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11118-Texto Do Artigo-13992-1-10-20120512 PDF
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O dna francês:
biossociabilidade e politização da vida
Messias Basques
Nas primeiras páginas de French dna: trouble in purgatory, Paul Rabinow nos diz que este
é um livro sobre uma zona heterogênea onde genômica, bioética, grupos de pacientes,
capital de risco, nações e Estados se encontram. Já na epígrafe do primeiro capítulo há
uma menção a Max Weber que identificou o capitalismo moderno e as inovações cien-
tíficas como vetores da corrosão generalizada da solidariedade humana. Ao longo de
seu livro, Rabinow tentará demonstrar
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Messias Basques
Meu argumento é que a identificação do dna com a “pessoa humana” numa rela-
ção de auto-evidência (em que as partes simplesmente tomam o lugar da integri-
dade dos corpos) constitui uma identificação “espiritual”. Relacionar a “pessoa
humana” com as partes de seu corpo ou seu dna é solucionar um problema que se
encontrava arredio às nossas tentativas de compreensão (Rabinow, 1999, p. 16).
O autor acredita que suas pesquisas têm confirmado a hipótese de que as prá-
ticas e representações da vida nua foram alteradas. Isto é, se antes a vida humana dis-
punha de atributos que a singularizavam frente aos demais representantes da nature-
za, com o projeto genoma (humano, animal, vegetal e até mesmo de microorganismos)
o dna foi tomado como elemento comum e universal para todos os seres viventes.
O alicerce epistemológico que permitiu a elaboração conceitual que estabelece a con-
dição que concerne à bíos e à zoé teria ruído perante as novas descobertas científicas.
Por conseguinte, Rabinow defende que a aliança entre o CEPH (Centre d’Etude
du Polymorphisme Humain) e a AFM (Association Française contre les Myopathies)
constituiu uma iniciativa de sucesso justamente por articular bíos e zoé em uma dimen-
são genômica. O autor defende que a matriz que os uniu foi o anseio de mapear o geno-
ma humano, tendo como foco a descoberta dos genes causadores de doenças. A AFM,
como tantas outras associações de pacientes, pode então ser representa na figura dos
doentes (les malades), novo tipo universal de sujeito. Por trás de todos esses elemen-
tos, Rabinow ratifica que as pressões desses sujeitos também se relacionavam com ar-
gumentos religiosos que configuram, por sua vez, uma espécie de “pressão purgatória”.
Purgatória no sentido de que o “Parlamento”, onde se encontram pacientes, médicos,
cientistas, industriais e membros do Estado, exige que as decisões sejam tomadas com
base na compreensão de que a urgência e a precaução são imperativas no que tange à
aplicação dos conhecimentos disponíveis. Nesse momento, os pacientes apresentam-
se com o argumento (que suas doenças tornam latentes) de que esta pode ser a última
oportunidade para que algo seja feito em prol de suas vidas, ao mesmo tempo em que
erros e riscos científicos implicados são julgados sob a égide de que deverão ser siste-
maticamente evitados e, se possível, extintos.
Ao referir-se à gênese dessa associação de sucesso denominada AFM, Rabinow
salienta que grupos de pacientes costumam ser diminutos e possuírem interesses
difusos. Na França, a situação começou a mudar quando entraram em cena os apelos
do pai de um menino portador de uma grave distrofia. Esse homem, chamado Bernard
Barataud, perdeu seu filho após inúmeras tentativas e pedidos de socorro em hospi-
tais, aos melhores médicos e cientistas e ao próprio governo francês. Em seu livro,
Barataud (1992) faz uma crítica feroz contra o estado de coisas que põe barreiras à desco-
berta de novos tratamentos e meios-diagnósticos que poderiam, quiçá, ter a faculdade
de poupar, e mesmo salvar, as vidas de crianças vitimadas por doenças como aquela
que levou seu filho a falecer. Diz Barataud:
Eu não escolhi esta posição. Ela me foi imposta. Porque os órgãos oficiais nos
abandonaram, não tivemos outra alternativa. Nós instituímos o Téléthon. Mas
sem conhecimento genético avançado não poderíamos fazer muito. Então, cria-
mos o nosso próprio laboratório, o Généthon (Barataud apud Rabinow, 1999,
p. 37).
Impulsionado pela sensação cotidiana de dor pela perda de seu filho e falando
em nome do sofrimento de tantas outras famílias e grupos de pacientes, Barataud ga-
nhou proeminência e poder no mundo das miopatias. A partir desse momento, ficava
claro, para ele e para os pacientes e familiares que o apoiavam, que o único meio de
fugir à banalidade do mal causado por essas doenças era depositar todas as suas fichas
na ciência, na genômica. A morte de seu filho, bem como a de tantos outros portadores
de distrofias, cânceres, AIDS, passou a ser não só uma lembrança constante daquilo
que não querem ser destinados a vivenciar, mas sobretudo um ponto a partir do qual
descobriram uma esperança pela qual lutar. Ainda que, provavelmente, os ganhos de
suas lutas somente estejam à disposição das próximas gerações de pacientes.
Ao ser apresentado por um cientista ao gene que causou a morte de seu filho,
Barataud disse: “a origem da doença de Alison [seu filho] está bem a minha frente.
Pela primeira vez a besta se tornou visível” (Rabinow, 1999, p. 37). Para Barataud e a
então nascente AFM, a descoberta do gene causador da distrofia de Duchene (respon-
sável pela morte de seu filho) representou algo como uma revolução. Agora sabiam con-
tra o que lutar. Mas, à época, a França ainda não estava pronta para participar desse
desafio. O que deixou de ser uma barreira a partir do momento em que a aliança entre
o maior centro de estudos de malformações e distrofias genéticas da França (CEPH) e
o maior grupo de pacientes, familiares e voluntários engajados em debates científicos
pela descoberta de curas e tratamentos (a AFM) tornou-se uma realidade.
Para Rabinow, “o projeto CEPH-AFM é uma iniciativa biopolítica no sentido de
que opera em nome da saúde e bem-estar de uma população ou de uma coletividade”
(Rabinow, 1999, p. 42). O autor diz que se interessou em estudar a aliança entre CEPH
e AFM porque acreditou que algo diferente estava se passando na França, algo que não
poderia ser reduzido tout court à história da saúde pública e da ciência. Em outros ter-
mos, podemos dizer que interessava a Paul Rabinow o diagnóstico de um problema
presente, que facultasse uma genealogia do seu aparecimento, mas que não fosse fun-
damentado em metateorias sobre a modernidade oriundas do arcabouço sociológico,
histórico ou etnográfico.
Rabinow insiste no argumento de que o evento criado pela aliança entre CEPH e
AFM demonstrou-se como um caso exemplar em que a genômica dissolveu a articula-
ção prévia entre bíos e zoé, trazendo à tona as amostras genéticas de cromossomos e
bancos de dados computadorizados que criam novas relações com as nossas formas de
vida e de conhecimento.
Caberia aqui dizer que lamentavelmente a passagem do tempo nos tolhe a possi-
bilidade de conviver com aqueles intelectuais do passado com os quais gostaríamos de
dialogar diretamente. Isto porque seria sem dúvida salutar um debate sobre a biosso-
ciabilidade com autores clássicos, tais como Hannah Arendt. O que ela nos diria ao ver
que a atenção da polis ora se volta para as angústias e necessidades vitais de cada um
daqueles indivíduos transformados por seus destinos (biológicos) em habitantes cati-
vos das oikos contemporâneas?
Talvez, a singularidade da aliança entre CEPH-AFM tenha sido a possibilidade
de disseminar valores e idéias, representados pelos mais diversos sujeitos e interes-
ses. Conforme a figura “anti-pastoral” desempenhada por Baudelaire (cf. Berman,
1986) perante a modernização que emergia diante de seus olhos, muitos também têm
sido aqueles que se dizem contrários à manipulação da vida. E isso tem ocorrido tanto
O que cabe ressaltar, todavia, é que, cada vez mais, novas formas de organização
coletiva têm surgido, conjugando diferentes atores, interesses, temporalidades,
ou mesmo espacialidades, dentro de um novo modo de existência em que a vida
se encontra no centro de nossas preocupações (Rabinow, 1999, p. 180).
O resultado foi, antes de tudo, a polêmica pública acerca dos riscos que uma aliança
Millenium-CEPH representava para o DNA do povo francês, agora elevado à condição
de patrimônio nacional.
Messias Basques
Iniciação Científica do Departamento de Sociologia,
Universidade de São Paulo.
messiasjr@usp.br
referências bibliográfias
Agamben, G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
Barataud, B. Au nom de nos enfants. Paris: Edition 1, 1992.
Berman, M. Tudo o que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
Fagot-Largeault, A. Respect du patrimoine génétique et respect de la personne. Esprit, 5, 1991.
Gerth, H. H. & Mills, C. W. (Org.). From Max Weber: essays in sociology. New York: Oxford University
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Heller, A. & Fehér, F. Biopolitics. Aldeshot: Avebury Publishers, 1994.
Rabinow, P. & Rose, N. Biopower today. Biosocieties, 1, p. 195-217, 2006.
Weber, M. Religious reflections of the world and their directions. In: Gerth, H. H. & Mills, C. W. (Org.).
From Max Weber: essays in sociology. New York: Oxford University Press, 1946. p. 323-58.