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DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
FACULDADE DE DIREITO
SÃO PAULO
2009
Taffarello Rogério Fernando
153 p. ; 30 cm.
Notas de rodapé
Inclui bibliografia.
CDU
343.575(091)(043)
Resumo
O presente trabalho analisa a evolução das relações entre drogas e seres humanos e
seu estatuto jurídico, com ênfase na emergência do modelo político proibicionista
durante o século XX. Critica a imposição desse modelo ao mundo, por sua
ilegitimidade mesma e por suas desastrosas conseqüências jurídicas e sociais. Na
busca de uma alternativa ao proibicionismo, examina modelos políticos e textos
legislativos de países mais avançados na matéria, a fim de sugerir um novo
paradigma jurídico e político de regulação de drogas ao Brasil.
Sintesi
Il presente lavoro analizza l’evoluzione delle relazioni tralle drogue ed esseri umani
ed il suo statuto legale, con enfasi sulo sviluppo del modello politico proibizionista
durante il Novecento. Il lavoro critica l’imposizione di questo modello al mondo, per
la sua illegitimità stessa e per le sue disastroese conseguenze giuridiche e sociali. In
cerca di una alternativa al proibizionismo, discute modelli politici e texti legali di
paesi più avanzati nel tema, affinché proponga un nuovo paradigma giuridico e
politico di controllo di drogue al Brasile.
THC - Tetrahidrocanabinol
UE – União Européia
Introdução ...............................................................................................................7
1. Reflexões iniciais ...............................................................................................15
1.1. Aproximação do problema ............................................................................18
1.2 Sobre as drogas legais universais – o álcool e o tabaco...................................20
1.2.1. Álcool ....................................................................................................20
1.2.2 Tabaco ....................................................................................................26
1.2.3. Reflexões críticas ...................................................................................29
2. Análise histórica do consumo, da oferta e do tratamento legal .......................32
2.1. Antecedentes: da Antiguidade à modernidade ...............................................32
2.2. O capitalismo e as drogas..............................................................................36
2.3. Século XX: disseminação do consumo e conseqüente crise social .................38
2.4. O século XX e o influxo do proibicionismo ..................................................44
2.4.1. Moralismo puritano e higienização social como fundamentos de
elaboração de políticas legais repressivas .........................................................45
2.4.2. Da sanidade social às ideologias da segurança........................................54
2.4.3. Anos 70: repressão de drogas como assunto de segurança nacional, e
posterior exportação da guerra às drogas sob a forma de intervencionismo
militarista.........................................................................................................64
3. O Modelo legislativo positivo da repressão a drogas .......................................80
3.1. Tutela de drogas e principiologia penal .........................................................82
3.2. Algumas considerações de índole criminológica ...........................................86
4. Liberdade individual versus paternalismo legal...............................................89
5. Ineficácia manifesta da criminalização do comércio de drogas antes os fins a
que se propõe (o war on supply, o paradoxo dos lucros e o efeito hidra) ..............95
6. Tendência alternativa emergente: o atual tratamento da matéria na Europa100
6.1. Alemanha ...................................................................................................106
6.2. Espanha ......................................................................................................111
6.3. Holanda ......................................................................................................116
6.4. Itália ...........................................................................................................123
6.5. Portugal ......................................................................................................128
6.6. Reino Unido ...............................................................................................133
6.7. Reflexões ulteriores ....................................................................................140
7. Reflexões conclusivas ......................................................................................143
Bibliografia..........................................................................................................145
INTRODUÇÃO
1
Vide infra, cap. 4. Ilustrativamente, mencione-se a observação do pioneiro farmacologista alemão
Ludwig Lewin, o qual, no século XIX, referindo-se às drogas, assinalou que “com a única exceção dos
alimentos, não existe na Terra substâncias que estejam tão intimamente associadas com as vidas dos
povos e em todos os tempos”. Apud CARNEIRO, Henrique. “A Odisséia psiconáutica: a história de
um século e meio de pesquisas sobre plantas e substâncias psicoativas”. In: LABATE, Beatriz Caiuby;
GOULART, Sandra Lucia (orgs.). O Uso ritual das plantas de poder. Campinas: Mercado de Letras,
2005, p. 57.
2
A respeito, vide: GRECO FILHO, Vicente. Tóxicos: prevenção – repressão, 11ª ed. São Paulo:
Saraiva, 1996, p. 04.
3
Cremos que tal se deva simplesmente ao fato de não haver como diferenciá-las por sua natureza, mas
apenas pelo critério arbitrário do tratamento legal a elas dispensado, o que, a nosso ver, eximiria a
OMS de uma suposta necessidade de discernir entre umas e outras.
4
GOULART, Sandra Lucia et al. “Introdução”. In: LABATE, Beatriz Caiuby; GOULART, Sandra
Lucia (orgs.). Op. cit., p. 30. Atualmente, a própria Organização Mundial de Saúde consagra
correspondente conceituação: “substâncias psicoativas são aquelas que, quando consumidas ou
administradas ao organismo, afetam processos mentais como cognição ou sentimentos. Essa expressão
e sua equivalente, droga psicotrópica, são os mais neutros e descritivos termos para toda a classe de
substâncias lícitas e ilícitas de interesse das políticas sobre drogas”. Disponível em:
<http://www.who.int/substance_abuse/terminology/psychoactive_substances/en/index.html>. Acesso
em 10/01/2008.
5
Evitaremos, entretanto, a utilização do vocábulo tóxico, ou mesmo substâncias tóxicas, porquanto
sua designação semântica compreende somente um sentido negativo, o que vai de encontro a uma das
premissas fundamentais desse trabalho: o mal que pode decorrer do uso de tais substâncias, antes de
ser-lhes intrínseco, depende decisivamente da maneira como são administradas.
7
– drogas, fármacos –, que aqui serão adotados como sinônimos com vistas a evitar
repetições vocabulares inestéticas e enfadonhas.
Ademais, há muitas diferenças entre cada uma das substâncias que tais
termos visam a abranger, e ainda muito se discute a respeito de terminologias e
conceitos mais adequados. De modo geral, malgrado a sua notável heterogeneidade,
podem-se dividir tais substâncias em três grandes grupos: o dos psicoanalépticos
(excitantes), em que se incluem o grupo das anfetaminas e os estimulantes, como
coca e cafeína; o dos psicolépticos (sedativos), que compreendem os tranqüilizantes,
alcalóides e opiáceos – entre estes a heroína e a morfina; e o dos psicodislépticos
(alteradores de consciência), também conhecidos como alucinógenos, em que se
inserem, por exemplo, a maconha, a mescalina e o ácido lisérgico (LSD)6.
6
GRECO FILHO, Vicente. Op. cit., p. 04-08; GOULART, Sandra Lucia et al. Op. cit., p. 30;
CARNEIRO, Henrique. Op. cit., p. 65.
8
que compõem a ciência conjunta do direito penal7. Para lidar com a política criminal
de drogas, portanto, não podem os juristas prescindir de estudos das ciências
humanas e sociais, algo de que as faculdades de direito do país permanecem bastante
carecedoras8. E o presente trabalho, realizado no âmbito de uma faculdade de direito,
tenciona oferecer sua pequena contribuição nesse mister, no que toca a aspectos
histórico-sociológicos e suas relações com a disciplina jurídico-penal9.
7
Sobre a evolução da noção de ciência conjunta do direito penal, vide: DIAS, Jorge de Figueiredo.
Direito penal – parte geral, t. I. São Paulo – Coimbra: Revista dos Tribunais – Coimbra Editora, 2007,
p. 18-41.
8
Cabe ressaltar, entretanto, que foge ao escopo do presente trabalho cobrir detidamente cada um dos
citados aspectos, cuja referência se deve ao intento de ressaltar a necessidade de diálogo com as
demais áreas do conhecimento afetas ao tema.
9
Destarte, houve que se afastar do escopo do trabalho considerações teóricas sobre a legislação
positiva de drogas, porquanto se analisa a criminalização em si e sua legitimação.
10
ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, p. 28.
11
Idem, ibidem, p. 28.
9
*******
12
DAVENPORT-HINES, Richard. The pursuit of oblivion: a global history of narcotics. London –
New York: W. W. Norton, 2002, p. 11.
13
Idem, ibidem, p. 14.
14
Idem, ibidem, p. 15 (grifos nossos). Trad. livre.
15
Disponível em: <https://www.unodc.org/unodc/en/data-and-analysis/WDR-2007.html>. Acesso em:
10/10/2008. Anote-se, contudo, que, segundo a mesma fonte, o número de pessoas que abusaram de
alguma(s) das aludidas substâncias se mostra bastante inferior ao da generalidade de seus
consumidores: 25 milhões, ou 0,6% daqueles entre 15 e 64 anos.
10
milhões fizeram uso de opiáceos em geral, 14 milhões consumiram
cocaína e 11 milhões, heroína16;
16
Ibidem. Acesso em 10/01/2008.
17
Ibidem. Acesso em 10/01/2008.
18
Ibidem. Acesso em 10/01/2008.
19
DAVENPORT-HINES, Richard. Op. cit, p. 16.
20
Idem, ibidem, p. 16.
11
- O Reino Unido possui um dos mais severos regimes de
restrição ao uso em seu continente; contudo, seus índices de
consumo estão entre os mais altos ali21;
21
Idem, ibidem, p. 17.
22
Idem, ibidem, p. 17.
23
Idem, ibidem, p. 17. Trad. livre.
24
Estudo publicado em 2004 pela OMS aponta serem o álcool e o tabaco causadores de um número de
mortes, no mundo todo, superior em trinta vezes ao número causado pelo conjunto de todas as
substâncias ilícitas. Aponta ainda serem o álcool e o tabaco dez vezes mais nocivos à saúde humana
do que a média das drogas ilícitas. Neurociência do uso e dependência de substâncias psicoativas.
12
Como se supõe, há uma forte questão cultural a responder
parcialmente a indagação, mormente no que se refere ao álcool, na medida em que a
aceitação social de seu consumo é bastante antiga, e perene. No entanto, assim como
ele se vê inserido há muitos séculos na cultura das sociedades européias, outras
substâncias também datam sua inserção cultural em tempos remotos, em diferentes
regiões do globo – de que são exemplos os casos da coca na região andina e do ópio
em partes do sul da Ásia. Então, parece que a explicação talvez possa residir no fato
de que os países Europeus, uma vez tendo sido as metrópoles que lideraram a
expansão colonial, permitiram-se exportar a sua cultura – e, indicie-se desde logo,
prevalência econômica – também neste aspecto, ao passo que à periferia do
capitalismo coube se submeter a ela. Ora, sabe-se tratar-se de algo também visível
nos dias correntes, em que, enquanto testemunhamos a incessante repressão a
camponeses andinos cultivadores de folhas de coca, remanesce inimaginável a
possibilidade de que as grandes corporações industriais produtoras de tabaco e de
bebidas alcoólicas, assim como os Estados nacionais que representam seus
interesses, anuam a que tais substâncias sejam lançadas à ilicitude absoluta25. Eis
apenas uma das solenes hipocrisias que são notadas ao se realizar um exame mais
profundo do assunto, e mais um motivo pelo qual se nos afigura que o melhor
caminho para lidar com o tema seria o de uma cautelosa regulamentação,
devidamente orientada, retirando-se-lhe o contraproducente tratamento penal ora
vigente.
14
1. REFLEXÕES INICIAIS
Cumpre afirmar, então, que o grande mal à saúde humana que pode
ser causado pela existência de tais substâncias reside em seu consumo excessivo.
Trata-se, aqui, de algo inegável: o consumo excessivo de droga(s) tende
inexoravelmente a acarretar prejuízos à saúde física e/ou psíquica de quem a(s) tenha
consumido; pode, outrossim, causar indesejada dependência física ou psíquica em
seu usuário. Destarte, adotamos tal constatação como premissa primeira deste
trabalho, na medida em que o consumo excessivo – ou abuso – de psicoativos,
também por esse motivo 29, há muito se tornou fator de especial preocupação
institucional e social.
26
Embora possa parecer desnecessário excesso de rigor, ou mesmo tautologia, a explicação se presta a
afastar, desde logo, a idéia de que as substâncias psicoativas sejam um mal em si, quando em verdade
o problema não reside em sua existência mesma ou ainda em seu simples consumo, mas em seu
eventual consumo abusivo. No mesmo sentido, vale indiciar, ora, que o consumo de drogas não parece
constituir algo nocivo à saúde pública, mas sim à saúde individual – e, não obstante, essa nocividade
se dá apenas ocasionalmente.
27
Para os fins deste trabalho, desconsidera-se o fato de medicamentos em geral também serem
referidos, nas mais diversas línguas, como “drogas”, o que facilitaria o esclarecimento que se faz neste
momento; o vocábulo drogas, aqui, designará exclusivamente substâncias psicoativas cujo uso
ordinário atual não compreende terapias médicas ortodoxas.
28
E, por vezes, às escondidas das instituições médicas e estatais.
29
Outras das muitas razões que determinaram o crescente protagonismo oficial no controle da relação
entre indivíduos e substâncias tóxicas através da elaboração de políticas disciplinadoras de seu
consumo e comércio haverão de ser estudadas em capítulo próprio.
15
excessivo de qualquer substância, seja ela um remédio, alimento, bebida, etc., tende
a ser nocivo à saúde humana individual, em maior ou menor medida de acordo com
suas propriedades específicas30 e com níveis subjetivos de tolerância. A seu turno, a
dependência, seja ela física ou psíquica, é algo que requer seja tratado sob o ponto de
vista médico, assim como ocorre com inúmeras outras enfermidades, e apresenta
incidência relativamente pequena – tanto em relação ao número de consumidores de
drogas quanto em relação à incidência global e à letalidade de outras patologias que,
no entanto, provocam menor comoção social31. Isso parece significar que a mera
nocividade potencial à saúde humana contida em substâncias psicoativas deva ser
insuficiente para justificar tamanhas preocupações, ainda que se lhes pressuponha,
grosseiramente, eventual nocividade superior à da generalidade dos alimentos e
bebidas (não-alcoólicas).
30
Ademais da remissão a substâncias de ingestão ordinária, e tratando igualmente das variações de
efeitos – positivos e negativos – que uma mesma substância, qualquer que seja ela, pode conter, anota
Neuman: “os cientistas, desportistas e pescadores sub-aquáticos sabem que o oxigênio altamente
concentrado em seus tanques produz alucinações e euforia com conseqüências que podem ser fatais. O
mesmo caberia dizer da aplicação no cérebro de eletrodos que levam da calma absoluta ao pânico.
Existe também a ‘drogadição sem droga’ de quem se estupidifica em frente ao televisor durante horas
ou faz da comida uma panacéia adictiva”. NEUMAN, Elías. La Legalización de las drogas, 3ª ed.
reestruct. e ampl. Buenos Aires: Editorial Universidad, 2005, p. 25. Trad. livre.
31
Estima-se que a diabetes, por exemplo, mate cerca de 3 milhões de pessoas anualmente em todo o
mundo, número mais ou menos equivalente à quantidade total de dependentes de drogas – ou seja,
todos aqueles que tecnicamente sofrem problemas de saúde decorrentes do consumo de psicoativos –
atualmente existente. A respeito, vide: <http://www.who.int/diabetes/facts/en/index.html>. Acesso
em: 10/01/2008.
16
Tampouco a própria psicoatividade inerente às drogas parece ser
bastante para que mereçam o tratamento que lhes vem sido dispensado: cafeína,
açúcar, álcool, tabaco e medicamentos manufaturados com propriedades psicoativas
transitam livremente nos mais variados círculos sociais desde há muito, e seu
consumo é estimulado pelas mais diferentes fontes e de diversas maneiras – e, muitas
vezes, confere elevado status social ao consumidor.
32
Compreenda-se amplamente, aqui, a expressão “comunicação social”, visto que a referência cabe a
cada um de seus quatro desígnios, e põe-se deliberadamente com este propósito (c. social: “1 aquela
que se processa entre uma fonte organizada de informação – empresa, organização governamental ou
não governamental, etc., ger. por intermédio de equipes especializadas – e a comunidade 2 p. met. [por
metonímia] atividade profissional que se ocupa de tal função 3 m. q. comunicação de massa [‘forma
de comunicação dirigida a um número de pessoas numericamente vasto, disperso, heterogêneo e
anônimo, e que utiliza, para atingir sua audiência, aparelhos e dispositivos de edição, reprodução,
transmissão, distribuição e comercialização das mensagens] 4 m. q. comunicação humana [‘a que se
17
preocupação revestida de aparente consenso social, uma reflexão preliminar a
respeito, como a presente, ao tencionar isolar as drogas e seu consumo de
circunstâncias que lhes sejam externas, não logra explicá-la de maneira minimamente
satisfatória. Afigura-se haver, mesmo, um importante fator ideológico a determinar
tamanha intolerância à mera existência e ao consumo de tais substâncias – e às
pessoas a elas ligadas de algum modo; todavia, por seu maior distanciamento da
disciplina jurídica, um aprofundamento nesse particular também não será escopo
deste trabalho.
estabelece entre seres humanos´])”. HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário
Houaiss da língua portuguesa, 1ª reimpr. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004, p. 781.
18
uso e comércio de drogas, para o que, necessariamente, observar-se-ão criticamente
problemas de natureza jurídica e social ocasionados pela citada guerra.
19
instrumento estatal de constrição da liberdade individual: o direito penal, com todas
as suas implicações sociais perniciosas33, que no caso das políticas públicas sobre
drogas parece desempenhar um papel resolutamente oposto àquele a que se propõe
ou deveria propor-se34. Por uma série de razões a serem desenvolvidas durante todo
este trabalho, o dito proibicionismo nos parece equivocado.
1.2.1. Álcool
33
Já tivemos oportunidade de nos manifestar brevemente, de modo genérico, acerca da atuação do
direito penal como instrumento de controle social formal e de suas conseqüências sociais negativas,
ressalvando tratar-se de instrumento jurídico-político necessário à coexistência humana: “Breve
estudo acerca da atuação das instâncias de controle social formal e informal.” In: Ultima ratio, ano 1,
n. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, esp. pp. 498-501.
34
SICA, Leonardo. “Funções manifestas e latentes da política de war on drugs”. In: REALE JR.,
Miguel. Drogas: aspectos penais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 15-16.
35
WORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO Global status report on alcohol 2004. Geneva:
World Health Organization, 2004, p. 01. Disponível em:
20
Estima, ainda, que algo entre 20% e 30% das incidências globais de câncer no
esôfago, câncer no fígado, cirrose hepática, convulsões epilépticas, acidentes de
trânsito e homicídios estejam relacionados com altos níveis de consumo de bebidas
alcoólicas36. Anualmente, cerca de 1,8 milhões de pessoas morrem em virtude de
problemas decorrentes do consumo de álcool, número correspondente a 3,2% do total
de mortes em todo o planeta37.
<http://www.who.int/substance_abuse/publications/global_status_report_2004_overview.pdf>.
Acesso em: 10/10/2008.
36
Idem, ibidem, p. 01. Acesso em: 10/10/2008.
37
Idem, ibidem, p. 01. Acesso em: 10/10/2008.
38
NEUMAN, Elías. La Legalización de las drogas, 3ª ed. reestruct. y ampl. Buenos Aires: Editorial
Universidad, 2005, p. 21.
39
WORLD HEALTH ORGANIZATION. Op. cit., p. 35. Acesso em: 10/10/2008.
40
Nomeadamente: psicose alcoólica, síndrome de álcool-dependência, abuso alcoólico, polineuropatia
alcoólica, cardiomiopatia alcoólica, gastrite alcoólica, cirrose hepática alcoólica, excesso de álcool na
corrente sangüínea, toxomania de etanol e metanol. In: WORLD HEALTH ORGANIZATION.
Ibidem, p. 37. Acesso em: 10/10/2008.
41
Idem, ibidem, p. 37. Acesso em: 10/01/2008. Estudos recentes sobre a eventual influência do
consumo de álcool sobre a ocorrência de outras modalidades de câncer (v.g., estômago, pâncreas,
ovários, próstata, reto e glândulas salivares) têm se revelado inconclusivos; ainda, afigura-se que o
álcool pode ser também um significativo adicionador de risco à incidência de câncer de mama. Idem,
ibidem, pp. 37-38. Acesso em: 10/10/2008.
21
hipertensão, ataques hemorrágicos, pancreatite, epilepsia, psoríase, depressão e
diversos males congênitos derivados de ingestão pré-natal42.
Além dos danos físicos e mentais que pode causar a seus usuários, não
se questiona, igualmente, a sua potencialidade causadora dos denominados danos
sociais, ligados ao comportamento social do indivíduo, e que compreendem
problemas familiares, desordem pública, redução da capacidade laboral, acidentes de
trabalho e de trânsito, delitos contra a pessoa e contra a vida – culposos e dolosos –,
etc. Os danos sociais decorrentes do mau uso de bebidas alcoólicas são de muito
difícil quantificação estimada, mas podem, eventualmente, ser ainda mais lesivos do
que as patologias supra-aludidas43, pelo que interferem no bem-estar humano e,
destarte, são igualmente considerados pela OMS como matéria de interesse da saúde
pública em geral44.
42
Idem, ibidem, pp. 38-40. Acesso em 10/10/2008.
43
Idem, ibidem, p. 35. Acesso em 10/10/2008.
44
Idem, ibidem, p. 35. Acesso em 10/10/2008.
45
Anote-se, a propósito, que a tutela penal como circunstância agravante da embriaguez preordenada
(art. 61, inc. II, l do Código Penal) demonstra que a incidência massiva da prática de delitos nessa
circunstância vem sendo constatada há muito em nossa realidade social.
46
NEUMAN, Elías. La Legalización de las drogas, 3ª ed. reestruct. y ampl. Buenos Aires: Editorial
Universidad, 2005, p. 21.
22
lugar, a etiologia que leva a qualquer situação de dependência não apresenta
diferenças significativas entre uma e outras substâncias, supondo, ademais, maior
transcendência de fatores sociais, familiares e ligados ao psiquismo individual47.
Ademais, os mencionados danos sociais colateralmente provocados pelo consumo
excessivo de tais substâncias se revelam bastante similares em ambos os casos. Não
obstante, os motivos alegados para o seu consumo 48 – antes, naturalmente, da
eventual superveniência de crises de abstinência ou de dependência – também se
assemelham, assim como os conhecidos efeitos de alteração na percepção da
realidade.
47
Idem, ibidem, p. 22.
48
Podem-se citar muitos – distração de problemas quotidianos, fuga de situações rotineiras, diversão,
inserção em determinado contexto social, atendimento a solicitação prévia de um terceiro (este,
possivelmente motivado por razões como estas), experimentação individual, etc. –, invariavelmente
marcados por propósitos, a princípio, recreativos. Davenport-Hines resumiu tais motivos no título
principal atribuído à sua obra: “a busca do esquecimento” (trad. livre). DAVENPORT-HINES,
Richard. The Pursuit of oblivion: a global history of narcotics. London - New York: W. W. Norton,
2002.
49
NEUMAN, Elías. Op. cit., p. 21.
50
Idem, ibidem, p. 22.
23
lamentados: da potencialização do negócio ilegal aproveitaram-se as máfias para
experimentar inédito crescimento, sem que a hipertrofia da burocracia estatal forjada
naqueles tempos constituísse óbice às atividades daquelas – que se locupletavam,
igualmente, do alto poder corruptor decorrente da lucratividade extraordinária do
mercado ilegal. Porque ineficaz e contraproducente, a proibição do álcool viu-se
abolida em 1933, com a promulgação de 21ª emenda, mas as implicações negativas
de quinze anos de equívoco não seriam facilmente superadas: a vigência da proibição
criou uma cultura de desobediência às prescrições legais entre muitos habitantes do
país, e acentuou a estigmatização e a segregação social de grupos determinados de
consumidores de bebidas. Não obstante, a vigência do Volstead Act forjou um
ambiente profícuo para o surgimento, crescimento e desenvolvimento de
organizações criminosas, que puderam aprimorar seus modi operandi naquele
período51.
51
Costuma-se apontar os anos de 1920 nos EUA como o momento e o local onde teriam se
desenvolvido as atividades do crime organizado e as práticas de lavagem de dinheiro tal como as
conhecemos modernamente.
52
NEUMAN, Elías. Op. cit., p. 23.
24
ocupados do transporte das colheitas; os agrônomos, os enólogos, cervejeiros e seus
análogos; os fabricantes de máquinas e equipamentos necessários ao processamento
industrial de bebidas; os fabricantes de garrafas, latas e garrafões, e os ocupados com
o próprio envasamento; os fabricantes das etiquetas das garrafas; os exportadores,
importadores, distribuidores, comerciantes, garçons; etc. Deveras, o atual estágio de
complexidade das relações econômicas que envolvem a matéria somente reforça a
conclusão por sua perfeita adaptação ao modus vivendi da sociedade contemporânea.
53
Idem, ibidem, p. 22. Trad. livre.
54
Em um trabalho em que se pretende criticar o predomínio de fatores ideológicos em determinadas
opções de criminalização, não convém, a fim de se ressaltar uma incoerência como a da oposição
entre o tratamento socialmente dispensado ao álcool e aquele dispensado a outras drogas, omitirem-se
argumentos que possam favorecer eventual tese oposta. Sabe-se que, ao pesquisador, cabe procurar
afastar-se de pré-concepções de cariz ideológico, ao menos na medida do que lhe é possível; daí a
necessidade de se mencionar as propriedades potencialmente positivas de bebidas alcoólicas. Todavia,
logo se verá que tampouco este argumento pode favorecer alguma pretensão de coerência no
tratamento legal e social corrente acerca das substâncias psicoativas, visto que o consumo moderado
de outras drogas pode igualmente ser benéfico ao ser humano.
55
WORLD HEALTH ORGANIZATION. Op. cit., pp. 38, 40-41. Acesso em: 10/01/2008.
56
Idem, ibidem, passim. Acesso em: 10/01/2008.
25
pode tanto fazer bem quanto fazer mal ao ser humano, dependentemente das
quantidades ingeridas e freqüência da ingestão57.
1.2.2. Tabaco
60
ORGANIZAÇÂO MUNDIAL DE SAÚDE. Neurociência do uso e dependência de substâncias
psicoativas. Genebra: OMS, 2004. Disponível em:
<http://www.who.int/substance_abuse/publications/en/Neuroscience_P.pdf>. Acesso em: 10/10/2008.
61
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Op. cit. Acesso em 10/10/2008; ARATANGY, Lidia
Rosemberg. Op. cit., pp. 62-63.
62
NEUMAN, Elías. La Legalización de las drogas, 3ª ed. reestruct. y ampl. Buenos Aires: Editorial
Universidad, 2005, p. 27.
63
Forma de produção agrícola baseada na monocultura de exportação, dominante em todo o
continente americano entre os séculos XVI e XIX.
27
O mesmo ocorreu, simultaneamente e pelas mesmas razões, com a cafeína, outra
droga que, como o álcool e o tabaco, passaria a fazer parte de nossa cultura.
64
NEUMAN, Elías. Op. cit., p. 28. O autor ainda alude ao fato de que muitas jovens sustentam o
hábito de fumar cigarros como forma deliberada de evitar sensações de fome, com o que tencionam
manter-se magras (ibidem, p, 28).
65
Idem, ibidem, p. 27.
66
Idem, ibidem, p. 27.
67
BRASIL. SECRETARIA NACIONAL ANTIDROGAS (SENAD). Cartilha sobre tabaco. Brasília,
2005, p. 24.
28
1.2.3. Reflexões críticas
68
NEUMAN, Elias. Op. cit., p. 26
69
Idem, ibidem, p. 26.
70
No caso do Brasil, dados recentes do Centro Brasileiro de Informação sobre Drogas Psicotrópicas
(CEBRID – UNIFESP) estimam que, entre a população adulta brasileira urbana, 12,3% sejam
dependentes de álcool, e 10,1% de tabaco. CARLINI, E. A. (superv.). II Levantamento domiciliar
sobre o uso de drogas psicotrópicas no Brasil. São Paulo: CEBRID – UNIFESP, 2006, p. 33; cabe
citar, ademais, que estudo epidemiológico realizado no pela mesma equipe e que avaliou internações
no país por dependência e psicoses derivadas do uso de drogas entre os anos de 1988 e 1999,
constatou que 91% delas eram resultantes do consumo de álcool. GALDURÓZ, José Carlos F. et al.
“A Epidemiologia do consumo de substâncias psicotrópicas no Brasil: o que tem sido feito?” In:
REALE JR., Miguel. Drogas: aspectos penais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.
258-259.
71
Há muito não se sustenta, pois, a antiga crença reproduzida entre nós por meio da pena de
Bernardino Gonzaga. Em meados do século XX, assim se manifestou o então professor da Faculdade
de Direito de São Paulo: “Através das considerações expostas, bem se compreende sejam
entorpecentes o ópio ou a cocaína, por exemplo. Não assim, porém, o álcool, que embora justamente
condenado como um dos grandes males sociais, não possui o mesmo poder aliciador dos primeiros,
bastando considerar que possibilita até mesmo um consumo habitual, sem maiores conseqüências,
enquanto dificilmente passará alguém incólume, v. g., por algumas poucas doses de morfina. E assim
também se excluem seguramente do conceito as ‘pequenas toxicomanias’, como as provenientes do
uso de tabaco ou de produtos contendo cafeína (café, chá, mate, etc.), que igualmente se admite
possam levar a certo grau de dependência psíquica e até mesmo física, em relação ao tabaco, mas
29
verticalmente em dois grupos antagônicos. E o é. Isso porque, excluindo-se a
potencial lesividade à saúde individual e/ou coletiva, cumpre indagarem-se quais
teriam sido os critérios de ordem médica, política, econômica e social que
selecionaram substâncias para serem declaradas ilícitas e permitiram a legitimação
social de outras, notadamente o álcool e o tabaco. Nessa medida, remanesce a idéia
de uma supostamente consagrada inserção cultural das drogas lícitas perante a
civilização humana (ocidental, naturalmente). À parte a manifesta ilegitimidade da
prevalência de uma concepção eurocêntrica de mundo, ocorre que mesmo a
sociedade ocidental nem sempre conviveu harmonicamente com tais substâncias: a
intensa repressão oficial norte-americana ao álcool nos tempos da “lei seca” foi
deflagrada porque contava, cumpre mencionar-se, com o apoio de grande parte da
população local. Os casos do tabaco e da cafeína – a qual, diga-se, também gera
dependência, entre outros males72 – são ainda mais exemplares, na medida em que a
sua introdução nos costumes da sociedade eurocêntrica se deu de maneira artificial e
é relativamente recente se comparada aos antiqüíssimos hábitos de consumo
moderado de folhas de coca na América andina e de derivados da papoula no sul da
Ásia.
cujos efeitos são de todo inócuos ou de nocividade perfeitamente tolerável” GONZAGA, João
Bernardino. Entorpecentes: aspectos criminológicos e jurídico-penais. São Paulo: Max Limonad,
1963, pp. 39-40. Confrontando-se tal assertiva com a realidade supra-exposta, queda-se deveras
ressaltante a maneira como a seletiva ideologia proibicionista suplantou a carência de informações
científicas sobre as mais diversas drogas (tanto as “boas” quanto as “más”) para afirmar verdadeiro
axioma desprovido de qualquer lastro científico. A distinção entre drogas lícitas e ilícitas mediante um
suposto critério de lesividade à saúde individual, que chegou a supor ínfimo poder sedutor ao álcool e
a pretender, como visto, que o tabaco não passasse de uma “pequena toxicomania” de efeitos “de todo
inócuos ou de nocividade perfeitamente tolerável”, hoje chega a se revelar ingênua, mas foi no
passado abraçada, inclusive, embora acrescida de uma indefinida “nocividade social”, por Greco Filho
em sua importante obra sobre o tema, cuja primeira edição data de 1972. GRECO FILHO, Vicente.
Tóxicos: prevenção – repressão, 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 03.
72
Como, por exemplo, síndrome de abstinência, tolerância, ansiedade, dores de cabeça, depressão e
até psicoses. Contudo, trata-se provavelmente da droga mais bem inserida na vida social
contemporânea, pois pouco se reconhece a sua eventual nocividade. A respeito desta, vide o estudo
“Continued comsumption of caffeine can lead to tolerance”, publicado no website da Faculdade de
Farmácia da Universidade do Porto. Disponível em:
<http://www.ff.up.pt/toxicologia/monografias/ano0405/Cafeina/p69.htm>. Acesso em: 02/11/2008.
30
fortes dos países centrais. A seu turno, a produção em larga escala de maconha,
cocaína e opiáceos se manteve concentrada em regiões periféricas, inexistindo, a
despeito de seu poder local, a mesma concorrência de interesses políticos e
comerciais apta a forçar institucionalmente uma maior aceitação no mercado
internacional. É possível, portanto, que daí derivem os motivos de fundo para a
constatação de que
73
MODESTO, Luiz Sergio. As Drogas do Estado. Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo: FDUSP, 2004, p. 08-09.
74
Os inúmeros problemas ora referidos de saúde pública causados pelo tabaco e pelo álcool, se
comparados com a menor incidência de equivalentes atribuíveis ao uso de drogas ilícitas, tampouco
parecem prestar-se como argumento válido em defesa da criminalização destas ou, quiçá, daqueles.
Deveras, não se pode olvidar que parcela considerável dos altos níveis de consumo dos primeiros se
deva, possivelmente, à maneira agressiva como foram expostos durante muitas décadas pela
publicidade nos mais importantes meios de comunicação de massa, inclusive, por vezes, contando
com ajuda oficial. A análise histórica da emergência do proibicionismo, a ser feita no capítulo
subseqüente, demonstrará que os principais fatores reais que levaram à escolha de certas drogas para
serem proibidas em detrimento de outras pouco tiveram com suas propriedades farmacológicas em si,
mas com a maneira como foram assimiladas pelos estratos sociais e grupos políticos dominantes –
algo que deslegitima indelevelmente os pretensos critérios científicos da doutrina da proibição.
31
2. ANÁLISE HISTÓRICA DO CONSUMO, DA OFERTA E DE SEU
TRATAMENTO LEGAL
75
Vide, especialmente: ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid:
Espasa, 2000, passim; do mesmo autor, ora mais sucintamente: Historia elemental de las drogas.
Barcelona: Anagrama, 2003, passim. Limitando-se temporalmente à abordagem do tema desde os
primórdios da Era Moderna até os tempos atuais: DAVENPORT-HINES, Richard. The pursuit of
oblivion: a global history of narcotics. London – New York: W. W. Norton, 2002, passim; ainda,
contendo abordagem mais limitada, conforme esclarecido pelo próprio título, McALLISTER, William
B. Drug diplomacy in the twentieth century. New York: Routledge, 2000, passim.
76
ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, p. 14.
32
detentoras de propriedades mágicas, e já se lhes creditava algum poder medicinal77.
Começou-se, em determinados locais e culturas, a catalogar espécies vegetais de
acordo com suas características então conhecidas ou acreditadas, e a utilizá-las para
fins curativos, ainda que a cura de um mal remanescesse sendo vista muito mais
como algo de natureza metafísica, e que dentre os meios para a sua consecução
remanescessem sobretudo aqueles considerados sagrados: penitência, oração,
peregrinação, talismãs, e mesmo a taumaturgia 78.
77
Idem, ibidem, pp. 13-14. Argumenta-se que o momento pioneiro da medicina teórica haja ocorrido
logo após a primeira fase da civilização grega, em que ainda se atribuíam às doenças causas
sobrenaturais – algo bem ilustrado nas duas obras fundamentais de Homero, Odisséia e Ilíada, que
apontavam as patologias humanas como intervenções superiores havidas por caprichos das
divindades. A medicina primitiva, então, teria resultado da paulatina superação de tal crença e da
conseqüente percepção de que a origem de tais males poderia ser terrena, possibilitando-se acreditar-
se em profilaxias igualmente terrenas – através, por exemplo, do uso de substâncias naturais com
poderes especiais. Vale lembrar que, na Antigüidade, tênues eram as linhas que distinguiam as noções
de religião, magia, medicina e mesmo a sexualidade, sendo que as drogas se faziam presentes em
tradições e costumes atinentes a todos eles. CARNEIRO, Henrique. Comunicação pessoal, out/2003.
78
Idem, ibidem, pp. 33 et seq; 73 et seq. Lembre-se que a crença humana na cura pelo toque régio se
arrastou por séculos. Deveras, conquanto se houvesse questionado tal prática desde muito, parece
razoável admitir-se que tal prática, em determinados casos, tenha sido eficaz para a cura de certas
enfermidades através da ab-reação, dado o efeito psicológico que provocava no súdito ungido.
79
BERRIDGE, Virginia. Opium and the people. Apud: : DAVENPORT-HINES, Richard. The pursuit
of oblivion: a global history of narcotics. London – New York: W. W. Norton, 2002, p. 30.
80
DAVENPORT-HINES, Richard. Ibidem, p. 30.
81
Idem, ibidem, p. 30.
82
HOMERO. Odisséia, trad. Manuel Odorico Mendes, 2ª ed. São Paulo: Edusp 1996, p. 108.
33
ao vinho, como muita vez se supõe, mas igualmente à papoula. Em Roma havia
ainda grandes festas trienais, os bacanais, que louvavam o deus do vinho e da
fecundidade, o qual também era conhecido como Liber porquanto se creditava ao
consumo do vinho a libertação momentânea de toda preocupação humana,
alegrando-se o espírito83.
A própria Bíblia faz inúmeras remissões ao vinho, o qual até hoje faz
parte dos rituais sagrados de religiões cristãs. Em conhecida passagem do Antigo
Testamento, o patriarca Noé, logo após o dilúvio, planta uma vinha que depois utiliza
para se embebedar 84. Nas passagens que narram a vida de Jesus Cristo, pode-se
verificar um processo de sacralização do vinho, cujo ápice se daria com o ritual de
purificação humana por meio de seu consumo, na última ceia. Tempos mais tarde, tal
bebida se tornaria o psicoativo oficial do mundo ocidental, algo que pode ser
atribuído, em grande medida, à influência do catolicismo sobre o continente europeu
durante a Idade Média.
83
VICTÓRIA, Luiz A. P. Dicionário ilustrado de mitologia. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d, p. 48.
84
Gênesis, cc. IX, 20-21.
85
SILVA, José Geraldo da. Op. cit., p. 170.
86
DAVENPORT-HINES, Richard. The pursuit of oblivion: a global history of narcotics. London –
New York: W. W. Norton, 2002, p. 31.
34
jantar, consolidando assim, no ano 55, a sua ascensão ao trono que por direito
pertenceria ao último 87.
Séculos mais tarde, já na baixa Idade Média, sucederia, ainda que com
limitada repercussão devido à influência exercida pela igreja, uma substancial
modificação na maneira de sustentação das crenças em geral. Com efeito, estas
baseavam-se, até então, fundamentalmente em um “ouvir dizer”, muita vez sugerido
por alguém que se arrogasse alguma autoridade moral; a partir do Renascimento,
todavia, anunciar-se-ia a cultura do “ver”, do constatar por si mesmo, que pouco após
daria origem à empiria, posteriormente consolidada por Francis Bacon e outros – os
firmadores do método científico moderno.
90
DAVENPORT-HINES, Richard. The pursuit of oblivion: a global history of narcotics. London –
New York: W. W. Norton, 2002, pp. 31-32.
91
ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, p. 344.
36
especiarias diversas e açúcar, no século XVI; álcool e tabaco, no século XVII;
chocolate, chá e café, no século XVIII; e o próprio ópio, já no século XIX. Com o
advento do mercantilismo, tornaram-se, pois, as drogas peças-chave da expansão da
economia mercantil92, assim como as hegemonias políticas que se sucederam no
cenário internacional desde o início das grandes navegações – as hegemonias ibérica,
holandesa, britânica e norte-americana – deixaram flagrantes reflexos na economia
das drogas e nas políticas a elas relacionadas.
92
CARNEIRO, Henrique. Filtros, mezinhas e tríacas: as drogas no mundo moderno. São Paulo:
Xamã, 1994, pp. 42-43.
93
LINT, Jennifer. “Chloroquine”. Disponível [on-line] em:
http://www.stanford.edu/group/parasites/ParaSites2005/Chloroquine. Acesso em: 03/01/2009.
94
“Treatment of malaria – a brief history of antimalarials”. Disponível [on-line] em:
http://www.mmv.org/pages/content_frame.asp?ThePage=page1_000400010002_1.htm&Nav=000400
010002. Acesso em: 31/05/2006. Trad. livre.
95
SNEDEN, Albert T. “Alkaloids”. Disponível [on-line] em:
http://www.people.vcu.edu/~asneden/alkaloids.htm. Acesso em: 03/01/2009.
37
definitiva de Portugal pela Inglaterra seria materializada tendo o vinho como objeto
do Tratado de Methuen96, em 1703.
96
Também conhecido, no idioma português, como Tratado de Panos e Vinhos.
97
Técnica de produção agrícola baseada na monocultura de exportação, comum em todo o Continente
Americano entre os séculos XVI e XIX.
98
De que constituem exemplos algumas municipalidades e estados norte-americanos, onde o
tratamento penal da matéria exsurgiu a partir de meados do século XIX. A respeito, vide:
ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, p. 505.
38
XX, foi nos oitocentos que teve início o processo de acentuada estigmatização das
substâncias e de seus usuários, que forneceria bases suficientes para o definitivo
ingresso da matéria nas legislações penais de todo o mundo, que lhe seria
conseguinte.
99
DAVENPORT-HINES, Richard. The pursuit of oblivion: a global history of narcotics. London –
New York: W. W. Norton, 2002, p. 41.
100
Tome-se como exemplo comparativo o fato de que, para o novelista escocês Walter Scott, 60 gotas
de laudanum (por ele utilizado para combater dores estomacais) eram bastantes para causar forte
sentimento de ressaca e dores de cabeça, ao passo que, para o magistrado inglês John Harriot, 80 gotas
do mesmo medicamento nada causavam senão uma leve tontura. Idem, ibidem, p. 68.
101
Publicada no Brasil sob o título Confissões de um comedor de ópio (DE QUINCEY, Thomas. Trad.
Ibañez Filho. Porto Alegre: L&PM, 2002).
102
DAVENPORT-HINES, Richard. Op. cit., p. 68.
103
Idem, ibidem, p. 68.
39
seus ilustres membros eram usuários de ópio. Embora ali houvesse sido considerado
alguém de sociabilidade prodigiosa, não tardou a ser acometido por males como a
privação financeira e a depressão, os quais foram potencializados pelo uso contumaz
do laudanum; retornou, então, à capital do Reino Unido em estado de penúria 104.
Destarte, suas Confissões, que ecoaram por décadas em todo o continente,
constituem um retrato melancólico de vida que, mesmo tendo se tornado desde cedo
literatura cult105, encontrava-se resolutamente fora dos padrões e valores britânicos
mais caros de seu tempo, os quais atingiriam seu ápice no período vitoriano – então
prestes a se iniciar.
104
Idem, ibidem, p. 69.
105
Idem, ibidem, p. 61.
106
Anota Escohotado que, curiosamente, o Reino Unido fundou sua declaração de guerra em um
“intolerável atentado contra a liberdade de comércio”, supostamente cometido pelos chineses.
ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, p. 531.
107
Disponível [on-line] em: http://www.international.ucla.edu/eas/documents/nanjing.htm. Acesso
em: 03/01/2009.
40
francesas, resultando em sanções e concessões ainda maiores a que se obrigava a
China108.
108
Objeto do Tratado de Tientsin, de 1858. A respeito, vide: ESCOHOTADO, Antonio. Historia
general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, pp. 531-532.
109
Idem, ibidem, pp. 550-552; DAVENPORT-HINES, Richard. The pursuit of oblivion: a global
history of narcotics. London – New York: W. W. Norton, 2002, pp. 178-179.
110
Lei federal editada em 1896 nos EUA, cuja vigência perdurou até o ano de 1942.
111
DAVENPORT-HINES, Richard. Op. cit., p. 179.
41
casas de jogo, de prostituição e/ou de distribuição e consumo de drogas que
imigrantes interagiam entre si e com os demais habitantes de seu entorno geográfico.
112
ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, pp. 551-
553.
113
ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., pp. 505 et seq.
114
Acrônimo anglófono para o etnônimo sociológico e cultural que designa os cidadãos brancos,
anglo-saxões e protestantes (white, anglo-saxon, protestant), e simboliza um padrão de identidade
nacional estadunidense.
115
Tradicionalmente, desde os tempos coloniais, a existência de pobres, doentes, debilitados física e
mentalmente e mesmo vagabundos era vista como algo providencial para que os bons cristãos
pudessem exercitar sua caridade, muitas vezes abrigando-os e assistindo-lhes diretamente em seu lar.
A partir da década de 1820, a acelerada industrialização propiciou ao país um vertiginoso crescimento
econômico, que não foi, entretanto, compartilhado pelos novos imigrantes que chegavam pela já
desenvolvida consta do Atlântico, e que acabaram formando cinturões de pobreza em torno das
grandes cidades. Então, as classes mais favorecidas e as autoridades, incapazes de compreender como
tamanho desenvolvimento industrial poderia geral algo diferente de alegria e ordem, passaram a
atribuir aos pobres a responsabilidade por seu próprio desfavorecimento, e a postular a sua segregação
para o bem do corpo social. E, assim, surgem as instituições penitenciárias e manicômios como
destinos de pobres, loucos, vagabundos, doentes, ébrios e anciãos indesejados. Idem, ibidem, pp. 498-
505.
116
Idem, ibidem, p. 505.
42
final do século, a Anti-Saloon League117. Tais grupos procuravam realizar espécie de
limpeza social no território norte-americano, na medida em que para o puritanismo
revelava-se imoral e inconcebível a possibilidade de se haver prazeres ainda em vida;
ao revés, esta haveria de ser destinada ao trabalho, por meio do qual se chegaria ao
único prazer real – a ser gozado na eternidade.
117
Idem, ibidem, pp. 505-509.
118
Idem, ibidem, pp. 501-504.
119
Idem, ibidem, pp. 503-504. Trad. livre.
43
Criavam-se assim as bases para o surgimento e ascensão até mesmo
de um partido político anti-álcool, o Partido Proibicionista, fundado em 1869, que,
mesmo minoritário, viria a exercer uma influência espetacular sobre a política norte-
americana, e que seria sustentado, fundamentalmente, por moralistas puritanos,
políticos eleitoralistas e por empresários incomodados com o absenteísmo laboral
provocado pelo consumo de álcool120. Aos poucos, a cultura fortemente moralista
que então predominava nas nações anglo-saxônicas, e notadamente nos EUA, fazia
com que se abrissem cada vez mais os caminhos para o influxo do proibicionismo.
120
Idem, ibidem, pp. 505-509. Ao mencionar o sólido apoio da classe política ao proibicionismo
emergente, lembra o autor que os mesmos próceres políticos que publicamente coincidiam em temer a
degeneração etílica da América, poderiam permitir-se, ocasionalmente, consumir suas doses de álcool
em privado. Ibidem, p. 507.
121
Lembre-se que, desde a segunda metade dos Oitocentos, grandes laboratórios farmacêuticos
europeus e norte-americanos como Merck, Bayer, Hoffmann-La Roche e Parke Davis já lucravam
com a produção e distribuição de drogas como a morfina, a heroína e a cocaína.
122
Malgrado hajam sido os EUA o primeiro país do mundo a promulgar uma constituição inspirada
nos princípios políticos liberais, é certo que seu povo incorpora, desde suas origens, uma cultura de
severa intolerância, herança de sua rigorosa fé e costumes puritanos, razão por que o último grande
processo contra bruxas se daria precisamente em Massachusetts, num tempo em que europeus já se
espantariam com práticas oficiais semelhantes (ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las
drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, p. 495). Destarte, observou Tocqueville, ao analisar a formação
44
2.4.1 Moralismo puritano e higienização social como fundamentos de elaboração
de políticas legais repressivas
Desde o final do século XIX até toda a extensão do século XX, pode-
se afirmar que a doutrina da proibição apresentaria cinco principais vetores
ideológicos – a saber, em ordem cronológica, a práxis moralista, a saúde pública, a
segurança pública, a segurança nacional e, por fim, o proibicionismo militarista123.
da sociedade norte-americana e de suas instituições, (i) a incessante vigilância ali existente sobre os
domínios da consciência, tamanha a preocupação dos legisladores com “a manutenção da ordem
moral e dos bons costumes da sociedade” através de normas penais, e (ii) a freqüente identidade entre
pecado e delito verificada nas primeiras compilações legislativas da Nova Inglaterra. Daí o fato de,
por exemplo, em 1650, o Código de Connecticut haver pioneiramente lançado à ilicitude a embriaguez
e a vadiagem, e, em 1660, uma jovem ter sido condenada por haver dito “palavras indiscretas” e haver
permitido beijar-se. TOCQUEVILLE, Alexis de. De la démocratie en Amérique, t. I, 12ª ed. Paris:
Pagnerre, 1848, pp. 58-60. Trad. livre.
123
RODRIGUES, Thiago. Comunicação pessoal, out/2003.
124
ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., p. 509.
125
Idem, ibidem, p. 509.
45
se a estuprar mulheres brancas126), a maconha aos latino-americanos (notadamente os
mexicanos, de mais numerosa presença nos EUA)127, o ópio aos chineses e o álcool
aos irlandeses128. Deveras, iniciado o século XX, vão se tornando cada vez mais
fortes em terras norte-americanas as idéias de higiene social, a xenofobia e a própria
eugenia 129, em grande medida graças ao notável desempenho de próceres que mais
tarde passariam a ser conhecidos pela sociologia norte-americana como moral
enterpreneurs130.
126
DAVENPORT-HINES, Richard. The pursuit of oblivion: a global history of narcotics. London –
New York: W. W. Norton, 2002, pp. 199-201.
127
Idem, ibidem, p. 201-202.
128
ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., p. 607. A despeito de sua origem européia, os irlandeses se
viram socialmente excluídos nos EUA em razão de sua religião ser predominantemente católica, o que
também constituía motivo de conflitos na Grã Bretanha. Nesse mister, anota Escohotado que, nos
tempos de Cromwell e das treze colônias, irlandeses haviam sido negociados como escravos no
mercado da Virgínia. Ainda, quanto aos chineses, o mesmo autor relembra que, para os sindicatos,
tinham eles o vício adicional de trabalhar mais e por menos dinheiro que os americanos. Ademais, ao
mesmo tempo em que se consagravam tais identificações étnico-farmacológicas, drogas extremamente
destrutivas e que consumiam a saúde de milhões de pessoas mas cujo uso não era identificado com
nenhuma minoria indesejada, como os barbitúricos, permaneceriam por mais de meio século livres,
em absoluto, de qualquer estigma social ou controle legal (idem, ibidem, pp. 607-608).
129
Lembre-se ainda que, posteriormente utilizada em larga escala pela medicina nazista alemã, a
eugenia parece ter surgido nos EUA exatamente nesses tempos de virada de século. E ali chegou a se
tornar precedente jurisprudencial constitucional, em célebre decisão da Suprema Corte datada de
1927; ao discutir a validade de uma das muitas leis estaduais de esterilização compulsória de pessoas
consideradas inferiores, proclamou o Justice Oliver Wendell Holmes Jr. em seu voto condutor: “é
melhor para todos que, em vez de esperar para executar descendentes degenerados por crimes, ou
deixar que morram de fome por causa de sua imbecilidade, a sociedade possa impedir os que são
claramente incapazes de continuar a espécie [...]. Três gerações de imbecis são o bastante” (Buck v.
Bell, 1927. Trad. livre). Naqueles tempos, cerca de 65 mil pessoas foram esterilizadas
compulsoriamente por apresentarem males como epilepsia ou debilidade mental, sendo que, na
escolha de pacientes a serem submetidos à esterilização, muita vez concorriam fatores raciais ou
sociais – semelhantes àqueles que também concorreram para a escalada das políticas proibicionistas
sobre drogas, sucedida, como visto, no mesmo contexto histórico-político.
130
ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., p. 608. Acerca do conceito de empresários morais, vide:
BECKER, Howard Saul. Outsiders: studies in the sociology of deviance. New York: The Free Press,
1997, pp. 147-164; mais sucintamente, em nossa literatura jurídica: ZAFFARONI, Eugenio Raúl;
BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro, vol. I, 2ª ed.
Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 45.
46
interessados sobretudo em que se lhes estabelecesse o monopólio da prescrição de
fármacos, ampliando o mercado de sua profissão131.
131
ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, pp. 603-
607. Aponta o autor que o discurso do alto risco à saúde pública foi então introduzido nos debates por
tais profissionais e pela American Medical Association, que se arrogavam mais autorizados a discutir
o assunto malgrado estudos científicos a respeito ainda se revelarem inconclusivos.
132
Com efeito, é possível afirmar que as teses do destino manifesto e da doutrina Monroe (e, pouco
após, a releitura desta à luz do big stick de Theodore Roosevelt) desempenharam papel relevante na
justificação do protagonismo americano no movimento internacional contra o ópio e outros vícios
iniciado com o século XX. Nessa medida, em tempos em que missionários exerciam acerca do ópio
uma influência jamais vista sobre a opinião pública e a política oficial estadunidense, autoridades logo
constataram que a imposição de sua fé e cultura a outras nações, inicialmente através de um
empreendimento cristão, revelar-se-ia um empreendimento altamente rentável. Idem, ibidem, pp. 608-
617.
47
governos à gradual supressão do ópio fumado, e outra, a que não se exportasse ópio a
nações cujas leis proibissem sua importação133.
133
Idem, ibidem, pp. 617-621. Vale anotar que a Turquia, então maior produtor mundial do psicoativo,
em resposta à proposição americana de realização imediata de uma nova conferência, prometera
formalmente não participar de reuniões em que se enviassem missionários para tratar de economia e
farmácia (ibidem, p. 621).
134
Idem, ibidem, pp. 627-631. Note-se a inelutável prevalência de razões econômicas nas discussões
que, alegadamente, pretendiam tutelar uma suposta saúde pública. Ao cabo, os acordos que houve
fundaram-se em concessões econômicas cruzadas entre as potências preponderantes.
135
EUA, China, Holanda, Noruega e Honduras.
136
Concebido preliminarmente pelo congressista democrata Francis Burton Harrison, tal diploma
legislativo foi aprovado após pouquíssimas discussões públicas e quase nenhuma cobertura dos meios
de comunicação (DAVENPORT-HINES, Richard. Op. cit., p. 213).
48
– e moral – o uso médico dessas substâncias, e devidamente controlado pelos
respectivos profissionais; jamais qualquer outra forma de uso.
137
Como, de resto, seria comum à generalidade das legislações proibitivas que se criariam em todo o
mundo nas décadas subseqüentes.
138
ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, pp. 636-
644.
139
Idem, ibidem, pp. 641-644.
140
Caso United States v. Doremus, julgado em 1919.
141
O fenômeno da estigmatização dos fármacos produzidos na Alemanha, notadamente aqueles
baseados em cocaína e heroína, repetir-se-ia nos EUA – que entrariam na guerra pouco mais tarde –,
onde a penetração de tais compostos passaria a ser vista como “uma conspiração germanófila para
escravizar o incauto usuário” (ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., p. 434). Ressalve-se aqui, todavia,
a constatação de Escohotado quanto às falsas informações – ora exaltando propriedades inexistentes,
ora omitindo graus de danosidade e letalidade – contidas em materiais de propaganda e mesmo em
artigos com que laboratórios como Bayer, Merck e Parke Davis visavam a difundir o uso de alcalóides
manufaturados. Op. cit., pp. 433-434; 455-457.
49
da Haia, a que a Alemanha ainda resistira. Destarte, o tratado de paz de Versalhes, de
1919, por sugestão da diplomacia inglesa142, fez expressa referência em seu art. 295
ao dever de todas as partes fazerem valer aqueles acordos, inclusive aprovando sem
demora a legislação interna que a tanto fosse necessária 143. Tais circunstâncias
concorreram para que, a partir de então, usuários de drogas passassem a ser vistos
como criminosos não somente nos EUA, mas também na Europa. Desta forma, ainda
no início do século XX, o mundo se via, cada vez mais, diante da definitiva escalada
do proibicionismo.
142
Idem, ibidem, p. 631.
143
É de se notar que, a partir de então, praticamente todos os países do planeta se obrigariam a seguir
disposições acordadas por alguns poucos em 1912.
144
ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., p. 644.
145
Por vezes, agentes da repressão fingiam-se pacientes dependentes em consultas, para, após
forçarem o recebimento de uma prescrição de narcótico, procederem à prisão e incriminação de
médicos; outros estratagemas indutores também foram utilizados para o mesmo fim, o que era
facilitado pelo fato de o delito ser de mero risco, sem lesão ou mesmo vítima definida. Idem, ibidem,
p. 665-670.
146
Idem, ibidem, pp. 644; 657-660.
147
Idem, ibidem, p. 660.
50
a sociedade estadunidense ainda haveria de se preocupar, particularmente, com a
necessidade de limpar-se do álcool.
148
Idem, ibidem, pp. 644-645. Anota o autor, ainda que, grupos abstêmios opuseram-se à atitude de
não-beligerância inicialmente defendida pelo presidente Wilson, tendo sido muito difundida em todo o
país uma exaltação à guerra feita pela Anti-Saloon League, declarando que o hábito de beber “não
apenas é criminógeno, ruinoso à saúde, corruptor da juventude e cusador de desunião marital, mas
também germanófilo e traidor da pátria”. Ibidem, pp. 646-647.
149
Assim alcunhada em homenagem ao seu principal arquiteto, o deputado republicano Andrew
Volstead.
150
VOLSTEAD, Andrew apud ESCOHOTADO, Antonio. Op. Cit., p. 648. Não se podendo justificar
tamanha intervenção na liberdade pelos interesses econômicos em jogo, observe-se a que
impressionante ponto o discurso moralista de limpeza social se revelava ingênuo, e, do ponto de vista
político-legislativo, flagrantemente equívoco.
51
extrema, o negócio ilegal. Deveras, nunca deixou de circular muito álcool em
território norte-americano, e agora o álcool ilícito gerava novos problemas de saúde
pública ao apresentar impurezas e, por vezes, nocividade letal151. Ainda, o mercado
ilícito forjado pela proibição beneficiou diretamente o gangsterismo e as máfias, que,
aproveitando-se do monopólio artificial, experimentaram crescimento
exponencial152; e agigantou-se o aparato burocrático estatal voltado à repressão, com
a criação de agências e outros órgãos especiais para a realização do controle
pretendido153. Como conseqüência, vertiginoso também resultou o crescimento da
corrupção entre agentes oficiais 154. Tudo isso sucedeu de modo crescente e
sustentado até o ano de 1933, quando a aprovação da 21ª emenda implicou a abolição
da lei seca.
151
Segundo Escohotado, calcula-se que 10% do álcool industrial desnaturalizado dos EUA naqueles
tempos foi desviado para produzir licores, e que houve cerca de 30 mil pessoas mortas por ingestão de
álcool metílico e outras destilações venenosas, além de outros 100 mil com lesões permanentes como
cegueira ou paralisia. Op. cit., p. 652.
152
DAVENPORT-HINES, Richard. The pursuit of oblivion: a global history of narcotics. London –
New York: W. W. Norton, 2002, p. 226; ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., pp. 652-654.
153
DAVENPORT-HINES, Richard. Op. cit., p. 230.
154
Dos cerca de 18 mil agentes inicialmente recrutados pela repressão ao álcool, 34% foram
identificados, onze anos depois, com notas desfavoráveis no exercício de sua função;
aproximadamente 10% foram expelidos e processados por crimes de extorsão, roubo, furto, falsidade
ideológica, tráfico e perjúrio; nem mesmo os ministros do interior e da justiça do presidente Harding
deixaram de se envolver com contrabando e grupos criminosos. ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., p.
652.
155
ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., pp. 652-653.
156
A respeito, anota Pitombo que a popularização da expressão money laudering possivelmente se
deve à alegada prática, corrente em Chicago nos anos 20, de utilização das lavanderias locais por
gangsters com o fito de ocultar o dinheiro obtido ilicitamente, conforme se manifestou Meyer Lansky,
importante mafioso da época. PITOMBO, Antonio Sérgio Altieri de Moraes. Lavagem de dinheiro: a
tipicidade do crime antecedente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 32.
52
emergência dos barbitúricos e pela explosão no consumo de maconha pela sociedade
estadunidense verificados na primeira metade do século XX157.
157
ESCOHOTADO, Antonio. Op cit., p. 769; DAVENPORT-HINES, Richard. The pursuit of
oblivion: a global history of narcotics. London – New York: W. W. Norton, 2002, p. 239. A respeito,
vale citar a observação precisa de Brecher: “Foi uma mudança legislativa, e não uma mudança na
natureza humana, que estimulou a propaganda em larga escala do uso de maconha para fins
recreativos nos Estados Unidos”. BRECHER, Edward M. et al. The Consumers Union report on licit
and illicit drugs. Boston: Little, Brown, 1972, 55.
158
ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., p. 666.
159
Idem, ibidem, p. 670.
160
Idem, ibidem, pp. 669-670. A título de comparação entre os tempos iniciais da proibição e tempos
de sua vigência consolidada, expõe o mesmo autor: “[...] em 1928, a Narcotics Division da Proibition
Unit tinha apenas 170 agentes em todo o país, numero insuficiente para acossar de modo eficaz boa
parte dos usuários habituais. Esse tipo de usuário, chamado às vezes de southern white, abarcava um
setor de classes médias formado por arrendatários, profissionais liberais, senhoras de idade, etc., e,
até que a proibição não o estigmatizasse seguiria sendo um grupo normal de pessoas que nem sequer
eram detectadas, na maioria dos casos, como usuários assíduos de drogas [...]. Sessenta anos depois,
sem nenhum exagero, haverá cem vezes mais agentes dedicados à repressão, e cem vezes mais
usuários de drogas proibidas. Nas mesmas cidades, uma investigação semelhante mostrará que a
maioria dos adictos são adolescentes, todos laborativamente nulos e quase 90% autores de outros
delitos, que por preços astronômicos injetam-se soluções dez ou vinte vezes menos puras, cuja alta
freqüência de mortes por envenenamento se denomina eufemisticamente overdose. A evidência de
aqueles ‘adictos estabilizados’, longevos e sem problemas de socialização, contrasta com a vida
breve e a destrutividade dos pseudoadictos contemporâneos, consumidores de sucedâneos com parte
de um ritual draculino que compra irresponsabilidade, porque as circunstâncias impostas pela lei à
satisfação de seu vício assim sugerem. E, muito curiosamente, essas pessoas de média ou terceira
idade que a princípios do século suportavam o hábito eram dope fiends, embora respeitassem
escrupulosamente as leis, enquanto os que agora cometem parricídios para adquirir maisena ou
estricnina com vagos rastros de um opiáceo são ‘inocentes vítimas’ precisamente do opiáceo, não do
sistema específico que fomenta esse engano e esse envenenamento”. Ibidem, p. 664.
53
artes e moda –, opiáceos e cocaína floresceram com mais força que antes de 1914,
quando eram propagandeados por grandes laboratórios. Mas em 1930, ao passo que
inicialmente referira-se a números inexistentes para defender o recrudescimento, o
comando repressivo negava o crescimento do problema. E o grupo de usuários
antigos, predominantemente formado por cidadãos de classe média, maiores de
quarenta anos e consumidores de preparados farmacêuticos, cedia lugar a jovens
usuários de morfina, cocaína e heroína contrabandeadas, viventes nas periferias
pobres de grandes cidades, dos quais cerca de dois terços eram negros e sul-
americanos. Acossados pela repressão e pelos altos preços, traficavam para sustentar-
se, apresentando altos índices de cometimento de crimes comuns e absenteísmo
laboral. Compunham minorias étnicas segregadas que, se por um lado utilizavam-se
de drogas para tentar aliviar sua condição miserável, por outro haviam assimilado o
estigma de usuários marginais161.
161
Idem, ibidem, pp. 671-672.
162
Idem, ibidem, p. 679.
54
alimentadas em regiões assoladas por desemprego. Isso posto, fatores como (i) a
preocupação dos proibicionistas em evitar sua desmoralização após a derrogação da
lei seca e em prevenir uma possível onda de tolerância que lhe fosse conseguinte, (ii)
a já conhecida identificação havida entre mexicanos e uso da maconha e (iii) a
inserção do cânhamo no rol de substâncias passíveis de interdição anunciado pela
Convenção de Genebra de 1925163 contribuíram para que logo emergissem fortes as
associações entre o uso da droga e os supostamente degenerados, depravados e
violentos imigrantes mexicanos164. Malgrado as investigações científicas de então já
tendessem a um sentido contrário ao da propaganda estigmatizante, em 1937 viria a
lume o Marihuana Tax Act, que, contendo normas penais imiscuídas em regulações
administrativas, pode ser considerado, tanto do ponto de vista político quanto
jurídico, uma lei análoga ao que fora o Harrison Act para opiáceos165.
168
Idem, ibidem, p. 682.
169
A delegação norte-americana fixara a idéia de se estabelecerem limites atinentes à produção e
circulação dos fármacos de uso controlado para cada país.
170
Art. 2º, “a” e “d”.
171
A respeito, vide: ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa,
2000, pp. 699-705.
172
Não há evidências concretas de que as potências comunistas – URSS e China – hajam estimulado a
exportação de psicoativos como forma de subversão política, embora claramente possam ter lucrado
com tal comércio. Idem, ibidem, pp. 728-729.
173
Idem, ibidem, pp. 727-729.
56
chegar até a prisão perpétua ou mesmo, no caso de um adulto que vendesse droga a
um menor de 18 anos, a pena capital.
174
Idem, ibidem, p. 735.
175
Chefe do FBN entre os anos de 1930 e 1963, Harry J. Anslinger desempenhou papel fundamental
na consolidação do probicionismo dentro e fora dos Estados Unidos. À sua liderança se atribuem em
grande medida as campanhas contra a maconha nos anos 30, e os resultados da terceira Convenção de
Genebra, de 1936. Mais tarde, no pós-guerra, a concentração de poderes que reunira em torno de si e
suas extraordinária influência política e identificação com os princípios patriótico-moralistas reinantes
nos EUA fariam do FBN pilar fundante da estrutura burocrática de segurança nacional desse país
(McALLISTER, William B. Drug diplomacy in the twentieth century. New York: Routledge, 2000,
pp. 147-148).
176
A introdução e popularização do termo e da cultura junkie se deve à obra do escritor William S.
Burroughs (especialmente em: Junkie. New York: Ace Books, 1953; e Naked lunch. New York:
Grove Press, 1959), que, ao lado de Allan Ginsberg e Jack Kerouac, liderou o chamado “movimento
beatnik” – ou “geração beat” – em meados da década, considerado o principal precursor a
contracultura nos EUA. Ginsberg, inclusive, chegou a publicar artigo sobre a maconha: (“The Great
marijuana boax: first manifesto to end the bringdown”. In: Atlantic Monthly, Nov/1966, pp. 104 et
seq.).
57
médios americanos, que se quedaria mais evidente no decênio posterior, com a
contracultura, e, ainda, que influenciaria grupos de jovens em diferentes países177.
177
Quanto à influência do puramente alegórico no uso de drogas que então se irradiava, cabe citar dois
casos exemplares referidos por Escohotado: (i) o de um músico americano de jazz que, após detido
por embriaguez, seu comportamento fez crer aos médicos tratar-se de um heroinômano, levando-os a
lhe administrarem doses de manutenção para prevenir prejuízos maiores; ao depois, descobriu-se que
seu suposto vício não era senão uma fraude, e, no entanto, ele rogou aos médicos que não dissessem a
verdade à sua esposa e sua família pois não queria perder o status de toxicômano; (ii) o do primeiro
cliente dos Narcóticos Anônimos em Londres, que se apresentou como heroinômano mas que era
apenas um jovem “imbecilizado pelo uso massivo de barbitúricos”. ESCOHOTADO, Antonio.
Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, p. 739.
178
Idem, ibidem, pp. 732-745.
179
DAVENPORT-HINES, Richard. The pursuit of oblivion: a global history of narcotics. London –
New York: W. W. Norton, 2002, p. 299.
180
HOBSBAWM, Eric John. Era dos extremos: o breve século XX. Trad. Marcos Santarrita. São
Paulo: Cia. das Letras, 1995, pp. 253 et seq.
58
política entre os protagonistas da guerra fria 181. Ademais, a cultura individualista
predominante no mundo ocidental em muitos casos “degenerava em angústia
existencial, egoísmo e auto-destruição”182. Tudo isso levou à emergência de uma
nova realidade, em que o uso por milhões de pessoas de drogas industrializadas se
revelava irracional183, freqüentemente mais nocivo que o de substâncias proscritas,
mas não era devidamente observado pelas instâncias executivas oficiais 184. Assim,
186
“[...] Também por esses anos o Ministério da Agricultura americano se lança a fomentar o
consumo de tabaco no estrangeiro, subvencionando generosamente os estúdios de Hollywood para
que roteiristas inserissem cenas capazes de estimular o hábito. Em 1964 , centenas de toneladas que
provêm de excedentes da costa tabaqueira do ano anterior se incluem como aporte americano do
programa internacional Comida para a Paz. Já havia décadas que os principais destiladores
americanos também subvencionavam Hollywood para que houvesse em todas as cenas possíveis
alguém oferecendo uma taça de licor, sinal de modernidade e distinção quando se dispunha do
apropriado mobiliário”. ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit.., p. 788.
187
Idem, ibidem, pp. 744-758.
60
protagonista, firmar-se-ia, em 1961, a Convenção Única das Nações Unidas sobre
Entorpecentes, ampliando-se as deliberações multilaterais em favor da proibição,
mas aceitando a abordagem médica do tratamento do usuário. Já em seu preâmbulo,
explicitava-se a ideologia da norma internacional:
188
Tradução oficial para o português, conforme a internalização da convenção no direito brasileiro –
Decreto 54.216/64. Disponível em:
<http://www.unodc.org/pdf/brazil/Convencao%20Unica%20de%201961%20portugues.pdf>. Acesso
em: 10/01/2009.
189
Ibidem. Acesso em: 10/01/2009.
190
Ibidem. Acesso em: 10/01/2009.
191
Ibidem. Acesso em: 10/01/2009.
192
Disponível em: <http://www.unodc.org/pdf/convention_1961_en.pdf>. Acesso em: 10/01/2009.
61
por alegadas propriedades super-viciadoras, em que figuravam a heroína, a cannabis
e sua resina e dois outros opiáceos193.
193
Art. 2. As listas internacionais atualizadas de substâncias controladas encontram-se disponíveis em:
<http://www.incb.org/pdf/yellow_lists_all/47th_edition_dec_07_yellow-list_eng.pdf >. Acesso em:
10/02/2009.
194
ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, pp. 756-
757.
195
Idem, ibidem, pp. 757 et seq. Lembra o autor que as drogas lícitas – que seguiam propagandeadas
como panacéias por grandes laboratórios, e vendidas aos milhões (com ou sem prescrição médica) –
foram difundidas como substâncias seguras, infinitamente superiores àquelas provenientes do mundo
subdesenvolvido, e, ilustrativamente, que chegaram a ser oferecidas até pela missão diplomática
norte-americana na Índia às classes médias e altas deste país, sugerindo-lhes substituir, assim, o uso de
opiáceos naturais e da cannabis (p. 780). Lembra também que tranqüilizantes neurolépticos, demais
de seu alto índice potencial de causação de dependência, são, isoladamente, responsáveis por um
número de mortes por overdose acidental nos EUA superior às mortes causadas por overdose (e não
por adulteração) de todas as drogas ilícitas somadas (p. 782).
196
RODRIGUES, Thiago. Política e drogas nas Américas. São Paulo: Educ – Fapesp, 2004, p. 76.
197
Central Intelligence Agency, instituída em 1947.
198
ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., pp. 807-812.
199
Idem, ibidem, p. 811; RODRIGUES, Thiago. Op. cit., p. 76.
62
Contudo, a partir de análises experimentais de uma elite intelectual200, disseminar-se-
ia o uso de drogas visionárias durante a década de 1960 entre os movimentos
artísticos, contestatórios e de desobediência civil a cuja reunião se convencionou
chamar de contracultura201. Em face da variedade de novos psicoativos disponíveis, a
resposta da burocracia oficial, previsivelmente, foi a criação de novas agências de
controle e a gradual estigmatização e proscrição dessas substâncias que já não mais
se lhe revelavam interessantes202; chegou-se a afirmar, em 1966, que drogas
psiquedélicas constituíam “a maior ameaça que se impunha ao país; [...] mais
perigosa que a guerra do Vietnã” 203.
206
Anota Baum que, vencidas as eleições com o uso de propaganda fortemente baseada no discurso de
lei e ordem, impunha-se à – inexperiente – equipe que assumiria a Casa Branca a dificuldade de
cumprir o que alardeara, na medida em que a competência executiva e legislativa acerca de prevenção
e repressão da criminalidade urbana – ou seja, daqueles crimes que suscitam maior sensação de
insegurança social – era eminentemente estadual e a matéria era vista pela população como assunto de
natureza local. Havia-se que estabelecer, então, um campo de atuação federal nas políticas de
policiamento de ruas, tendo-se chegado a cogitar a federalização dos crimes de roubo e furto a
residências – algo que, entretanto, à evidência não teria qualquer base legal e constitucional. Sugeriu-
se, então, o envolvimento nas políticas de repressão ao comércio e uso de drogas, porquanto a
produção e a circulação de tais substâncias claramente implicavam questões de controle de fronteiras
nacionais e interestaduais, permitindo, assim, intervenção federal na matéria com vistas a responder as
expectativas criadas durante a campanha eleitoral (BAUM, Dan. Smoke and mirrors: the war on
drugs and the politics of failure. Boston: Back Bay Books, 1997, p. 13-17; 28). Assim, dado o
potencial propagandístico de uma intensificação da cruzada contra as drogas, pouco importava que o
número de americanos mortos em virtude do uso de drogas ilícitas no país em 1969 houvesse sido
inferior, por exemplo, ao de mortos engasgados com alimentos ou acidentados em escadarias (ibidem,
p. 28).
64
Ante o término da guerra no Vietnã em meados de 1971, afirmou
Nixon, em pronunciamento ao Congresso, que os Estados Unidos estavam diante de
uma “emergência nacional”, tendo as drogas tornado-se o “inimigo número um” da
nação, pelo que se impunha um plano de ataque sem precedentes na história 207. Era
necessário declarar-lhes guerra e, assim, nas semanas subseqüentes, surgiria a
expressão war on drugs para referir-se ao combate ao mercado de psicoativos dentro
dos EUA bem como sua produção e circulação em toda e qualquer parte do mundo.
Para o presidente, de fato, a intransigente caçada às drogas era uma questão crucial
para a moralidade norte-americana, assim como o era também para as suas
pretensões de reeleição208.
207
“THE NEW PUBLIC ENEMY Nº 1”. Time Magazine, 28/06/1971. Disponível em:
<http://www.time.com/time/magazine/article/0,9171,905238-1,00.html. Acesso em: 10/01/2009>.
208
Ibidem. Acesso em: 10/01/2009. A alvorada da guerra às drogas contou com expressivo apoio do
mass media, que se refletiria nas pesquisas de opinião pública.
209
Ibidem. Acesso em: 10/01/2009.
210
Ibidem. Acesso em: 10/01/2009.
65
estadunidenses ações externas de combate, a partir do que se passou a tratar do tema
como política de segurança nacional, mobilizando-se todo um aparato militar.
211
Versão oficial traduzida para o português (decreto nº 79.388/77) disponível [on-line] em:
http://www2.mre.gov.br/dai/psicotr%C3%B3picas.htm. Acesso em: 10/01/2009.
212
Arrola-se aqui o princípio ativo da cannabis – o THC –, erroneamente incluída na lista de
narcóticos em 1961, de regime excepcionalmente gravoso. Ao manterem-se como estavam as listas
anteriores, contudo, não se reparou o erro anterior, que se dera de forma idêntica igualmente com a
cocaína.
213
Art. 5º, 2.
66
diretamente sob controle de seus governos”214. Assim sendo, mantinha-se um
estatuto liberal para substâncias cuja produção era controlada por grandes
laboratórios, e que no mais das vezes “não eram senão sucedâneos melhores ou
piores da cocaína e de opiáceos”215, e condenava-se ao obscurantismo outras muito
menos perigosas à saúde humana e que ainda se revelavam cientificamente
promissoras, mas que eram vistas como drogas subversivas216.
214
Art. 7º, “a”. Note-se que, não obstante, eventuais cientistas que ousassem solicitar a respectiva
licença às autoridades competentes para estudar tais drogas deparar-se-iam com um problema anterior,
haja vista que nenhum laboratório estabelecido legalmente se atreveria a suportar os complexos e
caros procedimentos para sintetizá-las se, ao cabo, a concessão de seu registro fosse incerta – o
mesmo valendo para os estabelecimentos onde poderiam ter lugar tais experiências. Mas, enfim, este
era o propósito da diplomacia norte-americana: a prevenção da ciência sobre as drogas ampliadoras da
consciência, não importasse o avanço médico-farmacológico que pudesse representar. A respeito,
ESCOHOTADO. Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, pp. 890-892.
215
Idem, ibidem, p. 890.
216
Idem, ibidem, p; 892. Efetivamente, a circunstância de o consumo de drogas visionárias haver sido
próprio de grupos contestadores das instituições vigentes também explica a reação desproporcional
por elas sofrida.
217
Note-se que o vocábulo “enforcement” tem aqui um significado de “aplicação da lei” ou execução
do direito, podendo também denotar “coerção” ou “coação”. A DEA nasceu sob a denominação Drug
Enforcement Agency, substituída apenas alguns meses após, ao momento em que também se
ampliavam seus poderes e atribuições.
67
parte de sua herança cultural secular, estipularam-se prazos para a definitiva
supressão dos estupefacientes em todas as nações218. Nesse contexto, a América
Latina passaria a ocupar papel de destaque entre as preocupações dos próceres do
proibicionismo, em virtude dos cultivos de ópio e cannabis no México e da coca nos
países andinos, onde era a relevante fonte de riqueza e parte importante componente
da cultura alimentar. O fato de a folha de coca ali ser mascada como sucedâneo
alimentar de grandes faixas populacionais impossibilitadas de consumir alimentos
mais nobres ou consumida em chás inofensivos não impediria, porém, que, a partir
de 1971, os EUA destinassem subsídios anuais da ordem de dezenas de milhões de
dólares para que os governos locais arrasassem safras e encarcerassem pequenos
comerciantes do produto, sem que nenhum centavo fosse investido para melhorar a
vida de indígenas cocaleiros219.
218
ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., pp. 915 et seq.
219
Idem, ibidem, pp. 922-928.
220
Idem, ibidem, pp. 971-972. O autor menciona ainda que, quanto à cocaína, sua produção mundial
até 1975 chegava a ser dez vezes menor que vinte anos antes; porém, a imposição de controles sobre
as vendas de anfetaminas e a concentração da atenção do aparato repressor sobre as drogas visionárias
desde fins da década anterior criaram condições para que se iniciasse um crescimento sustentado da
importação daquela droga desde diferentes pontos da América do Sul. Em uma época em que o
mercado americano era altamente receptivo a alternativas psicoativas, quantidades da droga eram ali
introduzidas por viajantes particulares interessados na rentabilidade de sua venda no mercado ilegal;
de outra parte, imigrantes cubanos anti-castristas conectados com grandes produtores bolivianos,
colombianos e peruanos criaram uma poderosa rede de contrabando e distribuição da droga em
grandes cidades da costa leste, dali expandindo-se para o oeste. A atuação destes era facilitada pelo
fato de, em virtude de seu status político – entre eles havia, inclusive, ex-assistentes de Fulgencio
Batista exilados –, terem contado muitas vezes com o beneplácito da CIA a prevenir maiores
investigações e responsabilizações (pp. 984-986).
68
se multiplicavam (especialmente nos EUA), chegou a haver uma tendência a que se
despenalizasse o consumo e a posse da marijuana, apoiada em novos estudos
científicos que demonstravam a relativa inocuidade da substância 221. Assim é que, a
partir de meados dos anos 70, porque ela passara a ser vista como uma droga leve e
imerecedora de proibição, operou-se um movimento de despenalização – formal ou
informal – em países como Holanda, Dinamarca, Canadá, Espanha, e até mesmo os
EUA (tribunais da Califórnia deixaram de impor privação de liberdade a usuários em
1976; ademais, o cultivo da cannabis era freqüente em muitos estados do país) 222.
Cabe anotar que a tolerância ao uso da cannabis não implicou, nessas localidades,
qualquer situação de emergência de saúde ou segurança públicas; ao revés,
constatou-se, com o passar do tempo, progressiva redução no interesse pela droga223.
221
Idem, ibidem, pp. 972-978.
222
Idem, ibidem, pp. 975-980. É de se notar que a defesa da despenalização ou descriminalização da
maconha, ora, não se subsidiava na oposição político-liberal à ingerência do Estado sobre a intimidade
do cidadão, como sucedera ao final da década anterior, mas ao mero entendimento de que se tratava
de uma droga mais leve que as demais, inclusive que o álcool, logo não merecia as restrições que se
lhe impunham.
223
Idem, ibidem, p. 980. A respeito, Escohotado traça um paralelo com a liberalização de publicações
eróticas quando da redemocratização espanhola, que, se nos anos iniciais resultou em uma explosão de
vendas de revistas como Playboy ou Penthouse, em seguida foi perdendo força de maneira consistente
até que se verificasse, após cinco anos, um público substancialmente menor que antes; igualmente,
segundo o autor, acontecera com a maconha e o haxixe após sua liberalização, porquanto se lhes
subtraía o conteúdo heróico ou herético e seu valor cerimonial, convertendo-se em substâncias de
importância menor.
224
Idem, ibidem, pp. 981 et seq.
225
The New York Times, 13/01/1982. “Supreme Court roundup: 40-year drug term held ‘legislative
prerogative’”. Disponível em:
<http://query.nytimes.com/gst/fullpage.html?sec=health&res=9A00E1D71038F931A25752C0A9649
48260&scp=1&sq=supreme%20court%20roundup:%2040-year%20term%20held&st=cse>. Acesso
em: 10/01/2009. Como seu título denota, a decisão da Suprema Corte sustentava que a duração de
pena era “puramente matéria de prerrogativa legislativa”, com o que justificava a manutenção de
69
Na virada dos anos 80, a cocaína já penetrara com sucesso na cultura
da sociedade americana, em grande medida por haver ressurgido em meio a elites
econômicas, e a transição da juventude local do radicalismo para o consumismo
propiciara-lhe ainda maior aceitação social. Tratava-se da assimilação e morte
definitiva da contracultura, porquanto o uso de uma substância ilícita determinada
não mais significava uma esperançosa contestação aos padrões políticos e culturais
então vigentes, mas um ideal yuppie de sucesso dentro das regras estabelecidas,
obtido por muitos e perseguido por outros tantos. Não mais se pretendia igualar-se ao
artista ou ao acadêmico contestador, mas a políticos poderosos ou a negociadores das
bolsas de valores e operadores do mercado financeiro; destarte, “se a maconha ou o
LSD haviam sido e ainda eram consumidos por gente desconforme com as pautas do
consumo de massas, a cocaína constituiu, desde seu renascimento, um puro consumo
de massas”226.
sentença de 40 anos de prisão para um acusado de posse e distribuição de cerca de 250g de maconha
no estado da Virgínia (caso Hutto v. Davis).
226
Idem, ibidem, pp. 987-988. Trad. livre. Menciona o autor que, de acordo com o National Survey on
Drug Abuse, em 1979 cerca de 32% da população adulta do país – algo próximo a 45 milhões de
pessoas – seriam usuários ocasionais de cocaína, e outros 10%, usuários mais assíduos; dentre os
adolescentes, a penetração já era próxima de 6% (p. 989).
227
Idem, ibidem, pp. 988-992. Igualmente não faltaram, à semelhança de um lamentável pretérito,
episódios em que agentes da repressão transformaram respeitáveis médicos em (reputados) odiosos
traficantes. No que concerne a intoxicações, cabe anotar que sempre foram raras no caso da cocaína, e
praticamente nulas no caso da maconha; aquela somente viria a ensejar maiores problemas de saúde
pública quando se viria a difundir sua versão para classes pobres – o crack.
228
Idem, ibidem, p. 993.
70
Atribui-se a procedimentos peculiares como esse não só os problemas decorrentes da
redução na pureza da cocaína comercializada no país, mas a posterior disseminação
de compostos muito mais impuros e nocivos como a pasta base e o crack, que logo a
superariam em importações229.
232
Idem, ibidem, pp. 997-1000. Com efeito, inúmeros são os relatos de introdução de grandes
quantidades de drogas nos EUA facilitada por altos dirigentes da CIA e outros agentes oficias –
especialmente de segurança nacional – que, quando não seduzidos pelos valores envolvidos no tráfico,
aceitavam como inevitável tal facilitação com vistas a um objetivo outro, que muitas vezes envolvia o
sustento de grupos anti-revolucionários através do intercâmbio de drogas por armas e influência
política; assim, por exemplo, afirmou-se que grandes traficantes colombianos eram “inimigos da DEA
mas amigos da CIA” (ibidem, pp. 1001-1003).
233
Primeiro com a doutrina Monroe; depois, com o big stick e, por fim, com a teoria da contenção à
ameaça comunista e a doutrina Truman.
234
ESCOHOTADO. Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, pp. 998-
1000.
235
GUÁQUETA, Alexandra. “Transformación y efectos de la cooperación antidrogas entre Colombia
y Estados unidos (1970-2000)”. In: CAMACHO GUIZADO, Álvaro. Narcotráfico: Europa, EEUU,
América Latina. Barcelona: Obreal – Universitat de Barcelona, 2007, p. 197. Da assertiva de Tambs
igualmente derivaria o termo análogo narcoguerrilha, ainda hoje bastante usado.
72
Em verdade, demais da corrupção de agentes do Estado,
particularmente na Colômbia observava-se um amálgama entre tráfico de drogas e
grupos paramilitares tanto de direita quanto de esquerda, os quais dividiam o controle
do país imerso em uma duradoura guerra civil. No início daquele ano, porém,
especulou-se que laboratórios de refino de cocaína interditados pela repressão oficial
eram protegidos pelas FARC236, circunstância que, mesmo incomprovada237, resultou
na aludida declaração238 – que, de resto, ao ser prodigamente reproduzida por
imprensa, empresários morais e órgãos oficiais, legitimaria definitivamente aos
norte-americanos a sua ingerência política e militar em toda a região andina e
adjacências239.
236
Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia.
237
RODRIGUES, Thiago. Política e drogas nas Américas. São paulo: Educ – Fapesp, 2004, p. 266.
238
GUÁQUETA, Alexandra. Op. cit., p. 197. Cite-se, ainda, que tal afirmação contrariou o governo
do presidente Betancur, que se via em meio a delicadas negociações de paz com as FARC, que então
se inviabilizaram.
239
Além das sabidamente inúmeras operações nos países andinos, exemplos importantes da atuação
norte-americana com base em sua doutrina militarista e unilateralista de intervenções são as invasões
de Granada, em 1983, e do Panamá, em 1989. Essa parece merecer especial destaque: após haverem
invadido o país, causando cerca de 3 mil mortes, fuzileiros navais norte-americanos detiveram o seu
presidente-ditador, Gal. Manuel Noriega, para posteriormente levá-lo a uma corte em Miami que o
julgou e condenou a 40 anos de prisão – depois reduzidos a 30 – por associação para o tráfico de
drogas; no entanto, poucos anos antes Noriega cumprira um relevante papel como intermediário de
confiança da CIA no financiamento – através de “narcodólares” – da guerrilha de direita nicaragüense,
os Contras (a respeito, vide, cada qual enfocando diferentes aspectos da invasão, bem como suas
razões alegadas e latentes e as conexões do general com setores da inteligência dos EUA então
capitaneada pelo vice-presidente Bush: ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., p. 1001-1003; 10071;
RODRIGUES, Thiago. Op. cit., p. 258-262; 276-278; NEUMAN, Elias. La Legalización de las
drogas, 3ª ed. reestruct. e ampl.. Buenos Aires: Universidad, 2005, p. 107-111). Para os EUA,
doravante, a América Latina deixava de ser apresentada como uma ameaça comunista – o argumento
justificador de invasões e conspirações norte-americanas até então – para constituir uma ameaça à
segurança por meio do narcotráfico, ou seja, uma novel forma de subversão – pode-se dizer, um crime
internacional da nova ordem. Assim, no momento em que países latino-americanos voltavam a
experimentar o regime democrático com o ocaso do autoritarismo neles vigente desde o
recrudescimento da guerra fria nos anos 60, emergia, na visão estadunidense, nova ameaça grave ao
bem comum, tratando-se o tráfico de drogas como uma ameaça institucional a todo o Continente
Americano.
73
lo até a exaustão240. Por esse motivo, torna-se tarefa árida determinar se a alta
freqüência de intoxicações agudas verificada, em que se incluíam quadros de grande
depauperação psicossomática e episódios delirantes, derivava da nocividade
intrínseca do composto ou das pautas de uso por parte de consumidores
vulneráveis241. Todavia, o tratamento destinado à questão pelo mass media seguia o
errôneo modelo estabelecido ao longo de todo o século, conferindo-lhe status de
aterrorizante – e imprevisível – epidemia baseada em preferências espontâneas de
usuários, e mantendo omissos os fatores causais reais daquele fenômeno 242.
240
ESCOHOTADO. Antonio. Op. cit., p. 1013-1014.
241
Idem, ibidem, p. 1113. A título de comparação, lembra o autor que em 1976, quando da emergência
da cocaína nos EUA, não houve sequer um único caso de intoxicação fatal em todo o país; em 1986,
quando a droga emergente era o crack, o número de mortes foi de cerca de 600 apenas no primeiro
semestre.
242
Idem, ibidem, pp. 1113-1114. O mesmo raciocínio, assinala o autor, autorizaria também que os
envenenamentos decorrentes da ingestão de álcool metílico e outras destilações perniciosas havidos
duante os anos 20 fossem vistos como imprevisíveis e baseados em preferências espontâneas dos
consumidores – e não como um subproduto da lei seca.
243
MARSHALL, Jonathan; SCOTT, Peter D. Cocaine politics: drugs, armies and the CIA in Central
America. Los Angeles: UCLA, 1991, p. 23. Apud RODRIGUES, Thiago. Política e drogas nas
Américas. São Paulo: Educ – Fapesp, 2004, p. 268.
244
RODRIGUES, Thiago. Op. cit., p. 268-269.
74
Encontra-se explícita em tal documento a idéia de serem as drogas relevante ameaça
à segurança nacional do país, e seu tráfico um fator de instabilidade para a nação.
Assumia-se claramente o problema como questão geopolítica essencial, e que assim
reclamava ser tratado. Era a justificativa final para o extraordinário recrudescimento
das políticas afetas ao tema desde o início da década, e que se perenizaria ao depois –
mormente em administrações republicanas.
245
Disponível em: <http://www.unodc.org/pdf/convention_1988_en.pdf>. Acesso em: 10/01/2009.
246
Aceitação essa que, em grande extensão, foi irrefletida, na medida em que a autoridade
internacional funcionou, durante quase todo o século XX – considerando-se desde a predecessora
Sociedade das Nações –, como mera instância homologatória de proposições trazidas pela diplomacia
norte-americana
247
Consoante a tradução oficial do documento, texto anexo ao decreto nº 154/91. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0154.htm>. Acesso em: 10/01/2009.
Lembre-se que, para a autoridade internacional, o “uso indevido” consiste tão só no mero uso de
substância ilegal. A convenção, outrossim, ainda dedicaria um artigo inteiro ao tema das “medidas
para erradicar o cultivo ilícito de plantas das quais se extraem entorpecentes e para eliminar a
demanda ilícita de entorpecentes e substâncias psicotrópicas” (art. 14).
248
Art. 3.
249
Arts. 6 usque 11.
250
Art. 12.
75
certa medida por desconhecimento de suas potencialidades –, apresentaram elevado
grau de toxicidade, tendo sido responsabilizados pelos primeiros sintomas de
Parkinson observados em jovens 251. De outra parte, reapareceria, a partir de
experimentos médicos havidos em grandes universidades252, o MDMA253 – ou
ecstasy –, que, visto como uma alternativa terapêutica às drogas alucinógenas, logo
seria igualmente adotado por movimentos alternativos como o new age californiano,
e começou a ser utilizado recreativamente em pequena escala até chamar atenção da
DEA. Esta, a despeito da inicial inocuidade e da utilização psicoterapêutica do
psicotrópico, rapidamente logrou inseri-lo na lista de substâncias proibidas254. Disso
resultou o exponencial aumento de seu preço, e, conseqüentemente, a emergência de
um relevante interesse em seu tráfico, acompanhada de adulterações em sua
composição; em seguida, adviriam os casos de abuso255.
251
ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, p. 1005-
1009.
252
Sabe-se que a composição fora sintetizada em 1912 nos laboratórios da Merck, mas permaneceu
sem despertar maior interesse durante quase todo o século, até que cientistas de univesidades como
Harvard e Cambridge intensificassem pesquisas respeitantes. A respeito, vide: FREUDENMANN,
Roland W.; OXLER, Florian; BERNSCHNEIDER-REIF, Sabine. “The Origin of MDMA (ecstasy)
revisited: the true story reconstructed from the original documents”. Disponível em:
http://www.mdma.net/merck/ecstasy-mdma.pdf>. Acesso em: 12/01/2009; ESCOHOTADO, Antonio.
Op. cit., p. 1019-1022.
253
3,4 metilenodioximetanfetamina.
254
ESCOHOTADO, Antonio. Op. Cit., p. 1019-1023.
255
Idem, ibidem, p. 1022-1029.
256
Idem, ibidem, p. 1005.
257
Idem, ibidem, p. 1017.
76
De fato, a proibição seguia a operar como grande fator de expansão do mercado
ilegal, cuja definitiva explosão sucedeu precisamente nos tempos de maior
recrudescimento repressivo: os anos 80.
258
Idem, ibidem, p. 1085.
259
A respeito, vide: NEUMAN, Elias. La Legalización de las drogas, 3ª ed. reestruct. e ampl.. Buenos
Aires: Universidad, 2005, p. 162-168; FUCILLE, Luís Alexandre. “Plano Colômbia: o mito da
militarização contra as drogas e seu impacto no plano estatal. In: Estudios politicos militares, ano 2, nº
3, . Santiago de Chile: Universidad Arcis, jun/2002, p. 39-54.
260 Acerca da potencial utilização da cannabis para fins terapêuticos,
262
Idem, ibidem, p. 1086-1087.
263
Disponível em: <http://un.org/ga/20special/poldecla.htm>. Acesso em: 10/01/2009. Fez-se sentir
na assembléia, entretanto, o nascente influxo de um discurso alternativo europeu, mais pragmático e
menos contaminado por ideologias no tratamento político da questão. Todavia, posições progressistas
como a defesa das políticas de redução de danos não deixaram de ser objeto censura na reunião
patrocinada pela autoridade internacional. A respeito, vide: BOEKHOUT VAN SOLINGE, Tim.
Drugs and decision-making in the European Union. Trad. Berveley Jackson. Amsterdam: Mets &
Schilt – CEDRO, 2002, p. 15.
264
§§ 14 et 19.
265
§ 17.
266
Especialmente no Continente Europeu, que será analisado em capítulo próprio.
78
on drugs, parcos são os progressos emanados da autoridade internacional submetida
à decisiva influência estadunidense.
267
Note-se que a Colômbia é grande fornecedora de energia aos EUA, além de deter a segunda maior
biodiversidade do continente. A respeito: GUZZI, André Cavalles. As Relações EUA - América
Latina: medidas e conseqüências da política externa norte-americana para combater a produção e o
tráfico de drogas ilícitas. Dissertação de mestrado apresentada ao programa inter-institucional de
relações internacionais San Tiago Dantas (PUC-SP – Unesp – Unicamp). São Paulo: 2008, p. 110.
Assinala o autor que a execução do ambicioso Plano Colômbia não resultou, porém, em grandes
avanços na prevenção da oferta de drogas, porquanto a ênfase dedicada ao militarismo e ao combate a
grupos guerrilheiros suplantou a necessidade de implementação de programas de desenvolvimento
alternativo nas regiões cultivadas (p. 110-111).
268
Os trabalhos da reunião são divididos em cinco fóruns inter-governamentais de discussão, cada
qual sobre um tema: redução da oferta, redução da demanda, erradicação de cultivares e
desenvolvimento alternativo, lavagem de valores e análise de precursores e estimulantes
anfetamínicos – a grande preocupação atual dos países centrais em matéria de psicoativos. A respeito,
vide: <http://www.idpc.info/ungass.php>.
79
3. O MODELO LEGISLATIVO POSITIVO DA REPRESSÃO ÀS DROGAS
80
art. 28, § 2º, segundo a qual cabe ao juiz recorrer à “natureza e quantidade da
substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às
circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”
para determinar se se trata de posse para uso ou para comércio da droga, constitui
exemplo típico de um abominável direito penal de autor269. Então, mantendo-se o
caráter penal da tutela da posse de drogas para uso próprio, manteve-se o tratamento
estigmatizante que lhe era imposto.
271
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral, t. 1, 1ª ed. bras., 2ª ed. port. São Paulo –
Coimbra: Revista dos Tribunais - Coimbra Editora, 2007, p. 03. Lembra o autor a necessária ressalva
que há que ser feita sobre este entendimento, na medida em que, se de um lado a pena em sentido
estrito não é a única conseqüência jurídica estatuída pelo direito penal sobre os comportamentos
eleitos para sua tutela, havendo igualmente a medida de segurança, tampouco se pode falar em crime
acerca do comportamento que esta pressupõe, porquanto lhe falta elemento essencial estruturante do
delito: a culpabilidade (idem, ibidem, p. 03-04).
272
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro –
parte geral, 5ª ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 84.
273
POLAINO NAVARRETE, Miguel. Derecho penal – parte general, t. II. Barcelona: Bosch, 2000,
p. 554; CEREZO MIR, José. Derecho penal: parte general. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007,
p. 25; ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Op. cit., pp. 84-85; TOLEDO,
Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal, 5ª ed., 7ª tir. São Paulo: Saraiva, 2000, pp. 13-
14. DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 03;
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição, 3ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2003, p. 65.
82
reais ou potenciais – que lhe sejam intoleráveis, pelo que se chega à sintética idéia de
que ao direito penal incumbe a tutela subsidiária de bens jurídicos274 indispensáveis
à garantia da dignidade humana275 e da coexistência social.
274
ROXIN, Claus; ARZT, Gunther; TIEDEMANN, Klaus. Introdução ao direito penal e ao direito
processual penal. Trad. Gercélia B. de Oliveira Mendes. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 08. DIAS,
Jorge de Figueiredo. Op. cit., pp. 113-114. Zaffaroni e Batista, contudo, apontam-lhe alguma
imprecisão conceitual na medida em que a lei penal não teria o condão de, efetivamente, tutelar um
bem jurídico, mas apenas se prestaria a confiscar um conflito que atinja ou coloque em perigo um tal
bem: “é óbvio que no homicídio não se tutela com a pena a vida da vítima [...] a idéia de bem jurídico
tutelado digere e neutraliza o efeito limitador da idéia de bem jurídico lesionado ou exposto a
perigo”, pela qual os autores manifestam preferência (ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo;
ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro, vol. I, 2ª ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2003, p. 227). Sem embargo, opta-se neste trabalho por se manter a terminologia conceitual
apresentada, até para não se afastar em demasia de seu escopo fundamental.
275
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato e princípio da precaução na sociedade de
risco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 202.
276
MUÑOZ CONDE, Francisco. Direito penal e controle social. Trad. Cíntia Toledo Miranda Chaves.
Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 03.
83
Assim sendo, desatende-se ao princípio da lesividade na medida em
que, se tenciona sancionar as condutas nucleares típicas sem que haja qualquer
referência a uma mínima exposição a perigo do bem jurídico tutelado, a saúde
pública277. Ora, não se pode presumir que o cultivo, cessão ou comercialização de
uma quantidade qualquer de droga a terceiro exponha a perigo de lesão significante
sequer a saúde individual, tanto menos a saúde pública. Inexiste, evidentemente,
causação de perigo comum. Ademais, se não há lesividade, tampouco se pode
especular sobre a observância aos princípios da subsidiariedade e da
fragmentariedade do direito penal – o que não impede, entretanto, que se suponha
hipotética observância daquele para a análise do eventual atendimento a estes.
279
Acerca da manifesta desproporcionalidade do crime de tráfico, vide: GRECO, Luís. “Tipos de
autor e Lei de Tóxicos ou: interpretando democraticamente uma lei penal autoritária” In: Revista
Brasileira de Ciências Criminais, ano 11, n. 43. São Paulo: Revista dos Tribunais, abr/jun 2003, p.
226 et. seq.
280
Art. 1º, III e art. 5º, X da Constituição Federal. Acerca de sua aplicabilidade concreta à questão do
uso de drogas, veja-se recente julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: TJSP, Apel.
Crim. 01113563.3/0-0000-000, Rel. Juiz José Henrique Rodrigues Torres.
281
Sobre a necessidade de haver-se dignidade penal para que um determinado valor possa ser objeto
de tutela, vide: REALE JR., Miguel. Instituições de direito penal, vol. I. Rio de Janeiro: Forense,
2002, p. 22.
282
Sobre as noções de dignidade penal e carência de tutela penal, vide: ANDRADE, Manuel da Costa.
“A Dignidade penal e a carência de tutela penal como referência de uma doutrina teleológico-racional
do crime”. In: Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 2º. Lisboa: abr/jun/1992, p. 173 et seq.
283
GOMES, Mariângela G. de Magalhães. “Notas sobre a inidoneidade constitucional da
criminalização do porte e do comércio de drogas”. In: REALE JR., Miguel. PASCHOAL, Janaína
Conceição. Drogas: aspectos penais e criminológicos – primeiro encontro de mestres e doutores do
85
também do ponto de vista da criminologia a intervenção penal sobre esses
comportamentos é extremamente questionável.
Departamento de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.
94-106.
284
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 43-47;
GARCIA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Criminologia, 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002, p. 71.
285
Lembre-se que a quantidade de dependentes de drogas é extremamente pequena se comparada ao
universo de pessoas que a consomem sem maiores implicações à sua vida pessoal a prefissional.
86
desaprovados, mas amplamente desejados286. E, como é evidente, essa circunstância
contribui para a ocorrência de uma notável disparidade entre a quantidade de delitos
havidos e a quantidade de delitos de que se toma conhecimento em um determinado
tempo e local, exsurgindo o fenômeno da cifra oculta da criminalidade (cifra negra).
286
CERVINI, Raul. Os Processos de descriminalização, 2ª ed. Trad. Luiz Flávio Gomes. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002, p. 208.
287
REALE JR., Miguel. Instituições de direito penal, vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 25.
288
CERVINI, Raul. Op. cit., p. 183.
289
GARCIA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Criminologia, 4ª ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002, p. 366.
87
sociais conseguintes, como o caso das subculturas delinqüentes290 e das carreiras
criminais291.
290
Idem, ibidem, p. 363 et seq.; SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005, p. 241 et seq.
291
GARCIA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Op. Cit., p. 490-492; Nosso, “Breve estudo acerca da
atuação das instâncias de controle social formal e informal”. In: Ultima Ratio, ano 1, n. 1. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 499-500..
88
4. LIBERDADE INDIVIDUAL VERSUS PATERNALISMO
LEGAL
292
Vide supra, cap. 3.
293
MILL, John Stuart. On Liberty and other essays. Oxford: Oxford University Press, 1991, p. 14.
294
Sobre a contextualização da vida atual na sociedade complexa, vide supra, item 4.1.1.
295
Convém anotar, de toda sorte, que as limitações impostas pelo Estado a tais liberdades é feita
através da utilização de normas de controle meramente administrativo, não ocorrendo a aguda tutela
penal – inclusive, evidentemente, no caso do não recolhimento de tributos, que necessariamente
requer a concorrência do elemento fraude para que seja erigido à categoria de delito. A lógica não é a
mesma, porém, no caso da intervenção estatal sobre os consumidores de psicoativos.
296
Em português, ‘princípio do dano a terceiro’, ou, ainda, ‘princípio da ofensa a terceiro’. MILL,
John Stuart. Op. cit., chap. IV, passim. Cabe observar, aqui, que a concepção material de crime
prevalente no pensamento jurídico anglo-americano desde o século XIX repousa justamente na
doutrina do princípio do dano (harm principle), fundada nas idéias pioneiras de Stuart Mill e
atualmente apoiada, em grande medida, no pensamento jusfilosófico de Feinberg. No direito europeu
89
intervenções classificáveis de paternalistas –, entretanto, parece permitir que, sem
necessariamente se opor ao seu pensamento nuclear, tencione-se legitimar a
incriminação do mero consumo de drogas com base no argumento de sua pretendida
nocividade social.
continental, por influência da doutrina penal italiana, o termo ‘ofensividade’ (offensività) obteve maior
aceitação durante o desenvolvimento do conceito material do delito, acabando por se imbricar com a
própria noção de proteção de bens jurídicos, consoante exposto supra (cap. 4.1). A respeito, vide:
DIAS, Jorge de Figueiredo. Op. cit., pp. 109-110.
297
Tais comportamentos, de fato, não são contemplados pela tutela do direito penal no Brasil e em
grande parte dos demais países.
298
FEINBERG, Joel. The Moral limits of the Criminal Law, vol. 3: Harm to self. Oxford: Oxford
University Press, 1989, p. 23. Disponível [on-line] em: Oxford Scholarship Online,
<http://oxfordscholarship.com/oso/public/content/philosophy/0195059239/toc.html>. Acesso em:
13/09/2004.
299
Já tivemos oportunidade de nos manifestar introdutoriamente acerca do paternalismo legal, com
apoio nas teses de Mill e Feinberg, em: TAFFARELLO, Rogério Fernando, Da Legalização das
drogas como instrumento de política criminal. Tese de láurea apresentada à Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo. São Paulo: FDUSP, 2004, pp. 70-71.
300
Constituição Federal, art. 5º, esp. inc. IV, VI, VIII, IX, X e, por extensão, inc. XI e XII.
301
TAFFARELLO, Rogério Fernando. Op. cit., p. 71.
90
faculta ao atingido dissentir da intervenção que se lhe impõe302. Conquanto
pretendam possuir um nobre propósito de proteção dos administrados, revelam-se
temerárias à medida que esse propósito possa se prestar para ocultar outros de caráter
questionável, como a salvaguarda de determinadas codificações morais que,
consideradas em si mesmas, não se mostrariam dignas de tutela penal. Nessa medida,
intervenções paternalistas não constituiriam senão um pretexto para a imposição
ilegítima de padrões morais a indivíduos não submetidos a determinados modelos de
comportamento desejados pelo status social dominante303. Independentemente,
porém, de uma intervenção legal paternalista servir ou não a uma ocultação de seu
verdadeiro propósito, é inegável que supõe a impossibilidade de se considerarem os
indivíduos adultos componentes do tecido social como plenamente responsáveis
pelos próprios atos e suas conseqüências. Desta constatação decorre, efetivamente,
um certo e apriorístico – e, ademais, claramente justificado – ceticismo doutrinário
ante a existência de intervenções penais paternalistas304.
Por conseqüência, mesmo aquelas pessoas que adotam um estilo de vida que
possa ser considerado caótico para os padrões médios sociais devem ser vistas como
sujeitos racionais e competentes para sua autodeterminação, com condições de
desenvolverem uma concepção de vida própria e coerente com seus intentos, visto
que dotados de possibilidades de auto-reflexão e assunção das responsabilidades
implicadas por seus atos305.
Não se deve a priori estabelecer, contudo, que uma tal reflexão seja suficiente
para definir eventual ilegitimidade de da intervenção penal sobre este ou aquele
comportamento; deveras, há que se reconhecer a ocorrência de uma presunção
contrária à validade e plausibilidade de qualquer intervenção que traga em seu bojo
302
VON HIRSCH, Andrew. “Paternalismo direto: autolesões devem ser punidas penalmente?”. Trad.
Helena Regina Lobo da Costa. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 67. São Paulo: Revista
dos Tribunais, jul-ago/2007, p. 13.
303
A esse respeito, manifestam-se Zaffaroni e Batista: “O estado que pretende impor uma moral é
imoral, porque o mérito moral é fruto de uma escolha livre diante da possibilidade de optar por outra
coisa: carece de mérito aquele que não pôde fazer alguma coisa diferente. Por essa razão, o estado
paternalista é imoral. Em lugar de pretender impor uma moral, o estado ético deve reconhecer o
âmbito de liberdade moral, possibilitando o mérito de seus cidadãos, que surge quando eles têm a
disponibilidade da alternativa imoral [...]”. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA,
Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Op. cit., p. 225.
304
VON HIRSCH, Andrew. Op. cit., p. 13.
305
Idem, ibidem, p. 15.
91
fortes contornos de paternalismo legal306. Todavia, uma intervenção que pareça
meramente paternalista pode, de outra parte, ser legitimada por outros critérios
igualmente idôneos a autorizar a tutela da norma penal307, ainda que sua potencial
legitimação se veja enfraquecida sob o ponto de vista filosófico-liberal308. É fato,
outrossim, que sanções que se afigurem meramente paternalistas possam ter o
legítimo escopo de tutelar situações em que pessoas, hipossuficientes em alguma
medida, não hajam genuinamente consentido com o risco a que se expõem, o que
torna inválido tal consentimento e reclama a proteção institucional de seu
interesse309. Tampouco se afirme, peremptoriamente, que, em casos em que se
verifique a inaceitabilidade da intervenção jurídico-penal sobre a esfera de liberdade
do cidadão, não possa haver o controle oficial através de outras formas menos agudas
de regulação jurídica310; estas, ao revés, uma vez observando-se os demais princípios
norteadores do direito punitivo em um Estado democrático e social, podem se
mostrar bastante adequadas a certas situações determinadas.
306
Idem, ibidem, p. 14.
307
ESTELLITA, Heloisa. “Paternalismo, moralismo e direito penal: alguns crimes suspeitos em nosso
direito positivo”. In: Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, ano 15, n. 179. São Paulo:
IBCCRIM, out/2007, p. 18.
308
Idem, ibidem, p. 18.
309
Idem, ibidem, pp. 17-18.
310
Apontando uma resistente carência de desenvolvimento doutrinário acerca do paternalismo legal
em diversos aspectos, Von Hirsch lembra, inicialmente, que “a discussão sobre o paternalismo nos
anos 80 deu pouca atenção à questão acerca de quais podem ser as diferenças fundamentais entre
proibições paternalistas no direito penal e em outras formas de intervenções estatais coativas
(exemplificativamente, as do direito civil ou do direito administrativo) que se direcionem a impedir
comportamentos autoprejudiciais”. VON HIRSCH, Andrew. Op. cit., p. 14. Mais à frente, pondera:
“segundo meu julgamento, existem problemas específicos quando se acionam sanções penais, ainda
que o modelo de um paternalismo limitado possa justificar intervenções coercitivas estatais de outras
naturezas (por exemplo, de natureza civil ou administrativa)”. Idem, ibidem, p. 18. E, finalmente,
arremata: “Se minha argumentação anterior, que se concentrou na característica de censura da sanção
e na inapropriação da censura penal para comportamentos autoprejudicias, está correta, seria possível
argumentar que, tendo em vista, por exemplo, a baixa gravidade da sanção relativa à obrigação de usar
cinto de segurança, não existiria uma reação verdadeiramente de censura nos termos do direito penal
tradicional. No direito alemão, tais formas de comportamento seriam frequentemente consideradas
infrações contra-ordenacionais (Ordnungswidrigkeiten) e não exprimiriam, por isso, uma verdadeira
censura penal”. Idem, ibidem, pp. 26-27.
92
indiciariamente parece claro estar-se diante de um exemplo de indevida intervenção
paternalista311 direta312. A questão se torna um pouco mais complexa se se considera
que o âmbito de proteção da norma penal incriminadora do consumo de substâncias
tóxicas deva se estender à prevenção de ofensas colaterais resultantes de tal
consumo, como é o caso dos já observados males sociais que se supõe mantenham
relação de simples causa/efeito com o uso de psicoativos. Trata-se aqui, portanto, de
eventual prevenção de possíveis vitimizações futuras de terceiros, com o que o
escopo da incriminação do porte de drogas para uso próprio passaria a albergar o
evitamento de potenciais delitos como furtos, vandalismos, lesões corporais e até
homicídios, entre outros. Nesse mister, discute-se se as lesões causadas
mediatamente deveriam dar causa a uma antecipação da tutela penal com base na
alegada natureza criminógena do consumo de psicoativos313.
311
ESTELLITA, Heloísa. Op. cit., p. 18.
312
Von Hirsch explica a diferença existente entre o paternalismo legal direto e o paternalismo
indireto: enquanto que este tenciona proteger o interesse de uma pessoa ante lesão causada por
outrem, ainda que genuinamente consentida, o primeiro pretensamente protege o interesse de alguém
sobre eventual lesão causada por si próprio – razão pela qual o professor de Frankfurt e Cambridge
não admite a sua justificação em sede de direito penal. VON HIRSCH, Andrew. Op. cit., esp. pp. 12-
13; 23-26.
313
Idem, ibidem, p. 25.
314
Idem, ibidem, p. 25. Sobre o fundamento do princípio da responsabilidade penal própria (pessoal),
Cirino dos Santos, com referências a Baratta, aponta ser “a culpabilidade, como expressão do
princípio nulla poena sine culpa (derivado do art. 5º, LXII, CR, que institui a presunção de inocência),
indicada pelas condições pessoais de saber[-se] o que faz (imputabilidade), de conhecimento real do
que [se] fez (consciência da antijuridicidade), e do poder concreto de não [se] fazer o que [se] fez
(exigibilidade de comportamento diverso), que estruturam o juízo de reprovação do conceito
normativo de culpabilidade: somente a culpabilidade pode fundamentar a responsabilidade penal
pessoal para a realização do tipo de injusto”. SANTOS, Juarez Cirino. Op. cit., pp. 31-32 (grifos do
originial). Ainda a respeito do mesmo princípio, ora tratado como princípio da intranscendência ou
transcendência mínima e compreendido de uma maneira mais ampla, vide: ZAFFARONI, Eugenio
Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Op. cit., pp. 232-233.)
315
E que, de tão elementar e incontroverso, nem mesmo mereceu ser abordado no capítulo deste
trabalho que discute a principiologia do direito penal (supra, cap. 4).
316
A respeito, em nosso ordenamento, art. 13 do Código Penal.
93
não detém controle ao tempo de sua ação, objeção que remanesce válida ainda que,
mediante decisões futuras, o mesmo ator possa vir a concorrer para a prática de tais
lesões317. Com isso, não se exclui a adequada e necessária responsabilização penal
sobre casos em que o agente original, desde logo, apresente desígnio concorrente
com a decisão futura de causação da ofensa; ao mesmo tempo, permite-se refutar
toda intervenção estatal que revele a ilegítima expressão de um paternalismo penal
direto318.
317
VON HIRSCH, Andrew. Op. cit., p. 26.
318
Idem, ibidem, p. 26.
94
5. INEFICÁCIA MANIFESTA DA CRIMINALIZAÇÃO DO
COMÉRCIO DE DROGAS ANTE OS FINS A QUE SE PROPÕE
(o war on supply, o paradoxo dos lucros e o efeito hidra)
319
BERTRAM, Eva; BLACHMAN, Morris; SHARPE, Kenneth; ANDREAS, Peter. Drug war
politics: the price of denial. Berkeley - Los Angeles - London: University of California Press, 1996,
pp. 09 et seq.
320
A esse respeito, analisando criticamente cada uma das teorias sobre as finalidade da pena, Ferrajoli,
ao tratar da prevenção geral negativa, assinala a sua ineficácia recorrendo, inclusive, ao caso do
consumo de psicoativos como ilustração de seu argumento: “[...] inclusive no aborto ou no consumo
de estupefacientes se admite que as penas, como parece demonstrado por investigações empíricas
comparadas, são completamente ineficazes para preveni-los”. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón –
teoría del garantismo penal, 4ª ed. Trad. Perfecto Andrés Ibáñez et. al. Madrid: Editorial Trotta, 2000,
p. 280. Trad. livre do esp. para o port.
321
BERTRAM, Eva; BLACHMAN, Morris; SHARPE, Kenneth; ANDREAS, Peter. Op. cit., p. 13 et
seq.
95
dizer, tem ocorrido de modo consistente em toda a história desde as primeiras
descobertas de seus efeitos322 –, sejam elas lícitas ou ilícitas, o seu mercado se torna
extraordinariamente lucrativo para produtores, distribuidores e comerciantes,
precisamente pelo fato de serem os produtos mais escassos – e mais caros – do que o
seriam acaso não fossem proibidos323.
322
Vide supra, cap. 3.1.
323
A respeito, os pesquisadores da Universidade da Califórnia citam dois casos exemplares de seu
estudo de 1996: à época, 1g de cocaína pura, se adquirido legalmente para fins medicinais, custaria
entre US$ 15,00 e US$ 20,00, ao passo que, no mercado ilegal norte-americano, a mesma quantidade
sairia por um prelo médio de US$ 143,00; de outra parte, constataram que os 330kg de folhas de coca
necessários para se produzir 1kg de cocaína pura rendiam cerca de US$ 110,00 ao seu produtor rural
na Bolívia, e, após feito o seu processamento, refino e finalização, a mercadoria era vendida em
Miami, ainda no atacado, por algo entre US$ 16.000,00 e US$ 25.000,00, podendo chegar a atingir,
após fracionada em pequenas porções, no varejo das ruas das grandes cidades dos EUA, as
impressionantes cifras de entre US$ 70.000,00 e US$ 300.000,00. BERTRAM, Eva; BLACHMAN,
Morris; SHARPE, Kenneth; ANDREAS, Peter Op. cit., p. 12 et 15.
324
Naturalmente, usuários em situação de dependência ou semi-dependência tendem a considerar
menos o preço da droga na decisão de sua compra do que usuários ocasionais ou potenciais novos
usuários.
325
BARTON, Adrian. Illicit drugs: use and control. London - New York: Routledge, 2003, pp. 92-93;
KUZYEMKO, Ilyana; LEVITT, Steven David. “An empirical analysis of imprisioning drug
offenders”. In: Journal of Public Economics, n. 88. Lausanne: Elsevier - Thomson Scientific, 2004,
pp. 2054-2055. Disponível [on-line] em:
<http://pricetheory.uchicago.edu/levitt/Papers/KuziemkoLevitt2004.pdf>. Acesso em: 10/01/2008;
STORTI, Cláudia Costa; DE GRAWE, Paul. “Globalization and the price decline of illicit drugs”, p.
08. Disponível [on-line] em: <http://www.cesifo-
group.de/pls/guestci/download/CESifo%20Working%20Papers%202007/CESifo%20Working%20Pa
pers%20May%202007/cesifo1_wp1990.pdf>. Acesso em: 10/01/2008.
326
Sobre o conceito econômico e estatístico de elasticidade-preço da demanda, vide: KHEMANI,
Rughvir Shyam; SHAPIRO, Daniel M. Glossary of industrial organisation economics and
Competition Law. Paris: OECD Directorate for Financial, Fiscal and Enterprise Affairs, 2002. pp. 41-
42. Disponível [on-line] em: <http://www.oecd.org/dataoecd/8/61/2376087.pdf>. Acesso em:
10/01/2008.
327
GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Op. cit., pp. 99-100.
96
commodities, porquanto se rege fundamentalmente pela lei de oferta e demanda; por
outro lado, apresenta idiossincrasias que lhe conferem um caráter particular,
especialmente em virtude de dois fatores: a quase estática elasticidade-preço da
demanda, de um lado, e a sua ilicitude, de outro. E a concorrência de tais fatores
propicia o influxo do fenômeno ora analisado: o aumento dos riscos do negócio e a
manutenção do interesse pelo produto implicam um grandioso incremento nas
margens de lucro do mercado ilegal, conseqüência direta da proibição oficial. Desta
forma, quanto mais exitosas as movimentações estatais no sentido da repressão, tanto
maiores resultam os lucros obtidos; estes, a seu turno, funcionam como um enorme
incentivo a que os atores do citado mercado nele permaneçam, e a que outros
negociantes nele se iniciem. E porque se mantém, a despeito de todos os esforços
institucionais, uma considerável oferta do produto no varejo, os preços, conquanto
elevados, jamais atingem patamares suficientemente altos para fazerem cessar a
demanda latente por psicoativos. Paradoxalmente, as próprias estratégias políticas de
combate às drogas acabam por minar a si próprias, na medida em que o aumento de
preços por elas almejado é suficiente para seduzir os seus negociantes, mas
insuficiente para afastar os seus consumidores328.
A ocorrência do efeito hidra330, por sua vez, faz com que as operações
aparentemente bem-sucedidas – e invariavelmente muito custosas – de combate à
328
A esse respeito, manifesta-se Wisotsky: “Se a indústria da cocaína contratasse um consultor para
criar um mecanismo voltado à garantia de sua lucratividade, não poderia ele fazer melhor do que a
guerra às drogas: pressões bastantes para inflacionar preços, mas não o bastante para manter seu
produto fora do mercado”. WISOTSKY, S. Beyond the war on drugs: overcoming a failed public
policy. Buffalo - New York: Prometheus Books, 1990, p. 36. Trad. livre.
329
BERTRAM, Eva; BLACHMAN, Morris; SHARPE, Kenneth; ANDREAS, Peter. Op. cit., p. 15.
330
Explicam Houaiss e Villar que a utilização figurativa do vocábulo hidra designa “fonte inesgotável
de malefícios e destruição”, e tem sua origem na mitologia grega: “h. de Lerna serpente cujas sete
cabeças renasciam ao serem cortadas, destruída por Hércules”. HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro
de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, 1ª reimpr. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004, p.
1527.
97
produção e distribuição de substâncias psicoativas, em vez de apresentarem os
pretendidos resultados de redução das atividades ligadas ao tráfico, apenas acabam
garantido novos mercados a outros atores. Isso porque a supressão de um grupo de
negociadores que domina determinada fatia do mercado é acompanhada de sua
substituição por outros grupos, seduzidos pelas altas lucratividades e pela pressão da
demanda em relação à súbita escassez de oferta.
331
BERTRAM, Eva; BLACHMAN, Morris; SHARPE, Kenneth; ANDREAS, Peter. Op. cit., p. 19.
332
Idem, ibidem, p. 19.
333
Idem, ibidem, p. 19.
334
Idem, ibidem, p. 19.
335
“Inside dope: the unstoppable economics of a booming process”. In: Forbes. New York: Forbes,
28/10/2003, p. 146.
98
produção de cocaína em outros países andinos como, especialmente, a Bolívia e o
Peru336.
Cumpre assinalar, não obstante, que a mesma lógica do efeito hidra se repete
no combate às drogas verificado no varejo das grandes cidades: nelas, o estouro de
determinados pontos de venda provoca a emergência de outros, assim como a
neutralização de determinados grupos de comerciantes ilegais possibilita o
aparecimento de outros a substituírem-nos e gozarem desse lucrativo negócio.
336
BERTRAM, Eva; BLACHMAN, Morris; SHARPE, Kenneth; ANDREAS, Peter. Op. cit., p. 19.
337
Importa anotar, outrossim, que a constatação de que houve, nos últimos anos, uma sensível redução
nos preços de psicoativos ao consumidor final nos mercados internacionais não vem a contestar as
observações acima desenvolvidas; antes, mais parecem confirmá-la, pois denotam uma possível
estabilização da demanda internacional por drogas ao passo que a oferta continua a crescer,
certamente em virtude dos lucros sedutores (paradoxo dos lucros) e a despeito das contínuas
interceptações dos órgãos de repressão oficial (efeito hidra). Ainda, é de se notar que as
impressionantes margens de lucro forjadas pela repressão conferem grande elasticidade-preço à oferta
de drogas, sendo que, ainda que a competição exija a sua deflação no varejo, o negócio continue sendo
deveras atrativo economicamente (a respeito, vide supra, nota 120).
99
6. TENDÊNCIA ALTERNATIVA EMERGENTE: O ATUAL
TRATAMENTO DA MATÉRIA NA EUROPA
Trad. Berveley Jackson. Amsterdam: Mets & Schilt – CEDRO, 2002, p. 15. Segundo o
autor, em 2002 a participação da União Européia no orçamento do UNDCP atingira
70%.
100
Assim, já na Sessão Especial da Assembléia Geral das Nações Unidas
342
(UNGASS ) de 1998, pôde-se notar algum influxo da visão européia de atuação
particular sobre a demanda – de que derivam as políticas de redução de danos –
como contraponto à tradicional abordagem repressiva ali prevalente, a qual foi
historicamente influenciada pelas políticas da DEA norte-americana. Deste modo,
verificou-se desde então a incorporação em sede multilateral da noção de que se deve
trabalhar para reduzir os efeitos negativos do uso de drogas, algo que, efetivamente,
identifica-se com aquelas políticas européias – malgrado o órgão internacional, tal
como os EUA, obviasse a reprodução da expressão redução de danos343. O mesmo se
diga quanto à consolidação, após a UNGASS, do princípio da responsabilidade
compartilhada entre as nações acerca da oferta e da demanda por drogas, que
significou uma relativização da idéia – igualmente assentada, década antes, pelos
EUA – de que os países centrais eram vitimados pelos países periféricos
responsáveis pela produção e oferta344.
Trad. Berveley Jackson. Amsterdam: Mets & Schilt – CEDRO, 2002, p. 16.
101
princípio político-jurídico essencial das ordens democráticas, não raro consagrado
constitucionalmente, segundo o qual somente compete ao Estado nacional legislar
em matéria penal, o que impede uma legislação unificada supranacional – embora
não impeça que diretrizes supranacionais influenciem, direta ou indiretamente, o
âmbito jurídico interno dos Estados-partes346.
346 A respeito das implicações dos processos de integração sobre o direito penal
interno, tomando-se em consideração os específicos casos da União Européia e do
Mercosul, vide: ESTELLITA, Heloísa. Integração regional e direito penal. Tese de
doutoramento apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,
2004, passim. Convém lembrar, outrossim, que, se uma legislação comunitária em
matéria penal ainda não é possível, a cooperação policial e judicial em matéria
penal constitui um dos três pilares sobre os quais se assenta a integração européia
(a respeito: LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Globalização, regionalização e
soberania. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 188; BOEKHOUT VAN SOLINGE, Tim.
Op. cit., p. 19-40), e que teóricos daquele continente já discutem possibilidades de
atribuição futura de competência legislativa penal no âmbito da UE (DIAS, Augusto
Silva. “De que direito penal precisamos nós europeus? Um olhar sobre algumas
propostas recentes de constituição de um direito penal comunitário”. In: COSTA,
José de Faria; SILVA, Marco A. Marques da. Direito penal especial, processo penal e
direitos fundamentais: visão luso-brasileira. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 337).
347 RODRIGUES, Luciana Boiteux de F. Controle penal sobre as drogas ilícitas: o
102
daqueles países consiga atingir previamente dentro do próprio bloco. Por ora, e ao
menos por algum tempo, é certo que, embora hajam logrado integrar parte do
tratamento da matéria e apresentem elevado grau de cooperação entre si para o
cumprimento de suas diretrizes, remanescem essencialmente divididos na formulação
e execução de políticas de prevenção e repressão349.
Toxicodependência (OEDT).
353 A estratégia estabelecida pelo Conselho da UE para os anos de 2005 a 2012,
104
No tocante a pontos de intersecção observados entre as diferentes
políticas internas dos países membros, ressaltam-se, desde logo, a quase unanimidade
com que se aplica institucionalmente as políticas de redução de danos362, bem como
os processos e tendências de despenalização ou descriminalização da conduta do
mero usuário 363. Há ainda, em geral, a tendência à diferenciação da resposta
dependentemente do tipo de droga envolvido em cada caso concreto364, pelo que
especialmente a cannabis é merecedora de tratamento mais brando, muitas vezes
com autorizações para uso terapêutico365 e até mesmo para pequena produção
doméstica voltada ao consumo pessoal366. De outra parte, o tratamento dispensado ao
comércio de psicoativos ilícitos diferencia, em muitos casos, o agente que vende à
droga com o fim de sustentar seu vício daquele meramente movido pelo lucro367,
sujeitando-se ambos, igualmente, às diferenciações decorrentes da natureza “leve” ou
“pesada” da droga correspondente368.
quanto para comerciantes, são, no mais das vezes, observadas pelos textos
legislativos de diferentes países, mas, outras vezes em que não o são, acabam por
se tornar praxe jurisprudencial – como os casos da Alemanha e da Suíça. Idem,
ibidem., p. 104.
369 Os critérios para tal escolha – arbitrária, de certo modo – repousam a princípio
106
No que toca especificamente ao tratamento legal e penal, o plano
dispõe que previsões e revisões legislativas devem ser feitas à luz das convenções
internacionais e normas comunitárias vigentes, e conforme se entenda necessário 375.
lesividade substancial foi criticada por Böllinger, que condenou a utilização de uma
política criminal baseada no simbolismo no afã de se tentar resolver problemas
sociais. BÖLLINGER, Lorenz. “Symbolic Criminal Law without limits”. Disponível em:
<http://www.drugtext.org/library/articles/94-const.html>. Acesso em: 15/01/2009.
107
uso próprio de pequenas quantidades de cannabis, atentasse-se ao princípio geral de
prevenção de punições excessivas379.
379 European Union. EMCDDA. European Legal Database on Drugs. Contry profile:
em: 15/01/2009.
108
sujeitas apenas a multas (naturalmente, de caráter administrativo) nos termos do art.
32. A produção, cultivo, distribuição e comercialização de substâncias proibidas,
como condutas análogas ao tráfico, inserem-se entre as merecedoras de respostas
mais graves, em especial quando envolvam quantidades “não insignificantes” de
droga; porém, a sua classificação entre aquelas categorias, e, por conseguinte, a
sanção a ser aplicada varia de acordo com a concretude de cada caso, conforme
podem subsumir-se a uma ou mais circunstâncias explicitamente previstas na lei. São
estas, entre outras, a comercialização de substância proibida para menor de 18 anos
(art. 29a, § 1, 1), a inserção de menor no tráfico (art. 30a, §2, 1), a criação de risco
para diversas pessoas (art. 29, § 3, 2), a adesão ao tráfico ilícito na forma de
atividade comercial (art. 30, §1, 2) ou como parte de um bando (art. 30, §1, 1), o
emprego de arma no cometimento da ofensa ou delito relacionado à droga (art. 30ª,
§2, 2).
381 Neste sentido, aceita-se não apenas a suspensão da execução da pena em seu
início, como também a sua interrupção quando o apenado deseje submeter-se a
tratamento.Germany. Federal Ministry of Health. Action Plan on Drugs and
Addiction, p. 42. Disponível em:
<http://www.emcdda.europa.eu/attachements.cfm/att_35452_EN_Germany%20Ac
tion%20plan%202003-%20Englisch.pdf>. Acesso em: 15/01/2009
109
35 apresentem elevado grau de revogação em casos concretos382. A legislação alemã
também estabelece critérios de registro e regulação de terapias médicas de
substituição, bem como regras mínimas para a existência de narco-salas383 – cuja
regulamentação é complementada pela autoridade executiva federal384.
por municipalidades que optem por fazê-lo. De acordo com o Plano de Ação
tedesco, resultados iniciais de avaliações em todo o país indicam sucesso no
propósito de alcançar grupos de heroinômanos raramente acessíveis a outras
políticas, importando em contribuição para a redução de danos à saúde pública.
Germany. Federal Ministry of Health and Social Security. Action Plan on Drugs and
Addiction, p. 38. Disponível em:
http://www.emcdda.europa.eu/attachements.cfm/att_35452_EN_Germany%20Acti
on%20plan%202003-%20Englisch.pdf. Acesso em: 15/01/2009.
384 European Union. EMCDDA. European Legal Database on Drugs. Contry profile:
Germany. Disponível em:
<http://eldd.emcdda.europa.eu/html.cfm/index5174EN.html#B6>. Acesso em:
15/01/2009.
385 Ibidem. Acesso em: 15/01/2009.
110
criminalização secundária do usuário – logrando conferir-lhe maior segurança
jurídica – e em ressaltar a necessidade de não se punirem fatos insignificantes.
6.2. Espanha
386 Spain. Ministry of Interior. National Drugs Strategy 2000-2008, p. 41. Disponível em:
<http://www.emcdda.europa.eu/attachements.cfm/att_35466_EN_Spain%20Strateg
y%202000-2008%20English.pdf>. Acesso em: 15/01/2009.
387 España. Ministerio de Sanidad y Consumo. Plan de Acción 2005-2008, p. 19.
Disponível em:
<http://www.emcdda.europa.eu/attachements.cfm/att_35464_ES_Spain%20Action
%20Plan%202005-2008%20Spanish.pdf>. Acesso em: 15/01/2009.
111
preventivas e de tratamento de usuários, portanto, diferem de uma a outra
comunidade, embora todas devam seguir as orientações postas pelos supracitados
Estratégia Nacional e Plano de Ação, que concentram foco como na busca de
detecção precoce de fatores de risco388, no tratamento precoce389, na reintegração
social e laboral390 e na assistência às famílias de toxicômanos391. Ademais, a
exemplo da experiência alemã, a realização de políticas de redução de danos
merecem especial atenção das autoridades e sociedade espanhola, havendo ali bem-
sucedidos programas de trocas de seringas – inclusive no interior de
estabelecimentos penitenciários –, testes de qualidade de comprimidos em festas
raves, terapias de substituição392 e disponibilização de narco-salas para consumo
seguro393.
2000, p. 1124.
395 A Lei 17/1967 considerou ilegal o consumo e posse de drogas, ainda que para
399 ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa,
2000, p. 1103-1110.
400 DE LA CUESTA ARZAMENDI, José Luis. “La Política criminal en materia de drogas
en España, tras el nuevo Código Penal”. In: Cuadernos de derecho Judicial. Política
criminal comparada, hoy y mañana. Madrid: CGPG, 1999, p. 88.
115
condutas que mereceriam tratamento diverso: o tráfico para fins comerciais e o
tráfico para exclusivo financiamento do consumo de drogas.
6.3. Holanda
117
A lei prevê ressalvas que autorizam, em certas circunstâncias, a
manipulação e administração de drogas para fins médicos, farmacêuticos e
veterinários (art. 5, §§ 1 et 2), bem como exceções a serem outorgadas pelo
Ministério da Saúde Pública e Proteção Ambiental para fins comprovadamente
científicos voltados ao desenvolvimento da saúde pública ou de animais (art. 8).
118
Assim, após a reforma legislativa de 1976, gradualmente emergiram
os coffeeshops como pontos de venda de cannabis. Através de um rígido controle,
tolera-se a existência de tais estabelecimentos com o escopo de afastar a população
jovem, em seus experimentos com a erva, do contato com outras drogas. A venda de
pequenas quantidades de cannabis remanesce tecnicamente como uma infração legal,
mas é tolerada nos coffeeshops desde que observem os seguintes critérios postos pela
procuradoria-geral: (i) nenhuma transação pode envolver mais de 5g por pessoa; (ii)
drogas pesadas não podem ser vendidas sob qualquer circunstância; (iii) drogas não
podem ser objeto de propagandas; (iv) o estabelecimento não pode causar incômodo
à tranqüilidade pública; (v) coffeeshops não podem comercializar bebidas alcoólicas;
(vi) menores de 18 anos não podem adentrá-los, bem como não se lhes pode vender
drogas em nenhuma circunstância 415. Ante a inobservância de tais requisitos, pode o
prefeito municipal determinar o fechamento do estabelecimento nos termos do art.
13b da Lei do Ópio.
415Ibidem. Acesso em: 15/01/2009. Cite-se que, em anos recentes, face a pressões
de países próximos, o governo holandês avalia a possibilidade de obstar o acesso
aos coffeeshops para cidadãos estrangeiros. A respeito: O Estado do Paraná (s.a.).
“UE quer unificar penas e coordenar combate às drogas”, 30/12/2003. Disponível
em: <http://www.parana-online.com.br/editoria/mundo/news/69572/>. Acesso em:
15/01/2009.
119
Crimes patrimoniais cometidos com o fim de financiar o uso de
drogas são incluídos na noção de prevenção a incômodos públicos potencialmente
gerados por usuários, e tendem a merecer tratamento brando dos órgãos de repressão
quando suas circunstâncias concretas denotarem uma reprovabilidade menor – isto é,
pequenos valores envolvidos, ausência de colaboração criminosa, não-reincidência.
Tendência igual é verificada, outrossim, em casos de vendas de pequenas
quantidades de drogas com aquela mesma finalidade – especialmente se se tratar de
drogas leves –, sempre havendo a possibilidade de encaminhamento do envolvido a
instituições de tratamento e reabilitação416.
122
países. Por outro lado, esse modelo tem limitações, e, do ponto de vista lógico, cria
um paradoxo irresolúvel pelo fato de um mesmo bem tornar-se lícito na demanda e
ilícito na oferta.
6.4. Itália
420 Italia. Ministero della Solidarietà Sociale. Piano italiano di azione sulle drogue, p.
05. Disponível em:
<http://www.emcdda.europa.eu/attachements.cfm/att_50769_EN_Italy%20Action%
20Plan%202008.pdf>. Acesso em: 15/01/2009.
421 Ibidem, p. 08-32. Vale mencionar que, comparativamente aos demais países
europeus até aqui analisados, a ênfase conferida pelo plano italiano à importância
de políticas de redução de danos é menor; a própria expressão “redução de
danos” é mencionada uma única vez entre as 51 páginas do documento (p. 43).
422 Ibidem, p. 06-07. Trad. livre.
123
determinando-se a transferência de 75% do pertinente orçamento nacional às regiões
e províncias autônomas423.
423 European Union. EMCDDA. European legal database on drugs - contry profile:
Italy. Disponível em:
<http://eldd.emcdda.europa.eu/html.cfm/index5174EN.html#&pluginMethod=eldd.
countryprofiles&country=IT&language=it>. Acesso em: 15/01/2009.
424 Ibidem. Acesso em: 15/01/2009. Deveras, o estabelecimento de quantidades
fixas como critério diferenciador das condutas de traficante e usuário pode levar a
injustiças flagrantes, como a condenação do último nas penas cominadas à
conduta do primeiro.
425 Ibidem. Acesso em: 15/01/2009.
124
cabendo às autoridades judiciais a verificação concreta da finalidade do ato, de que
depende o correspondente tratamento administrativo ou penal426.
428 European Union. EMCDDA. European legal database on drugs - contry profile:
Italy. Disponível em:
126
Na Itália, também semelhantemente ao caso brasileiro, vige o
princípio da obrigatoriedade da ação, que afasta eventual margem de
discricionariedade do promotor público para arquivar casos que considere de menor
interesse. O mesmo ocorre em sede policial, na medida em que cada ocorrência há
que ser imediatamente relatada ao Ministério Público, que, por sua vez, havendo
materialidade delitiva e indícios de autoria, tem, como visto, o dever de instaurar a
persecução.
<http://eldd.emcdda.europa.eu/html.cfm/index5174EN.html#&pluginMethod=eldd.
countryprofiles&country=IT&language=it>. Acesso em: 15/01/2009.
429 Ibidem. Acesso em: 15/01/2009.
127
alemães e holandeses para afastar o usuário de uma criminalização secundária em
muitos casos despicienda, que poderia ser resolvida também através de multas
administrativas e/ou da reparação de danos.
6.5. Portugal
129
da política de drogas portuguesa, no que foram contempladas por recentes alterações
legislativas. Deste modo, substituiu-se a promotoria pública pela Comissão para a
Dissuasão da Toxicodependência no acompanhamento da execução dos programas
direcionadas a usuários que não tenham envolvimento em delitos violentos (Decreto-
Lei 130-A/2001)436.
Até julho de 2001 o consumo de drogas e a sua posse para tal fim
eram considerados infrações penais para o direito português, resultando em sanções
de até 3 meses de detenção ou multa – em caso de posse de quantidades mais
elevadas para consumo, poder-se-ia chegar a um ano de privação da liberdade. A
entrada em vigor, naquele mês, da Lei 30/2000 representou a descriminalização do
uso e posse para uso de quaisquer substâncias controladas, embora haja mantido a
ilicitude administrativa de tais comportamentos (arts. 1º et 2º)437 438.
130
encaminhá-lo à sobredita Comissão para a Dissuasão da Toxicodependência local.
Cabe a esta, composta por um advogado, um médico e um assistente social avaliar a
situação do sujeito sob o ponto de vista do tratamento que possa merecer. Eventual
imposição de sanção administrativa, conquanto possível neste momento, não é a
prioridade central439. Destarte, às autoridades responsáveis pela repressão incumbe
concentrar-se no combate à oferta de drogas.
439 European Union. EMCDDA. European legal database on drugs - contry profile:
Portugal. Disponível em:
<http://eldd.emcdda.europa.eu/html.cfm/index5174EN.html#&pluginMethod=eldd.
countryprofiles&country=PT&language=pt>. Acesso em: 15/01/2009.
440 Art. 41 do Decreto-Lei 15/93, integralmente revogado.
441 Aquele que trafica exclusivamente para sustentar seu consumo pessoal.
442 Aquele cuja conduta, segundo a norma, vê sua ilicitude reduzida ante “os meios
445 United Kingdom. Home Secretary. Drugs: protecting families and communities –
the 2008 drug strategy, p. 14-20. Disponível em:
<http://www.emcdda.europa.eu/attachements.cfm/att_50809_EN_UK%20Strategy%
202008-2018.pdf >. Acesso em: 15/01/2009.
446 Ibidem, p. 21-26. Acesso em: 15/01/2009.
447 Ibidem, p. 27-32. Acesso em: 15/01/2009.
448 Ibidem, p. 33-36. Acesso em: 15/01/2009.
449 . North Ireland. Department of Health, Social Services and Public Safety. New
reduce harm: the substance misuse strategy for Wales 2008-2018. Disponível em:
<http://www.emcdda.europa.eu/attachements.cfm/att_50808_EN_Wales%20Strate
gy%202008-2018.pdf>. Acesso em: 15/01/2009.
133
Um dos mais importantes objetivos da política britânica é propiciar a
quem apresente problemas relacionados a uso de drogas a manutenção de vidas
saudáveis e distantes da criminalidade, estabelecendo-se metas ambiciosas para
ampliar a adesão aos programas de assistência. Para o seu cumprimento criou-se a
Agência Nacional de Tratamento do uso Indevido de Drogas, cujo escopo é atuar em
conjunto com o Departamento do Interior e o Departamento de Saúde possibilitando
acesso imediato a tratamento de alta qualidade a qualquer pessoa que dele necessite
em todo o país 452. Essa agência regulatória ainda tem sob sua competência a
avaliação da qualidade de cada modalidade de tratamento, bem como a coordenação
– e otimização – do orçamento unificado de todos os órgãos executivos encarregados
do controle de drogas no país (polícias, instituições penitenciárias, governos locais e
autoridades de saúde) 453.
452 European Union. EMCDDA. European legal database on drugs - contry profile:
United Kingdom. Disponível em:
<http://eldd.emcdda.europa.eu/html.cfm/index5174EN.html#>. Acesso em:
15/01/2009.
453 Ibidem. Acesso em: 15/01/2009.
454 A respeito, vide: REGHELIN, Elisângela Melo. Redução de danos: prevenção ou
estímulo ao uso indevido de drogas injetáveis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002,
p. 80-83.
455 European Union. EMCDDA. Op. cit. Acesso em: 15/01/2009.
134
investimentos em tratamento para usuários condenados pela prática de delitos, e
procurado desenvolver um rol inovador de intervenções no sistema de Justiça
criminal e execuções penais para identificar usuários e oferecer-lhes assistência
adequada456. Assim, entre outras medidas, no início do atual decênio implementou-se
com sucesso um programa com vistas a que todas as forças policiais tivessem, em
cada cárcere do país, funcionários envolvidos em programas de assistência para
drogaditos que pudessem, já desde o primeiro contato com um usuário detido por
qualquer delito, encorajá-lo a ingressar em tais programas457.
Justice and Court Services Act (2000), art. 47. A realização compulsória de exames
toxicológicos pode ocorrer, nos termos da lei, tanto para apenados presos quanto
para os que estejam em livramento condicional, bem assim para detidos
cautelarmente. Ademais, acerca de exames toxicológicos compulsórios, vale
mencionar que o Drug Act de 2005 possibilitou a sua realização também em
hipóteses de detenção cautelar, com o fim de submeter a tratamento todos
quantos apresentam resultado positivo.
459 European Union. EMCDDA. European legal database on drugs - contry profile:
137
do lucro auferido pelo agente com o delito, para que valor correspondente seja objeto
de confisco. Ao proceder a tal estimativa, permite-se às cortes estabelecer a
presunção – relativa – de que todos os ativos do agente ao tempo da condenação,
somado a quaisquer propriedades que tenham sido suas em algum momento dos seis
anos anteriores, possam formar o proveito da atividade delituosa e, portanto, ser
objeto de confisco (art. 2 cc. art. 4)469.
469 Outrossim, não é demais observar que tal procedimento pode haver mesmo que
não haja sido pleiteado pela acusação – bastando, apenas, que a corte o
entenda devido (art. 2, 1, “b”).
470 Nos termos do art. 33, 3, se preenchidos os requisitos para a proibição, ela deverá
ser imposta por um período não inferior a dois anos após a soltura do apenado.
471 European Union. EMCDDA. European legal database on drugs - contry profile:
138
em que a natureza da droga e sua classificação tornam-se menos importantes para
fins de atribuição de sanção473.
Ainda no que concerne às listas, note-se que, em via de regra, são elas
estabelecidas em leis em sentido estrito (casos da Alemanha, Holanda, Itália,
Portugal e Reino Unido). Isso previne o problema de a norma penal incriminadora
ser completada por norma regulamentar ou portaria emanada do Poder Executivo –
caso do direito brasileiro –, conferindo-se maior segurança jurídica aos cidadãos e
evitando-se maiores questionamentos acerca da conformidade, nesse particular, da
figura típica com o princípio da legalidade. Não obstante, embora pudesse ser óbvio,
vale lembrar que, para o direito europeu, todo rol de substâncias consideradas
140
proibidas é taxativo, não se podendo impor as sanções referentes ao controle de
drogas a condutas que envolvam substâncias outras, como ocorre atualmente no país
modelo e propulsor do proibicionismo 475.
143
devem integrar um direito sancionador de natureza administrativa. A regulação que
se pode sugerir à sua produção e comercialização seria semelhante àquela atualmente
merecida por medicamentos controlados: fiscalização permanente, proibição de
propaganda, controles administrativos.
144
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