neurose: o biológico (condição de desamparo e
dependência da espécie humana), que cria a necessidade de ser amado; o
filogenético (características do desenvolvimento da libido, exigências da
sexualidade) e o psicológico (diferenciação do aparelho mental em um id e um ego).

Freud faz uma distinção entre angústia (Angst) e medo (Furcht) afirmando
que a primeira é sem objeto. Diz que na angústia o perigo é desconhecido
(desamparo psíquico), diferentemente da angústia realística (desamparo físico), em
que se conhece o perigo. “A angústia, por conseguinte, é, por um lado, uma
expectativa de um trauma e, por outro, uma repetição dele em forma atenuada”
(Freud, 1925-1926, p.161)
23

O autor salienta o dispêndio permanente de energia efetuado pela repressão,


uma vez que as pulsões têm uma natureza constante. Freud denomina de
resistência a ação que garante a repressão e a qualifica como uma anticatexia.
Como uma das formas de resistência cita a formação reativa, onde o que aparece é
o oposto da tendência pulsional. Na neurose obsessiva elas atingem a
universalidade dos traços de caráter (alteração do ego, anticatexia interna),
enquanto que na histeria e na fobia fica restrita a objetos específicos (anticatexia
externa).

2.2 A medicalização da ansiedade

Para Elizabeth Roudinesco (1999-2000), o indivíduo é a consequência do


comportamento farmacológico, habitante de um mundo comandado pelo
pensamento neurocientífico, ansioso por enquadrar-se nos mais recentes moldes de
“normalidade’ e “felicidade”. O indivíduo é monolítico e não pode sofrer. Já o sujeito,
tal qual concebido pela psicanálise, é movido pela angústia inevitável do conflito.
Este sujeito do inconsciente é permanentemente faltoso, desejante e singular.

Um sujeito que não pode ser traduzido pelas substâncias produzidas por seu
funcionamento cerebral. Pretendendo negar a dinâmica da existência, o homem
comportamental vive ansioso por absorver a ideia de felicidade; mas não pode evitar
a eventualidade de se deprimir. É quando então, diagnosticado como um portador
da patologia depressiva e/ou ansiosa, são-lhe prescritos os psicotrópicos, com a
garantia da eliminação da doença. Para Elisabeth Roudinesco, quem está deprimida
é a sociedade contemporânea, já que é propagadora da obtenção de padrões de
normalidade, confirmados por uma ciência neuronal e farmacológica, que submete o
psiquismo e suas implicações existenciais às respostas exclusivamente
neurobiológicas.

Logo de início, Elisabeth Roudinesco já se posiciona diante do uso de


psicotrópicos. Menos por trazer uma crítica radical sobre a utilização de
medicamentos, o que é posto em debate é o modo como eles são utilizados.
Roudinesco descreve o momento contemporâneo, a partir das convicções que são
24

depositadas em tais pílulas do prazer. Num mundo de valores utilitaristas e urgentes,


passa a ser mais apropriada a crença numa fórmula química do que no manejo das
relações regidas pela linguagem. Baseada em argumentos fundamentados numa
visão crítica rica, ela prevê a permanência da psicanálise nos tempos que estão por
vir; apesar das críticas e de tentativas em contrário por uma perspectiva
neurocientífica do psiquismo e do desejo da alma humana. Confirma os resultados
favoráveis da psicanálise, a partir da experiência clínica; além de relacioná-la a uma
prática de caráter libertador e democrático: “A psicanálise atesta um avanço da
civilização sobre a barbárie. Ela restaura a ideia de que o homem é livre por sua fala
e de que seu destino não se restringe a seu ser biológico” (Roudinesco, 1999-2000,
p. 9).

Porque, como ela mesma afirma, felizmente, não há pretensão científica que
ponha termo à subjetividade humana.

A partir de 1950, as substâncias químicas – ou psicotrópicos – modificaram


a paisagem da loucura […]. Embora não curem nenhuma doença mental ou
nervosa, elas revolucionaram as representações do psiquismo, fabricando
um novo homem, polido e sem humor, esgotado pela evitação de suas
paixões, envergonhado por não ser conforme ao ideal que lhe é proposto.
(Roudinesco, 1999-2000, p 21).

Segundo Roudinesco (1999-2000), os psicotrópicos receitados, tanto por


clínicos gerais quanto pelos especialistas em psicopatologia, teriam o efeito de
“normalizar” comportamentos e eliminar os sintomas mais dolorosos do sofrimento
psíquico, sem, no entanto, buscar-lhes o verdadeiro significado.

Pondera que, a princípio, a redoma medicamentosa inventada pela


psicofarmacologia deu ao homem a recuperação da liberdade apreendida.
Permitiram a reintegração do louco na sociedade, os tratamentos bárbaros e
ineficazes foram sendo, aos poucos, substituídos ou abandonados, bem como, aos
neuróticos e deprimidos, trouxeram uma tranquilidade maior. Entanto, apesar da sua
impressionante eficácia, a psicofarmacologia teria perdido seu prestígio.
25

Na verdade, ela encerrou o sujeito numa nova alienação ao pretender curá-


lo da própria essência da condição humana. Por isso, através de suas
ilusões, alimentou um novo irracionalismo. É que, quanto mais se promete o
“fim” do sofrimento psíquico através da ingestão de pílulas, que nunca
fazem mais que suspender sintomas ou transformar uma personalidade,
mais o sujeito, decepcionado, volta-se em seguida para tratamentos
corporais ou mágicos (Roudinesco, 1999-2000, p. 22).

Roudinesco, para denunciar os excessos da psicofarmacologia, retrata


citações de psiquiatras que outrora a glorificaram, mas que, hoje, postulam que os
remédios da mente sejam administrados de maneira mais racional e em
coordenação com outras formas de tratamento, como a psicanálise e a psicoterapia.
Cita Jean Delay, principal representante francês da psiquiatria biológica que, em
1956, teria afirmado: “Convém lembrar que, em psiquiatria, os medicamentos nunca
são mais do que um momento do tratamento de uma doença mental, e que o
tratamento básico continua a ser a psicoterapia”. Henri Laborit, um dos inventores
desses medicamentos, teria dito

Por que ficamos contentes por dispor de psicotrópicos? Porque a sociedade


em que vivemos é insuportável. As pessoas não conseguem mais dormir,
ficam angustiadas e necessitam ser tranquilizadas, mais nas megalópoles
do que noutros lugares (…). Sem os psicotrópicos, talvez tivesse havido
uma revolução na consciência humana, dizendo: 'Não podemos mais
suportar isso!' Mas foi possível continuar a suportá-lo, graças aos
psicotrópicos (Roudinesco, 1999-2000, p. 23).

Apesar dessas constatações, a psicofarmacologia teria se tornado, segundo a


autora, o “estandarte de uma espécie de imperialismo” (p. 23). Através da
psicofarmacologia, os médicos estariam tratando psicoses, neuroses, fobias,
melancolias e depressões de maneira indiscriminada, “como um punhado de
estados ansiosos, decorrentes de lutos, crises de pânico passageiras, ou de um
nervosismo extremo, devido a um ambiente difícil”. Daí que os psicotrópicos,
conforme Édouard Zarifian, seriam o “símbolo da ciência triunfante”, simbolizando: “a
vitória do pragmatismo e do materialismo sobre as enevoadas elucubrações
psicológicas e filosóficas que tentavam definir o homem” (Roudinesco, 1999-2000,p.
24).
26

O que a “ideologia medicamentosa” das sociedades democrático-liberais


modernas deseja debelar nada mais são que os traços constitutivos e essenciais da
própria condição humana: a angústia, o conflito, o luto, a tristeza, a desilusão.

Nos países democráticos, tudo se passa como se já não fosse possível


haver nenhuma rebelião, como se a própria ideia de subversão social ou
intelectual se houvesse tornado ilusória, como se o conformismo e o
higienismo próprios da nova barbárie do biopoder* tivessem ganho a
partida. Daí a tristeza da alma e a impotência do sexo, daí o paradigma da
depressão. (Roudinesco, 1999-2000, p. 25)

Considerando que “a reivindicação de uma norma prevaleceu sobre a


valorização do conflito”, a autora tenta demonstrar como a psicanálise vem perdendo
sua força de revolucionar após haver contribuído, “ao longo do século XX, não
apenas para a emancipação das mulheres e das minorias oprimidas, mas para a
invenção de novas formas de liberdade” (Roudinesco, 199-2000, p.26). Roudinesco
relembra que foi atribuído a uma mulher, Anna O., e não a um cientista, a invenção
do método psicanalítico:

um tratamento baseado na fala, um tratamento em que o fato de se


verbalizar o sofrimento, de encontrar palavras para expressá-lo, permite, se
não curá-lo, ao menos tomar consciência de sua origem e, portanto,
assumi-lo. (Roudinesco, 1999-2000, p. 26)

Entretanto, apesar de sua potência de transformação, e considerando que o


medicamento em si não se opõe a um tratamento pela fala, a psicanálise estaria
sendo colocada em concorrência com a farmacologia; sendo utilizada, ela mesma,
como uma pílula. E se isto ocorre, segundo Roudinesco, seria porque “os próprios
pacientes, submetidos à barbárie da biopolítica, passaram a exigir que seus
sintomas psíquicos tenham uma causalidade orgânica.” (Roudinesco, 1999-2000, p.
29).

Nesse contexto, a própria medicina também estaria respondendo ao modelo


da depressão, contribuindo assim para romper a essência da vida humana -

Entre o medo da desordem e a valorização de uma competitividade


baseada unicamente no sucesso material, muitos são os sujeitos que
27

preferem entregar-se voluntariamente a substâncias químicas a falar de


seus sofrimentos íntimos. O poder dos remédios do espírito, portanto, é o
sintoma de uma modernidade que tende a abolir no homem não apenas o
desejo de liberdade, mas também a própria ideia de enfrentar a prova dele.
O silêncio então passa a ser preferível à linguagem, fonte de angústia e
vergonha. (Roudinesco, 1999-2000, p. 30).

Nesse estado de coisas, nem os médicos escapariam. Muitos deles não


estariam em melhores condições do que seus pacientes e conclui

Inquietos, insatisfeitos, atormentados pelos laboratórios e impotentes para


curar, ou, pelo menos, para escutar uma dor psíquica que os transcende
cotidianamente, parecem não ter outra solução senão atender à demanda
maciça de psicotrópicos. Quem se atreveria a culpá-los? (Roudinesco,
1999-2000, p. 31).

Diante do impulso da psicofarmacologia, a psiquiatria abandonou o modelo de


classificação das doenças em prol de uma classificação dos comportamentos. Em
consequência disso, reduziu a psicoterapia a uma técnica de cessação dos
sintomas. Daí a valorização da prática e da “não teoria” dos tratamentos de
emergência.

O medicamento sempre atende, seja qual for a duração da receita, a uma


situação de crise, a um estado sintomático. Quer se trate de angústia, agitação,
melancolia ou simples ansiedade, é preciso, inicialmente, tratar o traço visível da
doença, depois suprimi-lo e, por fim, evitar a investigação de sua causa de maneira
a orientar o paciente para uma posição cada vez menos conflituosa e, portando,
cada vez mais depressiva. Em lugar das paixões, a calmaria, em lugar do desejo, a
ausência de desejo, em lugar do sujeito, o nada, e em lugar da história, o fim da
história. O moderno profissional de saúde — psicólogo, psiquiatra, enfermeiro ou
médico — já não tem tempo para se ocupar da longa duração do psiquismo, porque,
na sociedade liberal depressiva, seu tempo é contado (Roudinesco, 1999-2000, p.
41).
28

CONCLUSÃO

Freud (1912) nos diz que dois são os tipos de doenças psíquicas. Um advém
das mudanças no mundo externo e adoece-se por uma experiência, o outro advém
de uma mudança interna, por um processo de organização do ego para resistir às
pulsões do id, às cobranças do superego e às pressões da realidade. Nesse
horizonte, a medicalização entra em segundo plano.

A medicalização consiste no processo pelo qual o estilo de vida do homem é


apreendido pela medicina e que interfere na estruturação de conceitos, regras de
higiene, normas de moral e costumes preceituados, sejam eles sexuais, alimentares,
comportamentais sociais e morais, preconizados pela manutenção de preconceitos
culturais e religiosos.

É a sociedade contemporânea que busca, desenfreadamente, explicações


biológicas, fisiológicas e comportamentais que possam dar conta de distintos tipos
de sofrimento psíquico, sejam eles a histeria, a ansiedade, o estresse, a depressão,
a síndrome do pânico, o transtorno bipolar e as fobias, tentando unificar os
comportamentos e, assim, obter respostas mais rápidas e rendosas.

Longe de negar o emprego das substâncias psicotrópicas e desprezar o


conforto que elas proporcionam, o objetivo deste trabalho foi mostrar que elas não
podem curar o sujeito de seus sofrimentos psíquicos, sejam estes naturais ou
patológicos. Servem como tamponamento, jamais a solução final, para a
subjetividade de cada um, moldada pelas relações com outro, o inconsciente, a
loucura, a sexualidade, as paixões e a morte.

Em sentido oposto das receitas instantâneas, encontra-se a psicanálise. Já há


mais de cem anos, através da escuta de pacientes histéricas, Freud descobriu que
os sintomas apresentados por aquelas não decorriam de nenhum trauma orgânico,
mas que aqueles possuíam um sentido, um significado e relacionavam-se às
práticas vivenciadas por elas.
29

Foi-se o tempo da barbárie, não se pode mais pretender reduzir o


pensamento às relações entre neurônios ou confundir excreções químicas com o
desejo. Felizmente, jaz restaurada a ideia de que o homem é livre por sua fala e que
seu destino não se traduz ao ser orgânico.

Por fim, ratificamos a opinião de Jean Delay (1956), principal representante


francês da psiquiatria biológica, de que “convém lembrar que, em psiquiatria, os
medicamentos nunca são mais do que um momento de tratamento de uma doença
mental, e que o tratamento básico continua a ser a psicoterapia”.
30

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALLIGARIS, Contardo. Psicanálise e colonização: Leituras do sintoma social


no Brasil: A psicanálise e o sujeito colonial. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999, p.
11 a 23.

FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas


Completas de Sigmund Freud: Inibições, sintomas e ansiedade. Tradução: Jayme
Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976, p. 107 a 180, v. 20.

FREUD, Sigmund. O mal estar na civilização, novas conferências introdutórias


à psicanálise e outros textos (1930-1936): O mal estar na civilização. Tradução:
Paulo césar Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 13 a 123.

ROUDINESCO, Elisabeth. Por que a psicanálise?: A sociedade depressiva.


Tradução: Vera Ribeiro .Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000, p. 13 a 52.

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