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Cinema 2.

0: O Cinema na Era da Internet*


Universidade da Beira Interior

Luís Nogueira

Índice limiar que não cessam de se contaminar e re-


configurar. É essa dinâmica, em muito prop-
1. Introdução 1 iciada e justificada pelo surgimento da Inter-
2. O doméstico como imaginário 2 net, que nos interessa também analisar.
3. A domesticação da técnica 5
4. Os limiares do doméstico 10
5. Conclusão 14 1. Introdução
Antes de iniciarmos a nossa reflexão, de-
Abstract vemos enunciar duas inquietações que nos
hão-de acompanhar em surdina ao longo da
O cinema tem-se ocupado de vários es- reflexão e que suscitam desde logo duas con-
paços ao longo da sua história: do espaço siderações prévias: em primeiro lugar, verifi-
fílmico propriamente dito, mas também do camos que o tipo de produção associada aos
espaço mental; do espaço real, mas tam- home-movies, ou filme doméstico, se quiser-
bém do espaço ausente. Todos estes espaços mos, convive frequentemente com uma série
estão, de uma ou de outra forma, ligados de valores estéticos e éticos que lhe são ora
ao imaginário e à técnica cinematográficos. oponíveis (a autoria, o profissionalismo) ora
Antes de mais, há-de interessar-nos, então, cúmplices (a confessionalidade, a biografia)
o espaço doméstico como lugar de um tipo ? e tal haverá de assinalar com extrema ev-
de imaginário específico e compreender a idência a volatilidade deste conceito e da sua
sua génese enquanto tal. Mas a ideia de do- caracterização; em segundo lugar, e de al-
mesticação remete igualmente para a relação gum modo decorrente do anteriormente di-
do sujeito com a técnica: a entrada das tec- to, verificamos que a ideia de um cinema
nologias cinematográficas na esfera privada doméstico poderá assumir uma abrangência
é outro dos assuntos que nos interessa aqui conceptual imensa, correndo-se, por isso, o
tratar. Por fim, verificamos que as dimensões risco de alguma indistinção cirunstancial ?
artísticas e conceptuais do que designamos por exemplo: poderão os home-movies e a
como cinema doméstico se encontram numa Internet ser compatíveis? A estas duas in-
permanente tensão e mutação: são zonas de quietações procuramos (também) responder
*
Publicado originalmente na revista Doc On-line, ao longo do presente estudo, apesar de não
Junho 2009 serem nem a taxinomia nem a categorização
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as nossas preocupações prioritárias. Assim, retrospectiva do processo de constituição do


se não se revelar possível a sua total clar- quotidiano em tema artístico. Fazendo um
ificação, pelo menos esperamos providen- périplo pela história da pintura ocidental,
ciar algumas pistas que ajudem a ilustrar tais interessa-nos, antes de mais, compreender
problemáticas. quando é que o doméstico se instaurou como
campo de investigação temática e estilística.
Para tal, o mais longínquo que remontamos
2. O doméstico como imaginário
é à pintura medieval.
Na primeira sessão cinematográfica apre- Sendo certo que a época medieval teve
sentada pelos irmãos Lumière em 1895, um os seus livros de horas e breviários, as
dos filmes mostrados não poderia ser mais suas bíblias e demais manuscritos para uso
emblemático da questão que aqui nos ocu- doméstico, a verdade é que o seu uso era
pa: o cinema doméstico. Trata-se da curta- francamente limitado às classes clericais ou
metragem ?Le repas du bebé? e nela ve- aristocráticas ? para o povo, os ritos e a in-
mos nada mais do que um casal a ali- strução estavam maioritariamente reservados
mentar o seu infante. Este episódio, abso- às cerimónias (essencialmente religiosas) ou
lutamente prosaico, haveria de ser repetido aos monumentos públicos (que, com as suas
vezes sem conta, com pequenas variações, gravuras, vitrais, relevos e estátuas cumprem
nos filmes caseiros que o futuro se encar- a função de meios educacionais). E os temas
regaria de produzir. A presença deste filme estavam igualmente longe de ser prosaicos:
na sessão pública inaugural do cinemató- episódios da vida de Cristo, dos evangelhos
grafo não deixa de ter, portanto, um elevado ou do velho testamento eram os temas ful-
valor simbólico, ainda que de algum modo crais. Os eventos ou as vivências domésticas
acessório: a infância era um dos temas da in- estavam longe de se constituir como assunto
fância do cinema. Este efeito de espelho é urgente ou pertinente.
tão mais interessante quanto remete para a Com a Renascença estes temas não have-
questão que nos há-de ocupar de seguida: co- riam de desaparecer imediatamente das pre-
mo se constituiu o doméstico enquanto tema ocupações de artistas e comanditários. A
artístico e, para o que aqui nos interessa, cin- anunciação e a crucificação, o génesis e o
ematográfico, ou seja, como ocorreu o nasci- juízo final, são apenas alguns exemplos da
mento deste imaginário? constante revisitação temática que ocuparia
Se é certo que o cinematógrafo parecia os séculos XVI e XVII. A estes temas have-
trazer no seu código genético, desde o início, riam de juntar-se um novo conjunto de as-
as premissas de um imaginário doméstico, suntos, decorrentes da reapreciação e reval-
familiar, convivial, a verdade é que no mun- orização dos ideais e do imaginário clássico
do das artes e na história das representações da antiguidade: episódios e figuras mitológi-
visuais, este lado quotidiano da existência cas greco-romanas tornavam-se fulcrais num
esteve longe de ser, desde sempre, um tema outro filão que se vinha juntar à tradição
recorrente. Daí que nos pareça interessante iconográfica cristã.
efectuar aqui uma espécie de flashback. Não Seria com os movimentos reformistas do
faremos uma arqueologia, mas apenas uma início do século XVI que uma outra re-

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alidade se imporia. A recusa das imagens bólicos e evocações místicas não lhe parece-
de devoção outorgada por Lutero haveria ram interessar em demasia. O olhar sofre en-
de originar uma terceira via iconográfica, a tão nova metamorfose, precisamente quando
qual, em grande medida, parece-nos, seria se ocupa tanto da visão (como passa a acon-
altamente responsável pela constituição do tecer na pintura) como com o visto (acontece
doméstico como imaginário, sobretudo nos na fotografia, e depois no cinema).
países nórdicos. Cenas domésticas das mais Desde cedo a fotografia se interessa en-
prosaicas passam a fazer parte, sobretudo tão pelo que está próximo, pelo que está pre-
a partir do século XVII, com extrema reg- sente: retratos e janelas, jardins e naturezas-
ularidade das temáticas representadas, dan- mortas hão-de estar entre as suas temáticas
do origem a novos ou renovados géneros, mais dilectas. Relembremos a primeira fo-
a natureza-morta e o retrato, que convivem tografia, de Niepce, uma fotografia feita em
com os motivos clássicos: as pinturas reli- casa ? ainda que apontando para a paisagem
giosas, os nus, as mitologias pagãs. através da janela. Ou pensemos nas fotos
Se é certo que a realização de pintura reli- de campanha de Roger Fenton ? descobrir
giosa e evocativa não cessaria até bem den- o mundo e registá-lo, sim, mas na sua ma-
tro do século XIX, a verdade é que artistas terialidade é a preocupação. Ou na insistên-
como Vermeer ou mesmo Rembrandt, com cia voyeurista de Erich Salomon. O que se
as suas cenas de interiores, se revelam ópti- pretende? Antes de mais, registar a prosa do
mos exemplos desse realismo doméstico que mundo, seja ele o mundo doméstico seja o
a nível temático e estilístico parece antecipar mundo planetário.
em dois séculos os movimentos realistas pro- Ironicamente, agora que a pintura e a fo-
priamente ditos. Levaria, portanto, um tempo tografia tinham preparado o cinema para um
significativo até o prosaico e o doméstico ? natural convívio com a realidade domésti-
e porque não dizê-lo, o secular ? entrarem ca, eis que este a despreza crescentemente
definitivamente no imaginário ocidental, e e assume o seu sonho de espectáculo total
haveria de se passar pelo barroco, o classi- para um novo século. A lógica industrial e
cismo, o romantismo ou o simbolismo. Mas comercial acabaria por se impor. Arte exi-
quando o cinema surge já o quotidiano é um gente, quer técnica quer, sobretudo, finan-
motivo pleno de interesse e curiosidade artís- ceiramente, o cinema tornar-se-ia uma for-
tica e técnica. ma de expressão para as massas ? mas, cu-
Neste percurso, o cinema talvez não deva riosamente, não de massas: o lado artesanal
enjeitar o contributo da sua tecnologia ma- (salvo algumas excepções como aquelas que
triz, a fotografia. A fotografia haveria de ser, o cinema experimental ou o cinema de an-
como bem o sabemos, a responsável pela re- imação haveriam de assinalar) revelar-se-ia
definição do espectro de interesses do olhar diminuto nas cinco décadas seguintes. Des-
ocidental: extremamente próxima do real, ao de os anos 1920 até à década de 1950, o
ponto de um decalque mimético e indicial cinema doméstico tem uma existência mer-
se tornar a sua característica distintiva, des- amente residual. O espanto cinematográfi-
de cedo ela se interessou pelo material, pelo co que os primeiros filmes pareciam ofere-
próximo, pelo instantâneo ? requintes sim- cer como atracção haveria de se desdobrar

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ao longo do tempo, com o inerente acrésci- a nouvelle vague, o free cinema, o direct
mo de custos: o som, a cor, os ecrãs lar- cinema, o underground cinema. A unir to-
gos seriam alguns dos momentos fulcrais dos estes movimentos ou tendências, uma
desta metamorfose imparável que, constan- característica comum: uma proximidade à
temente, relegava um cinema mais prosaico realidade que se faz antes de mais com a
para as margens ocupadas pelo experimental, aceitação de significativos dados novos: a
pela animação ou pelo documentário. aceitação do acaso, da urgência e da auten-
Retomemos então esta retrospectiva do ticidade como valores criativos. As câmaras
imaginário doméstico na nova etapa que se mais leves permitem tratar o mundo como
revelaria decisiva: finais da década de 1950, uma extensão da casa ? e tal haveria de se
início da década de 60. O que acontece en- tornar uma estratégia discursiva que as dé-
tão? Tudo o que de modernidade o imag- cadas seguintes iriam vincar cada vez mais,
inário cinematográfico parece prometer. As como denotam quer a vaga crescente de doc-
décadas anteriores tinham sido predominan- umentários quer a constância da reportagem
temente classicistas e canónicas. Tudo no e do directo televisivos.
cinema parecia profundamente calculado: as A diminuição dos custos de produção
histórias, os actores, os valores de produção, (devido a equipas mais pequenas e menos
os géneros, as audiências. Tudo parecia ob- equipamentos) tornar-se-ia, assim, um dos
jecto de incansável cálculo e controlo. De to- aspectos fundamentais para a diversificação
dos os símbolos desta lógica produtiva e cria- das obras e para a eclosão e disseminação
tiva, o estúdio é o exemplo máximo: local de um cinema doméstico a nível, pode-
confinado onde se criam e recriam univer- mos dizê-lo, planetário. Ao ponto de, já em
sos de total alteridade. Excluindo momentos décadas recentes ? entre os anos 1980 e
como o neo-realismo ou certos ensaios doc- 2000 ? as produções low-budget entrarem no
umentais, o mundo cinematográfico privile- próprio terreno do mainstream cinematográ-
gia, de um ponto de vista produtivo, a ficção fico. Alguns filmes que chegaram ao circuito
em estúdio. Algumas mudanças técnicas se comercial são exemplo daquilo que alguns
afigurariam fundamentais nos anos 1950 e designam por cinema guerrilla, filmes de
1960. Em primeiro lugar, o surgimento de baixo orçamento com ideias fortes ou inusi-
novas câmaras, mais leves e portáteis, ca- tadas: das produções iniciais de Spike Lee
pazes de penetrar em qualquer espaço com a ao fenómeno crítico “El Mariacchi”, passan-
máxima discrição. Em segundo lugar, o surg- do pelo estrondo mediático de “Blair Witch
imento da televisão, forma de comunicação Project”(que, de algum modo, parecem ter
que deliberadamente coloca o espaço de con- precursores nos filmes de série B ou Z que
vivência doméstico como alvo da sua acção. constituem uma espécie de história alternati-
Esta intrusão no espaço doméstico haveria de va do cinema).
ter consequências enormes, como veremos Mas o momento de viragem fundamental
mais adiante. no que respeita ao cinema doméstico seria a
Estas câmaras mais leves dariam origem introdução de uma nova tecnologia audiovi-
a uma realidade cinematográfica nova que sual: nos anos de 1970 e 1980, o vídeo have-
assumiria diversas formas: o cinema-verité, ria de refazer toda a concepção de produto

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ou de obra audiovisual, seja de um ponto de tornar um local privilegiado de existência do


vista industrial seja artístico. Agora tudo se- filme doméstico. As tecnologias digitais con-
ria diferente: a captação de imagens e a sua stituíram o passo mais recente num proces-
reprodução, a edição e definição, a manip- so de democratização da criação audiovisual:
ulação e os custos. Mais fácil, mais rápido, custos extremamente baixos deram origem
mais intuitivo, mais manuseável, mais bara- a uma proliferação de utilizadores; a ubiq-
to, mesmo quando os termos de compara- uidade da tecnologia digital haveria de dar
ção são os formatos menos nobres da pelícu- origem igualmente a uma proliferação de su-
la, como o 16 ou o 8 mm. A utilização do portes, dos quais o mais significativo será o
vídeo haveria de assumir diversas formas, telemóvel.
sendo que o cinema mainstream seria aquele Miniaturizadas e extremamente portáteis,
que, sobretudo por razões de qualidade técni- as câmaras estão connosco em todo o lado. O
ca da imagem, mais resistiria à sua adopção filme doméstico não se restringe agora ao es-
em termos de produção (que não em termos paço doméstico. O lar é agora onde o homem
de difusão, como se comprova pelo home estiver. O registo da realidade está à distância
vídeo). de um click. Qualquer episódio, mais curioso
Se a indústria cinematográfica se colocou ou mais anódino, mais épico ou mais irrele-
fora deste novo contexto técnico, a verdade vante, pode ser captado ou encenado, qual-
é que a indústria televisiva haveria de abusar quer memória pode ser guardada, qualquer
deste novo recurso. Mas não seria apenas aí anedota pode ser registada. Dos telemóveis
que o vídeo teria uma vida longa e rica: ao às webcams, do youtube às demais redes so-
nível do documentário surge uma nova va- ciais, o mundo é cada vez mais apressado e
ga de documentários feitos na primeira pes- apertado ? cada vez mais pequeno, cada vez
soa; as câmaras de vídeovigilância tornam- mais uma casa.
se uma imagem de marca do novo regime do Esta resenha histórica da constituição do
olhar e das escopias; a vídeo-arte haveria de doméstico como imaginário não pretenden-
se tornar uma das pontes fundamentais entre do ser exaustiva, talvez nos dê algumas pis-
o mundo das imagens e o mundo da arte en- tas de leitura ? muito genéricas, certamente ?
quanto instituição, muitas vezes com obras sobre uma realidade (a da proliferação con-
num registo que alia o conceptual (em ter- tínua e avassaladora de filmes domésticos,
mos criativos) ao doméstico (em termos pro- dos mais variados géneros) que nos parece
dutivos); as handycams haveriam de permitir circundar e, por vezes, submergir.
a proliferação infindável de filmes caseiros,
capazes de preencher a programação de re-
3. A domesticação da técnica
des televisivas.
Com o vídeo a disseminação de produ- No capítulo anterior procurámos perce-
tos audiovisuais caseiros parecia já insu- ber de que modo o doméstico se constitu-
portável. Mas este não seria o último pas- iu em tema e passou a integrar a cultura
so na constituição do imaginário domésti- cinematográfica. Agora, interessa-nos ver de
co como o conhecemos actualmente. No fi- que modo esse mesmo espaço doméstico se
nal do século XX, a Internet haveria de se parece constituir em oficina ou laboratório e,

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sobretudo, de que modo assistimos a uma es- versos problemas com que um criador se
pécie de domesticação da técnica. Esta ideia confronta. O conceito de user-friendly é a
do lar como oficina não é exactamente no- esse título paradigmático. Uma nova litera-
va. Ela remete para as formas de aprendiza- cia criativa parece ter-se vindo a dissem-
gem e de produção pré-industriais. O lo- inar ao longo dos últimos tempos. Se o
cal de trabalho era, então, interior ou con- vídeo oferecia já uma certa autonomia nas
tíguo ao espaço habitacional. Viver, apren- condições de recepção e visionamento de
der e fazer decorriam em espaços adstritos uma obra (avançar, retroceder, pausar ? tu-
ou coincidentes. A homogeneização dos pro- do opções que o visionamento clássico em
cessos produtivos e a seriação das quanti- sala não permitia), o certo é que o software
dades, próprios da industrialização, haveri- digital, e a manipulação da informação que
am de deslocar os operários para linhas de este permite, veio acrescentar uma ampli-
montagem cada vez mais precisas e afastadas tude muito mais vasta e extensa de operações
do lar. possíveis: editar, apagar, sobrepor, colar, dis-
A mecanização assenta na ordem, no pro- torcer, fundir. Basta atentarmos nos progra-
grama ? e o cinema tem um fundo mecâni- mas de efeitos especiais para notarmos co-
co na sua ontologia. Desde muito cedo que mo as opções são imensas, comportando as
o cinema se tornou uma arte de grandes mais sofisticadas ao lado das mais imediatas
exigências e constrangimentos: exigências funções. Onde antes se exigiam conhecimen-
que obrigaram a uma grande especializa- tos adquiridos ao longo de anos e equipa-
ção (e as tarefas das equipas técnicas e mentos com capacidades extraordinárias, ho-
artísticas isso mesmo comprovam); exigên- je podemos aceder a esse saber através de
cias financeiras (uma vez que as grandes um simples tutorial e com um computador
produções implicam enormes encargos com portátil.
equipamentos, com actores, com market- E onde antes a lógica de produção impli-
ing, etc.); exigências discursivas (escala de cava grandes investimentos e a mobilização
planos, tipos de montagem, entre outros as- de enormes recursos, hoje nada há de muito
pectos). Para o cidadão comum, as condições incómodo na estratégia low-budget e na es-
de produção parecem estar constantemente tética low-fi. Todos podem fazer o seu filme.
vedadas, porque estas exigências significam Todos podem concretizar as suas ideias ?
constrangimentos. Sem saber e sem poder é desde que devidamente dimensionadas. Que
o seu estado mais comum. falte mais a estética que a técnica, as mentes
A longa e difícil aprendizagem exigida pe- do que as máquinas, eis o que as academias
los ofícios do cinema haveriam de mudar podem e devem fazer valer. Num regime
de alguma forma ao longo do tempo ? e de produção e criação onde tudo parece tão
de forma nitidamente mais vincada nas úl- próximo e tão acessível, onde o imaginário
timas décadas. E talvez as mudanças devam doméstico parece totalmente omnipresente,
ser vistas tanto do lugar do mestre como as academias podem e devem cumprir as
do lugar do discípulo. Os mais recentes de- suas tarefas de sempre, talvez com mais pro-
senvolvimentos nas tecnologias digitais têm priedade do que nunca: questionar, provocar,
oferecido as soluções mais variadas aos di- experimentar. Em todos os casos, deslocar os

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seus alunos para lá do quotidiano e do óbvio. o sujeito se encontra, encontra-se uma pos-
A excelência, a existir um trajecto que a ela sibilidade de escrita da realidade, um olhar
conduza, será certamente um percurso árduo inaugural. A webcam parece prometer uma
e longínquo ? mas facilitado pela viabilidade telepresença constante, como se a imagem
crescente do auto-didactismo. doméstica se predispusesse antes de mais à
Com isto queremos dizer que o domésti- universalidade ? já não uma audiência de
co poderá ou não ser o lugar último da as- serão familiar, mas uma comunidade plan-
piração artística. A criação ocorre em diver- etária. Mesmo que não esteja um cineasta
sos registos e em diversas escalas. Há quem em cada cidadão nem uma narrativa em ca-
dentro de si ou à sua volta descubra um da acontecimento, o sujeito moderno parece
excedente de criatividade. E há quem pre- fazer de todo o espaço e de todo o tempo uma
cise de sonhar o impossível e o inalcançável possibilidade criativa.
para se medir com o mundo. Há quem pos- Todo este processo de domesticação da
sa oferecer filigrana no ecrã-miniatura de um técnica que o cinema parece viver ciclica-
computador. Há quem descubra a sua estéti- mente acabará por conduzir a uma conse-
ca riscando a película. E há quem não dis- quência: a informalidade crescente e sem-
pense o falso trompe l?oeil do widescreen pre renovada das imagens. Uma imagem de
ou do cinema 3D. Há novos media e novas simpatia, mais do que de competência. Uma
literacias, convivendo com valores de pro- imagem mais de afectos do que de técni-
dução ancestrais e tecnologia de ponta ape- ca. Uma imagem que responda a duas ne-
nas acessível aos especialistas. A domesti- cessidades essenciais da humanidade: a es-
cação da técnica ocorre, portanto, em di- copofilia e o exibicionismo. A necessidade
versos níveis. A estratégia ? quase diríamos de ver e ser visto. Uma necessidade tanto
punk ? do do-it-yourself é apenas uma de- das favelas como das vedetas. Aquilo que se
las. Nos tempos em curso parece que ca- chama terceiro cinema ou cinema periféri-
da um pode fazer tudo. Mas tal é, de um co é uma prova disso. Como o são os filmes
determinado ângulo, uma ilusão. Existe um semi-pornográficos de Pamela Anderson ou
limiar para além do qual apenas uns poucos Paris Hilton. Que esta informalidade ande la-
conseguem a prevalência artística. Sempre do a lado com uma simplicidade narrativa ou
foi, sempre será assim. Contudo, uma con- conceptual e com uma ingenuidade artística
statação parece-nos inegável: a igualdade de e técnica notórias apenas nos poderá levar
oportunidades é mais real do que nunca. a uma especulação: que o ensino formal e
Oportunidade e ubiquidade parecem mes- o ensino tutorial hão-de entrar em novas re-
mo, em certas circunstâncias, coincidir. O lações e originar novas modalidades.
telemóvel permite uma quase omnividên- Esta proliferação da informalidade, e até
cia: que os microincidentes se transformem da ingenuidade, leva-nos a colocar várias
em micronarrativas; que o instante se pos- questões: estaremos perante uma crise dos
sa transformar em memória; que o indiví- intermediários, uma crise cultural de selec-
duo se transforme em ícone; que a casual- tividade? Que falta nos fazem a crítica e a
idade se transforme em vivência. A handy- análise cinematográfica, ou seja, uma cul-
cam permite a portabilidade universal: onde tura de cinefilia? A espessura e a densi-

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dade conceptual e teórica que atravessou to- têm ocorrido recentemente, exemplos, tam-
da a história das artes e da cultura no oci- bém eles, de uma indistinção entre o público
dente e necessariamente também do cinema e o privado que não tem cessado de se inten-
poderá ser dispensada? Está em vias de ser sificar.
substituída por uma nova lógica de saberes Pode ser grande a tentação para ver nes-
e de valorações onde o imediato e o casu- ta domesticação da técnica uma dominante
al, o anedótico e o espontâneo substituam incontestável. Mas a tentação acabará por
o erudito e o metafísico, o divino e o sub- revelar-se equívoca se não atendermos a um
lime? E tratar-se-á realmente de uma crise ou movimento de sentido contrário, como se
apenas de uma mutação? Estas são algumas duas tendências se desenrolassem paralela-
das inquietações que se abrem no coração mente, mas cuja convergência se afigura im-
da paisagem cinematográfica e mediática provável: é que a esta domesticação da téc-
contemporânea. Inquietações que podemos nica que, em diversas etapas, a história do
sempre desdobrar: será possível domesticar cinema conheceu, responde uma outra ev-
estes saberes (técnicos, artísticos, culturais, idência, a da crescente sofisticação da téc-
académicos)? Estará o limiar que distingue nica. Podemos por isso dizer que se um de-
o amador do profissional em diluição cres- terminado meio tende a simplificar-se e a
cente? Não existe um cinema doméstico que vulgarizar-se, ficando acessível a todos em
se tem vindo a impor como um cinema de algum momento (indo-se da estranheza e di-
elevada qualidade, produzido à revelia dos ficuldade iniciais ao automatismo quase in-
grandes estúdios, pleno de engenho e vision- consciente no uso de uma técnica), esse mes-
arismo? E, contudo, não estarão estes cri- mo meio há-de, em sentido diverso, provo-
adores condenados a integrar os meios de car uma busca incessante de novas possibili-
produção abastados e profissionais? dades, aperfeiçoando ou mesmo substituindo
A verdade, porém, é que, em circunstân- o dispositivo. Se a história de todas as téc-
cias muito específicas, o urgente ou o insólito nicas parece demonstrar uma propensão in-
acabarão por ser determinantes na nossa re- egável para a domesticação, a verdade é que
lação com o mundo. Dois exemplos: o filme a quimera da sofisticação decorre simultane-
Zapruder, seguramente o mais reconhecido amente. Assim é na história de uma tecnolo-
e mais referido filme doméstico (feito fora gia, assim é na história das técnicas. Por ca-
do espaço doméstico, mas imbuído do seu da passo de aproximação à técnica dado pelo
espírito e meios de produção) e o espanca- cidadão, a técnica dá uma corrida de afasta-
mento de Rodney King. São dois exemplos mento em relação àquele. Trata-se, portanto,
dessa tendência para a omnividência domés- de dois vectores de sentido divergente: o do
tica que referimos anteriormente, cada vez amadorismo e o do profissionalismo. Por um
mais acentuada, cada vez mais imersiva. Não lado, a partilha; por outro, a exclusividade.
são filmes com qualidade técnica imaculada De um modo, a familiaridade da prótese; de
? bem longe disso. São filmes da urgência, do outro, a intangibilidade do especialista.
momento, do documento. Como o são os in- Outro aspecto que merece ser notado em
úmeros filmes de jovens alunos alusivos aos relação à referida domesticação da técnica é
mais diversos casos de violência escolar que que esta parece ser acompanhada por uma

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profusão de géneros e formatos. Se a infor- crossovers, cada vez mais frequentes e diver-
malidade parece ser uma dominante estética sos, uma manifestação paradigmática. Pode-
destas produções, é possível, para além dela mos mesmo dizer que eles são uma manifes-
ou relacionada com ela, encontrar alguns tação contemporânea de uma estratégia cria-
géneros que aparentam alguma novidade ou, tiva que, não sendo nova, parece ter-se trans-
pelo menos, alguma reconfiguração, e mes- formado de um acto de alguma revelia es-
mo alguma estabilidade. Um exemplo dessa tética no pós-modernismo numa actividade
reconfiguração são os filmes de escola que criativa vulgar na actualidade: a intertextu-
podemos encontrar na rede. Não se tratan- alidade. Qualquer análise dos filmes domés-
do de filmes domésticos propriamente ditos, ticos na contemporaneidade nos demonstra
acabam por quase reivindicar a pertença a es- que o mash-up e o crossover se assumem
ta categoria, uma vez que se colocam naque- como uma das formas principais de mani-
le limiar já antes referido entre o amadoris- festação criativa. Exemplos disso são curtas-
mo e o profissionalismo, ou seja, entre uma metragens onde se misturam personagens de
aprendizagem doméstica e uma aprendiza- diferentes universos narrativos (Terminator
gem académica. E tomam por isso um es- vs Predator, por exemplo). Ou a mistura de
tatuto paradigmático da tensão entre domes- músicas e imagens heterogéneas como acon-
ticação e sofisticação. tece em certos videoclips amadores, outro
Em certo sentido próximos do filme de es- dos géneros que tem conhecido uma grande
cola, pelo lado pedagógico que exibem, en- diversificação nos últimos tempos.
contramos os filmes de fãs. Ainda que num Um inventário dos subgéneros do filme
outro nível, poderíamos aqui falar de um doméstico permitir-nos-ia ainda referir out-
realizador que outra coisa não faz do que ras modalidades: do micro-movie (filmes ca-
filmes de fãs ? Quentin Tarantino ?, mas suais de pequenos incidentes e para rápido
é sobretudo no âmbito das paródias e das visionamento) à webserie (séries criadas ex-
homenagens mais ou menos informais que clusivamente para a Internet), dos best of e
este género mercê destaque, com o univer- dos digests que inundam o youtube (onde
so de ?Star Wars? a ser um verdadeiro man- cabem as melhores sequências e excertos de
ancial de obras. Paradoxalmente, uma curta- filmes, de notícias, de videojogos) aos how
metragem merece destaque neste âmbito pe- to make (onde se ensina numa lógica tutorial
lo seu elevado profissionalismo, ?George e de do-it-yourself a fazer algo) passando pe-
Lugas in Love?. São filmes de paixões, de los filmes-denúncia que procuram funcionar
dedicação ou de homenagem dos discípu- como manifestos a favor de uma determina-
los aos mestres que lhes ofereceram novas da causa. Esta pluralidade e heterogeneidade
ideias e novos universos. Em muitos casos, de formatos, géneros e materiais apresen-
como acontece com a curta-metragem referi- ta ramificações que chegam ao mesmo aos
da, servem para comprovar que se consegue videojogos ? a lógica de produção doméstica
rivalizar com os inspiradores ? sucumbindo, materializa-se em dois géneros bastante pe-
igualando ou ultrapassando estes. culiares: por um lado, nos mods, isto é, em
Esta tendência para a recriação própria do videojogos que se servem do motor de um
filme de fãs encontra nos mash-ups e nos outro jogo para criar um novo universo mod-

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ificando o anterior; por outro, e para o que sobre as práticas criativas é o que não pode
aqui nos interessa mais relevante, nos desig- deixar de ser visto, igualmente, como um tri-
nados machinima, isto é, pequenos filmes de unfo.
animação criados recorrendo à tecnologia de Uma outra fronteira que se torna cada vez
um determinado videojogo, usando as suas mais difícil de estabelecer no que respeita ao
personagens e cenários. home-movie tem a ver com a distinção en-
tre público e privado. Se na sua origem o
home-movie parece resultar não apenas de
4. Os limiares do doméstico
uma produção caseira, mas destinar-se igual-
Como referimos anteriormente e como mente a uma difusão e exibição doméstica
pudemos constatar pela descrição de géneros (os serões em família na sala de estar), a ver-
efectuada, a ideia de um cinema domésti- dade é que dois momentos na história dos
co está longe de corresponder a uma re- média ? com nítidas influências na história
alidade perfeitamente circunscrita e recon- do cinema ? transformaram esta realidade de
hecível. Por todo o lado encontramos um uma forma completa: por um lado, o surg-
limiar onde o filme doméstico se confunde imento da televisão e, por outro, o surgi-
com outros tipos de filme ou se lhes opõe. mento da Internet. Trata-se de meios que,
Uma dessas zonas de intersecção pode ser podemos dizê-lo, retiraram o filme domés-
identificada através das categorias de amador tico do seu espaço natural e o disseminaram
e de profissional (as quais podemos fazer a uma escala global. Esta diluição de fron-
corresponder genericamente a dois conceitos teiras entre o público e o privado corre-
formais: o prosaico e o espectacular). Assim, sponde a uma tendência corrente nas últimas
parece-nos que onde, devido à domesticação décadas e pode ser constatada nas mais di-
da técnica, o amador tende a multiplicar- versas instâncias: na proliferação de blogs e
se em termos de quantidade, com um aces- outras formas de expressão pessoal; na real-
so crescente àquela por parte do sujeito, o ity TV que, em muitos casos, invadiu o lar
profissional mais não faz do que visar a ca- dos cidadãos, nos diários difundidos pela In-
da vez maior qualidade das suas propostas ternet; nos filmes caseiros de celebridades,
criativas e técnicas. Daqui têm resultado artistas e políticos, umas vezes autorizados,
duas questões frequentemente reiteradas: por outras clandestinos. Esta tendência mais não
um lado, a suspeita de que uma presumi- faz do que concretizar aquilo que se designa
da democratização constante e crescente das por Internet 2.0, ou seja, conteúdos produzi-
condições e meios de produção poderá não dos pelos próprios utilizadores da Internet ?
passar de uma ilusão; por outro, o perigo daí que possamos falar, de algum modo, de
por muitos advogado de uma mediocridade um cinema 2.0, em que a produção privada
decorrente do amadorismo, causa e conse- se destina a uma difusão pública.
quência de um plebeísmo crescente e, para Um caso paradigmático desta extensão
muitos, indesejável. Que esta ilusão e este tendencialmente universal da existência do
perigo tenham um fundo de veracidade é in- filme doméstico é a série de episódios
egável; que eles nos obriguem, contudo, a ?Where the hell is Matt??. Neste caso pode-
rever muitas das assumpções mais arreigadas mos falar de uma nova e paradoxal cate-

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Cinema 2.0: O Cinema na Era da Internet 11

goria de filme: o doméstico universal. Em aqui as fronteiras entre privado e público,


que consiste esta série? Em nada mais do amador e profissional? Não estaremos a sub-
que o registo do périplo de Matt, um norte- stituir os princípios nucleares e duradouros
americano de 32 anos, pelo mundo inteiro, do cânone pela lógica de dispersão e efe-
dançando nos mais diversos locais uma sim- meridade dos tops e das listas? Não estamos
ples e despretensiosa coreografia, sendo de- em muitos casos a sobrepor as escolhas do
pois feitos micro-filmes colocados na Inter- público, assente em indíces de popularidade,
net. O sucesso destes inócuos, mas diver- aos juízos da crítica, assentes em argumen-
tidos, filmes é imenso. E pode conduzir-nos tação e contextualização? Poderemos então
à seguinte questão: será na actualidade a rede falar da impossibilidade de um cânone ou de-
universal o lugar último e fatal dos filmes vemos falar de um cânone liberal, exercício
domésticos? Será a Internet a nova casa do de cidadania?
cinema? Mas esta lógica de diluição de fronteiras
Assim, se temos falado dos filmes domés- tem-se verificado igualmente ao nível da
ticos sobretudo do ponto de vista da pro- estética e da morfologia das obras cine-
dução, não queremos deixar de referir igual- matográficas. Parece-nos extremamente rev-
mente o facto de que, também no que respei- elador a esse respeito a contaminação que
ta ao visionamento, algo como a domesti- os filmes de ficção mainstream têm sofrido.
cação da técnica tem sido igualmente notado. Podemos mesmo dizer que depois de todas
Basta pensarmos que a auto-programação é as questões envolvendo a problemática da in-
uma tendência constante; que a lógica ar- distinção entre documentário e ficção, a lóg-
quivística tem sido refeita por tecnologias ica do pastiche que se tem verificado em in-
como o P2P e os torrents; que a utopia de úmeras produções entre mainstream e home-
um acesso em total equidade e disponibili- movie se torna uma questão de grande inter-
dade se tem alimentado cada vez mais vo- esse. Assim, podemos verificar que inúmeros
razmente; que a ideia de partilha universal filmes de ficção têm sido feitos recentemente
tem sido recorrente. Depois da grelha tele- à maneira de ou como se se tratasse de um
visiva (mas convivendo com esta) surge o filme doméstico. E esta contaminação tem-
on-demand, em que a programação se tor- se verificado ? o que é ainda mais significa-
na flexível e personalizada, feita de solici- tivo ? muitas vezes no interior dos próprios
tações específicas, a pedido, em que a ideia géneros cinematográficos clássicos. Exemp-
de rede (feita de cumplicidades) vem substi- lo disso são o célebre e fenomenal ?Blair
tuir a ideia de centro (feita de hierarquias). Witch Project?, que aproveitou para refazer
Estaremos perante uma nova comunidade de algumas premissas do filme de terror através
partilha, uma nova cinefilia que vem sub- de um acrescento de veracidade, ?Clover-
stituir os cineclubes como espaço privile- field?, que usa a estética do filme amador
giado de acesso às margens cinematográfi- para nos dar uma parábola sobre o terrorismo
cas, que vem substituir a crítica especializa- de massas em registo de alegoria fantástica;
da como instâncias certificada do juízo es- ?Redacted?, um filme narrado em forma de
tético? Esta nova cinefilia não corresponde diário que reconfigura a dimensão estilística
a um paradigma crítico que refaz também do filme de guerra.

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12 Luís Nogueira

Esta lógica do pastiche não deve ser, enobrecido que nos anos 50 e 60 o desig-
porém, tomada como recente. Os seus ante- nado cinema de autor propôs, feito de dis-
cessores podem ser localizados, pelo menos, tinção e mesmo de transcendência, e um cin-
em mockumentaries como ?This is Spinal ema que, nos anos 2000, vive a quimera
Tap2 ou ?Cannibal Holocaust?, ou, num reg- de produzir todas as imagens: as imagens
isto mais underground, nos pais do cine- de síntese, as imagens pessoais, as imagens
ma independente como John Cassavetes e ubíquas, quase indistintas no seu estatuto e
Jonas Mekas, que não apenas trouxeram a na sua relevância. Onde aquele cinema pare-
temática do conflito ou da existência domés- cia tomar como referência a sacralidade ou
tica para o centro da sua obra, como o fiz- pureza das imagens (do sonho, da memória,
eram recorrendo a soluções formais inevi- da metafísica, da vida interior ou da vi-
tavelmente ligadas ao home-movie, como a da mental), a actualidade parece conviver,
câmara à mão. As soluções formais que o com inusitada despreocupação, com as ima-
cinema mainstream tem em muitos casos gens impuras da pop e da trash culture (da
tomado do home-movie (e o inverso tam- televisão, dos videojogos, da publicidade,
bém ocorre: muitos home-movies pretendem mas também dos home-movies). Tal não nos
demonstrar um esmero técnico e uma sofisti- deve, porém, fazer ignorar que Tarkovsky,
cação estética capazes de rivalizar com os Fellini, Bergman ou Resnais, por exemplo,
filmes profissionais) podem ser sintetizadas têm os seus seguidores na actualidade ou que
em dois factos estéticos que nos parecem de o cinema experimental e o cinema documen-
grande relevância: por um lado, toda uma tal se ocuparam ao longo da história do cin-
retórica do grão que deu ao home-movie, ema do prosaísmo e do amadorismo. O que
tanto na sua era do 8 mm como na era do sucede de relevante é, parece-nos, que a im-
vídeo, uma aparência e uma textura especí- perfeição das imagens é cada vez mais aceite
ficas, em muitos casos próximo da estética como um dado de facto e em muitas circun-
documental; por outro lado, na actualidade, stâncias como um acrescento de virtude.
não deixaria de ser interessante efectuar uma De igual modo, se é certo que o cinema
espécie de semiótica do pixel, já que este de autor tem uma longa tradição de registo
acaba por ser o elemento que assinala mel- auto-biográfico, não deixa de ser por seu la-
hor o amadorismo (deliberado ou involun- do verdade que nunca como hoje a tendência
tário) duma obra doméstica, de algum modo para o auto-retrato se verificou em tão vas-
substituindo-se ao grão. ta escala ? cada cidadão parece querer con-
A esta aproximação entre mainstream e tar a sua história, ou pelo menos entende que
home-movie podemos contrapor uma série tem uma história que merece ser contada, um
de antinomias com que o filme doméstico ao perfil que merece ser conhecido ou que pode
longo dos tempos, e na actualidade, existiu fazer alguma diferença. Podemos então falar
no contexto da criação cinematográfica, oca- do meio (ou dos meios) cinematográfico co-
sionalmente de coincidência, muitas vezes mo consciência: a domesticação, a automa-
de nítida separação. Para começar, podemos tização, a massificação e o controlo da téc-
verificar uma espécie de polarização entre a nica e do seu uso parece ganhar, entre diver-
profissão de fé num cinema artisticamente sos contornos (da ironia, por exemplo), uma

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forte propensão biográfica de que o mais periência espectatorial, o ritual e a epifania,


claro exemplo seria o diário. Temos assim apenas poderão ser restaurados, parece-nos,
que o auto-retrato e o meio como consciên- pela realidade virtual prometida e constante-
cia se vêm substituir à auto-reflexividade mente adiada.
e à consciência do meio que marcaram a Estas alterações ao nível da exibição cin-
obra de cineastas como Vertov ou Godard ou ematográfica encontram paralelo ao nível da
de pensadores como Brecht. Esta consciên- produção: ao lado do estúdio gigantesco, lo-
cia do meio pode ser igualmente identifica- cal de todas as quimeras e universos, lugar de
da, porém, no âmbito dos home-movies: nos todo o controlo técnico, contando inúmeros
mash-ups, nas paródias dos filmes de fãs, nas meios e albergando equipas extremamente
sequências escolhidas de obras clássicas do alargadas, encontramos o quarto, local de
cinema ? podemos então questionar se o es- um labor pessoal, de uma produção solitária,
pectador comum não ganhou ele igualmente onde o lado confessional da ocorrência quo-
uma consciência do meio que lhe inibe qual- tidiana registada em diário pode conviver
quer ingenuidade. A ser assim, esta perda da com os truques e as ilusões do green screen
ingenuidade teria como uma das consequên- e dos mais diversos efeitos especiais. Assim,
cia que o auto-retrato deixaria de ser, muitas onde até o mais humilde filme de série B
vezes, um gesto de autenticidade para se rev- exibia a ambição de uma competência téc-
elar uma voluntária auto-estetização. nica inquestionada e nos seus falhanços de-
Esta ingenuidade estaria em risco também notava o esforço de um profissionalismo ir-
na experiência cinematográfica a um outra recusável, o filme doméstico atreve-se, cada
nível. Como referimos anteriormente, tam- vez mais, a exibir os sinais da sua origem
bém o local de percepção das imagens se plebeia ou burguesa, fazendo gáudio desta
modificou e ganhou um novo estatuto. Se al- ontologia mesmo quando procura rivalizar
guma aura existia ligada à sala de cinema, lu- com as mais sofisticadas produções. Pode-
gar de culto e refúgio imaginário, onde o ecrã mos então dizer que se num caso a com-
se impõe não apenas pela sua dimensão mas petência e a exigência são os valores fulcrais
igualmente pela sua luminosidade exclusi- de um profissionalismo sempre em busca de
va, ela parece desvanecer-se cada vez mais. um espanto megalómano e quase miracu-
Este ecrã-altar e esta sala-templo viram-se, loso (o blockbuster e os seus dispendiosos
de algum modo, substituídos e mesmo pro- efeitos especiais são disso o melhor exemp-
fanados pelos ecrãs reduzidos da televisão, lo), no outro encontramos a urgência e mes-
do computador, da consola ou do telemóvel, mo a negligência como princípios determi-
lugares de uma informalidade espectatorial nantes (nunca perder a peripécia imprevista,
em que o sujeito se abstém de um ritual que mesmo sacrificando a inteligibilidade da in-
marcou gerações de espectadores e do qual formação, cuja imperfeição e amadorismo se
os movie-theatres para centenas de especta- tornam aceites e justificados).
dores seria a mais perfeita e gloriosa man-
ifestação. Certamente não se assiste a uma
indiferença de todos os ecrãs e de todos os
lugares ? mas, perante a depauperação da ex-

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5. Conclusão
Temos assim, em jeito de conclusão que
duas escalas parecem desde há muito con-
viver na história do cinema: por um lado, a
superprodução, cheia de vedetas, de cenários
faustosos ou de extravagantes efeitos especi-
ais, capaz de aspirar ao épico absoluto, de
que os diversos formatos de widescreen e as
tecnologias de som surround são um óptimo
exemplo; por outro, o home-movie, o filme-
registo de uma experiência pessoal, pleno de
subjectividade mesmo na sua insignificância,
ora feito de peripécias e anedotas ora feito de
episódios inconsequentes, de que os filmes
de telemóvel e os ecrãs mínimos são a mais
exemplar concretização. De um lado, a vida
de personagens fictícias ou o desempenho de
estrelas consagradas, um Olimpo de lustros e
luxos, do outro a vida de familiares, amigos e
vizinhos, celebrações da cumplicidade, per-
dulários da incompetência técnica. Que estas
duas escala acabem por se reflectir e prob-
lematizar mutuamente na (in)distinção cres-
cente quer dos espaços de produção quer de
exibição, quer da competência técnica quer
da inventividade estética, eis o que torna a
criação cinematográfica contemporânea uma
realidade de mutações constantes e provo-
cações irrecusáveis.

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