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José Mattoso (1997 (1ª ed. , 1988).


A escrita da história – teoria e métodos.
Lisboa: Editorial Estampa, 216 páginas.

crítica do texto historiográfico.


Este livro é composto por transcrições de
A obra em epígrafe representa um con- palestras e conferências feitas pelo autor,
tributo muito importante para os historia- durante os anos de 1986 e 1987.
dores e para todos que se interessam por No primeiro capítulo, intitulado A Escri-
História e pelo estudo da História. O autor ta (p.13), o autor revela a sua insegurança
entende que, ao situar-se na problemática em falar de questões gerais e fundamen-
do Moderno ou do Pós-Moderno, não pode talmente teóricas, entendendo que essa
compartilhar ideias com quem acreditava sua insegurança é resultado “de uma certa
ser a História “a narrativa da emergência do aversão pessoal por questões teóricas e
Espírito, da Razão, do Progresso, da Liberda- por noções abstractas, agravadas por uma
de, da Democracia, do Socialismo ou mesmo deficiente preparação filosófica”(p.15). Re-
do Homem”(p.9). vela, ainda, que certas noções de conceitos
Assim, o escritor procura mostrar nesta que lhe foram oferecidos por ciências como
obra, uma certa ordem, dentro dos fragmen- Psicologia, Sociologia e Antropologia, se lhe
tos dispersos da realidade e dos diferentes mostraram de mais utilidade nas suas inves-
modos do comportamento do homem, a tigações do que as formas propostas por co-
que chama Verbo, um aglomerado de regras legas da sua própria especialidade.
de composição, as quais, harmoniosamente, José Mattoso resolve, então, seguir um fio
estão subjacentes “à espécie de fantástica condutor, referindo-se para isso, a três mo-
sinfonia que é a História” (p.10). mentos da elaboração do discurso histórico:
Procurando a natureza dos métodos e exame do passado através das suas marcas,
da teoria da escrita da História, o seu es- representação mental que desse exame resulta
tudo compreende três grandes capítulos: A e produção de um texto escrito ou oral que
Escrita, Os Materiais e Os Temas, que, permite comunicar com outrem (p.16).
indicando as características de Portugal na Para o autor, os documentos só revelam
Europa, abrangem também a História nacio- verdadeiro significado quando fazem parte
nal, e integram nesta o “sagrado”, o “profa- integrante de uma globalidade que se apre-
no” e o “invisível” também eles integrados senta como a existência do homem no tem-
na realidade. po e também quando se perscrutam os actos
Esta obra apresenta-se-nos como um re- humanos num total, ou seja, por exemplo,
gisto brilhante e de uma sensibilidade ex- “não dar mais valor à queda de um império
plícita que, desde o início, nos prende à sua do que ao nascimento de uma criança, nem
leitura. mais peso às acções de um rei do que a um
Reconhecendo o autor as contradições do suspiro de amor” (p.17).
comportamento humano, propõe-se averi- Antigamente, “factos históricos” eram
guar, por detrás delas, as harmonias resul- apenas os actos dos chefes políticos, dos
tantes da simbiose de elementos dispersos e génios ou dos heróis. Agora, com o alarga-
contraditórios como a própria existência do mento da história da humanidade, tudo se
Homem e das quais o autor é fascinado pela apresenta como tendo dimensão históri-
procura de eixos, encontros e desencontros, ca, “desde a forma de enterrar os mortos
convergências e divergências. Vai, então, ten- até à concepção do corpo, desde a sexua-
tar descobrir uma possível conciliação entre lidade até à paisagem, desde o clima até à
a percepção do inexprimível e a construção demografia”(p.17). O autor entende que o

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que torna um facto objecto da História não te, mas esse exame deverá sempre ter em
é o próprio facto em si mesmo, mas sim o conta que o essencial só se revela a quem
que eventualmente possa vir a representar sabe procurar e reconhecer o seu valor. Em
para o destino da humanidade. relação à observação do passado, só deve-
Toda a observação histórica deve captar remos ser atraídos por aquilo que nos per-
as dimensões ocultas e não apenas as apa- mite compreender e viver o presente e não
rentes e imediatas. Não apenas o que se basta, por isso, estudar os documentos anti-
pode captar segundo os parâmetros das di- gos, mas indagar o passado na paisagem, nos
versas taxonomias científicas, mas também monumentos, nas iluminuras, nos jogos, nos
o que pode ser captado segundo um registo contos, no imaginário colectivo, etc.
poético. Devem ser usadas todas as faculda- José Mattoso, conclui de forma pertinente:
des de observação, não apenas as racionais
mas também as volitivas, para que se possa Para mim, portanto, a História não é a co-
memoração do passado, mas uma forma de in-
apreender o real em todas as suas facetas.
terpretar o presente. Ao descobrir a relação
O autor entende ser este exercício um acto entre o ontem e o hoje, creio poder decifrar a
de amor: ordem possível do mundo, imaginária, porven-
tura, mas indispensável à minha própria sobre-
Um amor na plena acepção da palavra, isto é, vivência, para não me diluir a mim mesmo no
que não é contaminado pela tentação de possuir, caos de um mundo fenomenal, sem referências
dominar ou destruir, mas que mantém intacta a nem sentido (p.22).
alteridade, a radical separação do sujeito e do
objecto, e que tenta estabelecer a relação com Tentar mostrar que existe uma ordem no
ele através do verbo interior, em todas as suas
dimensões: o cântico de admiração, o diálogo mundo, eis, segundo o autor, o verdadeiro
do gesto, a descoberta do símbolo, o desenca- destino da História. Descoberta essa or-
deamento da palavra poética (p.18). dem, há que reparti-la entre o passado e o
presente; o passado deve ser estudado em
O Homem sempre foi fascinado pela His- grandes planos para que se possam encon-
tória. Este fascínio, na opinião do autor, tem trar as razões profundas dos movimentos
a ver com o facto de o Homem estar con- colectivos.
vencido de que pode encontrar no passado Relativamente à recolha de dados e à sua
respostas importantes sobre si próprio. O classificação, para que não sejam meramen-
desprezo sobre o passado exprime, por cer- te empíricos, devem utilizar-se modelos e
to, um olhar curto, obtuso e grosseiro sobre conceitos já utilizados pelas outras ciências
a vida. humanas, constituindo o fio condutor que
O importante, para o autor, é que a atitu- irá propor hipóteses interpretativas cuja
de contemplativa permite apreender a rea- solidez e fundamento serão posteriormente
lidade de hoje e de sempre como fonte de verificados com o material empírico.
lucidez e que permite relacionar as partes Por fim, encontradas as pistas, encontra-
com o todo, chegando-se, assim, a reunir, do o que nos interessa, é ainda necessário
num só acto, a análise e a síntese, a distinção demonstrar o que se descobriu, fazer rela-
e a composição. Depois de delimitada uma tórios, ou seja, somos chegados à fase da
área no campo da observação, deve ser exa- comunicação, à última fase da elaboração do
minada em todas as suas dimensões. texto histórico.
Para o autor, a atitude contemplativa não é O autor considera que a escrita da His-
oposta à atitude racional e científica. Muito tória é do domínio da arte; nessa escrita,
pelo contrário, uma vez que torna a ciência existem vários graus, desde o texto ingénuo
extremamente exigente e o rigor da obser- e um pouco rude, até ao texto fundador de
vação incansável. Essa atitude contemplativa uma nova era historiográfica, passando, lo-
levará também a não nos contentarmos com gicamente, por livros fastidiosos mas úteis,
os vestígios escritos do passado e a exami- compêndios para consumos escolares e or-
narmos o que se encontra por toda a par- denações esquemáticas e simples.

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Subscreve, ainda, a ideia que a escrita em no tempo. Talvez a entrega apaixonada a esta
História é um discurso pessoal, resultante contemplação possa realmente aproximar as
palavras que balbuciamos para transmitir o que
da interpretação de quem escreve, e enten- aí se revela como a palavra única que o Homem
de ser o discurso que recorre à “retórica”, e o mundo pronunciam e ninguém jamais che-
ao “enciclopedismo” ou à “erudição”, subju- gará a dizer (p.42).
gante do leitor a uma determinada ideia ou
sentimento, ou apenas ao prazer de dominar, Na medida em que a orientação moder-
alienante e não libertador. na se está a encaminhar no sentido de um
De seguida, Mattoso parte para uma refle- tecnicismo crescente dos métodos, não se
xão subordinada ao tema A História – Arte ou compadecendo já “com o velho ideal huma-
Ciência (p.31), e refere não admitir, de for- nista do sábio pesquisador de papéis velhos,
ma alguma, a arbitrariedade da investigação cuja principal ferramenta de trabalho era a
histórica, nem na fase da heurística, nem na
paleografia” (p.43), o historiador moderno
fase da elaboração do texto. Entende ser a
tende a identificar-se com um homem de
crítica actual mais exigente. Para este facto
negócios.
têm contribuído as “ciências empíricas pro-
É citado, então, Geoffrey Barraclough,
priamente ditas, ou que usaram maciçamen-
te os seus dados, como o exame químico do como sendo um bom guia para uma visão
suporte, da escrita e da tinta, a codicologia de conjunto. Actualmente, já não interessam
e o aperfeiçoamento da paleografia” (p.35). os factos em si, mas a sua repetição; não a
Como auxiliares, são referidos os métodos acção individual, mas sim os movimentos de
quantitativos e estatísticos, disciplinas da massa.
Matemática e a sua aplicação rigorosa. As- Emerge, assim, para a historiografia, a no-
sim sendo, estamos a entender a História ção de que se podem reconstituir no pas-
como Ciência. sado sistemas organizados de acções que
Podemos entendê-la também como Arte, mantêm um grau apreciável de continuidade
uma vez que ela só pode alcançar o passa- temporal, a que se chama estruturas sociais.
do por meio de sinais e representações da Contudo, não se podem usar como refe-
realidade e não por um exame directo da rência os conceitos e padrões de compor-
própria realidade. tamento actuais. Há que reconstituir os do
Por fim, o autor conclui ser afi- passado. Todavia, há que ter em conta que
nal a História “uma representação de os documentos históricos raramente expli-
representações”(p.38) e, na sua opinião, citam o que é normal e quotidiano. Será ne-
devem-se distinguir três aspectos: “a qua- cessário, então, fazer uma revisão das fontes
lidade da forma, a habilidade na escolha e para que se possa detectar aquilo que, de
interpretação dos dados e a carga poética facto, nos interessa. De novo, o autor refere
do seu sentido global” (p.39). Neste sentido, outras ciências humanas que podem auxi-
a História é “um saber, e não propriamente liar o historiador, como a Antropologia e a
uma ciência” (p.38). Sociologia, que permitirão que não se pas-
Não é possível deixar de citar um pará-
se ao lado de importantes referências do-
grafo que aparece mais à frente e no qual o
cumentais, que nos possam dar uma ajuda
autor, na sua maneira poética, humilde, sim-
preciosa para que possamos averiguar o que
ples, mas carregada de sabedoria, e até de
é ou não essencial.
certa forma acutilante, nos transmite uma
conclusão a que chega: Deixando, então, de lado o fio condutor
de Barraclough, o autor vai abordar outro
Para descobrir o que por dificuldade de lin- tipo de historiografia mais difícil de preci-
guagem se chama o mistério da História e que, sar nas suas modalidades concretas e para
afinal, talvez seja tão simples como a clarida- a qual não é fácil prever um destino único.
de do sol ou a escuridão da noite, parece não José Mattoso refere-se às investigações que
haver técnica, ciência nem arte que cheguem.
Parece ser necessário juntá-las todas e ceder pretendem captar as categorias mentais pre-
ao fascínio de contemplar a vida do Homem dominantes no passado e que utilizam, pri-

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vilegiadamente, os conceitos e métodos da Quanto a Portugal, o autor mostra-se op-


sociolinguística e da semiologia. No entan- timista e convencido que os próximos anos
to, o autor reconhece que, na época actual, serão de grande fecundidade, uma vez que
ainda se impõe o rigor e o método cien- existem, a seu ver, muitos jovens a fazer
tífico, bem como a análise impressionista e mestrado e doutoramento, ou seja, canaliza-
a escolha aleatória dos testemunhos sendo dos para a investigação.
obrigatória a análise sistemática e o uso de A obra, que constitui objecto de análise,
critérios objectivos. prossegue com mais dois capítulos, os quais
Para terminar, o autor considera ser evi- já aqui foram referidos anteriormente, e
dente a necessidade de cruzar o resultado acerca dos quais será aqui indicada apenas
destes dois tipos de investigação e ser aí a estrutura. O capítulo II (Os Materiais),
requerido um grau elevado de intuição e de foca os seguintes aspectos: “Renovar os
sensibilidade, que permita ultrapassar o sim- arquivos para renovar a História” (p.67) e
ples rigor científico. o autor referenciando o seu agrado pelas
Segue-se uma comparação entre o pano- decisões governamentais da transferência e
rama actual dos novos rumos da historio- da reestruturação da Torre do Tombo, indi-
grafia e o abismo que a separa da realidade ca três vertentes principais que a seu ver
portuguesa. transcendem de longe o sector restrito dos
Mattoso lembra, então, que o progresso arquivos. 1- A preservação de todo o patri-
historiográfico se fez mais rapidamente em mónio histórico deverá ser assegurada, uma
países com grande actividade científica nou- vez que constitui a base mais realista e efi-
tros campos do saber. “Em Portugal, para caz da cultura e da identidade nacional; 2- O
além de uma situação global comparativa- alargamento da informação necessária para
mente menos favorável, verifica-se, no cam- conhecer as estruturas socioeconómicas
po historiográfico, que a fase positivista não nacionais; 3- A racionalização da gestão de
chegou nunca a criar um conjunto suficiente um sector fundamental da base informativa
de estudos de base para se poder passar, sobre a qual se deverá apoiar a Administra-
sem mais, à fase seguinte”(p.50). E continua, ção Pública. “O arquivo e a identificação”
referindo-se ao facto de ao passarmos à crí- (p.79), “Os arquivos oficiais e a construção
tica textual, outro aspecto da fase positivis- social do passado” (p.89), “ A publicação de
ta, o panorama ser também desfavorável. fontes documentais e o progresso da ciência
Assim, o autor entende ter o seu resumo histórica em Portugal” (p.101), “Investigação
do modo como Barraclough apresenta a si- histórica e interpretação literária de textos
tuação mundial, mostrado “(…) de maneira medievais” (p.115).
evidente, que só há, na actualidade, história No capítulo III (Os Temas) (p.127), o au-
científica válida, e esta só realiza progressos tor aborda questões de enorme importância,
decisivos se se consagra a problemas estru- tais como: Portugal e a Europa, a identidade
turais da vida humana e se utiliza métodos europeia, história regional e local, periodiza-
estritamente rigorosos, tanto do ponto de ção e diacronia, a mulher e a família. Temas
vista conceptual como pelo uso de instru- que, pela sua actualidade, devem ser objecto
mentos de medida” (p.53). Acrescenta, ainda, de reflexão.
entender ser isto possível, pelo exame de Em suma, no seu conjunto, trata-se de um
grandes massas documentais, pelo aperfei- livro que providencia informação impor-
çoamento dos conhecimentos das outras tante, tanto para profissionais de História,
ciências humanas, além da História, e pela como para amadores ou simplesmente inte-
constituição de equipas com programas de ressados em História. Todavia, a leitura desta
investigação rigorosa e faseada. Reconhece, obra poderá igualmente interessar a outros
no entanto, que a alteração do panorama técnicos na área da educação.
não será nunca feita por decreto, uma vez
que depende “da modificação de uma menta- Maria Clara Lino
lidade profundamente arreigada, mesmo em
alguns adeptos dos novos métodos”(p.53). claralino@sapo.pt

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