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Núcleo Básico – Módulo 3

Na escola, tudo tem seu tempo

Refletir sobre a atividade dos gestores


Na escola, tudo tem seu tempo
Rotina e prazer são necessários no dia a dia. O papel do gestor é levar a equipe a equilibrar os
dois polos para conseguir ensinar melhor

O que é tempo? Uma pergunta como essa, tão filosófica, à primeira vista parece ter
pouco a ver com o mote desta coluna – refletir sobre a atividade dos gestores
escolares. Pretendo mostrar que o tempo é, sim, um componente fundamental no dia a
dia desses profissionais. Não apenas no que diz respeito à sua administração, mas
também em relação à sua vivência.

Peço ajuda aos gregos da Antiguidade para explicar melhor. Eles distinguiam dois tipos
de tempo: o cronos e o cairós. O primeiro é o tempo efetivamente medido, aquele do
relógio e da rotina. O segundo é o tempo vivido, que, diferentemente do cronos, não se
mede pelo tamanho, mas pela intensidade. É como se os ponteiros de hora, minuto e
segundo parassem e mergulhássemos num túnel fora da Terra. Quando entramos nas
portas infinitas do tempo cairós, o cronos fica sem importância. Como num reencontro
de dia inteiro com amigos queridos, que há muito não víamos, podemos dizer: “Nem
percebi que passou o tempo e já está na hora de ir para casa...”. Sinal de que a
atividade realmente foi boa e pudemos nos entregar ao cairós vivido, valorizado,
partilhado.

A escola está impregnada de cairós. As vivências afetivas são as mais lembradas de


nossa infância. Certamente muitas delas se passaram nos recreios, em um diálogo
esclarecedor com um professor que ajuda a aprender o conteúdo, nos trabalhos em
grupo, numa instigante experimentação científica ou na exposição dos trabalhos. Os
alunos também experimentam esse tempo quando ficam olhando para o infinito, como
que distraídos, com o rosto entre as mãos, sonhando com a princesa ou o príncipe dos
seus sonhos – ou imaginando uma viagem ao mundo medieval, às geleiras dos Andes
ou ao deserto de Kalahari. Com os professores, não é diferente. Vem à cabeça a
imagem de uma docente que me procurou para mostrar uma prova de Matemática que
ela havia elaborado, dizendo: “Veja, Fernando, que lindo problema inventei para os
alunos!”. Ela, sem dúvida, estava vivendo o tempo cairós.

Não se pode esquecer, porém, que o cotidiano escolar está repleto de cronos, o tempo
que nos acompanha e nos enquadra, dando o sentido das tarefas, pondo-lhes metas e
balizando a organização coletiva. O cronos é frequentemente confundido com a
burocracia – e não há nada de mau nisso. Explico o porquê. Por exemplo, a
pontualidade no pagamento do salário é uma burocracia (já imaginou receber apenas
quando o patrão quisesse?). Mas é uma burocracia boa, assim como a dos prazos
cumpridos, a dos relatórios entregues e a das notas na secretaria no dia combinado.

Fazer esses dois tempos conversar entre si não é fácil. Rotinas atropeladoras, excesso
de demanda, mistura de urgências com condução do dia a dia... O conflito entre as
atividades “burocráticas” e as “nobres e pedagogicamente ricas” é uma contradição que
o gestor enfrenta diariamente. No limite, se faço só o prazeroso, abandono as
exigências burocráticas pelas quais serei cobrado. De outro lado, se não faço nada de
que gosto, meu trabalho fica sem sentido.
Núcleo Básico – Módulo 3
Na escola, tudo tem seu tempo

Sabemos que as duas atividades são importantes para nossa saúde mental e
profissional. Como administrar o tempo do gestor e da escola para responder a tantos
problemas? Como fazer o equilíbrio entre eles? A segunda edição da revista Nova
Escola Gestão Escolar mergulha fundo nessa difícil questão. Uma das reportagens
discute como o diretor pode organizar melhor seu tempo de trabalho, ensinando a
contemplar as tarefas planejadas e as rotineiras para evitar que o dia a dia seja
dedicado somente a apagar incêndios.

O bom administrador do tempo é aquele que consegue extrair dos mais corriqueiros
atos do cotidiano as maravilhas do cairós sem descuidar do cronos, estabelecendo
claramente os responsáveis pelas tarefas, expondo datas de entregas e cobrando o
cumprimento dos prazos ligados ao bem comum. Uma prática muito importante é
buscar, juntamente com a equipe, o sentido de todas as atividades da escola. Todos
conhecemos a afirmação de que as pessoas ocupadas são as que têm mais tempo. E
também seu reverso: “Quem não tem nada a fazer não tem tempo para nada”. Ou seja,
achar tempo para as coisas está ligado a uma disponibilidade interior. Se dou valor e
importância a uma atividade, então acho tempo para ela. Se a julgo desimportante, seu
tempo some.

Na prática, isso significa que os faxineiros debaterão com o gestor qual o significado da
limpeza na organização dos espaços. Isso fará com que, ao se verem reconhecidos,
deem mais valor à sua atuação e ao cumprimento dos horários de suas tarefas. Já os
professores, refletirão com a direção sobre os duros e promissores caminhos que
trilharam com suas classes durante todo o ano.

O próprio gestor precisa examinar seu fazer, buscando nas ações corriqueiras – como
ler o Diário Oficial, prestar contas dos recursos financeiros (por exemplo, do Dinheiro
Direto na Escola), verificar os rendimentos escolares dos alunos, cuidar da manutenção
e de seus prazos de validade – uma rica forma de trabalhar com o tempo individual e
com o tempo coletivo. Trata-se, portanto, de enxergar na burocracia de cumprir
calendários uma forma de tornar a escola de aprender em uma escola de aprender
Ciências, Geografia, leitura e Geometria. Tudo para saber viver a melhor dimensão dos
tempos da vida: a felicidade de conviver.

Ao proceder dessa forma, o gestor constrói um percurso que visa transformar o tempo
burocrático em tempo vivido e valorizado. O exercício de planejamento e a rotina,
assim, passam de mera prestação de contas a análise dos significados do ato de
educar. Cronos transformado em cairós.

Fernando José de Almeida


É filósofo, docente da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, SP e vice-
presidente da TV Cultura – Fundação Padre Anchieta.

Fonte: ALMEIDA, F. J. de. “Na escola, tudo tem seu tempo”. In: revista Nova escola.
São Paulo: ano XXIV, n. 223, p. 112-113, jun/jul. 2009.

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