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Contraponto Modal : Considerações Preliminares (CARVALHO, 2006)

Ao iniciar-se o estudo de contraponto a duas vozes, é importante relembrar o objetivo principal do contraponto: compor uma linha melodicamente
coerente que, ao combinar-se com outras linhas melódicas, resulte em um tecido musical compreensível e independente. No século XVI o uso
do cantus firmus estava praticamente extinto, apesar de ainda formar a base da aprendizagem de composição, moldando as técnicas dos compositores
desta época. A sistemática desenvolvida por Johann Joseph Fux em seu tratado Gradus ad parnassum utiliza o cantus firmus como base, e por isso, os
exemplos e exercícios deste material seguirão esta sistemática e serão baseados em suas regras.

O principal propósito do uso das espécies é estabelecer a relação entre consonância, dissonância e acentuação (ROBERTS & FISCHER, 1967, p. v).
As espécies revelam a importância do contexto. A ideia de Fux é simplificar a aprendizagem, iniciando-se cada espécie com um ritmo distinto, de
forma que o aluno possa primeiro concentrar-se apenas no aspecto melódico. Uma vez assimilada esta etapa, é possível descartar-se o cantus firmus e
iniciar-se a composição livre.

As regras de contraponto, obviamente, foram formuladas muito depois da existência desta música. Na época, os compositores copiavam muito do que
seus contemporâneos escreviam, embora não houvesse normas ditando como deveriam proceder. Apesar de a maioria das composições ser para mais
de duas vozes, ainda se escrevia conjuntos de peças para duas vozes, as chamadas bicinia, intercaladas com seções para mais vozes. As relações
intervalares entre as vozes são sempre calculadas do grave ao agudo. Quando ocorre o cruzamento de vozes (consequentemente, a voz mais aguda
torna-se a mais grave por alguns instantes), o intervalo é calculado a partir da nota mais grave, mesmo que esta seja normalmente mais aguda. Os
intervalos são categorizados como consonantes (movimentando-se livremente) e dissonantes (usados sob circunstâncias pré-determinadas).

Partindo do mais simples, iniciaremos o estudo de contraponto com apenas duas vozes: o canto firmus (pré-fixado), formando a base que governará o
rumo e o sentido da linha melódica, e a voz do contraponto a ser originada. Conforme Salzer e Schachter (1969, p. 3), o cantus firmus é uma abstração
de uma melodia, na qual o elemento linear é desprendido de outros aspectos, como o ritmo, desenho motívico ou até mesmo implicações harmônicas,
tornando-se uma organização melódica em sua forma mais simples. Na concepção de Fux, o cantus firmus aparece sempre em notas longas, todas de
igual valor rítmico, justamente para ressaltar somente os fatores lineares. Desta forma, o aluno aprenderá a compor uma melodia sem o auxílio rítmico,
ou seja, o efeito será consequência de seu contorno, seu fator puramente linear. Deve-se manter em mente, todavia, que não existem composições
escritas nas espécies, são apenas exercícios com o objetivo de alcançar progressivamente a escrita da época. Somente ao chegar-se à quinta espécie,
florido, é possível compor exercícios com sentido mais completo e diversificado, já que o ritmo é variado. Após estas etapas, a eliminação do cantus
firmus e a movimentação desta voz produzirão uma composição no estilo do século XVI, embora a duas vozes. As cinco espécies funcionam como um
caminho para este fim.

Salzer e Schachter (1969, p. 4) afirmam que um bom cantus firmus deve variar entre oito a dezesseis semibreves, com início, clímax e final.
Logicamente, os exercícios a serem construídos deverão ser concebidos baseando-se na voz humana. Portanto, cromatismo e saltos de intervalos
maiores que a oitava, ou mesmo dissonâncias, não devem aparecer no cantus firmus, sendo este restrito a uma extensão de no máximo uma décima.

No movimento linear, o fator essencial é o direcionamento da linha e seu objetivo claramente definido, ou seja, a relação do clímax melódico com seu
início e fim. Este clímax deverá aparecer apenas uma vez no decorrer de cada exercício. A clareza e a ideia de continuidade musical são tecidas através
do uso de graus conjuntos, com poucos saltos, estes últimos compensados imediatamente por movimento contrário (de preferência por grau conjunto) e
inseridos para produzir variedade melódica.

Na música sacra do renascimento, a unidade de tempo é geralmente a mínima, mais raramente a semínima (ROBERTS & FISCHER, 1967, p. 17). Na
música secular é quase sempre a semínima. Em ambos os casos, eram comparáveis à pulsação normal (metrônomo = 72 a 80). O mesmo resultado no
barroco apresenta uma escrita diferente, com a semínima como unidade de tempo. A maior parte da música do século XVI foi escrita em 4/2, às vezes
com trechos em 3/2 ou 3/1.

As barras de compasso surgiram somente no século XVI, apesar de haver uma pulsação, ora forte, ora fraca, resultante da distribuição das
consonâncias e dissonâncias (MERRIMAN, 1982, p. 4). Os tempos eram organizados conforme a posição das dissonâncias, cadências, início e final
das frases.

O ritmo do cantochão era baseado na prosa do texto bíblico, sendo livre e irregular. A acentuação rítmica existia, porém de forma sutil. As notas
longas, colocadas entre notas mais curtas, criavam uma sensação de acentuação, uma vez que interrompiam o movimento. Esta acentuação, chamada
agógica, produzia um efeito peculiar, por exemplo, quando uma voz tinha notas longas e a outra notas mais curtas, simultaneamente (SMITH, 1989, p.
22). A ausência de barras de compasso não impossibilitou a organização dos tempos, pois estes eram ditados pelo uso das dissonâncias, cadências,
início e finais de frases. Um conflito rítmico era criado através do uso de um acento, decorrente da dissonância em tempos específicos, e uma
acentuação “desencontrada”, provocada pelo uso simultâneo de notas longas e curtas. Nesta época empregava-se a notação branca: máxima, longa
e brevis.

Contraponto a duas vozes, em geral, é escrito para vozes iguais ou adjacentes como, por exemplo, para tenor e baixo, e as linhas melódicas dificilmente
ultrapassam a oitava, a não ser no caso de haver imitação. Muitos autores adotam as várias claves para ensinar contraponto, por fazerem parte da
prática da época, evitando a utilização de linhas suplementares, e auxiliando na transposição. No entanto, adotaremos apenas as claves mais familiares,
Fá e Sol. Serão utilizadas também duas vozes mais distantes, como tenor e soprano, tenor e contralto, ou baixo e soprano, e baixo e contralto, apenas
para que a utilização de duas pautas formando um sistemas com as claves de fá e sol, torne os exercícios mais distintos. Independentemente, é
altamente recomendável que o aluno pratique a escrita e a leitura nas outras claves, uma vez que os exemplos musicais da época as utilizavam.

A maioria dos alunos que estudaram apenas TEORIA MUSICAL já ouviu falar de HARMONIA, mas são poucos os que sabem definir
CONTRAPONTO. Portanto, ao iniciar o estudo de contraponto é preciso conscientizar-se do que realmente é contraponto, e, quais as diferenças entre
contraponto e harmonia:
A principal diferença entre contraponto e harmonia está na ênfase. No contraponto, a melodia dá origem aos acordes, ou seja, os acordes são
consequência da superposição das linhas melódicas. Na harmonia, os acordes ditam o movimento das linhas melódicas individuais. A música
renascentista era basicamente linear, com exceção das cadências, não havendo uma preocupação com a função harmônica. No decorrer do período
barroco, o contraponto tornou-se escravo da função harmônica, tornando obscura a diferença entre os dois conceitos. Em verdade, a partir desta época
torna-se difícil e inserto querer separar contraponto e harmonia, pois um aspecto depende do outro.

A organização de sons sucessivos e simultâneos (intervalos melódicos e harmônicos), de forma a produzir um resultado musical compreensível, é a
meta destes exercícios. O aspecto horizontal, isto é, a superposição das duas linhas (cantus firmus e contraponto), constitui o fator mais importante.
Contudo, o movimento destas linhas contém um aspecto vertical – os intervalos harmônicos – cujo papel é essencial no resultado sonoro. Um completa
o outro, independentemente de um ser resultante do outro. Esta união dos aspectos horizontal e vertical é consequência do controle vertical das
consonâncias e dissonâncias (SALZER & SCHACHTER, 1969, p. 13). As consonâncias dão origem às sonoridades mais importantes, enquanto as
dissonâncias se entrelaçam com as consonâncias, ativando-as e intensificando-as.

É importante ressaltar o ponto levantado por Salzer e Schachter (1969, p. 13): “... os diferentes intervalos consonantes possuem diversos graus de
estabilidade, e as dissonâncias possuem diversos graus de tensão.” Estes autores atribuem a maior estabilidade possível ao intervalo de uníssono. A
oitava vem em segundo lugar, por criar um contraste de registro entre os dois sons. A quinta é considerada o próximo intervalo mais estável, criando
contraste entre suas notas diferentes. Estes autores citam as consonâncias imperfeitas (terças e sextas) como menos estáveis verticalmente, embora
estas consonâncias revelem uma tendência maior ao movimento do que os três intervalos acima mencionados (SALZER & SCHACHTER, 1969, p.
14). As terças são mais estáveis do que as sextas, uma vez que pertencem à "tríade maior" ou "menor". A sexta, por sua vez, é resultado da inversão da
terça, formando um intervalo derivado, portanto de menor estabilidade. Por serem os mais estáveis e produzirem um efeito de repouso, as oitavas e o
uníssono iniciam e terminam os exercícios (CADWALLADER & GAGNÉ, 1998, p. 26).

Em diferentes períodos históricos, determinados intervalos foram considerados consonantes e outros dissonantes. Por exemplo, na Idade Média, o
intervalo de quarta era considerado uma consonância, mas no decorrer da renascença este mesmo intervalo passou a ser considerado dissonância. As
consonâncias, na renascença, incluem os intervalos de terça maior (3M), terça menor (3m), quinta justa (5J), sexta maior (6M), sexta menor (6m),
oitava justa (8J), e uníssono (U). As quintas, oitavas e uníssono são consonâncias perfeitas, enquanto as terças e sextas formam consonâncias
imperfeitas. As dissonâncias são os intervalos de segunda maior e menor (2M e 2m), quarta justa (4J), sétimas maiores e menores (7M e 7m), assim
como todos os intervalos aumentados (A) e diminutos (d).

Apesar de cada espécie ter suas próprias regras, existem aspectos que se aplicam a todas as espécies, como por exemplo, os intervalos melódicos e
harmônicos permitidos.

Intervalos melódicos permitidos

Intervalos melódicos não permitidos


Intervalos harmônicos permitidos

Muitos teóricos utilizam regras às vezes mais rígidas do que outros. As regras adotadas aqui, estão baseadas principalmente no livro de Knud Jeppesen
(1939), visto ser considerado, até hoje, um dos mais completos e conceituados trabalhos nesta área.

É importante lembrar que o movimento preferido é o contrário, depois o oblíquo. Movimentos por graus conjuntos é o mais utilizado na música vocal
deste período. Ao ouvirmos duas ou mais linhas melódicas simultâneas é mais fácil acompanhar cada voz quando o movimento predominante for por
grau conjunto. Os saltos, necessários para tirar a monotonia resultante do uso exclusivo de graus conjuntos e por serem manos frequentes, dão um
caráter mais expressivo à linha melódica (PORTER, 1948, p. 5).

REFERÊNCIA
CARVALHO, Any Raquel. Contraponto Modal a duas vozes: as cinco espécies. In: ______.Contraponto Modal: manual prático. 2ª ed. Porto Alegre :
Evangraf, 2006. 133 p.
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