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Luís Nogueira
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Cinema 2.0: O Cinema na Era da Internet 3
alidade se imporia. A recusa das imagens bólicos e evocações místicas não lhe parece-
de devoção outorgada por Lutero haveria ram interessar em demasia. O olhar sofre en-
de originar uma terceira via iconográfica, a tão nova metamorfose, precisamente quando
qual, em grande medida, parece-nos, seria se ocupa tanto da visão (como passa a acon-
altamente responsável pela constituição do tecer na pintura) como com o visto (acontece
doméstico como imaginário, sobretudo nos na fotografia, e depois no cinema).
países nórdicos. Cenas domésticas das mais Desde cedo a fotografia se interessa en-
prosaicas passam a fazer parte, sobretudo tão pelo que está próximo, pelo que está pre-
a partir do século XVII, com extrema reg- sente: retratos e janelas, jardins e naturezas-
ularidade das temáticas representadas, dan- mortas hão-de estar entre as suas temáticas
do origem a novos ou renovados géneros, mais dilectas. Relembremos a primeira fo-
a natureza-morta e o retrato, que convivem tografia, de Niepce, uma fotografia feita em
com os motivos clássicos: as pinturas reli- casa ? ainda que apontando para a paisagem
giosas, os nus, as mitologias pagãs. através da janela. Ou pensemos nas fotos
Se é certo que a realização de pintura reli- de campanha de Roger Fenton ? descobrir
giosa e evocativa não cessaria até bem den- o mundo e registá-lo, sim, mas na sua ma-
tro do século XIX, a verdade é que artistas terialidade é a preocupação. Ou na insistên-
como Vermeer ou mesmo Rembrandt, com cia voyeurista de Erich Salomon. O que se
as suas cenas de interiores, se revelam ópti- pretende? Antes de mais, registar a prosa do
mos exemplos desse realismo doméstico que mundo, seja ele o mundo doméstico seja o
a nível temático e estilístico parece antecipar mundo planetário.
em dois séculos os movimentos realistas pro- Ironicamente, agora que a pintura e a fo-
priamente ditos. Levaria, portanto, um tempo tografia tinham preparado o cinema para um
significativo até o prosaico e o doméstico ? natural convívio com a realidade domésti-
e porque não dizê-lo, o secular ? entrarem ca, eis que este a despreza crescentemente
definitivamente no imaginário ocidental, e e assume o seu sonho de espectáculo total
haveria de se passar pelo barroco, o classi- para um novo século. A lógica industrial e
cismo, o romantismo ou o simbolismo. Mas comercial acabaria por se impor. Arte exi-
quando o cinema surge já o quotidiano é um gente, quer técnica quer, sobretudo, finan-
motivo pleno de interesse e curiosidade artís- ceiramente, o cinema tornar-se-ia uma for-
tica e técnica. ma de expressão para as massas ? mas, cu-
Neste percurso, o cinema talvez não deva riosamente, não de massas: o lado artesanal
enjeitar o contributo da sua tecnologia ma- (salvo algumas excepções como aquelas que
triz, a fotografia. A fotografia haveria de ser, o cinema experimental ou o cinema de an-
como bem o sabemos, a responsável pela re- imação haveriam de assinalar) revelar-se-ia
definição do espectro de interesses do olhar diminuto nas cinco décadas seguintes. Des-
ocidental: extremamente próxima do real, ao de os anos 1920 até à década de 1950, o
ponto de um decalque mimético e indicial cinema doméstico tem uma existência mer-
se tornar a sua característica distintiva, des- amente residual. O espanto cinematográfi-
de cedo ela se interessou pelo material, pelo co que os primeiros filmes pareciam ofere-
próximo, pelo instantâneo ? requintes sim- cer como atracção haveria de se desdobrar
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ao longo do tempo, com o inerente acrésci- a nouvelle vague, o free cinema, o direct
mo de custos: o som, a cor, os ecrãs lar- cinema, o underground cinema. A unir to-
gos seriam alguns dos momentos fulcrais dos estes movimentos ou tendências, uma
desta metamorfose imparável que, constan- característica comum: uma proximidade à
temente, relegava um cinema mais prosaico realidade que se faz antes de mais com a
para as margens ocupadas pelo experimental, aceitação de significativos dados novos: a
pela animação ou pelo documentário. aceitação do acaso, da urgência e da auten-
Retomemos então esta retrospectiva do ticidade como valores criativos. As câmaras
imaginário doméstico na nova etapa que se mais leves permitem tratar o mundo como
revelaria decisiva: finais da década de 1950, uma extensão da casa ? e tal haveria de se
início da década de 60. O que acontece en- tornar uma estratégia discursiva que as dé-
tão? Tudo o que de modernidade o imag- cadas seguintes iriam vincar cada vez mais,
inário cinematográfico parece prometer. As como denotam quer a vaga crescente de doc-
décadas anteriores tinham sido predominan- umentários quer a constância da reportagem
temente classicistas e canónicas. Tudo no e do directo televisivos.
cinema parecia profundamente calculado: as A diminuição dos custos de produção
histórias, os actores, os valores de produção, (devido a equipas mais pequenas e menos
os géneros, as audiências. Tudo parecia ob- equipamentos) tornar-se-ia, assim, um dos
jecto de incansável cálculo e controlo. De to- aspectos fundamentais para a diversificação
dos os símbolos desta lógica produtiva e cria- das obras e para a eclosão e disseminação
tiva, o estúdio é o exemplo máximo: local de um cinema doméstico a nível, pode-
confinado onde se criam e recriam univer- mos dizê-lo, planetário. Ao ponto de, já em
sos de total alteridade. Excluindo momentos décadas recentes ? entre os anos 1980 e
como o neo-realismo ou certos ensaios doc- 2000 ? as produções low-budget entrarem no
umentais, o mundo cinematográfico privile- próprio terreno do mainstream cinematográ-
gia, de um ponto de vista produtivo, a ficção fico. Alguns filmes que chegaram ao circuito
em estúdio. Algumas mudanças técnicas se comercial são exemplo daquilo que alguns
afigurariam fundamentais nos anos 1950 e designam por cinema guerrilla, filmes de
1960. Em primeiro lugar, o surgimento de baixo orçamento com ideias fortes ou inusi-
novas câmaras, mais leves e portáteis, ca- tadas: das produções iniciais de Spike Lee
pazes de penetrar em qualquer espaço com a ao fenómeno crítico “El Mariacchi”, passan-
máxima discrição. Em segundo lugar, o surg- do pelo estrondo mediático de “Blair Witch
imento da televisão, forma de comunicação Project”(que, de algum modo, parecem ter
que deliberadamente coloca o espaço de con- precursores nos filmes de série B ou Z que
vivência doméstico como alvo da sua acção. constituem uma espécie de história alternati-
Esta intrusão no espaço doméstico haveria de va do cinema).
ter consequências enormes, como veremos Mas o momento de viragem fundamental
mais adiante. no que respeita ao cinema doméstico seria a
Estas câmaras mais leves dariam origem introdução de uma nova tecnologia audiovi-
a uma realidade cinematográfica nova que sual: nos anos de 1970 e 1980, o vídeo have-
assumiria diversas formas: o cinema-verité, ria de refazer toda a concepção de produto
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sobretudo, de que modo assistimos a uma es- versos problemas com que um criador se
pécie de domesticação da técnica. Esta ideia confronta. O conceito de user-friendly é a
do lar como oficina não é exactamente no- esse título paradigmático. Uma nova litera-
va. Ela remete para as formas de aprendiza- cia criativa parece ter-se vindo a dissem-
gem e de produção pré-industriais. O lo- inar ao longo dos últimos tempos. Se o
cal de trabalho era, então, interior ou con- vídeo oferecia já uma certa autonomia nas
tíguo ao espaço habitacional. Viver, apren- condições de recepção e visionamento de
der e fazer decorriam em espaços adstritos uma obra (avançar, retroceder, pausar ? tu-
ou coincidentes. A homogeneização dos pro- do opções que o visionamento clássico em
cessos produtivos e a seriação das quanti- sala não permitia), o certo é que o software
dades, próprios da industrialização, haveri- digital, e a manipulação da informação que
am de deslocar os operários para linhas de este permite, veio acrescentar uma ampli-
montagem cada vez mais precisas e afastadas tude muito mais vasta e extensa de operações
do lar. possíveis: editar, apagar, sobrepor, colar, dis-
A mecanização assenta na ordem, no pro- torcer, fundir. Basta atentarmos nos progra-
grama ? e o cinema tem um fundo mecâni- mas de efeitos especiais para notarmos co-
co na sua ontologia. Desde muito cedo que mo as opções são imensas, comportando as
o cinema se tornou uma arte de grandes mais sofisticadas ao lado das mais imediatas
exigências e constrangimentos: exigências funções. Onde antes se exigiam conhecimen-
que obrigaram a uma grande especializa- tos adquiridos ao longo de anos e equipa-
ção (e as tarefas das equipas técnicas e mentos com capacidades extraordinárias, ho-
artísticas isso mesmo comprovam); exigên- je podemos aceder a esse saber através de
cias financeiras (uma vez que as grandes um simples tutorial e com um computador
produções implicam enormes encargos com portátil.
equipamentos, com actores, com market- E onde antes a lógica de produção impli-
ing, etc.); exigências discursivas (escala de cava grandes investimentos e a mobilização
planos, tipos de montagem, entre outros as- de enormes recursos, hoje nada há de muito
pectos). Para o cidadão comum, as condições incómodo na estratégia low-budget e na es-
de produção parecem estar constantemente tética low-fi. Todos podem fazer o seu filme.
vedadas, porque estas exigências significam Todos podem concretizar as suas ideias ?
constrangimentos. Sem saber e sem poder é desde que devidamente dimensionadas. Que
o seu estado mais comum. falte mais a estética que a técnica, as mentes
A longa e difícil aprendizagem exigida pe- do que as máquinas, eis o que as academias
los ofícios do cinema haveriam de mudar podem e devem fazer valer. Num regime
de alguma forma ao longo do tempo ? e de produção e criação onde tudo parece tão
de forma nitidamente mais vincada nas úl- próximo e tão acessível, onde o imaginário
timas décadas. E talvez as mudanças devam doméstico parece totalmente omnipresente,
ser vistas tanto do lugar do mestre como as academias podem e devem cumprir as
do lugar do discípulo. Os mais recentes de- suas tarefas de sempre, talvez com mais pro-
senvolvimentos nas tecnologias digitais têm priedade do que nunca: questionar, provocar,
oferecido as soluções mais variadas aos di- experimentar. Em todos os casos, deslocar os
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seus alunos para lá do quotidiano e do óbvio. o sujeito se encontra, encontra-se uma pos-
A excelência, a existir um trajecto que a ela sibilidade de escrita da realidade, um olhar
conduza, será certamente um percurso árduo inaugural. A webcam parece prometer uma
e longínquo ? mas facilitado pela viabilidade telepresença constante, como se a imagem
crescente do auto-didactismo. doméstica se predispusesse antes de mais à
Com isto queremos dizer que o domésti- universalidade ? já não uma audiência de
co poderá ou não ser o lugar último da as- serão familiar, mas uma comunidade plan-
piração artística. A criação ocorre em diver- etária. Mesmo que não esteja um cineasta
sos registos e em diversas escalas. Há quem em cada cidadão nem uma narrativa em ca-
dentro de si ou à sua volta descubra um da acontecimento, o sujeito moderno parece
excedente de criatividade. E há quem pre- fazer de todo o espaço e de todo o tempo uma
cise de sonhar o impossível e o inalcançável possibilidade criativa.
para se medir com o mundo. Há quem pos- Todo este processo de domesticação da
sa oferecer filigrana no ecrã-miniatura de um técnica que o cinema parece viver ciclica-
computador. Há quem descubra a sua estéti- mente acabará por conduzir a uma conse-
ca riscando a película. E há quem não dis- quência: a informalidade crescente e sem-
pense o falso trompe l?oeil do widescreen pre renovada das imagens. Uma imagem de
ou do cinema 3D. Há novos media e novas simpatia, mais do que de competência. Uma
literacias, convivendo com valores de pro- imagem mais de afectos do que de técni-
dução ancestrais e tecnologia de ponta ape- ca. Uma imagem que responda a duas ne-
nas acessível aos especialistas. A domesti- cessidades essenciais da humanidade: a es-
cação da técnica ocorre, portanto, em di- copofilia e o exibicionismo. A necessidade
versos níveis. A estratégia ? quase diríamos de ver e ser visto. Uma necessidade tanto
punk ? do do-it-yourself é apenas uma de- das favelas como das vedetas. Aquilo que se
las. Nos tempos em curso parece que ca- chama terceiro cinema ou cinema periféri-
da um pode fazer tudo. Mas tal é, de um co é uma prova disso. Como o são os filmes
determinado ângulo, uma ilusão. Existe um semi-pornográficos de Pamela Anderson ou
limiar para além do qual apenas uns poucos Paris Hilton. Que esta informalidade ande la-
conseguem a prevalência artística. Sempre do a lado com uma simplicidade narrativa ou
foi, sempre será assim. Contudo, uma con- conceptual e com uma ingenuidade artística
statação parece-nos inegável: a igualdade de e técnica notórias apenas nos poderá levar
oportunidades é mais real do que nunca. a uma especulação: que o ensino formal e
Oportunidade e ubiquidade parecem mes- o ensino tutorial hão-de entrar em novas re-
mo, em certas circunstâncias, coincidir. O lações e originar novas modalidades.
telemóvel permite uma quase omnividên- Esta proliferação da informalidade, e até
cia: que os microincidentes se transformem da ingenuidade, leva-nos a colocar várias
em micronarrativas; que o instante se pos- questões: estaremos perante uma crise dos
sa transformar em memória; que o indiví- intermediários, uma crise cultural de selec-
duo se transforme em ícone; que a casual- tividade? Que falta nos fazem a crítica e a
idade se transforme em vivência. A handy- análise cinematográfica, ou seja, uma cul-
cam permite a portabilidade universal: onde tura de cinefilia? A espessura e a densi-
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dade conceptual e teórica que atravessou to- têm ocorrido recentemente, exemplos, tam-
da a história das artes e da cultura no oci- bém eles, de uma indistinção entre o público
dente e necessariamente também do cinema e o privado que não tem cessado de se inten-
poderá ser dispensada? Está em vias de ser sificar.
substituída por uma nova lógica de saberes Pode ser grande a tentação para ver nes-
e de valorações onde o imediato e o casu- ta domesticação da técnica uma dominante
al, o anedótico e o espontâneo substituam incontestável. Mas a tentação acabará por
o erudito e o metafísico, o divino e o sub- revelar-se equívoca se não atendermos a um
lime? E tratar-se-á realmente de uma crise ou movimento de sentido contrário, como se
apenas de uma mutação? Estas são algumas duas tendências se desenrolassem paralela-
das inquietações que se abrem no coração mente, mas cuja convergência se afigura im-
da paisagem cinematográfica e mediática provável: é que a esta domesticação da téc-
contemporânea. Inquietações que podemos nica que, em diversas etapas, a história do
sempre desdobrar: será possível domesticar cinema conheceu, responde uma outra ev-
estes saberes (técnicos, artísticos, culturais, idência, a da crescente sofisticação da téc-
académicos)? Estará o limiar que distingue nica. Podemos por isso dizer que se um de-
o amador do profissional em diluição cres- terminado meio tende a simplificar-se e a
cente? Não existe um cinema doméstico que vulgarizar-se, ficando acessível a todos em
se tem vindo a impor como um cinema de algum momento (indo-se da estranheza e di-
elevada qualidade, produzido à revelia dos ficuldade iniciais ao automatismo quase in-
grandes estúdios, pleno de engenho e vision- consciente no uso de uma técnica), esse mes-
arismo? E, contudo, não estarão estes cri- mo meio há-de, em sentido diverso, provo-
adores condenados a integrar os meios de car uma busca incessante de novas possibili-
produção abastados e profissionais? dades, aperfeiçoando ou mesmo substituindo
A verdade, porém, é que, em circunstân- o dispositivo. Se a história de todas as téc-
cias muito específicas, o urgente ou o insólito nicas parece demonstrar uma propensão in-
acabarão por ser determinantes na nossa re- egável para a domesticação, a verdade é que
lação com o mundo. Dois exemplos: o filme a quimera da sofisticação decorre simultane-
Zapruder, seguramente o mais reconhecido amente. Assim é na história de uma tecnolo-
e mais referido filme doméstico (feito fora gia, assim é na história das técnicas. Por ca-
do espaço doméstico, mas imbuído do seu da passo de aproximação à técnica dado pelo
espírito e meios de produção) e o espanca- cidadão, a técnica dá uma corrida de afasta-
mento de Rodney King. São dois exemplos mento em relação àquele. Trata-se, portanto,
dessa tendência para a omnividência domés- de dois vectores de sentido divergente: o do
tica que referimos anteriormente, cada vez amadorismo e o do profissionalismo. Por um
mais acentuada, cada vez mais imersiva. Não lado, a partilha; por outro, a exclusividade.
são filmes com qualidade técnica imaculada De um modo, a familiaridade da prótese; de
? bem longe disso. São filmes da urgência, do outro, a intangibilidade do especialista.
momento, do documento. Como o são os in- Outro aspecto que merece ser notado em
úmeros filmes de jovens alunos alusivos aos relação à referida domesticação da técnica é
mais diversos casos de violência escolar que que esta parece ser acompanhada por uma
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profusão de géneros e formatos. Se a infor- crossovers, cada vez mais frequentes e diver-
malidade parece ser uma dominante estética sos, uma manifestação paradigmática. Pode-
destas produções, é possível, para além dela mos mesmo dizer que eles são uma manifes-
ou relacionada com ela, encontrar alguns tação contemporânea de uma estratégia cria-
géneros que aparentam alguma novidade ou, tiva que, não sendo nova, parece ter-se trans-
pelo menos, alguma reconfiguração, e mes- formado de um acto de alguma revelia es-
mo alguma estabilidade. Um exemplo dessa tética no pós-modernismo numa actividade
reconfiguração são os filmes de escola que criativa vulgar na actualidade: a intertextu-
podemos encontrar na rede. Não se tratan- alidade. Qualquer análise dos filmes domés-
do de filmes domésticos propriamente ditos, ticos na contemporaneidade nos demonstra
acabam por quase reivindicar a pertença a es- que o mash-up e o crossover se assumem
ta categoria, uma vez que se colocam naque- como uma das formas principais de mani-
le limiar já antes referido entre o amadoris- festação criativa. Exemplos disso são curtas-
mo e o profissionalismo, ou seja, entre uma metragens onde se misturam personagens de
aprendizagem doméstica e uma aprendiza- diferentes universos narrativos (Terminator
gem académica. E tomam por isso um es- vs Predator, por exemplo). Ou a mistura de
tatuto paradigmático da tensão entre domes- músicas e imagens heterogéneas como acon-
ticação e sofisticação. tece em certos videoclips amadores, outro
Em certo sentido próximos do filme de es- dos géneros que tem conhecido uma grande
cola, pelo lado pedagógico que exibem, en- diversificação nos últimos tempos.
contramos os filmes de fãs. Ainda que num Um inventário dos subgéneros do filme
outro nível, poderíamos aqui falar de um doméstico permitir-nos-ia ainda referir out-
realizador que outra coisa não faz do que ras modalidades: do micro-movie (filmes ca-
filmes de fãs ? Quentin Tarantino ?, mas suais de pequenos incidentes e para rápido
é sobretudo no âmbito das paródias e das visionamento) à webserie (séries criadas ex-
homenagens mais ou menos informais que clusivamente para a Internet), dos best of e
este género mercê destaque, com o univer- dos digests que inundam o youtube (onde
so de ?Star Wars? a ser um verdadeiro man- cabem as melhores sequências e excertos de
ancial de obras. Paradoxalmente, uma curta- filmes, de notícias, de videojogos) aos how
metragem merece destaque neste âmbito pe- to make (onde se ensina numa lógica tutorial
lo seu elevado profissionalismo, ?George e de do-it-yourself a fazer algo) passando pe-
Lugas in Love?. São filmes de paixões, de los filmes-denúncia que procuram funcionar
dedicação ou de homenagem dos discípu- como manifestos a favor de uma determina-
los aos mestres que lhes ofereceram novas da causa. Esta pluralidade e heterogeneidade
ideias e novos universos. Em muitos casos, de formatos, géneros e materiais apresen-
como acontece com a curta-metragem referi- ta ramificações que chegam ao mesmo aos
da, servem para comprovar que se consegue videojogos ? a lógica de produção doméstica
rivalizar com os inspiradores ? sucumbindo, materializa-se em dois géneros bastante pe-
igualando ou ultrapassando estes. culiares: por um lado, nos mods, isto é, em
Esta tendência para a recriação própria do videojogos que se servem do motor de um
filme de fãs encontra nos mash-ups e nos outro jogo para criar um novo universo mod-
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ificando o anterior; por outro, e para o que sobre as práticas criativas é o que não pode
aqui nos interessa mais relevante, nos desig- deixar de ser visto, igualmente, como um tri-
nados machinima, isto é, pequenos filmes de unfo.
animação criados recorrendo à tecnologia de Uma outra fronteira que se torna cada vez
um determinado videojogo, usando as suas mais difícil de estabelecer no que respeita ao
personagens e cenários. home-movie tem a ver com a distinção en-
tre público e privado. Se na sua origem o
home-movie parece resultar não apenas de
4. Os limiares do doméstico
uma produção caseira, mas destinar-se igual-
Como referimos anteriormente e como mente a uma difusão e exibição doméstica
pudemos constatar pela descrição de géneros (os serões em família na sala de estar), a ver-
efectuada, a ideia de um cinema domésti- dade é que dois momentos na história dos
co está longe de corresponder a uma re- média ? com nítidas influências na história
alidade perfeitamente circunscrita e recon- do cinema ? transformaram esta realidade de
hecível. Por todo o lado encontramos um uma forma completa: por um lado, o surg-
limiar onde o filme doméstico se confunde imento da televisão e, por outro, o surgi-
com outros tipos de filme ou se lhes opõe. mento da Internet. Trata-se de meios que,
Uma dessas zonas de intersecção pode ser podemos dizê-lo, retiraram o filme domés-
identificada através das categorias de amador tico do seu espaço natural e o disseminaram
e de profissional (as quais podemos fazer a uma escala global. Esta diluição de fron-
corresponder genericamente a dois conceitos teiras entre o público e o privado corre-
formais: o prosaico e o espectacular). Assim, sponde a uma tendência corrente nas últimas
parece-nos que onde, devido à domesticação décadas e pode ser constatada nas mais di-
da técnica, o amador tende a multiplicar- versas instâncias: na proliferação de blogs e
se em termos de quantidade, com um aces- outras formas de expressão pessoal; na real-
so crescente àquela por parte do sujeito, o ity TV que, em muitos casos, invadiu o lar
profissional mais não faz do que visar a ca- dos cidadãos, nos diários difundidos pela In-
da vez maior qualidade das suas propostas ternet; nos filmes caseiros de celebridades,
criativas e técnicas. Daqui têm resultado artistas e políticos, umas vezes autorizados,
duas questões frequentemente reiteradas: por outras clandestinos. Esta tendência mais não
um lado, a suspeita de que uma presumi- faz do que concretizar aquilo que se designa
da democratização constante e crescente das por Internet 2.0, ou seja, conteúdos produzi-
condições e meios de produção poderá não dos pelos próprios utilizadores da Internet ?
passar de uma ilusão; por outro, o perigo daí que possamos falar, de algum modo, de
por muitos advogado de uma mediocridade um cinema 2.0, em que a produção privada
decorrente do amadorismo, causa e conse- se destina a uma difusão pública.
quência de um plebeísmo crescente e, para Um caso paradigmático desta extensão
muitos, indesejável. Que esta ilusão e este tendencialmente universal da existência do
perigo tenham um fundo de veracidade é in- filme doméstico é a série de episódios
egável; que eles nos obriguem, contudo, a ?Where the hell is Matt??. Neste caso pode-
rever muitas das assumpções mais arreigadas mos falar de uma nova e paradoxal cate-
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Esta lógica do pastiche não deve ser, enobrecido que nos anos 50 e 60 o desig-
porém, tomada como recente. Os seus ante- nado cinema de autor propôs, feito de dis-
cessores podem ser localizados, pelo menos, tinção e mesmo de transcendência, e um cin-
em mockumentaries como ?This is Spinal ema que, nos anos 2000, vive a quimera
Tap2 ou ?Cannibal Holocaust?, ou, num reg- de produzir todas as imagens: as imagens
isto mais underground, nos pais do cine- de síntese, as imagens pessoais, as imagens
ma independente como John Cassavetes e ubíquas, quase indistintas no seu estatuto e
Jonas Mekas, que não apenas trouxeram a na sua relevância. Onde aquele cinema pare-
temática do conflito ou da existência domés- cia tomar como referência a sacralidade ou
tica para o centro da sua obra, como o fiz- pureza das imagens (do sonho, da memória,
eram recorrendo a soluções formais inevi- da metafísica, da vida interior ou da vi-
tavelmente ligadas ao home-movie, como a da mental), a actualidade parece conviver,
câmara à mão. As soluções formais que o com inusitada despreocupação, com as ima-
cinema mainstream tem em muitos casos gens impuras da pop e da trash culture (da
tomado do home-movie (e o inverso tam- televisão, dos videojogos, da publicidade,
bém ocorre: muitos home-movies pretendem mas também dos home-movies). Tal não nos
demonstrar um esmero técnico e uma sofisti- deve, porém, fazer ignorar que Tarkovsky,
cação estética capazes de rivalizar com os Fellini, Bergman ou Resnais, por exemplo,
filmes profissionais) podem ser sintetizadas têm os seus seguidores na actualidade ou que
em dois factos estéticos que nos parecem de o cinema experimental e o cinema documen-
grande relevância: por um lado, toda uma tal se ocuparam ao longo da história do cin-
retórica do grão que deu ao home-movie, ema do prosaísmo e do amadorismo. O que
tanto na sua era do 8 mm como na era do sucede de relevante é, parece-nos, que a im-
vídeo, uma aparência e uma textura especí- perfeição das imagens é cada vez mais aceite
ficas, em muitos casos próximo da estética como um dado de facto e em muitas circun-
documental; por outro lado, na actualidade, stâncias como um acrescento de virtude.
não deixaria de ser interessante efectuar uma De igual modo, se é certo que o cinema
espécie de semiótica do pixel, já que este de autor tem uma longa tradição de registo
acaba por ser o elemento que assinala mel- auto-biográfico, não deixa de ser por seu la-
hor o amadorismo (deliberado ou involun- do verdade que nunca como hoje a tendência
tário) duma obra doméstica, de algum modo para o auto-retrato se verificou em tão vas-
substituindo-se ao grão. ta escala ? cada cidadão parece querer con-
A esta aproximação entre mainstream e tar a sua história, ou pelo menos entende que
home-movie podemos contrapor uma série tem uma história que merece ser contada, um
de antinomias com que o filme doméstico ao perfil que merece ser conhecido ou que pode
longo dos tempos, e na actualidade, existiu fazer alguma diferença. Podemos então falar
no contexto da criação cinematográfica, oca- do meio (ou dos meios) cinematográfico co-
sionalmente de coincidência, muitas vezes mo consciência: a domesticação, a automa-
de nítida separação. Para começar, podemos tização, a massificação e o controlo da téc-
verificar uma espécie de polarização entre a nica e do seu uso parece ganhar, entre diver-
profissão de fé num cinema artisticamente sos contornos (da ironia, por exemplo), uma
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5. Conclusão
Temos assim, em jeito de conclusão que
duas escalas parecem desde há muito con-
viver na história do cinema: por um lado, a
superprodução, cheia de vedetas, de cenários
faustosos ou de extravagantes efeitos especi-
ais, capaz de aspirar ao épico absoluto, de
que os diversos formatos de widescreen e as
tecnologias de som surround são um óptimo
exemplo; por outro, o home-movie, o filme-
registo de uma experiência pessoal, pleno de
subjectividade mesmo na sua insignificância,
ora feito de peripécias e anedotas ora feito de
episódios inconsequentes, de que os filmes
de telemóvel e os ecrãs mínimos são a mais
exemplar concretização. De um lado, a vida
de personagens fictícias ou o desempenho de
estrelas consagradas, um Olimpo de lustros e
luxos, do outro a vida de familiares, amigos e
vizinhos, celebrações da cumplicidade, per-
dulários da incompetência técnica. Que estas
duas escala acabem por se reflectir e prob-
lematizar mutuamente na (in)distinção cres-
cente quer dos espaços de produção quer de
exibição, quer da competência técnica quer
da inventividade estética, eis o que torna a
criação cinematográfica contemporânea uma
realidade de mutações constantes e provo-
cações irrecusáveis.
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