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resenhas

scientiæ zudia, São Paulo, v. 5, n. 3, p. 627-40, 2007

O dna francês:
biossociabilidade e politização da vida
Messias Basques

French DNA: trouble in purgatory


Paul Rabinow
The University of Chicago Press
Chicago/London, 1999, 201 págs.

Nas primeiras páginas de French dna: trouble in purgatory, Paul Rabinow nos diz que este
é um livro sobre uma zona heterogênea onde genômica, bioética, grupos de pacientes,
capital de risco, nações e Estados se encontram. Já na epígrafe do primeiro capítulo há
uma menção a Max Weber que identificou o capitalismo moderno e as inovações cien-
tíficas como vetores da corrosão generalizada da solidariedade humana. Ao longo de
seu livro, Rabinow tentará demonstrar

um variante francês de outro modo de subjetivação (e seus descontentes) [...]


O caso francês em questão valoriza a “benevolência” como uma virtude e instru-
mento através da qual tanto o capitalismo quanto a ciência podem ser colocados a
serviço da solidariedade (Rabinow, 1999, p. 9).

O autor adverte, pouco depois, que técnicas disciplinares de individualização e


regulação não serão centrais em sua exposição. Reconhece também sua inspiração no
trabalho de Heller e Fehér (1994) no que concerne ao uso do conceito de “espírito”,
que lhe permitirá situar o caso em questão no modelo analítico da biossociabilidade.
A propósito do sentido deste último conceito, Heller e Fehér argumentam que a partir
do momento em que a ciência moderna passou a questionar a alma cristã, passou do
mesmo modo a necessitar de outra forma de entender o corpo. Assim, enquanto estes
autores acreditam que o elemento espiritual seja uma solução moderna para a questão
da relação entre corpo e alma, Rabinow argumentará que o que se nos apresenta é me-
nos uma questão de crença ou mudança de época do que uma alteração basilar de toda
uma série de elementos (alguns novos, outros não) e sua configuração na prática.

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Rabinow ressalva que, no domínio da bioética, o que está em pauta é a própria


noção de humanidade, não em um sentido material, mas precisamente em um sentido
espiritual. Do mesmo modo, o que estaria em crise seria a noção de dignidade, o sím-
bolo que permeia a Declaração Universal dos Direitos do Homem como uma espécie
de antídoto a qualquer tentativa futura de reaparição de Auschwitz. Atualmente, não
entra em questão nem os corpos dóceis nem as almas condenadas (ainda que tais ques-
tões não tenham deixado de ser relevantes). O que está em jogo, prossegue o autor, são
as conseqüências do processo de reconfiguração no qual vivemos, no qual se dá a fusão
entre saúde e identidade, entre riqueza e soberania, entre conhecimento e valor. Por
conseguinte, estamos também às voltas e imbricados com o processo que põe em evi-
dência o modo pelo qual as tecnologias nos afetam social e corporalmente. Em suma,
estamos sendo confrontados com as seguintes questões: que formas estão surgindo?
Quais práticas lhes são correlatas? Que direção estão tomando as disputas políticas?
Qual o espaço ocupado pela ética atualmente?
É incontestável que mudanças profundas estão ocorrendo nos âmbitos da com-
preensão, manipulação, representação e intervenção nas formas de vida. Mas, para
Rabinow, as mudanças colocadas pelas novas tecnologias são apenas partes dessa situa-
ção confusa. Como o autor tem procurado demonstrar em seus artigos e livros, vislum-
bramos, há tempos, a aparição da biosocialidade como lugar primário da identidade:
“uma biologização da identidade que não se assemelha às outras categorias preexis-
tentes (como raça e gênero) no que compreendemos como manipulável e passível de
aperfeiçoamento” (Rabinow, 1999, p. 13).
Cabe notar que o conceito de biopoder proposto por Foucault volta a ser central
nessa discussão, ainda que Rabinow insista que seja preciso repensar o que podemos
caracterizar como bíos na modernidade, uma vez que já está claro que os novos conhe-
cimentos sobre genômica implicarão mudanças radicais nos âmbitos social e político,
mas o que ainda está pendente é como as mudanças referidas à bíos irão interagir com
as velhas e as novas relações de poder.
No livro resenhado, que precede o artigo de 2006 publicado em conjunto com
Rose Rabinow, Paul Rabinow demonstra que nutria maior afinidade com a obra de
Giorgio Agamben (2003), sobretudo quando diz que “ninguém mais pode aludir ao
avanço da biopolítica no ocidente sem recorrer à descrição de Giorgio Agamben sobre
a distinção entre bíos e zoé. A meu ver, a problematização da vida nua toca num ponto
central para a análise aqui empreendida” (Rabinow, 1999, p. 16). Mas Rabinow já sus-
tenta em seu livro que a articulação entre bíos e zoé – que foi potencializada após a Se-
gunda Guerra Mundial, colocando no centro das preocupações hodiernas a questão da
“dignidade da pessoa humana” em resposta aos programas de aperfeiçoamento a qual-
quer preço da raça ou das populações – estaria sendo progressivamente diluída.

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Meu argumento é que a identificação do dna com a “pessoa humana” numa rela-
ção de auto-evidência (em que as partes simplesmente tomam o lugar da integri-
dade dos corpos) constitui uma identificação “espiritual”. Relacionar a “pessoa
humana” com as partes de seu corpo ou seu dna é solucionar um problema que se
encontrava arredio às nossas tentativas de compreensão (Rabinow, 1999, p. 16).

O autor acredita que suas pesquisas têm confirmado a hipótese de que as prá-
ticas e representações da vida nua foram alteradas. Isto é, se antes a vida humana dis-
punha de atributos que a singularizavam frente aos demais representantes da nature-
za, com o projeto genoma (humano, animal, vegetal e até mesmo de microorganismos)
o dna foi tomado como elemento comum e universal para todos os seres viventes.
O alicerce epistemológico que permitiu a elaboração conceitual que estabelece a con-
dição que concerne à bíos e à zoé teria ruído perante as novas descobertas científicas.
Por conseguinte, Rabinow defende que a aliança entre o CEPH (Centre d’Etude
du Polymorphisme Humain) e a AFM (Association Française contre les Myopathies)
constituiu uma iniciativa de sucesso justamente por articular bíos e zoé em uma dimen-
são genômica. O autor defende que a matriz que os uniu foi o anseio de mapear o geno-
ma humano, tendo como foco a descoberta dos genes causadores de doenças. A AFM,
como tantas outras associações de pacientes, pode então ser representa na figura dos
doentes (les malades), novo tipo universal de sujeito. Por trás de todos esses elemen-
tos, Rabinow ratifica que as pressões desses sujeitos também se relacionavam com ar-
gumentos religiosos que configuram, por sua vez, uma espécie de “pressão purgatória”.
Purgatória no sentido de que o “Parlamento”, onde se encontram pacientes, médicos,
cientistas, industriais e membros do Estado, exige que as decisões sejam tomadas com
base na compreensão de que a urgência e a precaução são imperativas no que tange à
aplicação dos conhecimentos disponíveis. Nesse momento, os pacientes apresentam-
se com o argumento (que suas doenças tornam latentes) de que esta pode ser a última
oportunidade para que algo seja feito em prol de suas vidas, ao mesmo tempo em que
erros e riscos científicos implicados são julgados sob a égide de que deverão ser siste-
maticamente evitados e, se possível, extintos.
Ao referir-se à gênese dessa associação de sucesso denominada AFM, Rabinow
salienta que grupos de pacientes costumam ser diminutos e possuírem interesses
difusos. Na França, a situação começou a mudar quando entraram em cena os apelos
do pai de um menino portador de uma grave distrofia. Esse homem, chamado Bernard
Barataud, perdeu seu filho após inúmeras tentativas e pedidos de socorro em hospi-
tais, aos melhores médicos e cientistas e ao próprio governo francês. Em seu livro,
Barataud (1992) faz uma crítica feroz contra o estado de coisas que põe barreiras à desco-
berta de novos tratamentos e meios-diagnósticos que poderiam, quiçá, ter a faculdade

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de poupar, e mesmo salvar, as vidas de crianças vitimadas por doenças como aquela
que levou seu filho a falecer. Diz Barataud:

Eu não escolhi esta posição. Ela me foi imposta. Porque os órgãos oficiais nos
abandonaram, não tivemos outra alternativa. Nós instituímos o Téléthon. Mas
sem conhecimento genético avançado não poderíamos fazer muito. Então, cria-
mos o nosso próprio laboratório, o Généthon (Barataud apud Rabinow, 1999,
p. 37).

Impulsionado pela sensação cotidiana de dor pela perda de seu filho e falando
em nome do sofrimento de tantas outras famílias e grupos de pacientes, Barataud ga-
nhou proeminência e poder no mundo das miopatias. A partir desse momento, ficava
claro, para ele e para os pacientes e familiares que o apoiavam, que o único meio de
fugir à banalidade do mal causado por essas doenças era depositar todas as suas fichas
na ciência, na genômica. A morte de seu filho, bem como a de tantos outros portadores
de distrofias, cânceres, AIDS, passou a ser não só uma lembrança constante daquilo
que não querem ser destinados a vivenciar, mas sobretudo um ponto a partir do qual
descobriram uma esperança pela qual lutar. Ainda que, provavelmente, os ganhos de
suas lutas somente estejam à disposição das próximas gerações de pacientes.
Ao ser apresentado por um cientista ao gene que causou a morte de seu filho,
Barataud disse: “a origem da doença de Alison [seu filho] está bem a minha frente.
Pela primeira vez a besta se tornou visível” (Rabinow, 1999, p. 37). Para Barataud e a
então nascente AFM, a descoberta do gene causador da distrofia de Duchene (respon-
sável pela morte de seu filho) representou algo como uma revolução. Agora sabiam con-
tra o que lutar. Mas, à época, a França ainda não estava pronta para participar desse
desafio. O que deixou de ser uma barreira a partir do momento em que a aliança entre
o maior centro de estudos de malformações e distrofias genéticas da França (CEPH) e
o maior grupo de pacientes, familiares e voluntários engajados em debates científicos
pela descoberta de curas e tratamentos (a AFM) tornou-se uma realidade.
Para Rabinow, “o projeto CEPH-AFM é uma iniciativa biopolítica no sentido de
que opera em nome da saúde e bem-estar de uma população ou de uma coletividade”
(Rabinow, 1999, p. 42). O autor diz que se interessou em estudar a aliança entre CEPH
e AFM porque acreditou que algo diferente estava se passando na França, algo que não
poderia ser reduzido tout court à história da saúde pública e da ciência. Em outros ter-
mos, podemos dizer que interessava a Paul Rabinow o diagnóstico de um problema
presente, que facultasse uma genealogia do seu aparecimento, mas que não fosse fun-
damentado em metateorias sobre a modernidade oriundas do arcabouço sociológico,
histórico ou etnográfico.

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O objetivo de Rabinow consiste em identificar as transformações que incidem


sobre a ação e as formas de organização contemporâneas. CEPH e AFM, tanto em suas
singularidades como em sua aliança, realmente inventaram uma nova forma de ação e
organização ao redor, e mesmo no interior, do mundo da genômica. Conforme demons-
tra Rabinow, trata-se da conjunção de uma produtiva e bem-sucedida experimentação
tecnocientífica articulada à aparição das demandas dos grupos de pacientes por retor-
nos terapêuticos e científicos em troca de seu investimento e das lutas nas campanhas
do Téléthon, no consecutivo financiamento do laboratório Généthon (resultado da
aliança entre AFM-CEPH) e na doação de amostras de sangue com vistas ao mapea-
mento dos genes responsáveis por suas doenças e distrofias.
Nas palavras do autor,

Daniel Cohen, cientista responsável pelo CEPH, e Bernard Barataud, líder da


AFM, são figuras que só se realizam quando se encontram. Barataud precisava
dos meios mais avançados para o desenvolvimento de pesquisas e inovação nas
tecnologias dedicadas à vida. Cohen precisava de financiamento e respaldo polí-
tico frente às intervenções do governo francês e de seu comitê de ética, ao mes-
mo tempo em que suas pesquisas revestiam-se de legitimação social (Rabinow,
1999, p. 175-6).

Rabinow insiste no argumento de que o evento criado pela aliança entre CEPH e
AFM demonstrou-se como um caso exemplar em que a genômica dissolveu a articula-
ção prévia entre bíos e zoé, trazendo à tona as amostras genéticas de cromossomos e
bancos de dados computadorizados que criam novas relações com as nossas formas de
vida e de conhecimento.
Caberia aqui dizer que lamentavelmente a passagem do tempo nos tolhe a possi-
bilidade de conviver com aqueles intelectuais do passado com os quais gostaríamos de
dialogar diretamente. Isto porque seria sem dúvida salutar um debate sobre a biosso-
ciabilidade com autores clássicos, tais como Hannah Arendt. O que ela nos diria ao ver
que a atenção da polis ora se volta para as angústias e necessidades vitais de cada um
daqueles indivíduos transformados por seus destinos (biológicos) em habitantes cati-
vos das oikos contemporâneas?
Talvez, a singularidade da aliança entre CEPH-AFM tenha sido a possibilidade
de disseminar valores e idéias, representados pelos mais diversos sujeitos e interes-
ses. Conforme a figura “anti-pastoral” desempenhada por Baudelaire (cf. Berman,
1986) perante a modernização que emergia diante de seus olhos, muitos também têm
sido aqueles que se dizem contrários à manipulação da vida. E isso tem ocorrido tanto

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em comitês de ética como em movimentos e associações empenhados em fazer valer o


princípio “mais ética, mais limites à ciência”. Como bem mostra Rabinow, as tecno-
logias que produzem o “espírito” dessas controvérsias são elementos centrais da má-
quina purgatória. O espírito é difuso, devotado para a descoberta do que modifica o
estatuto da humanidade e as formas de vida dos seres humanos. A filósofa e professora
do Collège de France, Anne Fagot-Largeault, propôs que a ignorância da ética repousa
justamente na inobservância de que “o genoma não é sagrado. O que é sagrado são nos-
sos valores ligados à nossa concepção de humanidade” (Fagot-Largeault, 1991, p. 47).
Contudo, diz Rabinow, o estudo da produção do espírito dessas controvérsias é
somente uma das modalidades existentes no rol do pensamento crítico. O mesmo ob-
jeto poderia ser investigado sob outros enfoques. Em outras palavras:

O que cabe ressaltar, todavia, é que, cada vez mais, novas formas de organização
coletiva têm surgido, conjugando diferentes atores, interesses, temporalidades,
ou mesmo espacialidades, dentro de um novo modo de existência em que a vida
se encontra no centro de nossas preocupações (Rabinow, 1999, p. 180).

À guisa de conclusão, Rabinow aponta para a necessidade de ampliar o campo de


estudos da biossociabilidade, uma vez que “O dna francês somente vem acrescentar à
narrativa um dentre os muitos casos existentes no rol dessa recente epistemikos bios”
(Rabinow, 1999, p. 181).
Um outro exemplo de disputa travada em torno da biossociabilidade, que caberá
ao leitor o prazer de acompanhar na descrição apurada de Paul Rabinow, diz respeito à
polêmica gerada com a notícia de que o CEPH iria juntar-se a uma empresa farma-
cêutica norte-americana chamada Millenium Pharmaceuticals. A AFM, a mídia, o go-
verno e seu comitê de ética, dentre outros atores, questionaram de forma veemente a
possibilidade de que as amostras de sangue contendo informações sobre o DNA de mi-
lhares de pessoas portadoras dos mais variados tipos de doenças e miopatias pudesse
vir a ser utilizado por uma empresa norte-americana como instrumento potencializa-
dor de futuros lucros com produtos farmacêuticos derivados do enorme e “valioso”
banco de dados do CEPH.
Esta mina de ouro e de polêmica em que se converteu o banco de dados do
CEPH ganhou tais proporções, sobretudo porque grande número de pacientes da AFM
e outras associações propuseram-se a doar gratuitamente amostras sanguíneas para
testes e pesquisas científicas. Daí em diante, a benevolência e a esperança que haviam
feito que os pacientes enviassem ao CEPH suas amostras, confrontaram-se com um
outro resultado que não a solidariedade enunciada no início da exposição de Rabinow.

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O dna francês: biossociabilidade e politização da vida

O resultado foi, antes de tudo, a polêmica pública acerca dos riscos que uma aliança
Millenium-CEPH representava para o DNA do povo francês, agora elevado à condição
de patrimônio nacional.

Messias Basques
Iniciação Científica do Departamento de Sociologia,
Universidade de São Paulo.
messiasjr@usp.br

referências bibliográfias
Agamben, G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
Barataud, B. Au nom de nos enfants. Paris: Edition 1, 1992.
Berman, M. Tudo o que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
Fagot-Largeault, A. Respect du patrimoine génétique et respect de la personne. Esprit, 5, 1991.
Gerth, H. H. & Mills, C. W. (Org.). From Max Weber: essays in sociology. New York: Oxford University
Press, 1946.
Heller, A. & Fehér, F. Biopolitics. Aldeshot: Avebury Publishers, 1994.
Rabinow, P. & Rose, N. Biopower today. Biosocieties, 1, p. 195-217, 2006.
Weber, M. Religious reflections of the world and their directions. In: Gerth, H. H. & Mills, C. W. (Org.).
From Max Weber: essays in sociology. New York: Oxford University Press, 1946. p. 323-58.

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