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ROGÉRIO FERNANDO TAFFARELLO

DROGAS: FALÊNCIA DO PROIBICIONISMO E


ALTERNATIVAS DE POLÍTICA CRIMINAL

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

ORIENTADOR: PROF. TITULAR MIGUEL REALE JUNIOR

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE DIREITO

SÃO PAULO, 2009


ROGÉRIO FERNANDO TAFFARELLO

DROGAS: FALÊNCIA DO PROIBICIONISMO E ALTERNATIVAS DE


POLÍTICA CRIMINAL

Dissertação apresentada ao Departamento de


Direito Penal, Criminologia e Medicina
Forense da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo para a obtenção do
título de mestre em direito.

Área de concentração: direito penal e


criminologia.

Orientador: Prof. Titular Miguel Reale Junior

SÃO PAULO

2009
Taffarello Rogério Fernando

Drogas : falência do proibicionismo e alternativas de política

criminal / Rogério Fernando Taffarello. – São Paulo : R. F. Taffarello,


2009.

153 p. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito da USP, 2009.

Orientador: Prof. Titular Miguel Reale Jr.

Notas de rodapé

Inclui bibliografia.

1. Drogas de abuso 2. Direito penal 3. Criminologia


4. Política criminal 5 História I. Título.

CDU
343.575(091)(043)
Resumo

TAFFARELLO, R. F. Drogas: falência do proibicionismo e alternativas de política


criminal. 2009. 155p. Dissertação (mestrado em direito) – Faculdade de Direito,
Universidade de São Paulo.

O presente trabalho analisa a evolução das relações entre drogas e seres humanos e
seu estatuto jurídico, com ênfase na emergência do modelo político proibicionista
durante o século XX. Critica a imposição desse modelo ao mundo, por sua
ilegitimidade mesma e por suas desastrosas conseqüências jurídicas e sociais. Na
busca de uma alternativa ao proibicionismo, examina modelos políticos e textos
legislativos de países mais avançados na matéria, a fim de sugerir um novo
paradigma jurídico e político de regulação de drogas ao Brasil.

Palavras-chave: Drogas. Direito Penal. Criminologia. Política Criminal. História.

Sintesi

TAFFARELLO, R. F. Sulle Drogue: fallimento del proibizionismo ed alternative di


politica criminale. 2009. 155p. Dissertação (mestrado em direito) – Faculdade de
Direito, Universidade de São Paulo.

Il presente lavoro analizza l’evoluzione delle relazioni tralle drogue ed esseri umani
ed il suo statuto legale, con enfasi sulo sviluppo del modello politico proibizionista
durante il Novecento. Il lavoro critica l’imposizione di questo modello al mondo, per
la sua illegitimità stessa e per le sue disastroese conseguenze giuridiche e sociali. In
cerca di una alternativa al proibizionismo, discute modelli politici e texti legali di
paesi più avanzati nel tema, affinché proponga un nuovo paradigma giuridico e
politico di controllo di drogue al Brasile.

Parole chiavi: Drogue. Diritto Penale. Criminologia. Politica Criminale. Storia


LISTA DE ABREVIATURAS

DEA – Drug Enforcement Administration

EUA – Estados Unidos da América

EMCDD – European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction

FBN – Federal Bureau of Narcotics

OEDT – Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência

OMS – Organização Mundial de Saúde

ONU – Organização das Nações Unidas

MDMA – 3,4 metilenodioximetanfetamina (ecstasy)

NSDD - National Security Directive on Narcotics and National Security

THC - Tetrahidrocanabinol

UE – União Européia

UNDOC – United Nations Office on Drugs and Crime

WHO – World Health Organization


SUMÁRIO

Introdução ...............................................................................................................7
1. Reflexões iniciais ...............................................................................................15
1.1. Aproximação do problema ............................................................................18
1.2 Sobre as drogas legais universais – o álcool e o tabaco...................................20
1.2.1. Álcool ....................................................................................................20
1.2.2 Tabaco ....................................................................................................26
1.2.3. Reflexões críticas ...................................................................................29
2. Análise histórica do consumo, da oferta e do tratamento legal .......................32
2.1. Antecedentes: da Antiguidade à modernidade ...............................................32
2.2. O capitalismo e as drogas..............................................................................36
2.3. Século XX: disseminação do consumo e conseqüente crise social .................38
2.4. O século XX e o influxo do proibicionismo ..................................................44
2.4.1. Moralismo puritano e higienização social como fundamentos de
elaboração de políticas legais repressivas .........................................................45
2.4.2. Da sanidade social às ideologias da segurança........................................54
2.4.3. Anos 70: repressão de drogas como assunto de segurança nacional, e
posterior exportação da guerra às drogas sob a forma de intervencionismo
militarista.........................................................................................................64
3. O Modelo legislativo positivo da repressão a drogas .......................................80
3.1. Tutela de drogas e principiologia penal .........................................................82
3.2. Algumas considerações de índole criminológica ...........................................86
4. Liberdade individual versus paternalismo legal...............................................89
5. Ineficácia manifesta da criminalização do comércio de drogas antes os fins a
que se propõe (o war on supply, o paradoxo dos lucros e o efeito hidra) ..............95
6. Tendência alternativa emergente: o atual tratamento da matéria na Europa100
6.1. Alemanha ...................................................................................................106
6.2. Espanha ......................................................................................................111
6.3. Holanda ......................................................................................................116
6.4. Itália ...........................................................................................................123
6.5. Portugal ......................................................................................................128
6.6. Reino Unido ...............................................................................................133
6.7. Reflexões ulteriores ....................................................................................140
7. Reflexões conclusivas ......................................................................................143
Bibliografia..........................................................................................................145
INTRODUÇÃO

Entre os mais polêmicos objetos de tutela do direito penal figuram, já


desde muito, as condutas relacionadas ao uso e ao comércio de substâncias
psicoativas ilícitas. Considerável parcela da população mundial consome estas
substâncias, regularmente ou não. Fazem-no pelas mais diversas razões, sejam elas
culturais, medicinais, psicológicas, ou mesmo para fins meramente recreativos. E a
sua utilização é notada desde a Antiguidade1, sendo muito pouco provável que, de lá
para cá, o consumo de tais substâncias tenha deixado de ocorrer em algum momento
da história.

Diversas definições há para o que se costuma chamar de drogas. A


Organização Mundial de Saúde (OMS), anos atrás, manifestou-se pela impropriedade
dos termos toxicomania, hábito e entorpecente, sugerindo a utilização de,
respectivamente, dependência e drogas que produzem dependência2, o que, porém,
mereceu críticas – a nosso ver inexatas – pelo fato de ser insuficiente para discernir
entre drogas lícitas e ilícitas3. A farmacologia moderna, entretanto, desde meados do
século XX recomenda o uso da terminologia psicoativos4, que preferiremos utilizar
nestas páginas, embora sem necessariamente excluir o recurso aos demais vocábulos5

1
Vide infra, cap. 4. Ilustrativamente, mencione-se a observação do pioneiro farmacologista alemão
Ludwig Lewin, o qual, no século XIX, referindo-se às drogas, assinalou que “com a única exceção dos
alimentos, não existe na Terra substâncias que estejam tão intimamente associadas com as vidas dos
povos e em todos os tempos”. Apud CARNEIRO, Henrique. “A Odisséia psiconáutica: a história de
um século e meio de pesquisas sobre plantas e substâncias psicoativas”. In: LABATE, Beatriz Caiuby;
GOULART, Sandra Lucia (orgs.). O Uso ritual das plantas de poder. Campinas: Mercado de Letras,
2005, p. 57.
2
A respeito, vide: GRECO FILHO, Vicente. Tóxicos: prevenção – repressão, 11ª ed. São Paulo:
Saraiva, 1996, p. 04.
3
Cremos que tal se deva simplesmente ao fato de não haver como diferenciá-las por sua natureza, mas
apenas pelo critério arbitrário do tratamento legal a elas dispensado, o que, a nosso ver, eximiria a
OMS de uma suposta necessidade de discernir entre umas e outras.
4
GOULART, Sandra Lucia et al. “Introdução”. In: LABATE, Beatriz Caiuby; GOULART, Sandra
Lucia (orgs.). Op. cit., p. 30. Atualmente, a própria Organização Mundial de Saúde consagra
correspondente conceituação: “substâncias psicoativas são aquelas que, quando consumidas ou
administradas ao organismo, afetam processos mentais como cognição ou sentimentos. Essa expressão
e sua equivalente, droga psicotrópica, são os mais neutros e descritivos termos para toda a classe de
substâncias lícitas e ilícitas de interesse das políticas sobre drogas”. Disponível em:
<http://www.who.int/substance_abuse/terminology/psychoactive_substances/en/index.html>. Acesso
em 10/01/2008.
5
Evitaremos, entretanto, a utilização do vocábulo tóxico, ou mesmo substâncias tóxicas, porquanto
sua designação semântica compreende somente um sentido negativo, o que vai de encontro a uma das
premissas fundamentais desse trabalho: o mal que pode decorrer do uso de tais substâncias, antes de
ser-lhes intrínseco, depende decisivamente da maneira como são administradas.
7
– drogas, fármacos –, que aqui serão adotados como sinônimos com vistas a evitar
repetições vocabulares inestéticas e enfadonhas.

Ademais, há muitas diferenças entre cada uma das substâncias que tais
termos visam a abranger, e ainda muito se discute a respeito de terminologias e
conceitos mais adequados. De modo geral, malgrado a sua notável heterogeneidade,
podem-se dividir tais substâncias em três grandes grupos: o dos psicoanalépticos
(excitantes), em que se incluem o grupo das anfetaminas e os estimulantes, como
coca e cafeína; o dos psicolépticos (sedativos), que compreendem os tranqüilizantes,
alcalóides e opiáceos – entre estes a heroína e a morfina; e o dos psicodislépticos
(alteradores de consciência), também conhecidos como alucinógenos, em que se
inserem, por exemplo, a maconha, a mescalina e o ácido lisérgico (LSD)6.

No Brasil, como em outros países, sempre foi notável um certo


absenteísmo estatal ante a clara necessidade de se elaborar uma política pública
própria; invariavelmente, o Estado brasileiro deixou-se levar pelas orientações no
sentido da proibição penal absoluta advindas dos Estados Unidos da América e, a
partir da segunda metade do século XX, também das Organizações das Nações
Unidas. Com efeito, a mera importação de institutos jurídicos – como temos visto
ocorrer com grande freqüência nos últimos anos em nosso direito material e
processual – jamais poderá satisfazer plenamente a questão, na medida em que
culturas diferentes reclamam soluções diferentes para atender às suas idiossincrasias.
Soluções adequadas para alguns países podem não se adequar ao nosso, valendo o
mesmo também no sentido contrário, daí a necessidade de estudarmos aqui, com a
necessária independência, o referido tema.

É fato, outrossim, que o tema demanda extensas discussões científicas,


necessariamente de cunho multidisciplinar – algo a que, cite-se, nem sempre o
mundo jurídico se mostra acostumado. E, mesmo no campo do direito penal, faz-se
imprescindível a consideração de aspectos da história, da criminologia, da
antropologia e da sociologia para que se possa chegar a uma discussão em níveis
adequados – sem significar qualquer desprezo à dogmática jurídico-penal, que,
todavia, remanesce inidônea para tratar da questão sem o recurso aos demais ramos

6
GRECO FILHO, Vicente. Op. cit., p. 04-08; GOULART, Sandra Lucia et al. Op. cit., p. 30;
CARNEIRO, Henrique. Op. cit., p. 65.
8
que compõem a ciência conjunta do direito penal7. Para lidar com a política criminal
de drogas, portanto, não podem os juristas prescindir de estudos das ciências
humanas e sociais, algo de que as faculdades de direito do país permanecem bastante
carecedoras8. E o presente trabalho, realizado no âmbito de uma faculdade de direito,
tenciona oferecer sua pequena contribuição nesse mister, no que toca a aspectos
histórico-sociológicos e suas relações com a disciplina jurídico-penal9.

O consumo de drogas, quando inadequado, constitui um mal a ser


controlado, mas que, arriscamo-nos a dizer, jamais será extinto. É preciso que se
consiga lidar adequadamente com a questão, e não parece ser o direito penal o
melhor meio de se tutelá-la juridicamente. É o que levam a crer os resultados
históricos do proibicionismo penal aplicado ao longo do século XX, seja do ponto de
vista de sua (in-)eficácia preventiva, seja do ponto de vista das conseqüências sociais
nefastas dele exsurgidas, ou, ainda, considerando-se a própria carência de
legitimidade da utilização do direito penal para o tratamento da questão.

Parece-nos, de fato, que precisamente o estudo histórico das relações


entre seres humanos e drogas pode fornecer valiosos subsídios para se trabalhar com
o tema, na medida em que não apenas desvela as curiosas raízes do atual
proibicionismo, como, acerca particularmente do consumo, permite “abandonar o
terreno das puras suposições, e estabelecer critérios sobre fatos verificáveis”10.
Assim, resguardadas as alterações sócio-culturais entre diferentes tempos e
sociedades, “não apenas mostra [...] o que acontece com o consumo de tal ou qual
droga quando é ilegalizada, mas o que ocorre ao deixar de ser ilegal uma dentre as
antes proibidas, como aconteceu com o ópio na China e o álcool nos Estados
Unidos”11. Por essa razão, concede-se especial relevo a um estudo histórico do tema
no presente trabalho.

7
Sobre a evolução da noção de ciência conjunta do direito penal, vide: DIAS, Jorge de Figueiredo.
Direito penal – parte geral, t. I. São Paulo – Coimbra: Revista dos Tribunais – Coimbra Editora, 2007,
p. 18-41.
8
Cabe ressaltar, entretanto, que foge ao escopo do presente trabalho cobrir detidamente cada um dos
citados aspectos, cuja referência se deve ao intento de ressaltar a necessidade de diálogo com as
demais áreas do conhecimento afetas ao tema.
9
Destarte, houve que se afastar do escopo do trabalho considerações teóricas sobre a legislação
positiva de drogas, porquanto se analisa a criminalização em si e sua legitimação.
10
ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, p. 28.
11
Idem, ibidem, p. 28.
9
*******

De outra parte, importa atentar-se para o fato de que o mercado ilegal


das substâncias psicoativas ilícitas produz, a cada ano, uma receita estimada pela
ONU em cerca de US$ 400 bilhões, equivalentes aproximadamente a 8% de todo o
comércio internacional realizado no planeta12. Nessa medida, pode-se considerar o
proibicionismo um verdadeiro serviço prestado à criminalidade que, devido às
políticas oficiais, detém a quase exclusividade da distribuição de um produto
largamente desejado no mercado, e de altíssimo valor de troca. Este, artificialmente
elevado pelas mesmas políticas13, que parecem ignorar a baixíssima elasticidade da
demanda nesse peculiar mercado. Revela-se admirável, nesse mister, a facilidade
com que os órgãos oficiais estadunidenses, notadamente o Drug Enforcement
Administration (DEA) “tem persuadido os países europeus a adotar as suas táticas
falhas, e imposto-as ao terceiro mundo”14.

Inúmeros são os resultados adversos obtidos pela doutrina da


proibição ao longo do século XX, dos quais convém citar alguns:

- O relatório World Drug Report 2007, do Escritório das Nações


Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), revelou que
aproximadamente 200 milhões de pessoas (4,8% da população
mundial entre 15 e 64 anos) consumiram drogas pelo menos uma
vez no ano de 2006, e aproximadamente 110 milhões de pessoas
(2,6% do mesmo contingente) o fizeram ao menos uma vez em cada
mês do ano15;

- Desses cerca de 200 milhões, aproximados 160 milhões de


pessoas consumiram maconha, 25 milhões tomaram anfetaminas, 16

12
DAVENPORT-HINES, Richard. The pursuit of oblivion: a global history of narcotics. London –
New York: W. W. Norton, 2002, p. 11.
13
Idem, ibidem, p. 14.
14
Idem, ibidem, p. 15 (grifos nossos). Trad. livre.
15
Disponível em: <https://www.unodc.org/unodc/en/data-and-analysis/WDR-2007.html>. Acesso em:
10/10/2008. Anote-se, contudo, que, segundo a mesma fonte, o número de pessoas que abusaram de
alguma(s) das aludidas substâncias se mostra bastante inferior ao da generalidade de seus
consumidores: 25 milhões, ou 0,6% daqueles entre 15 e 64 anos.
10
milhões fizeram uso de opiáceos em geral, 14 milhões consumiram
cocaína e 11 milhões, heroína16;

- A despeito de se gastarem fortunas no combate ao


fornecimento de drogas ilícitas, e de se comemorarem reduções nas
áreas cultivadas em países como Colômbia, Bolívia e Peru, a relativa
redução nos preços das substâncias em seus destinos finais sugere
que o incremento da produtividade superou as perdas, ampliando-se,
destarte, a oferta17;

- Malgrado as proibições legais, estima-se que em nada menos


que 172 países e territórios do globo ocorra o regular cultivo
doméstico da cannabis18, o qual também se supõe haver-se
expandido como resultado das investidas oficiais sobre o
fornecimento da droga;

- Os Estados Unidos, país que constitui o grande modelo e


incentivador da proibição, despendem, atualmente, mais de US$ 9
bilhões anuais somente para manter encarcerados violadores de
normas penais relativas a drogas19;

- Apesar de o gasto norte-americano com a guerra às drogas ter


se elevado de US$ 1,65 bilhões em 1982 – quando se retomaria,
pelas mãos da administração Reagan, o discurso e a práxis belicistas
consagrados pelo ex-presidente Nixon – para US$ 17,7 bilhões em
1999, neste ano, mais da metade dos adolescentes estadunidenses
haviam experimentado ao menos um tipo de droga ilícita antes de
completar o ensino médio 20;

16
Ibidem. Acesso em 10/01/2008.
17
Ibidem. Acesso em 10/01/2008.
18
Ibidem. Acesso em 10/01/2008.
19
DAVENPORT-HINES, Richard. Op. cit, p. 16.
20
Idem, ibidem, p. 16.
11
- O Reino Unido possui um dos mais severos regimes de
restrição ao uso em seu continente; contudo, seus índices de
consumo estão entre os mais altos ali21;

- O continente europeu apresenta algumas variações nas


legislações internas aos Estados que sugerem haver pouca
associação entre a prevalência do uso ilícito de drogas e o grau de
repressividade de sua política; os países em geral apresentam níveis
moderados de consumo, independentemente da ilicitude ou não das
substâncias22.

Destarte, resta notória a parca eficácia preventiva do tratamento penal


destinado à matéria – o qual, por outro lado, forja artificialmente um mercado
paralelo de proporções gigantescas, flagrantemente criminógeno, que adiante será
estudado com maior detalhamento. Isso porque, após toda uma centúria de império
do proibicionismo legal, já se constatou que “não é a droga em si que leva um
dependente ao crime, mas a necessidade da droga. Não é o fornecimento da droga
que torna o usuário um criminoso, mas a ilicitude de seu fornecimento”23,
constatação igualmente a ser desenvolvida nas páginas a seguir.

Nada obstante, não se pode deixar de fazer alguma referência, aqui, a


uma questão aparentemente óbvia, porém muito menos suscitada do que, em tese,
deveria sê-lo: o que faz com que existam drogas lícitas e drogas ilícitas? Não há,
efetivamente, um critério objetivo que as distinga, além da mera previsão legal –
reitere-se, deveras arbitrária como critério diferenciador. O questionamento se torna
ainda mais digno de admiração uma vez que se sabe serem o álcool e o tabaco
extremamente prejudiciais à saúde humana, e potencialmente mais danosos, sob
diversos aspectos, do que a quase generalidade das substâncias psicoativas ilícitas24.

21
Idem, ibidem, p. 17.
22
Idem, ibidem, p. 17.
23
Idem, ibidem, p. 17. Trad. livre.
24
Estudo publicado em 2004 pela OMS aponta serem o álcool e o tabaco causadores de um número de
mortes, no mundo todo, superior em trinta vezes ao número causado pelo conjunto de todas as
substâncias ilícitas. Aponta ainda serem o álcool e o tabaco dez vezes mais nocivos à saúde humana
do que a média das drogas ilícitas. Neurociência do uso e dependência de substâncias psicoativas.
12
Como se supõe, há uma forte questão cultural a responder
parcialmente a indagação, mormente no que se refere ao álcool, na medida em que a
aceitação social de seu consumo é bastante antiga, e perene. No entanto, assim como
ele se vê inserido há muitos séculos na cultura das sociedades européias, outras
substâncias também datam sua inserção cultural em tempos remotos, em diferentes
regiões do globo – de que são exemplos os casos da coca na região andina e do ópio
em partes do sul da Ásia. Então, parece que a explicação talvez possa residir no fato
de que os países Europeus, uma vez tendo sido as metrópoles que lideraram a
expansão colonial, permitiram-se exportar a sua cultura – e, indicie-se desde logo,
prevalência econômica – também neste aspecto, ao passo que à periferia do
capitalismo coube se submeter a ela. Ora, sabe-se tratar-se de algo também visível
nos dias correntes, em que, enquanto testemunhamos a incessante repressão a
camponeses andinos cultivadores de folhas de coca, remanesce inimaginável a
possibilidade de que as grandes corporações industriais produtoras de tabaco e de
bebidas alcoólicas, assim como os Estados nacionais que representam seus
interesses, anuam a que tais substâncias sejam lançadas à ilicitude absoluta25. Eis
apenas uma das solenes hipocrisias que são notadas ao se realizar um exame mais
profundo do assunto, e mais um motivo pelo qual se nos afigura que o melhor
caminho para lidar com o tema seria o de uma cautelosa regulamentação,
devidamente orientada, retirando-se-lhe o contraproducente tratamento penal ora
vigente.

O presente trabalho, naturalmente, aborda a matéria sobretudo desde o


ponto de vista jurídico, e, mais especificamente, jurídico-penal, mas levando em
conta, ao mesmo tempo, as tantas questões extrajurídicas cuja consideração se faz
necessária para a adequada compreensão do tema. Assim sendo, cabe-nos, aqui,
abordar aspectos históricos, criminológicos, sociológicos e da teoria econômica

Disponível em: <http://www.who.int/substance_abuse/publications/en/Neuroscience_P.pdf>. Acesso


em: 10/10/2008.
25
Não nos parece, cumpre esclarecer-se, que os recentes movimentos de criação de restrições legais
para o consumo de tabaco em locais públicos ou mesmo privados de acesso relativamente público,
verificados em diversos países da Europa, confronte-se com o quanto aqui apontado; a princípio, trata-
se apenas de uma necessária resposta a pressões legítimas da sociedade organizada contra o excessivo
consumo de tabaco por parte da população, a fim de se prevenir parte dos problemas de saúde pública
por ele gerados. Ou seja, uma busca de se regulamentar, através do controle administrativo, o
consumo da referida substância.
13
pertinentes. Com isso, espera-se contribuir para o melhor esclarecimento do leitor
quanto a tão interessante, polêmico e relevante assunto.

14
1. REFLEXÕES INICIAIS

Drogas podem ser prejudiciais à saúde humana – mais precisamente


daqueles específicos seres humanos que as consomem26 –, especialmente se
administradas de modo descuidado. Podem, por outro lado, não fazer mal algum a
seus consumidores, ou mesmo fazer-lhes bem27: valore-se positivamente ou não o
seu poder distrativo, há que se assinalar que o uso medicinal de substâncias como a
maconha e a morfina se mantém em nossos dias, ainda que restrito e raramente
autorizado28, e que pesquisas científicas voltadas à investigação de possíveis
propriedades terapêuticas em diferentes psicoativos provavelmente jamais deixaram
de ocorrer em tempos modernos, e, decerto, nem sempre autorizadamente.

Cumpre afirmar, então, que o grande mal à saúde humana que pode
ser causado pela existência de tais substâncias reside em seu consumo excessivo.
Trata-se, aqui, de algo inegável: o consumo excessivo de droga(s) tende
inexoravelmente a acarretar prejuízos à saúde física e/ou psíquica de quem a(s) tenha
consumido; pode, outrossim, causar indesejada dependência física ou psíquica em
seu usuário. Destarte, adotamos tal constatação como premissa primeira deste
trabalho, na medida em que o consumo excessivo – ou abuso – de psicoativos,
também por esse motivo 29, há muito se tornou fator de especial preocupação
institucional e social.

Todavia, nem mesmo a citada premissa fundamental se basta para


explicar tamanha movimentação havida em torno do tema especialmente no último
século e meio, e muito menos o alarmismo que tem caracterizado os debates públicos
respeitantes durante todo esse tempo. Ora, é igualmente inegável que o consumo

26
Embora possa parecer desnecessário excesso de rigor, ou mesmo tautologia, a explicação se presta a
afastar, desde logo, a idéia de que as substâncias psicoativas sejam um mal em si, quando em verdade
o problema não reside em sua existência mesma ou ainda em seu simples consumo, mas em seu
eventual consumo abusivo. No mesmo sentido, vale indiciar, ora, que o consumo de drogas não parece
constituir algo nocivo à saúde pública, mas sim à saúde individual – e, não obstante, essa nocividade
se dá apenas ocasionalmente.
27
Para os fins deste trabalho, desconsidera-se o fato de medicamentos em geral também serem
referidos, nas mais diversas línguas, como “drogas”, o que facilitaria o esclarecimento que se faz neste
momento; o vocábulo drogas, aqui, designará exclusivamente substâncias psicoativas cujo uso
ordinário atual não compreende terapias médicas ortodoxas.
28
E, por vezes, às escondidas das instituições médicas e estatais.
29
Outras das muitas razões que determinaram o crescente protagonismo oficial no controle da relação
entre indivíduos e substâncias tóxicas através da elaboração de políticas disciplinadoras de seu
consumo e comércio haverão de ser estudadas em capítulo próprio.
15
excessivo de qualquer substância, seja ela um remédio, alimento, bebida, etc., tende
a ser nocivo à saúde humana individual, em maior ou menor medida de acordo com
suas propriedades específicas30 e com níveis subjetivos de tolerância. A seu turno, a
dependência, seja ela física ou psíquica, é algo que requer seja tratado sob o ponto de
vista médico, assim como ocorre com inúmeras outras enfermidades, e apresenta
incidência relativamente pequena – tanto em relação ao número de consumidores de
drogas quanto em relação à incidência global e à letalidade de outras patologias que,
no entanto, provocam menor comoção social31. Isso parece significar que a mera
nocividade potencial à saúde humana contida em substâncias psicoativas deva ser
insuficiente para justificar tamanhas preocupações, ainda que se lhes pressuponha,
grosseiramente, eventual nocividade superior à da generalidade dos alimentos e
bebidas (não-alcoólicas).

De toda sorte, porém, ao contrário do que costuma ocorrer no caso de


alimentos e bebidas, muita vez o consumo de determinadas drogas pode constituir
situação incômoda a eventuais indivíduos que se vejam geograficamente próximos
de quem as esteja consumindo. Isso se dá particularmente no caso de substâncias
consumidas por meio fumívomo, visto que espalham no ar resíduos decorrentes de
sua combustão e da expiração do fumante, os quais, além de poderem apresentar
alguma (limitada) nocividade à saúde de terceiros, podem igualmente apresentar
odores desagradáveis. É de se ver, todavia, que esse fator tampouco é apto – se é que
em algum momento, mesmo que como parte de um conjunto de fatores, chegou a ser
considerado para tanto – a justificar a situação de verdadeira emergência social que
persegue o tema do consumo de psicoativos em geral. E, se o fosse, tornaria ainda
mais contraditória a licitude e a aceitação social do tabaco, por óbvias razões.

30
Ademais da remissão a substâncias de ingestão ordinária, e tratando igualmente das variações de
efeitos – positivos e negativos – que uma mesma substância, qualquer que seja ela, pode conter, anota
Neuman: “os cientistas, desportistas e pescadores sub-aquáticos sabem que o oxigênio altamente
concentrado em seus tanques produz alucinações e euforia com conseqüências que podem ser fatais. O
mesmo caberia dizer da aplicação no cérebro de eletrodos que levam da calma absoluta ao pânico.
Existe também a ‘drogadição sem droga’ de quem se estupidifica em frente ao televisor durante horas
ou faz da comida uma panacéia adictiva”. NEUMAN, Elías. La Legalización de las drogas, 3ª ed.
reestruct. e ampl. Buenos Aires: Editorial Universidad, 2005, p. 25. Trad. livre.
31
Estima-se que a diabetes, por exemplo, mate cerca de 3 milhões de pessoas anualmente em todo o
mundo, número mais ou menos equivalente à quantidade total de dependentes de drogas – ou seja,
todos aqueles que tecnicamente sofrem problemas de saúde decorrentes do consumo de psicoativos –
atualmente existente. A respeito, vide: <http://www.who.int/diabetes/facts/en/index.html>. Acesso
em: 10/01/2008.
16
Tampouco a própria psicoatividade inerente às drogas parece ser
bastante para que mereçam o tratamento que lhes vem sido dispensado: cafeína,
açúcar, álcool, tabaco e medicamentos manufaturados com propriedades psicoativas
transitam livremente nos mais variados círculos sociais desde há muito, e seu
consumo é estimulado pelas mais diferentes fontes e de diversas maneiras – e, muitas
vezes, confere elevado status social ao consumidor.

Ainda não é o momento, aqui, de se referir aos significativos – e


inquestionáveis – males sociais desordenadamente apresentados como conseqüências
diretas do consumo de psicoativos, o qual implicaria toda uma cadeia criminosa a
partir da disponibilização dessas substâncias à venda. Por ora, pretende-se apenas
lograr uma breve e isolada reflexão quanto à estigmatização social do mero uso de
entorpecentes.

Deveras, mesmo que fosse possível pressupor, de algum modo, uma


perniciosidade ontológica e insuperável sobre o consumo – qualquer consumo – de
tais substâncias, ainda assim seria de se questionar tamanho alarmismo acerca de
algo que, pelo menos enquanto não implica ofensa real a terceiros, realmente parece
dizer respeito à esfera privada da vida de cada cidadão responsável.

E, no entanto, constata-se que a prática de se consumir drogas


constitui algo verdadeiramente demonizado em nossa sociedade – não parece haver
adjetivação mais apropriada que esta se se pretende significar algo como espécie de
materialização do mal. Demonizado é o consumo de drogas, e igualmente
demonizados são a própria droga e seu consumidor, bem como o seu negociador. Tal
é o que se depreende da observação quotidiana do noticiário de jornais, revistas,
televisão ou de singelas conversas entre pessoas que freqüentem o mesmo ambiente
social – onde se reproduzem e multiplicam as informações oferecidas pela
comunicação social32. Contudo, embora devesse ser fácil explicar toda essa

32
Compreenda-se amplamente, aqui, a expressão “comunicação social”, visto que a referência cabe a
cada um de seus quatro desígnios, e põe-se deliberadamente com este propósito (c. social: “1 aquela
que se processa entre uma fonte organizada de informação – empresa, organização governamental ou
não governamental, etc., ger. por intermédio de equipes especializadas – e a comunidade 2 p. met. [por
metonímia] atividade profissional que se ocupa de tal função 3 m. q. comunicação de massa [‘forma
de comunicação dirigida a um número de pessoas numericamente vasto, disperso, heterogêneo e
anônimo, e que utiliza, para atingir sua audiência, aparelhos e dispositivos de edição, reprodução,
transmissão, distribuição e comercialização das mensagens] 4 m. q. comunicação humana [‘a que se
17
preocupação revestida de aparente consenso social, uma reflexão preliminar a
respeito, como a presente, ao tencionar isolar as drogas e seu consumo de
circunstâncias que lhes sejam externas, não logra explicá-la de maneira minimamente
satisfatória. Afigura-se haver, mesmo, um importante fator ideológico a determinar
tamanha intolerância à mera existência e ao consumo de tais substâncias – e às
pessoas a elas ligadas de algum modo; todavia, por seu maior distanciamento da
disciplina jurídica, um aprofundamento nesse particular também não será escopo
deste trabalho.

Lembre-se que o uso de psicoativos conviveu harmonicamente com a


organização social e política das mais diferentes sociedades ao longo de milênios,
tendo se tornado motivo de mais aguda preocupação apenas a partir do século XIX.
Cabe indagar-se, então, o que teria ocasionado tal mudança, e de que modo a
situação presente harmoniza-se com os critérios jurídico-penais e constitucionais do
nosso tempo.

1.1. Aproximação do problema

Existe, porém, nesta primeira década do século XXI, e já desde muito,


um outro grande problema comum a diferentes sociedades humanas e Estados
nacionais: há uma guerra em curso, que reclama incessantemente o dispêndio de
enormes quantias dos orçamentos públicos e privados. Essa guerra, que
repetidamente anuncia a morte ou a decadência física e psíquica de milhões de
pessoas e que produz inestimáveis conflitos sociais e familiares ao mesmo tempo em
que tenciona contê-los, parece estar muito longe de terminar – se é que, nalgum dia,
conhecerá um fim. Há que se indagar se esta guerra apresenta-se idônea para tratar
do problema do uso e comércio de psicoativos tal como se propõe, ou se, em vez
disso, constitui em si mesma um grande problema; seja porque ineficaz, seja porque
ilegítima. De todo modo, ao menos por ora, cumpre afirmar a necessidade de se
examinar o problema do tratamento jurídico dispensado às condutas associadas ao

estabelece entre seres humanos´])”. HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário
Houaiss da língua portuguesa, 1ª reimpr. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004, p. 781.
18
uso e comércio de drogas, para o que, necessariamente, observar-se-ão criticamente
problemas de natureza jurídica e social ocasionados pela citada guerra.

A quantidade de usuários de drogas distribuídos pelo mundo


realmente impressiona: cerca de 200 milhões de pessoas, quase 5% da população
mundial adulta, consomem psicoativos ilícitos todos os anos. Se se incluírem nesse
cálculo usuários de tabaco e álcool, a estimativa passa a apontar mais de 3 bilhões de
pessoas, algo próximo a nada menos que 65% da população mundial entre 15 e 64
anos, e a 50% de toda a população global.

Cingindo-se às substâncias mantidas na ilicitude, os poucos números


ora apresentados são suficientes para atribuir-lhes status de bens deveras relevantes,
na medida em que algo desejado por um em cada vinte seres humanos adultos – e
cujo desejo é satisfeito, inclusive, a despeito de sua expressa e quase irrestrita
proibição – merece que se lhe confira correspondente importância social. Entretanto,
a circunstância de tratar-se de bens de consumo relevantes se traduz em situação-
problema a partir do momento em que se deixa de analisar, isoladamente, o consumo
em si, e passa-se a observar a realidade que o circunda – desde a dependência e a
marginalização social do usuário até a distribuição ilegal das drogas, o seu combate e
a exclusão social de qualquer pequeno trabalhador desse mercado marginal,
incluindo-se ademais toda uma série de problemas sociais colaterais. Importa
esclarecer, contudo, que o fato mesmo de uma significativa parcela da população
mundial consumir algo que pode ou não fazer-lhe mal à saúde talvez não
configurasse, em princípio, um problema não fosse o fato – indubitavelmente
extrínseco às substâncias e ao seu consumo – de esse algo ser considerado ilícito, o
que converte quase toda essa relevante parcela da população do planeta em infratores
legais; no mais das vezes, como é notório, criminosos.

Posto o problema, não há dúvidas de que a humanidade precisa


procurar constantemente as melhores maneiras de se lidar com ele no âmbito do
Estado Democrático e Social de Direito, naturalmente dentro de possibilidades
factíveis e respeitando-se idiossincrasias regionais de ordem cultural, econômica e
social. Nos dias correntes, bem se sabe, impera a política do chamado proibicionismo
legal, o qual recorre de modo generalizado à utilização do mais poderoso

19
instrumento estatal de constrição da liberdade individual: o direito penal, com todas
as suas implicações sociais perniciosas33, que no caso das políticas públicas sobre
drogas parece desempenhar um papel resolutamente oposto àquele a que se propõe
ou deveria propor-se34. Por uma série de razões a serem desenvolvidas durante todo
este trabalho, o dito proibicionismo nos parece equivocado.

1.2. Sobre as drogas legais universais – o álcool e o tabaco

Antes de cuidar da relação estabelecida entre o uso e distribuição de


substâncias psicoativas e o tratamento penal a tais condutas destinado, e antes mesmo
de abordar os processos históricos que culminaram na hegemonia do proibicionismo,
cabe tratar de algo aparentemente contraditório com a proibição quase total de
quaisquer comportamentos associados (ou associáveis) à interação entre seres
humanos e drogas: a peculiar licitude de duas drogas particularmente relevantes e
deletérias – o álcool e o tabaco.

Com efeito, em um mundo cujas instituições expressam tanta


preocupação com a tutela da saúde pública quando se trata do uso de substâncias
psicoativas, cabe indagar quais haveriam sido os critérios lógicos ou farmacológicos
justificadores de sua plena – e consagrada – licitude.

1.2.1. Álcool

A Organização Mundial de Saúde estima que, em todo o mundo, cerca


de 2 bilhões de pessoas consumam bebidas alcoólicas com alguma regularidade, e
que, dessas, aproximadamente 80 milhões padeçam de alguma sorte de alcoolismo 35.

33
Já tivemos oportunidade de nos manifestar brevemente, de modo genérico, acerca da atuação do
direito penal como instrumento de controle social formal e de suas conseqüências sociais negativas,
ressalvando tratar-se de instrumento jurídico-político necessário à coexistência humana: “Breve
estudo acerca da atuação das instâncias de controle social formal e informal.” In: Ultima ratio, ano 1,
n. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, esp. pp. 498-501.
34
SICA, Leonardo. “Funções manifestas e latentes da política de war on drugs”. In: REALE JR.,
Miguel. Drogas: aspectos penais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 15-16.
35
WORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO Global status report on alcohol 2004. Geneva:
World Health Organization, 2004, p. 01. Disponível em:
20
Estima, ainda, que algo entre 20% e 30% das incidências globais de câncer no
esôfago, câncer no fígado, cirrose hepática, convulsões epilépticas, acidentes de
trânsito e homicídios estejam relacionados com altos níveis de consumo de bebidas
alcoólicas36. Anualmente, cerca de 1,8 milhões de pessoas morrem em virtude de
problemas decorrentes do consumo de álcool, número correspondente a 3,2% do total
de mortes em todo o planeta37.

Com efeito, o álcool é uma substância quase onipresente, visto que se


mantém ao alcance de qualquer pessoa adulta na maioria dos países. Afora a
existência de algumas limitadas restrições para a sua comercialização, apresenta
plena aceitação social e, em muitos casos, seu consumo é visto como indicador de
status social diferenciado. Não por acaso, publicações especializadas em bebidas
alcoólicas são vendidas a altos preços em estabelecimentos igualmente
especializados, os quais freqüentemente promovem rituais de degustação de bebidas.
Como se diz, a regular ingestão de bebidas alcoólicas faz parte de nossa cultura,
conquanto se trate de uma droga que mata e debilita mais pessoas do que a somatória
de todas as outras drogas conhecidas38, à exceção do tabaco.

Profissionais de saúde pública em geral tendem a reconhecer que o


consumo de álcool afeta praticamente todos os órgãos do corpo humano, tendo
relações etiológicas identificadas com mais de sessenta enfermidades39. Há, pelo
menos, nove diferentes patologias exclusivamente causadas pelo consumo de
álcool40, o qual incrementa possibilidades de ocorrência de graves males como os
cânceres de boca, faringe, laringe, hipofaringe (laringofaringe), esôfago e fígado41,

<http://www.who.int/substance_abuse/publications/global_status_report_2004_overview.pdf>.
Acesso em: 10/10/2008.
36
Idem, ibidem, p. 01. Acesso em: 10/10/2008.
37
Idem, ibidem, p. 01. Acesso em: 10/10/2008.
38
NEUMAN, Elías. La Legalización de las drogas, 3ª ed. reestruct. y ampl. Buenos Aires: Editorial
Universidad, 2005, p. 21.
39
WORLD HEALTH ORGANIZATION. Op. cit., p. 35. Acesso em: 10/10/2008.
40
Nomeadamente: psicose alcoólica, síndrome de álcool-dependência, abuso alcoólico, polineuropatia
alcoólica, cardiomiopatia alcoólica, gastrite alcoólica, cirrose hepática alcoólica, excesso de álcool na
corrente sangüínea, toxomania de etanol e metanol. In: WORLD HEALTH ORGANIZATION.
Ibidem, p. 37. Acesso em: 10/10/2008.
41
Idem, ibidem, p. 37. Acesso em: 10/01/2008. Estudos recentes sobre a eventual influência do
consumo de álcool sobre a ocorrência de outras modalidades de câncer (v.g., estômago, pâncreas,
ovários, próstata, reto e glândulas salivares) têm se revelado inconclusivos; ainda, afigura-se que o
álcool pode ser também um significativo adicionador de risco à incidência de câncer de mama. Idem,
ibidem, pp. 37-38. Acesso em: 10/10/2008.
21
hipertensão, ataques hemorrágicos, pancreatite, epilepsia, psoríase, depressão e
diversos males congênitos derivados de ingestão pré-natal42.

Além dos danos físicos e mentais que pode causar a seus usuários, não
se questiona, igualmente, a sua potencialidade causadora dos denominados danos
sociais, ligados ao comportamento social do indivíduo, e que compreendem
problemas familiares, desordem pública, redução da capacidade laboral, acidentes de
trabalho e de trânsito, delitos contra a pessoa e contra a vida – culposos e dolosos –,
etc. Os danos sociais decorrentes do mau uso de bebidas alcoólicas são de muito
difícil quantificação estimada, mas podem, eventualmente, ser ainda mais lesivos do
que as patologias supra-aludidas43, pelo que interferem no bem-estar humano e,
destarte, são igualmente considerados pela OMS como matéria de interesse da saúde
pública em geral44.

Consoante já brevemente mencionado, entre os danos colaterais


decorrentes do consumo de álcool encontra-se a prática de diferentes crimes:
homicídios, lesões corporais, danos ao patrimônio, crimes contra a honra, crimes
sexuais, entre outros45, além dos quotidianos delitos culposos resultantes de acidentes
de trânsito. Acredita-se, porém, que crimes dolosos cometidos sob a influência da
ingestão de álcool tendam a refletir pensamentos e fatos previamente subjacentes ao
intelecto de seus autores respectivos46, que se vêem potencializados ou têm a sua
prática facilitada pela perda dos freios inibitórios ensejada pelo estado de
embriaguez. O mesmo se tem dito, importa observar, acerca de casos de delitos
cometidos por pessoas sob influência do consumo de determinadas drogas
consideradas ilícitas.

Deveras, na medida do que se pode generalizar – dadas as variações


existentes entre as numerosas substâncias psicoativas conhecidas –, são muitas as
semelhanças verificáveis entre drogas tratadas de maneiras tão díspares. Em primeiro

42
Idem, ibidem, pp. 38-40. Acesso em 10/10/2008.
43
Idem, ibidem, p. 35. Acesso em 10/10/2008.
44
Idem, ibidem, p. 35. Acesso em 10/10/2008.
45
Anote-se, a propósito, que a tutela penal como circunstância agravante da embriaguez preordenada
(art. 61, inc. II, l do Código Penal) demonstra que a incidência massiva da prática de delitos nessa
circunstância vem sendo constatada há muito em nossa realidade social.
46
NEUMAN, Elías. La Legalización de las drogas, 3ª ed. reestruct. y ampl. Buenos Aires: Editorial
Universidad, 2005, p. 21.
22
lugar, a etiologia que leva a qualquer situação de dependência não apresenta
diferenças significativas entre uma e outras substâncias, supondo, ademais, maior
transcendência de fatores sociais, familiares e ligados ao psiquismo individual47.
Ademais, os mencionados danos sociais colateralmente provocados pelo consumo
excessivo de tais substâncias se revelam bastante similares em ambos os casos. Não
obstante, os motivos alegados para o seu consumo 48 – antes, naturalmente, da
eventual superveniência de crises de abstinência ou de dependência – também se
assemelham, assim como os conhecidos efeitos de alteração na percepção da
realidade.

Em todo caso, como visto, é certo que os numerosos e intensos danos


aos indivíduos e à sociedade decorrentes da massificação do consumo de álcool são
facilmente determináveis e demonstráveis. Ao revés, há casos de drogas proibidas
sobre cujos danos potenciais ainda não se atingiram estudos conclusivos, sendo que o
conhecimento de sua possível lesividade não ultrapassou alguma investigação
empírica e discussões acadêmicas49. Portanto, e coerentemente, é de se indagar qual
teria sido o critério de proteção da saúde pública ou mesmo da saúde individual que
teria levado à proibição absoluta e à declaração de guerra contra substâncias que se
afiguram menos lesivas.

Efetivamente, já houve, em um passado não tão distante, uma


experiência de proibição do álcool. Como resposta a pressões de grupos sociais
moralistas as quais já duravam algumas décadas, e legitimando-se em critérios da
ciência médica50, os Estados Unidos promulgaram, em 1918, a 18ª emenda à sua
carta constitucional e, um ano depois, o Volstead Act, que estabelecia a ilicitude de
toda a cadeia produtiva, estocagem, distribuição, comercialização importação,
exportação e consumo de bebidas alcoólicas naquele país. Os resultados do controle
social total resultante da assim-chamada “lei seca” são tão conhecidos quanto

47
Idem, ibidem, p. 22.
48
Podem-se citar muitos – distração de problemas quotidianos, fuga de situações rotineiras, diversão,
inserção em determinado contexto social, atendimento a solicitação prévia de um terceiro (este,
possivelmente motivado por razões como estas), experimentação individual, etc. –, invariavelmente
marcados por propósitos, a princípio, recreativos. Davenport-Hines resumiu tais motivos no título
principal atribuído à sua obra: “a busca do esquecimento” (trad. livre). DAVENPORT-HINES,
Richard. The Pursuit of oblivion: a global history of narcotics. London - New York: W. W. Norton,
2002.
49
NEUMAN, Elías. Op. cit., p. 21.
50
Idem, ibidem, p. 22.
23
lamentados: da potencialização do negócio ilegal aproveitaram-se as máfias para
experimentar inédito crescimento, sem que a hipertrofia da burocracia estatal forjada
naqueles tempos constituísse óbice às atividades daquelas – que se locupletavam,
igualmente, do alto poder corruptor decorrente da lucratividade extraordinária do
mercado ilegal. Porque ineficaz e contraproducente, a proibição do álcool viu-se
abolida em 1933, com a promulgação de 21ª emenda, mas as implicações negativas
de quinze anos de equívoco não seriam facilmente superadas: a vigência da proibição
criou uma cultura de desobediência às prescrições legais entre muitos habitantes do
país, e acentuou a estigmatização e a segregação social de grupos determinados de
consumidores de bebidas. Não obstante, a vigência do Volstead Act forjou um
ambiente profícuo para o surgimento, crescimento e desenvolvimento de
organizações criminosas, que puderam aprimorar seus modi operandi naquele
período51.

A experiência estadunidense com o álcool constitui exemplo singular


de legalização de uma substância psicoativa a que se houvera reservado a ilicitude
absoluta, e parece lícito crer que a 21ª emenda constitucional se revelou muito mais
bem-sucedida do que ocorrera com a sua antecessora, a 18ª emenda. A partir de
então, em que pesem as suas conhecidas potencialidades lesivas à saúde humana e à
convivência social, o álcool incorporou-se definitivamente aos interesses e valores da
sociedade capitalista, bem como aos padrões morais da civilização ocidental. Ao
passo que poucos gastam esforços em negar as tentações contidas no extenso rol de
bebidas alcoólicas disponíveis no mercado, os motivos ou pretextos a que pessoas
recorrem para consumi-las não parecem, absolutamente, suscitar qualquer
comprometimento a valores morais fundamentais vigentes em nossas sociedades52.

Para se supor a importância social e econômica adquirida pelo


consumo e comércio de bebidas alcoólicas, basta imaginar-se a quantidade de
pessoas ocupadas com os cultivares – de vinhas, cevada, agave, trigo, centeio, arroz,
aveia, milho, cana-de-açúcar, entre outros – destinados à produção de bebidas, além
das que trabalham na produção dos insumos ali utilizados; os caminhoneiros

51
Costuma-se apontar os anos de 1920 nos EUA como o momento e o local onde teriam se
desenvolvido as atividades do crime organizado e as práticas de lavagem de dinheiro tal como as
conhecemos modernamente.
52
NEUMAN, Elías. Op. cit., p. 23.
24
ocupados do transporte das colheitas; os agrônomos, os enólogos, cervejeiros e seus
análogos; os fabricantes de máquinas e equipamentos necessários ao processamento
industrial de bebidas; os fabricantes de garrafas, latas e garrafões, e os ocupados com
o próprio envasamento; os fabricantes das etiquetas das garrafas; os exportadores,
importadores, distribuidores, comerciantes, garçons; etc. Deveras, o atual estágio de
complexidade das relações econômicas que envolvem a matéria somente reforça a
conclusão por sua perfeita adaptação ao modus vivendi da sociedade contemporânea.

Há, ainda, o trabalho de empresas publicitárias e de comunicação


social que procura induzir publicamente o consumo do álcool, vendido como um
“prazer paliativo de distrações sociais manipuladas”53.

Cumpre anotar54, porém, que o álcool, também pode apresentar


benefícios à saúde humana até um determinado grau. Estudos recentes citados pela
OMS sugerem que o consumo leve ou moderado de bebidas alcoólicas tende a
implicar algum efeito protetivo contra males como isquemia cerebral (embora
aumente riscos de ataque hemorrágico cerebral), doenças coronárias, diabetes e
colelitíase (cálculo biliar)55. Não parece, porém, que tais efeitos positivos do
consumo de álcool – repise-se, apenas recentemente consolidados – tenham sido
considerados, em algum momento, na opção legislativa de sua liberação, até porque
o consumo moderado de muitos dos demais psicoativos também pode apresentar
benefícios.

Ainda, é interessante notar que, além do fato de influências positivas e


negativas decorrentes do consumo de bebidas alcoólicas variarem de uma pessoa
para outra56, pelo menos nos casos das diabetes e doenças coronárias o uso de álcool

53
Idem, ibidem, p. 22. Trad. livre.
54
Em um trabalho em que se pretende criticar o predomínio de fatores ideológicos em determinadas
opções de criminalização, não convém, a fim de se ressaltar uma incoerência como a da oposição
entre o tratamento socialmente dispensado ao álcool e aquele dispensado a outras drogas, omitirem-se
argumentos que possam favorecer eventual tese oposta. Sabe-se que, ao pesquisador, cabe procurar
afastar-se de pré-concepções de cariz ideológico, ao menos na medida do que lhe é possível; daí a
necessidade de se mencionar as propriedades potencialmente positivas de bebidas alcoólicas. Todavia,
logo se verá que tampouco este argumento pode favorecer alguma pretensão de coerência no
tratamento legal e social corrente acerca das substâncias psicoativas, visto que o consumo moderado
de outras drogas pode igualmente ser benéfico ao ser humano.
55
WORLD HEALTH ORGANIZATION. Op. cit., pp. 38, 40-41. Acesso em: 10/01/2008.
56
Idem, ibidem, passim. Acesso em: 10/01/2008.
25
pode tanto fazer bem quanto fazer mal ao ser humano, dependentemente das
quantidades ingeridas e freqüência da ingestão57.

Tais variações também em muito se assemelham ao que ocorre através


do consumo de diferentes drogas mantidas na ilicitude, o que permite supor-se, desde
logo, que problemas de saúde individual ou mesmo de saúde pública não resultam do
mero uso de substâncias psicoativas mas, e fundamentalmente, de seu uso excessivo,
ou abuso58.

1.2.2. Tabaco

A imagem que ocupa todo o vídeo é a de um jovem elegante e


arrojado, sem dúvida um vencedor na vida. O que terá ele feito
para chegar ao sucesso? Como terá conquistado essa
autoconfiança, esse olhar seguro e atrevido, esse ar de quem sabe
onde pisa? Estudou muito, trabalhou arduamente? Submeteu-se,
por anos a fio, a um penoso processo de psicoterapia, para se
conhecer melhor?
A [se] acreditar na voz suave e convincente do locutor, não foi
nada disso. Esse jovem chegou direto ao sucesso por fumar o
cigarro Tal. Nada mais fácil, está ao alcance de qualquer um: o
homem que sabe o que quer fuma o cigarro Qual. Basta imitá-lo.59

A narrativa supracitada ilustra com precisão a maneira encontrada


pelos capitalistas da indústria do fumo para incrementarem seus lucros mediante a
universalização das vendas de cigarros em todo o mundo ao longo do século XX.
Durante muitas décadas – coincidentes com a ascensão e domínio da televisão como
principal veículo de comunicação social de massa –, os anúncios publicitários
patrocinados por marcas de cigarro estiveram entre os mais vibrantes, estimulantes e,
mesmo, eficazes, tendo alguns deles se tornado clássicos da propaganda. A seu turno,
também o cinema desempenhou papel fundamental na glamorização do cigarro,
incutindo em seu público mensagens – explícitas, indiretas ou, ainda, subliminares –
segundo as quais o consumo do cigarro transmitia perante terceiros uma imagem de
charme, maturidade e sucesso pessoal.
57
Idem, ibidem, pp. 40-43. Acesso em: 10/01/2008.
58
Entenda-se, aqui, o conteúdo semântico do vocábulo abuso apenas como uso excessivo,
desmesurado. Esta observação se faz necessária a fim de não se confundir, mais adiante, o sentido
aqui empregado com aquele estabelecido em meados do século XX pelas Nações Unidas – o de
qualquer uso considerado ilegal –, que será objeto do capítulo próximo.
59
ARATANGY, Lidia Rosemberg. Doces venenos: conversas e desconversas sobre drogas. São
Paulo: Olho d’Água, 1991, p. 47.
26
Segundo estimativas da OMS, porém, o tabaco é responsável por
aproximadamente 5 milhões de mortes anuais em todo o mundo, o que representa
cerca de 8,8% das mortes registradas todos os anos no planeta60. Seu consumo é
associado à ocorrência de distúrbios nos brônquios e de diversos tipos de câncer,
notadamente o de pulmão, bem como ao considerável incremento de riscos de infarto
do miocárdio, e quase sempre acarretam significativos prejuízos à circulação
sangüínea, incrementando-se, assim, os riscos de males daí advindos61.

O tabaco ocupa o quarto lugar geral na lista dos fatores responsáveis


pela perda de anos de vida e incapacitação física, seguido pelo álcool, merecedor do
quinto lugar; somados, tabaco e álcool são responsáveis pela perda de 8,1% dos anos
de vida da população global, ao passo que ao consumo das drogas ilícitas atribui-se
0,8% dessa perda62.

O hábito de se mastigar folhas de tabaco, e mesmo de seu fumo, já era


corrente no Novo Mundo tempos antes da chegada dos europeus. Estes cuidaram de
transmiti-lo ao seu continente de origem e, mais tarde, para terras africanas e
asiáticas. Inicialmente interessados em experienciar as potencialidades das exóticas
substâncias que encontravam no continente americano – como ocorreu, igualmente,
com o cacau, a batata, e o açúcar – e, ademais, em buscar mercadorias cuja
explotação pudesse convir ao comércio internacional de tempos mercantilistas, os
colonizadores não tardaram a perceber que as possibilidades de cultivo do tabaco nas
colônias se adaptava perfeitamente à lógica econômica de então. Introduziram-se,
assim, os regimes de plantations63 em vastas áreas dos territórios coloniais. E as
propriedades estimulantes e limitadoras de apetite imanentes ao tabaco fez com que o
seu consumo fosse sido encorajado entre trabalhadores das colônias (escravos ou
não), a fim de que produzissem ao máximo e consumissem o mínimo de alimentos.

60
ORGANIZAÇÂO MUNDIAL DE SAÚDE. Neurociência do uso e dependência de substâncias
psicoativas. Genebra: OMS, 2004. Disponível em:
<http://www.who.int/substance_abuse/publications/en/Neuroscience_P.pdf>. Acesso em: 10/10/2008.
61
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Op. cit. Acesso em 10/10/2008; ARATANGY, Lidia
Rosemberg. Op. cit., pp. 62-63.
62
NEUMAN, Elías. La Legalización de las drogas, 3ª ed. reestruct. y ampl. Buenos Aires: Editorial
Universidad, 2005, p. 27.
63
Forma de produção agrícola baseada na monocultura de exportação, dominante em todo o
continente americano entre os séculos XVI e XIX.
27
O mesmo ocorreu, simultaneamente e pelas mesmas razões, com a cafeína, outra
droga que, como o álcool e o tabaco, passaria a fazer parte de nossa cultura.

Já no século XX, avanços tecnológicos possibilitariam a produção e


distribuição em larga escala de cigarros industrializados, oferecidos a preços bastante
acessíveis. Ingressava definitivamente, destarte, o tabaco na lógica da economia
capitalista industrial, e a competição empresarial passava a reclamar propagandas
como as referidas no início deste subcapítulo. Propagandas cujos destinatários
fossem, principalmente, as populações jovens, na medida em que o vício precoce
garantiria – e segue a garantir – a perenização do consumo 64.

As recentes campanhas de informação contrárias ao fumo parecem


alcançar um relativo êxito no esclarecimento de consumidores em determinadas
regiões, tendo os índices globais de consumo de tabaco, sempre crescentes,
apresentado alguma desaceleração. Todavia, importa ressaltar que, enquanto que nos
países centrais as políticas de controle sobre o consumo têm se acentuado, e com
resultados positivos, a indústria do tabaco tem concentrado esforços em difundir o
hábito em países periféricos, cuja população é menos informada e mais suscetível a
sedutoras mensagens publicitárias e a ceder irrefletidamente às tentações da
sociedade de consumo em geral. O resultante crescimento dos mercados em países
subdesenvolvidos tem compensado perdas decorrentes de políticas restritivas nos
Estados Unidos e Europa com sobras65. Estes, porém, beneficiados pelos saldos
positivos em suas balanças comerciais, não parecem demonstrar reais preocupações
acerca da saúde pública global no que concerne também a esta droga.

Não obstante, a OMS estima que, em um futuro breve, poderão morrer


anualmente 10 milhões de fumantes somente em virtude do câncer pulmonar 66, e
equivalente número de pessoas de males cardíacos e vasculares resultantes do
fumo 67.

64
NEUMAN, Elías. Op. cit., p. 28. O autor ainda alude ao fato de que muitas jovens sustentam o
hábito de fumar cigarros como forma deliberada de evitar sensações de fome, com o que tencionam
manter-se magras (ibidem, p, 28).
65
Idem, ibidem, p. 27.
66
Idem, ibidem, p. 27.
67
BRASIL. SECRETARIA NACIONAL ANTIDROGAS (SENAD). Cartilha sobre tabaco. Brasília,
2005, p. 24.
28
1.2.3. Reflexões críticas

Não há, efetivamente, qualquer base científica a permitir que se


satanize ou que se santifique este ou aquele psicoativo 68, ou mesmo que determine a
proibição absoluta de seu uso, até pelo fato de diferentes organismos receptores –
diferentes consumidores – poderem reagir de modo diverso ao consumo de idêntica
quantidade de uma mesma droga69.

É de se admirar, destarte, que, em face dos eloqüentes prejuízos


individuais e coletivos ensejados pela amplíssima disseminação do uso de álcool e
tabaco em todo o planeta70, esta seja plenamente consentida por Estados nacionais
que fomentam ou permitem toda uma militarização da repressão a outras substâncias
independentemente de sua eventual lesividade. Tamanha incoerência política, por si
só, permite que se acredite haver algo de errado com a excessiva tolerância oficial
sobre as drogas lícitas ou com a excessiva repressão às drogas ilícitas. Talvez – ou
melhor, provavelmente – sobre ambas as situações.

Diante da mencionada carência de critérios científicos razoáveis,


aparenta-se verdadeiramente arbitrária a opção política em favor de umas e em
detrimentos de outras drogas para serem consumidas pela população71, separando-as

68
NEUMAN, Elias. Op. cit., p. 26
69
Idem, ibidem, p. 26.
70
No caso do Brasil, dados recentes do Centro Brasileiro de Informação sobre Drogas Psicotrópicas
(CEBRID – UNIFESP) estimam que, entre a população adulta brasileira urbana, 12,3% sejam
dependentes de álcool, e 10,1% de tabaco. CARLINI, E. A. (superv.). II Levantamento domiciliar
sobre o uso de drogas psicotrópicas no Brasil. São Paulo: CEBRID – UNIFESP, 2006, p. 33; cabe
citar, ademais, que estudo epidemiológico realizado no pela mesma equipe e que avaliou internações
no país por dependência e psicoses derivadas do uso de drogas entre os anos de 1988 e 1999,
constatou que 91% delas eram resultantes do consumo de álcool. GALDURÓZ, José Carlos F. et al.
“A Epidemiologia do consumo de substâncias psicotrópicas no Brasil: o que tem sido feito?” In:
REALE JR., Miguel. Drogas: aspectos penais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.
258-259.
71
Há muito não se sustenta, pois, a antiga crença reproduzida entre nós por meio da pena de
Bernardino Gonzaga. Em meados do século XX, assim se manifestou o então professor da Faculdade
de Direito de São Paulo: “Através das considerações expostas, bem se compreende sejam
entorpecentes o ópio ou a cocaína, por exemplo. Não assim, porém, o álcool, que embora justamente
condenado como um dos grandes males sociais, não possui o mesmo poder aliciador dos primeiros,
bastando considerar que possibilita até mesmo um consumo habitual, sem maiores conseqüências,
enquanto dificilmente passará alguém incólume, v. g., por algumas poucas doses de morfina. E assim
também se excluem seguramente do conceito as ‘pequenas toxicomanias’, como as provenientes do
uso de tabaco ou de produtos contendo cafeína (café, chá, mate, etc.), que igualmente se admite
possam levar a certo grau de dependência psíquica e até mesmo física, em relação ao tabaco, mas
29
verticalmente em dois grupos antagônicos. E o é. Isso porque, excluindo-se a
potencial lesividade à saúde individual e/ou coletiva, cumpre indagarem-se quais
teriam sido os critérios de ordem médica, política, econômica e social que
selecionaram substâncias para serem declaradas ilícitas e permitiram a legitimação
social de outras, notadamente o álcool e o tabaco. Nessa medida, remanesce a idéia
de uma supostamente consagrada inserção cultural das drogas lícitas perante a
civilização humana (ocidental, naturalmente). À parte a manifesta ilegitimidade da
prevalência de uma concepção eurocêntrica de mundo, ocorre que mesmo a
sociedade ocidental nem sempre conviveu harmonicamente com tais substâncias: a
intensa repressão oficial norte-americana ao álcool nos tempos da “lei seca” foi
deflagrada porque contava, cumpre mencionar-se, com o apoio de grande parte da
população local. Os casos do tabaco e da cafeína – a qual, diga-se, também gera
dependência, entre outros males72 – são ainda mais exemplares, na medida em que a
sua introdução nos costumes da sociedade eurocêntrica se deu de maneira artificial e
é relativamente recente se comparada aos antiqüíssimos hábitos de consumo
moderado de folhas de coca na América andina e de derivados da papoula no sul da
Ásia.

O álcool, o tabaco e o café, entretanto, adaptaram-se rapidamente, no


passado, à lógica da economia mercantilista, e, mais tarde, igualmente apresentaram
rápida adaptação à lógica econômica da sociedade industrial. Serviram e servem à
consolidação e manutenção de monopólios estatais e poderosos oligopólios
empresariais, gerando considerável acumulação de riquezas a grupos politicamente

cujos efeitos são de todo inócuos ou de nocividade perfeitamente tolerável” GONZAGA, João
Bernardino. Entorpecentes: aspectos criminológicos e jurídico-penais. São Paulo: Max Limonad,
1963, pp. 39-40. Confrontando-se tal assertiva com a realidade supra-exposta, queda-se deveras
ressaltante a maneira como a seletiva ideologia proibicionista suplantou a carência de informações
científicas sobre as mais diversas drogas (tanto as “boas” quanto as “más”) para afirmar verdadeiro
axioma desprovido de qualquer lastro científico. A distinção entre drogas lícitas e ilícitas mediante um
suposto critério de lesividade à saúde individual, que chegou a supor ínfimo poder sedutor ao álcool e
a pretender, como visto, que o tabaco não passasse de uma “pequena toxicomania” de efeitos “de todo
inócuos ou de nocividade perfeitamente tolerável”, hoje chega a se revelar ingênua, mas foi no
passado abraçada, inclusive, embora acrescida de uma indefinida “nocividade social”, por Greco Filho
em sua importante obra sobre o tema, cuja primeira edição data de 1972. GRECO FILHO, Vicente.
Tóxicos: prevenção – repressão, 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 03.
72
Como, por exemplo, síndrome de abstinência, tolerância, ansiedade, dores de cabeça, depressão e
até psicoses. Contudo, trata-se provavelmente da droga mais bem inserida na vida social
contemporânea, pois pouco se reconhece a sua eventual nocividade. A respeito desta, vide o estudo
“Continued comsumption of caffeine can lead to tolerance”, publicado no website da Faculdade de
Farmácia da Universidade do Porto. Disponível em:
<http://www.ff.up.pt/toxicologia/monografias/ano0405/Cafeina/p69.htm>. Acesso em: 02/11/2008.
30
fortes dos países centrais. A seu turno, a produção em larga escala de maconha,
cocaína e opiáceos se manteve concentrada em regiões periféricas, inexistindo, a
despeito de seu poder local, a mesma concorrência de interesses políticos e
comerciais apta a forçar institucionalmente uma maior aceitação no mercado
internacional. É possível, portanto, que daí derivem os motivos de fundo para a
constatação de que

o Estado-razão, na sua face Estado-empresa, recorta o


acesso à mente, excluindo da concorrência empresarial
alguns dispositivos alter-mentes em benefício de outros.
O princípio teológico do “bem” não é suficiente para
ocultar das coletividades humanas que o Estado elege
suas “drogas” para traficar – as drogas do Estado.73

Relembre-se: a variedade de substâncias modificadoras do campo da


consciência é extremamente extensa, não se podendo apontar, entre tantas drogas
legais e ilegais, quais seriam as “boas” e quais seriam as “más”. Isso a despeito do
discurso político maniqueísta que permanece a imperar quando se discute a matéria,
aqui e alhures, como se as diferenças de tratamento jurídico entre umas e outras
tivesse algo de natural ou qualquer justificação plausível – o que, como se viu,
definitivamente não é o caso74. Cabe sejam analisadas, então, as circunstâncias
históricas e sociais que determinaram a emergência da proibição até hoje reinante.

73
MODESTO, Luiz Sergio. As Drogas do Estado. Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo: FDUSP, 2004, p. 08-09.
74
Os inúmeros problemas ora referidos de saúde pública causados pelo tabaco e pelo álcool, se
comparados com a menor incidência de equivalentes atribuíveis ao uso de drogas ilícitas, tampouco
parecem prestar-se como argumento válido em defesa da criminalização destas ou, quiçá, daqueles.
Deveras, não se pode olvidar que parcela considerável dos altos níveis de consumo dos primeiros se
deva, possivelmente, à maneira agressiva como foram expostos durante muitas décadas pela
publicidade nos mais importantes meios de comunicação de massa, inclusive, por vezes, contando
com ajuda oficial. A análise histórica da emergência do proibicionismo, a ser feita no capítulo
subseqüente, demonstrará que os principais fatores reais que levaram à escolha de certas drogas para
serem proibidas em detrimento de outras pouco tiveram com suas propriedades farmacológicas em si,
mas com a maneira como foram assimiladas pelos estratos sociais e grupos políticos dominantes –
algo que deslegitima indelevelmente os pretensos critérios científicos da doutrina da proibição.
31
2. ANÁLISE HISTÓRICA DO CONSUMO, DA OFERTA E DE SEU
TRATAMENTO LEGAL

A desenvolução histórica das condutas associadas ao uso e comércio


de substâncias psicoativas por seres humanos é bastante rica, e, conquanto possa
carecer de melhores esclarecimentos aqui e ali, já foi estudada com proficiência por
autores cujas obras se tornaram indispensáveis a qualquer abordagem do tema 75.
Descabe aqui, portanto, envidarem-se esforços de índole historiográfica – os quais,
de resto, afastam-se do escopo do presente trabalho.

Todavia, inegavelmente, para se lograr uma melhor compreensão das


atuais políticas pertinentes convém recorrer-se a uma breve aproximação histórica,
com o que se pretende apontar o artificialismo de uma estratégia política que, a
despeito de suas conseqüências nefastas, ainda tenciona ser vista como algo natural,
inevitável e inquestionável.

2.1. Antecedentes: da Antigüidade à modernidade

É lícito supor que, ao longo de toda a história da humanidade, raras


tenham sido as civilizações – se é que as houve – que não tenham apresentado
experiências com o uso de alguma substância de propriedades psicoativas.

Na Antigüidade, de maneira geral, a utilização dessas substâncias não


era vista como algo profano, ao contrário do que passou a ocorrer com freqüência na
história mais recente76. As drogas conhecidas eram ordinariamente sacralizadas,
conquanto não necessariamente divinizadas – não eram, em via de regra, diretamente
associadas a uma divindade ou ente similar; eram, sim, tidas como forças da natureza

75
Vide, especialmente: ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid:
Espasa, 2000, passim; do mesmo autor, ora mais sucintamente: Historia elemental de las drogas.
Barcelona: Anagrama, 2003, passim. Limitando-se temporalmente à abordagem do tema desde os
primórdios da Era Moderna até os tempos atuais: DAVENPORT-HINES, Richard. The pursuit of
oblivion: a global history of narcotics. London – New York: W. W. Norton, 2002, passim; ainda,
contendo abordagem mais limitada, conforme esclarecido pelo próprio título, McALLISTER, William
B. Drug diplomacy in the twentieth century. New York: Routledge, 2000, passim.
76
ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, p. 14.
32
detentoras de propriedades mágicas, e já se lhes creditava algum poder medicinal77.
Começou-se, em determinados locais e culturas, a catalogar espécies vegetais de
acordo com suas características então conhecidas ou acreditadas, e a utilizá-las para
fins curativos, ainda que a cura de um mal remanescesse sendo vista muito mais
como algo de natureza metafísica, e que dentre os meios para a sua consecução
remanescessem sobretudo aqueles considerados sagrados: penitência, oração,
peregrinação, talismãs, e mesmo a taumaturgia 78.

Não conseguiu, até os dias correntes, a historiografia determinar com


segurança a época em que primeiro se experimentou o que hoje é convencionalmente
conhecido como droga. Sabe-se que, já por volta de 3.100 a C., na Mesopotâmia, um
ideograma sumério – a primeira linguagem escrita que se conhece – aludiu à papoula
como a “planta do prazer”79; outrossim, um papiro egípcio datado de 1552 a. C.,
destinado aos médicos de então, tratava do uso de ópio em cerca de setecentas
diferentes misturas80. Comerciantes árabes introduziram o ópio na Pérsia, China,
Índia, Espanha e norte da África81. Referências literárias à droga também houve na
Antigüidade, de que é exemplo a própria Odisséia de Homero: em passagem do
Livro IV, Helena oferece a seu marido Menelau e a Telêmaco uma mistura de vinho
com outra droga – provavelmente ópio – que teria o poder de eliminar-lhes toda
mágoa, lamento e ansiedade82.

Anote-se ademais que os deuses análogos Dionísio e Baco,


respectivamente partes da mitologia grega e romana, não eram associados somente

77
Idem, ibidem, pp. 13-14. Argumenta-se que o momento pioneiro da medicina teórica haja ocorrido
logo após a primeira fase da civilização grega, em que ainda se atribuíam às doenças causas
sobrenaturais – algo bem ilustrado nas duas obras fundamentais de Homero, Odisséia e Ilíada, que
apontavam as patologias humanas como intervenções superiores havidas por caprichos das
divindades. A medicina primitiva, então, teria resultado da paulatina superação de tal crença e da
conseqüente percepção de que a origem de tais males poderia ser terrena, possibilitando-se acreditar-
se em profilaxias igualmente terrenas – através, por exemplo, do uso de substâncias naturais com
poderes especiais. Vale lembrar que, na Antigüidade, tênues eram as linhas que distinguiam as noções
de religião, magia, medicina e mesmo a sexualidade, sendo que as drogas se faziam presentes em
tradições e costumes atinentes a todos eles. CARNEIRO, Henrique. Comunicação pessoal, out/2003.
78
Idem, ibidem, pp. 33 et seq; 73 et seq. Lembre-se que a crença humana na cura pelo toque régio se
arrastou por séculos. Deveras, conquanto se houvesse questionado tal prática desde muito, parece
razoável admitir-se que tal prática, em determinados casos, tenha sido eficaz para a cura de certas
enfermidades através da ab-reação, dado o efeito psicológico que provocava no súdito ungido.
79
BERRIDGE, Virginia. Opium and the people. Apud: : DAVENPORT-HINES, Richard. The pursuit
of oblivion: a global history of narcotics. London – New York: W. W. Norton, 2002, p. 30.
80
DAVENPORT-HINES, Richard. Ibidem, p. 30.
81
Idem, ibidem, p. 30.
82
HOMERO. Odisséia, trad. Manuel Odorico Mendes, 2ª ed. São Paulo: Edusp 1996, p. 108.
33
ao vinho, como muita vez se supõe, mas igualmente à papoula. Em Roma havia
ainda grandes festas trienais, os bacanais, que louvavam o deus do vinho e da
fecundidade, o qual também era conhecido como Liber porquanto se creditava ao
consumo do vinho a libertação momentânea de toda preocupação humana,
alegrando-se o espírito83.

A própria Bíblia faz inúmeras remissões ao vinho, o qual até hoje faz
parte dos rituais sagrados de religiões cristãs. Em conhecida passagem do Antigo
Testamento, o patriarca Noé, logo após o dilúvio, planta uma vinha que depois utiliza
para se embebedar 84. Nas passagens que narram a vida de Jesus Cristo, pode-se
verificar um processo de sacralização do vinho, cujo ápice se daria com o ritual de
purificação humana por meio de seu consumo, na última ceia. Tempos mais tarde, tal
bebida se tornaria o psicoativo oficial do mundo ocidental, algo que pode ser
atribuído, em grande medida, à influência do catolicismo sobre o continente europeu
durante a Idade Média.

Tem-se que as substâncias psicoativas mais proeminentes ao longo da


história da humanidade foram o álcool e os opiáceos: como visto, podem-se
encontrar registros de seu uso ligado a rituais mágicos, religiosos ou mesmo para fins
terapêuticos havido desde tempos remotos. Não obstante, a própria cannabis já fora
utilizada como analgésico ainda no século XVIII a. C., tendo sido empregada
reiteradamente como medicina por povos antigos dos continentes africano e
asiático85.

Já na era cristã, os romanos passaram a utilizar-se do ópio para tratar


males como elefantíase, edemas, epilepsia, picadas de escorpião, entre outros86.
Contudo, seus efeitos deletérios também já começavam a ser conhecidos e, por
vezes, instrumentalizados: opiáceos foram utilizados pelo imperador Nero para
assassinar Tibério (em latim, Britanniccus, como também é conhecido) durante um

83
VICTÓRIA, Luiz A. P. Dicionário ilustrado de mitologia. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d, p. 48.
84
Gênesis, cc. IX, 20-21.
85
SILVA, José Geraldo da. Op. cit., p. 170.
86
DAVENPORT-HINES, Richard. The pursuit of oblivion: a global history of narcotics. London –
New York: W. W. Norton, 2002, p. 31.
34
jantar, consolidando assim, no ano 55, a sua ascensão ao trono que por direito
pertenceria ao último 87.

Nos tempos de hegemonia do catolicismo em terras européias, desde o


Baixo Império Romano, impôs-se o consumo de álcool no ocidente, e começou a ser
verificada uma crescente perseguição contra outros psicoativos, sobretudo opiáceos e
anticolinérgicos, que muito se ligavam a mistérios e tradições do paganismo, e eram
associados a bruxarias consideradas demoníacas e amaldiçoadas88. Deveras, o
cristianismo se opôs decididamente ao uso de drogas com base nas idéias de busca da
auto-superação pela aflição, de inaceitabilidade do hedonismo e de não serem os
homens senhores de sua existência 89.

Séculos mais tarde, já na baixa Idade Média, sucederia, ainda que com
limitada repercussão devido à influência exercida pela igreja, uma substancial
modificação na maneira de sustentação das crenças em geral. Com efeito, estas
baseavam-se, até então, fundamentalmente em um “ouvir dizer”, muita vez sugerido
por alguém que se arrogasse alguma autoridade moral; a partir do Renascimento,
todavia, anunciar-se-ia a cultura do “ver”, do constatar por si mesmo, que pouco após
daria origem à empiria, posteriormente consolidada por Francis Bacon e outros – os
firmadores do método científico moderno.

O período do Renascimento constituiu momento de fundação da


modernidade, caracterizado notadamente pela subversão aos valores predominantes
na Idade Média, e revelou, por parte de seus protagonistas, considerável
insubordinação a pressupostos e axiomas inseridos entre os mais caros à Igreja
Católica. Assim, e por força da emergência da empiria, substâncias cuja interdição
reinara por séculos retornaram a ser objeto de análise. Passou-se a buscar, a partir de
87
Idem, ibidem, p. 31.
88
ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, pp. 220-
228; 236-250; 307-308. Conforme anota o autor, a perseguição religiosa a drogas e seus consumidores
havida naqueles tempos era acompanhada pela repressão a uma diversidade de condutas inócuas como
a manutenção de vida sexual heterodoxa, misticismo heterodoxo, igrejas reformadas, judaísmo,
minorias étnicas e sociais, blasfêmia, etc. – própria de um conjunto de normas intolerante e arbitrário.
89
Idem, ibidem, p. 363. Anote-se, outrossim, que Escohotado refere-se à perseguição sofrida pelas
drogas no apogeu do poder clerical durante a Idade Média apontando a incompatibilidade entre o culto
cristão ortodoxo e o consumo de tais substâncias e os rituais por este implicados. E, nesse mister,
lembra que o fato de a historiografia moderna pouco descrever a perseguição empreendida pelo
cristianismo contra a cultura farmacológica então existente se deve precisamente à circunstância de
que tal perseguição se fundou em métodos como queimas de livros e no sigilo imposto pelos censores
oficiais. Ibidem, p. 228.
35
então, estudos mais cuidadosos das plantas e seus efeitos, e, ademais, com o passar
do tempo começou-se a avaliar experimentalmente, também, as plantas originárias
do Novo Mundo.

Em meados do século XVI, o número de receitas médicas contendo o


principal eutanásico e analgésico dos tempos antigos, o ópio, apresentava
crescimento notável, assim como se ampliava o rol de males a que sua prescrição
visava tratar. O mais importante cientista da época, o germânico Philipus Aureolus T.
B. von Hohenheim, profissionalmente conhecido pelo prosônimo latino Paracelsus,
cunhou o nome laudanum para um remédio por ele formulado e que indicava aos
mais diversos males: uma mistura de diversas substâncias exóticas e cerca de 25% de
ópio 90. Paralelamente, observações relevantes sobre psicoativos ocorriam não apenas
no Ocidente mas também no Oriente, à medida que importantes naturalistas como os
ibéricos Cristóval da Costa e Garcia da Horta passavam a se ocupar da botânica
tropical.

Pesquisas fundadas na doutrina do empirismo fizeram do século XVI


o momento de um verdadeiro renascimento farmacológico na Europa. Mais tarde,
porém, avanços nessa seara sofreriam uma retração no período marcado pelo apogeu
da força dos Estados absolutistas e da inquisição e sua caça às bruxas, porquanto se
continuava a pretender fortemente, e com apoio oficial, combater-se a medicina
popular e os métodos de alteração da consciência.

2.2. O capitalismo e as drogas

A busca por drogas foi um dos grandes motores da formação do


capitalismo, ao tempo da acumulação primitiva de capital e das grandes navegações.
De fato, se não esperavam os conquistadores que os tesouros do continente
americano fossem basicamente botânicos, é certo, porém, que se adaptaram
rapidamente a essa realidade91. Entre os principais produtos que constituíram objeto
fundamental da explotação colonial e do comércio e tráfico internacional figuraram:

90
DAVENPORT-HINES, Richard. The pursuit of oblivion: a global history of narcotics. London –
New York: W. W. Norton, 2002, pp. 31-32.
91
ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, p. 344.
36
especiarias diversas e açúcar, no século XVI; álcool e tabaco, no século XVII;
chocolate, chá e café, no século XVIII; e o próprio ópio, já no século XIX. Com o
advento do mercantilismo, tornaram-se, pois, as drogas peças-chave da expansão da
economia mercantil92, assim como as hegemonias políticas que se sucederam no
cenário internacional desde o início das grandes navegações – as hegemonias ibérica,
holandesa, britânica e norte-americana – deixaram flagrantes reflexos na economia
das drogas e nas políticas a elas relacionadas.

Durante a época de predomínio luso-espanhol, muitos se utilizou,


além naturalmente do álcool, daquelas drogas qua vieram a ser recebidas pelo
cristianismo, quais sejam o tabaco, o chocolate e a quinina (também conhecida como
quina, embora este, propriamente, seja o nome da planta da qual se extrai a quinina).
Exatamente pelo fato de haverem elas sido consideradas aceitas por católicos, seu
consumo encontraria salutar resistência na Europa protestante. Deveras, chegou-se a
crer que a quinina, cujas potencialidades curativas haviam sido aprendidas por
jesuítas ibéricos com nativos do Peru93e que, portanto, fora por aqueles levada ao
continente europeu, seria “uma diabólica invenção, um veneno a ser utilizado com o
fim de exterminar todos os não-católicos”94, a ponto de o puritano e protestante
radical Oliver Cromwell, no auge de seu poder sobre a Inglaterra, haver preferido
sucumbir à malária a remediar-se com tal “droga católica”, no ano de 165895.

Tendo se tornado, no século XVII, os maiores comerciantes


internacionais do mundo, os holandeses então passaram a liderar a distribuição de
álcool e de tabaco. Através da ampliação dos mercados possibilitada pela expansão
de seus negócios em diferentes continentes, disseminou-se internacionalmente o
consumo de bebidas alcoólicas como a vodca, o uísque e o rum, ademais do já
culturalmente sólido consumo do vinho. Posteriormente, também a uva passaria a ser
destilada, originando-se daí o conhaque. E, anos depois, a subjugação econômica

92
CARNEIRO, Henrique. Filtros, mezinhas e tríacas: as drogas no mundo moderno. São Paulo:
Xamã, 1994, pp. 42-43.
93
LINT, Jennifer. “Chloroquine”. Disponível [on-line] em:
http://www.stanford.edu/group/parasites/ParaSites2005/Chloroquine. Acesso em: 03/01/2009.
94
“Treatment of malaria – a brief history of antimalarials”. Disponível [on-line] em:
http://www.mmv.org/pages/content_frame.asp?ThePage=page1_000400010002_1.htm&Nav=000400
010002. Acesso em: 31/05/2006. Trad. livre.
95
SNEDEN, Albert T. “Alkaloids”. Disponível [on-line] em:
http://www.people.vcu.edu/~asneden/alkaloids.htm. Acesso em: 03/01/2009.
37
definitiva de Portugal pela Inglaterra seria materializada tendo o vinho como objeto
do Tratado de Methuen96, em 1703.

Outro dado revelador da consolidação da importância econômico-


social adquirida por psicoativos àquele tempo reside no fato de que a Revolução
Francesa de 1789 teve igualmente, entre as circunstâncias que precipitaram a sua
eclosão, a rejeição da população à alta taxação do vinho. De fato, além de outras
funções comerciais e de defesa, os muros que circundavam a capital francesa
igualmente visavam a obstar a entrada de vinho que não possuísse o devido controle
do governo e das respectivas corporações de ofício – e que tenderia a ser, portanto,
mais barato.

Em meio a todas as drogas cujo uso se disseminou desde a expansão


do mercantilismo, as que se tornariam mais bem recebidas culturalmente viriam a ser
o tabaco e a cafeína. E, dentre as explicações que se obtiveram para seus sucessos,
revelou-se importante o fato de ambas constituírem substâncias mais adaptadas à
própria lógica econômica capitalista, seja em decorrência de seu processo produtivo
mesmo, realizado segundo a então dominante técnica de produção agrícola – o
plantation97 –, seja por seu efeito estimulante aumentar a capacidade de vigília e a
disposição laboral humanas. Especialmente quando mascado, mas também quando
fumado, o tabaco reduz igualmente as sensações de fadiga e de fome – o que,
evidentemente, convinha a sociedades que pretendiam fazer seus trabalhadores
dedicarem tempo máximo às suas respectivas atividades produtivas. E os efeitos da
cafeína, sabe-se, são em grande medida semelhantes nesse particular.

2.3. Século XIX: disseminação do consumo e conseqüente crise social

Conquanto a criminalização das condutas associadas à venda e ao


consumo de psicoativos tenha nascido, salvo em casos excepcionais 98, com o século

96
Também conhecido, no idioma português, como Tratado de Panos e Vinhos.
97
Técnica de produção agrícola baseada na monocultura de exportação, comum em todo o Continente
Americano entre os séculos XVI e XIX.
98
De que constituem exemplos algumas municipalidades e estados norte-americanos, onde o
tratamento penal da matéria exsurgiu a partir de meados do século XIX. A respeito, vide:
ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, p. 505.
38
XX, foi nos oitocentos que teve início o processo de acentuada estigmatização das
substâncias e de seus usuários, que forneceria bases suficientes para o definitivo
ingresso da matéria nas legislações penais de todo o mundo, que lhe seria
conseguinte.

No início do século XIX já ocorriam com alguma freqüência estudos e


debates entre médicos e cientistas europeus acerca da imposição de restrições ao uso
de psicoativos. Remanescia o ópio a droga mais consumida, comumente através do
medicamento laudanum (cuja composição havia muito deixara de ser a mesma da
mistura de Paracelsus, mas mantivera a preponderância do derivado da papoula) que,
como substância medicinal, havia tempos continuava a aliviar e a causar
enfermidades conforme era utilizado99. Outrossim, remanesciam bastante
controversas as conclusões dos pertinentes estudos – como, de resto, nunca deixou de
suceder. De todo modo, já àquele tempo, logrou-se observar que as reações
individuais ao uso do ópio se mostravam, por vezes, bastante idiossincráticas100.

Momento considerado divisor de águas para o modo com que o


ocidente encarou a questão foi a publicação, nos anos de 1820, da obra The
Confessions of an English opium eater101. Seu autor, Thomas De Quincey, fora
criado sob o moralismo vigilante de sua mãe, e inicialmente utilizou-se do ópio para
tratar um problema de nevralgia, malgrado também o houvesse consumido –
acredita-se – como espécie de represália ante a severa educação que recebera102.
Após algum tempo, passou a utilizar-se recreativamente da substância, sobretudo
quando estava a assistir óperas e outros concertos musicais, os quais ele afirmava
apreciar com um “prazer sensual” quando sob efeito do ópio 103; igualmente, passou a
apreciar caminhadas por regiões pobres e guetos de sua cidade natal, Londres, sob
efeito do uso do psicoativo. Mais tarde, mudou-se para Edimburgo, onde viveu
ladeado pela intelectualidade da efervescente capital escocesa – em que muitos de

99
DAVENPORT-HINES, Richard. The pursuit of oblivion: a global history of narcotics. London –
New York: W. W. Norton, 2002, p. 41.
100
Tome-se como exemplo comparativo o fato de que, para o novelista escocês Walter Scott, 60 gotas
de laudanum (por ele utilizado para combater dores estomacais) eram bastantes para causar forte
sentimento de ressaca e dores de cabeça, ao passo que, para o magistrado inglês John Harriot, 80 gotas
do mesmo medicamento nada causavam senão uma leve tontura. Idem, ibidem, p. 68.
101
Publicada no Brasil sob o título Confissões de um comedor de ópio (DE QUINCEY, Thomas. Trad.
Ibañez Filho. Porto Alegre: L&PM, 2002).
102
DAVENPORT-HINES, Richard. Op. cit., p. 68.
103
Idem, ibidem, p. 68.
39
seus ilustres membros eram usuários de ópio. Embora ali houvesse sido considerado
alguém de sociabilidade prodigiosa, não tardou a ser acometido por males como a
privação financeira e a depressão, os quais foram potencializados pelo uso contumaz
do laudanum; retornou, então, à capital do Reino Unido em estado de penúria 104.
Destarte, suas Confissões, que ecoaram por décadas em todo o continente,
constituem um retrato melancólico de vida que, mesmo tendo se tornado desde cedo
literatura cult105, encontrava-se resolutamente fora dos padrões e valores britânicos
mais caros de seu tempo, os quais atingiriam seu ápice no período vitoriano – então
prestes a se iniciar.

Na mesma centúria, o império britânico ver-se-ia envolvido em


diversos conflitos decorrentes de sua condição de potência capitalista dominante.
Entre eles, sucedeu a chamada guerra do ópio, travada contra a China entre 1839 e
1842, após o governo chinês haver vetado a entrada em seu país do ópio britânico
cultivado na Índia e inutilizado os estoques do produto mantidos no porto de Cantão
– o que ia de encontro aos interesses dos britânicos, que se subsidiavam nas doutrinas
econômicas liberais para se aproveitar maximamente de todo comércio internacional,
malgrado já fosse o ópio objeto de consideráveis restrições em território
metropolitano 106. O conflito sino-britânico encerrar-se-ia com a assinatura do
Tratado de Nanquim, que impunha severas sanções pecuniárias à China, bem como
determinava a abertura de seus portos para o livre comércio internacional e a
concessão aos britânicos da cidade de Hong Kong, importante porto e entreposto
comercial. Não houve, no texto do tratado107, qualquer menção explícita à mercancia
do psicoativo, mas somente referências genéricas ao comércio como um todo, ainda
que se conhecesse a preponderância do ópio naquele comércio – cumpre lembrar,
substância cuja livre produção e distribuição já se via altamente contestada na
metrópole. Haveria ainda outro entrevero entre os dois países entre os anos de 1856 e
1858, que foi considerado por historiadores como uma continuação do conflito
anterior, e que se encerraria com a ocupação de Pequim por tropas aliadas inglesas e

104
Idem, ibidem, p. 69.
105
Idem, ibidem, p. 61.
106
Anota Escohotado que, curiosamente, o Reino Unido fundou sua declaração de guerra em um
“intolerável atentado contra a liberdade de comércio”, supostamente cometido pelos chineses.
ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, p. 531.
107
Disponível [on-line] em: http://www.international.ucla.edu/eas/documents/nanjing.htm. Acesso
em: 03/01/2009.
40
francesas, resultando em sanções e concessões ainda maiores a que se obrigava a
China108.

Em meados do século XIX, o consumo de ópio, em grande medida


estimulado por pressões internacionais de índole comercial, já se tornara algo
bastante arraigado em terras chinesas. E, por decorrência das sucessivas crises
econômicas nacionais, muitos de seus habitantes puseram-se a emigrar para regiões
da Europa, Estados Unidos e Austrália. Ali viveriam no mais das vezes em condições
miseráveis, freqüentemente reunidos em guetos nas periferias das grandes cidades,
locais em que o uso do ópio resultava bastante corriqueiro. Isso contribuiu
notavelmente para a estigmatização dos consumidores do psicoativo, a despeito do
fato de os capitalistas dos países hospedeiros auferirem elevados e reiterados lucros
com o comércio internacional do mesmo produto; a seu turno, o estigma então
forjado nos países centrais contribuía para a exclusão social dos chineses, muitas
vezes apontados como causadores de um contágio do uso que supostamente levava
ao crescimento do consumo da droga e da delinqüência naqueles países109. Por
conseqüência, reputados como danosos usuários de ópio, viram-se os chineses
vítimas de preconceito explícito que, anos mais tarde, culminaria com a edição, nos
Estados Unidos, do Chinese Exclusion Act110, restringindo-se-lhes a imigração – a
qual passava a ser permitida apenas para ricos, acadêmicos e profissionais altamente
qualificados111. Referida norma teve império na auto-proclamada terra das liberdades
e oportunidades até a metade do século XX.

Como imigrantes pobres que eram nos EUA, chineses viviam


confinados em guetos onde se criava ambiente propício à proliferação de casas de
distribuição de drogas, além de casas de jogo e de prostituição – como, de resto, é
comum a periferias de centros urbanos. É de se supor, pois, que o uso recreativo se
espalhava entre eles também por carecerem de quaisquer outros meios de recreação
para os momentos em que se vissem fora do ambiente de trabalho, sendo que era nas

108
Objeto do Tratado de Tientsin, de 1858. A respeito, vide: ESCOHOTADO, Antonio. Historia
general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, pp. 531-532.
109
Idem, ibidem, pp. 550-552; DAVENPORT-HINES, Richard. The pursuit of oblivion: a global
history of narcotics. London – New York: W. W. Norton, 2002, pp. 178-179.
110
Lei federal editada em 1896 nos EUA, cuja vigência perdurou até o ano de 1942.
111
DAVENPORT-HINES, Richard. Op. cit., p. 179.
41
casas de jogo, de prostituição e/ou de distribuição e consumo de drogas que
imigrantes interagiam entre si e com os demais habitantes de seu entorno geográfico.

Por outro lado, a notável disciplina laboral e diligência dos chineses,


fossem ou não consumidores de ópio, causava forte descontentamento por parte de
unidades sindicais, insatisfeitas com a conseqüente desvalorização do mercado de
trabalho 112. Aos poucos, então, as classes médias locais, perplexas em face de hábitos
diferentes de grupos que não reconheciam como concidadãos, começavam a
preocupar-se, a exemplo do que já ocorrera com as elites britânicas, com sua
vulnerabilidade ante o mal que o ópio passava a representar – menos por suas
inegáveis potencialidades malévolas que pelo fato de seus consumidores
representarem-lhes uma certa escória social.

Cite-se, ademais, que, ainda em meados do século XIX, começaram a


surgir nos Estados Unidos associações moralistas voltadas à defesa do decoro e da
sobriedade da sociedade local113. Seu advento seguiu-se a partir de dois fatores: a
introjeção, na consciência coletiva dos americanos wasp114, da noção de “pobreza
culpável”, que redundou na quebra das eficientes redes de assistência social até então
dominantes115, e o estabelecimento de um nexo causal entre pobreza, infelicidade e
delinqüência com o consumo de álcool116. A retomada da religiosidade puritana e do
nativismo, além de oposições à igualdade de direitos, favoreceram o surgimento
dessas associações segregacionais, entre as quais se destacariam, por seu forte poder
de influência e grande repercussão, a Woman’s State Temperance Society e, mais ao

112
ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, pp. 551-
553.
113
ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., pp. 505 et seq.
114
Acrônimo anglófono para o etnônimo sociológico e cultural que designa os cidadãos brancos,
anglo-saxões e protestantes (white, anglo-saxon, protestant), e simboliza um padrão de identidade
nacional estadunidense.
115
Tradicionalmente, desde os tempos coloniais, a existência de pobres, doentes, debilitados física e
mentalmente e mesmo vagabundos era vista como algo providencial para que os bons cristãos
pudessem exercitar sua caridade, muitas vezes abrigando-os e assistindo-lhes diretamente em seu lar.
A partir da década de 1820, a acelerada industrialização propiciou ao país um vertiginoso crescimento
econômico, que não foi, entretanto, compartilhado pelos novos imigrantes que chegavam pela já
desenvolvida consta do Atlântico, e que acabaram formando cinturões de pobreza em torno das
grandes cidades. Então, as classes mais favorecidas e as autoridades, incapazes de compreender como
tamanho desenvolvimento industrial poderia geral algo diferente de alegria e ordem, passaram a
atribuir aos pobres a responsabilidade por seu próprio desfavorecimento, e a postular a sua segregação
para o bem do corpo social. E, assim, surgem as instituições penitenciárias e manicômios como
destinos de pobres, loucos, vagabundos, doentes, ébrios e anciãos indesejados. Idem, ibidem, pp. 498-
505.
116
Idem, ibidem, p. 505.
42
final do século, a Anti-Saloon League117. Tais grupos procuravam realizar espécie de
limpeza social no território norte-americano, na medida em que para o puritanismo
revelava-se imoral e inconcebível a possibilidade de se haver prazeres ainda em vida;
ao revés, esta haveria de ser destinada ao trabalho, por meio do qual se chegaria ao
único prazer real – a ser gozado na eternidade.

Emergia ali, tanto em áreas urbanas quanto em áreas rurais, uma


cultura extremamente segregativa voltada à marginalização da pobreza e de minorias
étnicas que, ao pretender abarcar toda sorte de potenciais desviados, utilizava-se do
álcool como fator inclusivo para pessoas que não necessariamente se encaixavam nos
demais estereótipos – loucos, doentes, delinqüentes, anciãos – passíveis de
segregação. Ao mesmo tempo, a custódia dessa massa de desviados revelar-se-ia
bastante conveniente ao interesse dos capitalistas industriais, porquanto internatos e
penitenciárias, ainda nascentes, guardavam uma reserva de mão-de-obra que quase
não lhes importava custos118. Encontrava, pois, seus limites o liberalismo norte-
americano, na medida em que conviesse aos interesses de grupos de pressão
relevantes excluir determinadas populações do convívio social:

[...] o Estado renunciava a soluções não segregativas para


abordar o problema da desviação espiritual ou somática
com métodos estritamente opostos, pois que recluindo
pessoas em reformatórios, casas de correção, hospícios,
manicômios e cárceres adicionava à marginalização
primária uma marginalização secundária. As causas
eleitas para explicar a desviação eram a indolência e a
intemperança com o álcool, quando uma e outra coisa
podiam ser interpretadas com o mesmo ou maior
fundamento como meros sintomas das aceleradas
transformações sociais que o país experimentava. Para ser
exato, o único fator realmente comum aos desviados que
tanto inquietavam era [o de] serem não-proprietários, mas
isso foi insistentemente omitido pela mentalidade
empresarial, capelães, diretores de centros de internação e
até câmaras legislativas. Abandonara-se o princípio do
laissez faire ao assumir a administração central funções
antes descentralizadas e privatizadas [...]. Em outras
palavras, para que pudesse florescer esse novo
capitalismo [industrial] era preciso fortalecer mecânicas
de controle social antes desconhecidas, apresentando os
conseqüentes como antecedentes onde fosse oportuno,
como aconteceu com o álcool119.

117
Idem, ibidem, pp. 505-509.
118
Idem, ibidem, pp. 501-504.
119
Idem, ibidem, pp. 503-504. Trad. livre.
43
Criavam-se assim as bases para o surgimento e ascensão até mesmo
de um partido político anti-álcool, o Partido Proibicionista, fundado em 1869, que,
mesmo minoritário, viria a exercer uma influência espetacular sobre a política norte-
americana, e que seria sustentado, fundamentalmente, por moralistas puritanos,
políticos eleitoralistas e por empresários incomodados com o absenteísmo laboral
provocado pelo consumo de álcool120. Aos poucos, a cultura fortemente moralista
que então predominava nas nações anglo-saxônicas, e notadamente nos EUA, fazia
com que se abrissem cada vez mais os caminhos para o influxo do proibicionismo.

2.4. O século XX e o influxo do proibicionismo

De modo geral, até fins do século XIX, a produção e a distribuição de


substâncias psicoativas nos mais diferentes países eram, em regra, livres, logo não
submetidas a qualquer sorte de controle estatal em todo o planeta. Remanesciam
interesses internacionais relevantes sobre a comercialização de tais substâncias,
notadamente no caso do ópio – que, como visto, já motivara duas guerras devidas à
oposição britânica ao viés proibicionista chinês – e de substâncias cuja possibilidade
de produção em escala industrial já eram conhecidas e exploradas121. O centro
econômico do mundo ainda era a Europa, e, portanto, de lá provinham os princípios
éticos, econômicos e científicos que balizavam as discussões respeitantes. No
entanto, na virada do século, e com base na doutrina de internacionalização dos
princípios morais dominantes de sua política interna, uma potência econômica
emergente começaria a se apresentar como líder na defesa do proibicionismo na cena
diplomática internacional: os Estados Unidos da América122.

120
Idem, ibidem, pp. 505-509. Ao mencionar o sólido apoio da classe política ao proibicionismo
emergente, lembra o autor que os mesmos próceres políticos que publicamente coincidiam em temer a
degeneração etílica da América, poderiam permitir-se, ocasionalmente, consumir suas doses de álcool
em privado. Ibidem, p. 507.
121
Lembre-se que, desde a segunda metade dos Oitocentos, grandes laboratórios farmacêuticos
europeus e norte-americanos como Merck, Bayer, Hoffmann-La Roche e Parke Davis já lucravam
com a produção e distribuição de drogas como a morfina, a heroína e a cocaína.
122
Malgrado hajam sido os EUA o primeiro país do mundo a promulgar uma constituição inspirada
nos princípios políticos liberais, é certo que seu povo incorpora, desde suas origens, uma cultura de
severa intolerância, herança de sua rigorosa fé e costumes puritanos, razão por que o último grande
processo contra bruxas se daria precisamente em Massachusetts, num tempo em que europeus já se
espantariam com práticas oficiais semelhantes (ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las
drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, p. 495). Destarte, observou Tocqueville, ao analisar a formação
44
2.4.1 Moralismo puritano e higienização social como fundamentos de elaboração
de políticas legais repressivas

Desde o final do século XIX até toda a extensão do século XX, pode-
se afirmar que a doutrina da proibição apresentaria cinco principais vetores
ideológicos – a saber, em ordem cronológica, a práxis moralista, a saúde pública, a
segurança pública, a segurança nacional e, por fim, o proibicionismo militarista123.

Como visto, nos últimos decênios do século XIX, a formação de


grupos sociais de índole moralista em cidades norte-americanas forneceu um
ambiente cultural e político propício ao florescimento e amadurecimento das teses
proibicionistas. Nesse mister, merece especial referência a já citada Anti-Saloon
League. Criada em 1895, tal associação tencionava, como o seu próprio nome
denota, trabalhar contra a existência dos saloons, estabelecimentos espalhados pelo
oeste do país que eram associados a três diferentes práticas (vícios) a que se visava
combater: o consumo de álcool, o jogo e a prostituição124, reputados como
comportamentos atentatórios ao moralismo puritano da classe média wasp nacional.
A Anti-Saloon League, através de uma atividade política, lobística e propagandística
intensa, logrou agregar, rapidamente, milhões de associados, pelo que, no início do
século XX, nenhum político, democrata ou republicano, ousaria desafiar “sua
exigência de uma América limpa”125.

Havia, não obstante, a identificação de certas substâncias a grupos


sociais específicos – o que evidenciava o conteúdo étnico da citada limpeza. Assim,
associavam-se a cocaína aos negros (que alegadamente, após seu consumo, punham-

da sociedade norte-americana e de suas instituições, (i) a incessante vigilância ali existente sobre os
domínios da consciência, tamanha a preocupação dos legisladores com “a manutenção da ordem
moral e dos bons costumes da sociedade” através de normas penais, e (ii) a freqüente identidade entre
pecado e delito verificada nas primeiras compilações legislativas da Nova Inglaterra. Daí o fato de,
por exemplo, em 1650, o Código de Connecticut haver pioneiramente lançado à ilicitude a embriaguez
e a vadiagem, e, em 1660, uma jovem ter sido condenada por haver dito “palavras indiscretas” e haver
permitido beijar-se. TOCQUEVILLE, Alexis de. De la démocratie en Amérique, t. I, 12ª ed. Paris:
Pagnerre, 1848, pp. 58-60. Trad. livre.
123
RODRIGUES, Thiago. Comunicação pessoal, out/2003.
124
ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., p. 509.
125
Idem, ibidem, p. 509.
45
se a estuprar mulheres brancas126), a maconha aos latino-americanos (notadamente os
mexicanos, de mais numerosa presença nos EUA)127, o ópio aos chineses e o álcool
aos irlandeses128. Deveras, iniciado o século XX, vão se tornando cada vez mais
fortes em terras norte-americanas as idéias de higiene social, a xenofobia e a própria
eugenia 129, em grande medida graças ao notável desempenho de próceres que mais
tarde passariam a ser conhecidos pela sociologia norte-americana como moral
enterpreneurs130.

Em 1906, edita-se o Food and drug Act, que, efetivamente, nada


proibia, mas apresentou grande importância simbólica por haver significado a
primeira ocasião em que um ato legislativo de alcance nacional considerava
expressamente a questão das drogas, regulando-as administrativamente. A lei não foi
suficiente para contentar os partidários da proibição, grupo que no início do século
XX passava a incluir, cada vez mais, médicos e suas associações de classe,

126
DAVENPORT-HINES, Richard. The pursuit of oblivion: a global history of narcotics. London –
New York: W. W. Norton, 2002, pp. 199-201.
127
Idem, ibidem, p. 201-202.
128
ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., p. 607. A despeito de sua origem européia, os irlandeses se
viram socialmente excluídos nos EUA em razão de sua religião ser predominantemente católica, o que
também constituía motivo de conflitos na Grã Bretanha. Nesse mister, anota Escohotado que, nos
tempos de Cromwell e das treze colônias, irlandeses haviam sido negociados como escravos no
mercado da Virgínia. Ainda, quanto aos chineses, o mesmo autor relembra que, para os sindicatos,
tinham eles o vício adicional de trabalhar mais e por menos dinheiro que os americanos. Ademais, ao
mesmo tempo em que se consagravam tais identificações étnico-farmacológicas, drogas extremamente
destrutivas e que consumiam a saúde de milhões de pessoas mas cujo uso não era identificado com
nenhuma minoria indesejada, como os barbitúricos, permaneceriam por mais de meio século livres,
em absoluto, de qualquer estigma social ou controle legal (idem, ibidem, pp. 607-608).
129
Lembre-se ainda que, posteriormente utilizada em larga escala pela medicina nazista alemã, a
eugenia parece ter surgido nos EUA exatamente nesses tempos de virada de século. E ali chegou a se
tornar precedente jurisprudencial constitucional, em célebre decisão da Suprema Corte datada de
1927; ao discutir a validade de uma das muitas leis estaduais de esterilização compulsória de pessoas
consideradas inferiores, proclamou o Justice Oliver Wendell Holmes Jr. em seu voto condutor: “é
melhor para todos que, em vez de esperar para executar descendentes degenerados por crimes, ou
deixar que morram de fome por causa de sua imbecilidade, a sociedade possa impedir os que são
claramente incapazes de continuar a espécie [...]. Três gerações de imbecis são o bastante” (Buck v.
Bell, 1927. Trad. livre). Naqueles tempos, cerca de 65 mil pessoas foram esterilizadas
compulsoriamente por apresentarem males como epilepsia ou debilidade mental, sendo que, na
escolha de pacientes a serem submetidos à esterilização, muita vez concorriam fatores raciais ou
sociais – semelhantes àqueles que também concorreram para a escalada das políticas proibicionistas
sobre drogas, sucedida, como visto, no mesmo contexto histórico-político.
130
ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., p. 608. Acerca do conceito de empresários morais, vide:
BECKER, Howard Saul. Outsiders: studies in the sociology of deviance. New York: The Free Press,
1997, pp. 147-164; mais sucintamente, em nossa literatura jurídica: ZAFFARONI, Eugenio Raúl;
BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro, vol. I, 2ª ed.
Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 45.
46
interessados sobretudo em que se lhes estabelecesse o monopólio da prescrição de
fármacos, ampliando o mercado de sua profissão131.

No cenário internacional, o pretexto de missão civilizatória que


legitimava as ambições imperialistas norte-americanas mostrou-se, na virada do
século, de grande utilidade para que andassem em paralelo a sua expansão comercial
e a exportação do moralismo puritano 132.

Nesse contexto, uma vez que o Chinese Exclusion Act ensejara


boicotes chineses a produtos americanos, e vendo seus empresários preocuparem-se
com a possível perda de um mercado potencial de 400 milhões de pessoas, os
Estados Unidos houveram por convocar uma conferência internacional em Xangai
para discutir a interdição do ópio. Alegaram, como pretexto para a reunião, a
necessidade de se proteger a China e seu povo contra os males da citada droga, a
partir do que pretenderiam abolir a sua produção e comercialização em outras terras.
A conferência, ocorrida em 1909, não logrou o efeito almejado, apesar dos esforços
retóricos dos americanos: delegados europeus, mais informados farmacologicamente
e que argumentavam sob uma perspectiva laica, não compreendiam como o mais
tradicional remédio para tantas moléstias pudesse resultar “maligno e imoral”; a
Turquia nem mesmo compareceu, ao passo que a Pérsia enviou um traficante de ópio
como seu representante oficial; por fim, a China – o país a que se tencionava socorrer
– já equacionara problemas de insubordinação civil e de corrupção motivados por
sua política proibicionista anterior. Encerrou-se a conferência com a aprovação de
recomendações (e não resoluções, como queriam os americanos), das quais apenas
duas iam ao encontro parcial dos interesses de seus fomentadores – uma que instava

131
ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, pp. 603-
607. Aponta o autor que o discurso do alto risco à saúde pública foi então introduzido nos debates por
tais profissionais e pela American Medical Association, que se arrogavam mais autorizados a discutir
o assunto malgrado estudos científicos a respeito ainda se revelarem inconclusivos.
132
Com efeito, é possível afirmar que as teses do destino manifesto e da doutrina Monroe (e, pouco
após, a releitura desta à luz do big stick de Theodore Roosevelt) desempenharam papel relevante na
justificação do protagonismo americano no movimento internacional contra o ópio e outros vícios
iniciado com o século XX. Nessa medida, em tempos em que missionários exerciam acerca do ópio
uma influência jamais vista sobre a opinião pública e a política oficial estadunidense, autoridades logo
constataram que a imposição de sua fé e cultura a outras nações, inicialmente através de um
empreendimento cristão, revelar-se-ia um empreendimento altamente rentável. Idem, ibidem, pp. 608-
617.
47
governos à gradual supressão do ópio fumado, e outra, a que não se exportasse ópio a
nações cujas leis proibissem sua importação133.

De toda sorte, é inegável que a Conferência de Xangai constitui um


marco evolutivo para a doutrina e as políticas da proibição, por haver inaugurado a
lista dos muitos encontros diplomáticos internacionais com o mesmo fim – e que se
mostrariam bastante exitosos e raramente contestados.

Igualmente estimulada pela diplomacia estadunidense, ocorreu, entre


1911 e 1912, a Conferência da Haia, onde surgiriam as primeiras deliberações
internacionais no sentido da proibição de drogas. Ali se firmou a idéia de o uso
médico constituir a única justificativa legítima para a utilização de psicoativos como
o ópio, a morfina e a cocaína (e derivados), e se estabeleceu que as partes
contratantes comprometer-se-iam a aprovar legislações restritivas em âmbito interno.
Todavia, inúmeros foram os impasses disso decorrentes, ora porque potências
aceitavam restringir apenas fármacos que não produziam, ora porque se recusavam a
firmar trechos em que a assunção de compromissos pudesse beneficiar potências
concorrentes que se haviam ausentado da conferência – e que, portanto, não seriam
signatárias do acordo134. Conseqüentemente, negociações foram suspensas e a
conferência teve de ser retomada nos dois anos posteriores, sendo que, dos
signatários de 1914, somente cinco cumpririam o acordo de aprovar legislações
proibitivas internas135.

A primeira lei federal norte-americana a controlar a distribuição de


psicoativos, o Harrison Act136, foi promulgada em 1914 como decorrência direta das
conversações travadas na Haia, vindo a abarcar, deste modo, particularmente
opiáceos e derivados de coca, e a consagrar o princípio de que somente era aceitável

133
Idem, ibidem, pp. 617-621. Vale anotar que a Turquia, então maior produtor mundial do psicoativo,
em resposta à proposição americana de realização imediata de uma nova conferência, prometera
formalmente não participar de reuniões em que se enviassem missionários para tratar de economia e
farmácia (ibidem, p. 621).
134
Idem, ibidem, pp. 627-631. Note-se a inelutável prevalência de razões econômicas nas discussões
que, alegadamente, pretendiam tutelar uma suposta saúde pública. Ao cabo, os acordos que houve
fundaram-se em concessões econômicas cruzadas entre as potências preponderantes.
135
EUA, China, Holanda, Noruega e Honduras.
136
Concebido preliminarmente pelo congressista democrata Francis Burton Harrison, tal diploma
legislativo foi aprovado após pouquíssimas discussões públicas e quase nenhuma cobertura dos meios
de comunicação (DAVENPORT-HINES, Richard. Op. cit., p. 213).
48
– e moral – o uso médico dessas substâncias, e devidamente controlado pelos
respectivos profissionais; jamais qualquer outra forma de uso.

Fruto do parco amadurecimento do estudo da matéria e do atropelo


legislativo que culminou em sua aprovação, o Harrison Act apresentou um texto
confuso137, que não deixava claro se se tratava de meras regulamentações
administrativas e tributárias ou de normas de direito material (e penal) 138. Por essa
razão, dificuldades de aplicação prática da norma – cuja fiscalização incumbiu à
fazenda, e não à polícia – eram inevitáveis 139, e mesmo a Suprema Corte precisou de
mais de uma apreciação de caso para, pressionada pelo governo, reconhecer sua
constitucionalidade140. Cabe assinalar, porém, que, a partir do início da década de
1910, a bancada proibicionista no Congresso crescia sistematicamente após cada
eleição proporcional, evidenciando haver um considerável nicho eleitoral para tal
discurso; assim, uma proibição mais explícita, que reclamava uma reforma
constitucional ainda não possível em 1914, não tardaria a chegar.

Do outro lado do Atlântico, a hostilidade britânica para com a cocaína


crescera com a eclosão da Primeira Grande Guerra. Os alemães, que rivalizavam
com os britânicos em suas práticas imperialistas e em sua tardia mas acelerada
industrialização, eram vistos por eles como os grandes detentores da produção dessa
droga, e seus laboratórios haviam relevante mercado consumidor no Reino Unido. A
cocaína, então, veio a ser considerada inimigo de guerra, tal qual o Estado alemão
também o era141.

Terminado o conflito, as forças aliadas, entre outras exigências


impostas aos derrotados, incluíram a ratificação dos acordos lavrados na Conferência

137
Como, de resto, seria comum à generalidade das legislações proibitivas que se criariam em todo o
mundo nas décadas subseqüentes.
138
ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, pp. 636-
644.
139
Idem, ibidem, pp. 641-644.
140
Caso United States v. Doremus, julgado em 1919.
141
O fenômeno da estigmatização dos fármacos produzidos na Alemanha, notadamente aqueles
baseados em cocaína e heroína, repetir-se-ia nos EUA – que entrariam na guerra pouco mais tarde –,
onde a penetração de tais compostos passaria a ser vista como “uma conspiração germanófila para
escravizar o incauto usuário” (ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., p. 434). Ressalve-se aqui, todavia,
a constatação de Escohotado quanto às falsas informações – ora exaltando propriedades inexistentes,
ora omitindo graus de danosidade e letalidade – contidas em materiais de propaganda e mesmo em
artigos com que laboratórios como Bayer, Merck e Parke Davis visavam a difundir o uso de alcalóides
manufaturados. Op. cit., pp. 433-434; 455-457.
49
da Haia, a que a Alemanha ainda resistira. Destarte, o tratado de paz de Versalhes, de
1919, por sugestão da diplomacia inglesa142, fez expressa referência em seu art. 295
ao dever de todas as partes fazerem valer aqueles acordos, inclusive aprovando sem
demora a legislação interna que a tanto fosse necessária 143. Tais circunstâncias
concorreram para que, a partir de então, usuários de drogas passassem a ser vistos
como criminosos não somente nos EUA, mas também na Europa. Desta forma, ainda
no início do século XX, o mundo se via, cada vez mais, diante da definitiva escalada
do proibicionismo.

De volta à América, ainda no ano de 1919 ocorreria fato de extrema


importância simbólica: no caso Webb et al. v. The United States, decidiu a Suprema
Corte que médicos não poderiam prescrever opiáceos para tratar pacientes já
viciados, ainda que não houvesse outra forma de tratamento para drogaditos. Essa
decisão, naturalmente precedida de intensa campanha moralista144, fez com que
consultórios médicos passassem a ser invadidos e fechados por agentes federais e
muitos de seus titulares fossem processados criminalmente como instigadores do
vício 145; médicos renomados que ousaram pronunciar-se publicamente contra a
irracionalidade da proibição foram perseguidos e estigmatizados, tiveram suas
carreiras arruinadas e chegaram a ser processados por “conspiração para violar o
direito vigente”146. A seu turno, o mass media nascente

servia sensacionalismo puro e simples: os temas favoritos


eram negros cocainizados até a exasperação, chineses em
sinistros fumatórios, mexicanos entre orgias e maconha,
morfinômanos alemães com afãs revanchistas e, quanto
ao álcool, as conhecidas acusações a irlandeses e
italianos147.

Afigurava-se, então, concluído o cenário para a definitiva interdição


federal dos narcóticos, novéis inimigos da tranqüilidade pública. Antes disso, porém,

142
Idem, ibidem, p. 631.
143
É de se notar que, a partir de então, praticamente todos os países do planeta se obrigariam a seguir
disposições acordadas por alguns poucos em 1912.
144
ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., p. 644.
145
Por vezes, agentes da repressão fingiam-se pacientes dependentes em consultas, para, após
forçarem o recebimento de uma prescrição de narcótico, procederem à prisão e incriminação de
médicos; outros estratagemas indutores também foram utilizados para o mesmo fim, o que era
facilitado pelo fato de o delito ser de mero risco, sem lesão ou mesmo vítima definida. Idem, ibidem,
p. 665-670.
146
Idem, ibidem, pp. 644; 657-660.
147
Idem, ibidem, p. 660.
50
a sociedade estadunidense ainda haveria de se preocupar, particularmente, com a
necessidade de limpar-se do álcool.

Na segunda metade da década de 1910, proposições legislativas contra


o uso do álcool já eram recorrentes, embora houvessem permanecido obstadas por
grupos políticos mais liberais, sendo que o consumo da bebida era hábito de muitas
autoridades de todos os poderes. O cenário político, de todo modo, endurecera com o
envolvimento americano na guerra, e fatores díspares como a vitória militar na
Europa, conflitos sindicais internos, revoltas operárias, a revolução bolchevique na
União Soviética e as pressões exercidas por grupos proibicionistas, ao exacerbarem o
nacionalismo e o messianismo do povo americano, criariam um terreno fértil para o
recrudescimento legislativo; enquanto isso, usuários de drogas foram incluídos em
um complexo clichê que abrangia germanofilia, barbárie e crime 148. Por conseguinte,
em 1919, em conformidade com a tendência respeitante manifestada pela sociedade
norte-americana, entrava em vigor a 18ª emenda à Constituição do país, permitindo a
restrição de liberdades públicas até então intocadas. Exsurgiria, um ano após, o
Volstead Act149, ou “lei seca”, que proibia, sob penas de multa e prisão, todo o ciclo
de produção, estocagem, comercialização, exportação e importação de álcool,
designando portanto o seu absoluto banimento.

Para os artífices da lei seca, sua entrada em vigor em janeiro de 1920


significaria o nascimento de uma nova nação, de costumes limpos e espíritos sóbrios,
livre de guetos, de cárceres e casas de correção vazios e de alegrias plenas para
homens, mulheres, e crianças; mais que isso, fechar-se-iam “para sempre as portas
do inferno”150.

Conforme se sabe, contudo, a lei seca revelou-se totalmente ineficaz


para os fins a que se propôs, pouco tendo feito além de potencializar, em medida

148
Idem, ibidem, pp. 644-645. Anota o autor, ainda que, grupos abstêmios opuseram-se à atitude de
não-beligerância inicialmente defendida pelo presidente Wilson, tendo sido muito difundida em todo o
país uma exaltação à guerra feita pela Anti-Saloon League, declarando que o hábito de beber “não
apenas é criminógeno, ruinoso à saúde, corruptor da juventude e cusador de desunião marital, mas
também germanófilo e traidor da pátria”. Ibidem, pp. 646-647.
149
Assim alcunhada em homenagem ao seu principal arquiteto, o deputado republicano Andrew
Volstead.
150
VOLSTEAD, Andrew apud ESCOHOTADO, Antonio. Op. Cit., p. 648. Não se podendo justificar
tamanha intervenção na liberdade pelos interesses econômicos em jogo, observe-se a que
impressionante ponto o discurso moralista de limpeza social se revelava ingênuo, e, do ponto de vista
político-legislativo, flagrantemente equívoco.
51
extrema, o negócio ilegal. Deveras, nunca deixou de circular muito álcool em
território norte-americano, e agora o álcool ilícito gerava novos problemas de saúde
pública ao apresentar impurezas e, por vezes, nocividade letal151. Ainda, o mercado
ilícito forjado pela proibição beneficiou diretamente o gangsterismo e as máfias, que,
aproveitando-se do monopólio artificial, experimentaram crescimento
exponencial152; e agigantou-se o aparato burocrático estatal voltado à repressão, com
a criação de agências e outros órgãos especiais para a realização do controle
pretendido153. Como conseqüência, vertiginoso também resultou o crescimento da
corrupção entre agentes oficiais 154. Tudo isso sucedeu de modo crescente e
sustentado até o ano de 1933, quando a aprovação da 21ª emenda implicou a abolição
da lei seca.

Os resultados devastadores de quase uma década e meia de equívoco


proibicionista-moralista, porém, não seriam facilmente contornados. A proibição do
álcool lançara às margens da lei um enorme contingente populacional, com
desastrosas implicações: além de haver ensejado a segregação e estigmatização de
um sem-número de consumidores, o Volstead Act contribuiu para que associações
criminosas crescessem e aprimorassem seus modi operandi – de execução e de
organização territorial e financeira – de maneira notável155; afirma-se datarem desta
época, inclusive, as primeiras práticas modernas de lavagem de valores156. Por fim,
considera-se que a elevação de preço, a queda na qualidade e a dificuldade de
obtenção de álcool havidas durante a proibição foram os principais responsáveis pela

151
Segundo Escohotado, calcula-se que 10% do álcool industrial desnaturalizado dos EUA naqueles
tempos foi desviado para produzir licores, e que houve cerca de 30 mil pessoas mortas por ingestão de
álcool metílico e outras destilações venenosas, além de outros 100 mil com lesões permanentes como
cegueira ou paralisia. Op. cit., p. 652.
152
DAVENPORT-HINES, Richard. The pursuit of oblivion: a global history of narcotics. London –
New York: W. W. Norton, 2002, p. 226; ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., pp. 652-654.
153
DAVENPORT-HINES, Richard. Op. cit., p. 230.
154
Dos cerca de 18 mil agentes inicialmente recrutados pela repressão ao álcool, 34% foram
identificados, onze anos depois, com notas desfavoráveis no exercício de sua função;
aproximadamente 10% foram expelidos e processados por crimes de extorsão, roubo, furto, falsidade
ideológica, tráfico e perjúrio; nem mesmo os ministros do interior e da justiça do presidente Harding
deixaram de se envolver com contrabando e grupos criminosos. ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., p.
652.
155
ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., pp. 652-653.
156
A respeito, anota Pitombo que a popularização da expressão money laudering possivelmente se
deve à alegada prática, corrente em Chicago nos anos 20, de utilização das lavanderias locais por
gangsters com o fito de ocultar o dinheiro obtido ilicitamente, conforme se manifestou Meyer Lansky,
importante mafioso da época. PITOMBO, Antonio Sérgio Altieri de Moraes. Lavagem de dinheiro: a
tipicidade do crime antecedente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 32.
52
emergência dos barbitúricos e pela explosão no consumo de maconha pela sociedade
estadunidense verificados na primeira metade do século XX157.

Nos anos 20, todavia, consolidara-se irreversivelmente a repressão aos


narcóticos, apesar de seus duvidosos resultados. A campanha mediática de
estigmatização dos alcalóides e de seus usuários fora muito bem-sucedida, bem como
a repercussão de declarações públicas deliberadamente exageradas de chefes da
repressão interessados no aumento de seu orçamento158. A seu turno, seus agentes, no
mais das vezes, preferiam a fácil tarefa de irromper-se contra inofensivos médicos e
dependentes a arriscar-se contra mafiosos, o que, no entanto, tampouco livrou
aqueles de serem objeto de chantagens e extorsões oficiais159.

Outrossim, fechadas as clínicas médicas, logo surgiam as vendas de


morfina e cocaína nas ruas das cidades, a preços artificialmente elevados pela
proibição e livres de qualquer tributação, e, graças às práticas heterodoxas desse
novo mercado, cresciam os números de usuários e dependentes160. Convertidos em
negócio altamente rentável e convidativo para transgressores, mitificados por setores
sociais pobres e por determinados estratos sociais mais altos – especialmente os de

157
ESCOHOTADO, Antonio. Op cit., p. 769; DAVENPORT-HINES, Richard. The pursuit of
oblivion: a global history of narcotics. London – New York: W. W. Norton, 2002, p. 239. A respeito,
vale citar a observação precisa de Brecher: “Foi uma mudança legislativa, e não uma mudança na
natureza humana, que estimulou a propaganda em larga escala do uso de maconha para fins
recreativos nos Estados Unidos”. BRECHER, Edward M. et al. The Consumers Union report on licit
and illicit drugs. Boston: Little, Brown, 1972, 55.
158
ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., p. 666.
159
Idem, ibidem, p. 670.
160
Idem, ibidem, pp. 669-670. A título de comparação entre os tempos iniciais da proibição e tempos
de sua vigência consolidada, expõe o mesmo autor: “[...] em 1928, a Narcotics Division da Proibition
Unit tinha apenas 170 agentes em todo o país, numero insuficiente para acossar de modo eficaz boa
parte dos usuários habituais. Esse tipo de usuário, chamado às vezes de southern white, abarcava um
setor de classes médias formado por arrendatários, profissionais liberais, senhoras de idade, etc., e,
até que a proibição não o estigmatizasse seguiria sendo um grupo normal de pessoas que nem sequer
eram detectadas, na maioria dos casos, como usuários assíduos de drogas [...]. Sessenta anos depois,
sem nenhum exagero, haverá cem vezes mais agentes dedicados à repressão, e cem vezes mais
usuários de drogas proibidas. Nas mesmas cidades, uma investigação semelhante mostrará que a
maioria dos adictos são adolescentes, todos laborativamente nulos e quase 90% autores de outros
delitos, que por preços astronômicos injetam-se soluções dez ou vinte vezes menos puras, cuja alta
freqüência de mortes por envenenamento se denomina eufemisticamente overdose. A evidência de
aqueles ‘adictos estabilizados’, longevos e sem problemas de socialização, contrasta com a vida
breve e a destrutividade dos pseudoadictos contemporâneos, consumidores de sucedâneos com parte
de um ritual draculino que compra irresponsabilidade, porque as circunstâncias impostas pela lei à
satisfação de seu vício assim sugerem. E, muito curiosamente, essas pessoas de média ou terceira
idade que a princípios do século suportavam o hábito eram dope fiends, embora respeitassem
escrupulosamente as leis, enquanto os que agora cometem parricídios para adquirir maisena ou
estricnina com vagos rastros de um opiáceo são ‘inocentes vítimas’ precisamente do opiáceo, não do
sistema específico que fomenta esse engano e esse envenenamento”. Ibidem, p. 664.
53
artes e moda –, opiáceos e cocaína floresceram com mais força que antes de 1914,
quando eram propagandeados por grandes laboratórios. Mas em 1930, ao passo que
inicialmente referira-se a números inexistentes para defender o recrudescimento, o
comando repressivo negava o crescimento do problema. E o grupo de usuários
antigos, predominantemente formado por cidadãos de classe média, maiores de
quarenta anos e consumidores de preparados farmacêuticos, cedia lugar a jovens
usuários de morfina, cocaína e heroína contrabandeadas, viventes nas periferias
pobres de grandes cidades, dos quais cerca de dois terços eram negros e sul-
americanos. Acossados pela repressão e pelos altos preços, traficavam para sustentar-
se, apresentando altos índices de cometimento de crimes comuns e absenteísmo
laboral. Compunham minorias étnicas segregadas que, se por um lado utilizavam-se
de drogas para tentar aliviar sua condição miserável, por outro haviam assimilado o
estigma de usuários marginais161.

2.4.2. Da sanidade social às ideologias da segurança

Em 1930 surgiu o Federal Bureau of Narcotics (FBN), agência cujo


escopo era cuidar das políticas de drogas em geral, executando as diretrizes
repressivas correspondentes. Sua criação se deu precisamente após haver-se
descoberto o envolvimento do filho e do genro do então principal chefe da repressão
com um importante gângster de Nova Iorque, circunstância que impunha a imediata
substituição de órgão e chefe 162.

No limiar da nova década, seria a vez de a maconha tornar-se


substância eleita como fonte anti-americana de perversão social, e incluída entre os
“narcóticos” passíveis da mais feroz perseguição. Isso se deveu, em grande medida,
ao fato de a imigração de mexicanos haver-se multiplicado nos anos 20 em estados
do Sul e Oeste, atraídos pelo acelerado desenvolvimento econômico dos Estados
Unidos. Sua mão-de-obra barata, a princípio – como sucedera com chineses –, foi
bem acolhida por patrões, e contestada por sindicatos. Com a grande depressão,
entretanto, passaram a constituir um indesejável excedente de bocas a serem

161
Idem, ibidem, pp. 671-672.
162
Idem, ibidem, p. 679.
54
alimentadas em regiões assoladas por desemprego. Isso posto, fatores como (i) a
preocupação dos proibicionistas em evitar sua desmoralização após a derrogação da
lei seca e em prevenir uma possível onda de tolerância que lhe fosse conseguinte, (ii)
a já conhecida identificação havida entre mexicanos e uso da maconha e (iii) a
inserção do cânhamo no rol de substâncias passíveis de interdição anunciado pela
Convenção de Genebra de 1925163 contribuíram para que logo emergissem fortes as
associações entre o uso da droga e os supostamente degenerados, depravados e
violentos imigrantes mexicanos164. Malgrado as investigações científicas de então já
tendessem a um sentido contrário ao da propaganda estigmatizante, em 1937 viria a
lume o Marihuana Tax Act, que, contendo normas penais imiscuídas em regulações
administrativas, pode ser considerado, tanto do ponto de vista político quanto
jurídico, uma lei análoga ao que fora o Harrison Act para opiáceos165.

A vedação ao uso e distribuição de psicoativos não era a única, mas


apenas uma das formas de controle social formal exercido com o fim de estabelecer o
domínio sobre grupos alheios ao wasp. De todo modo, findas as primeiras décadas do
século XX, a doutrina da proibição já se incorporara, definitivamente, às estratégias
de segurança pública locais.

Dada a elevação dos EUA à condição de superpotência capitalista


dominante, também a sua política proibicionista não se revelaria difícil de ser
exportada para os demais países, que começavam, nos anos 20, “a acolher a idéia da
dieta farmacológica como incumbência estatal”166. Assim, a Sociedade das Nações
houve por criar órgãos permanentes dedicados à fiscalização do tráfico, e os países
avançados, vencedores e vencidos na guerra, alheios às complexas relações sociais
existentes nos EUA (sobretudo até a revogação da lei seca), acostumavam-se a
legislar, sem atropelos ou interrupções, sobre esse novo campo – invariavelmente
segundo determinações de uma autoridade internacional que, por sua vez, cedia às
iniciativas sugeridas pela delegação estadunidense167. Os grandes laboratórios, a seu
turno, contentaram-se com novas descobertas de psicofármacos tão ou mais
163
Por sugestão da delegação britânica, porquanto o raxixe passara a simbolizar no Egito atitudes
coloniais subversivas, por vezes solapando o mercado de psicoativos – uísque, gim, tabaco, heroína –
comercializados pela metrópole imperialista. Idem, ibidem, p. 701.
164
Idem, ibidem, pp. 689-692.
165
Idem, ibidem, pp. 692-698.
166
Idem, ibidem, p. 681.
167
Idem, ibidem, p. 681.
55
poderosos e lucrativos que os antigos e que, ao não serem associados a grupos
marginalizados ou culturas colonizáveis, perenizar-se-iam como inocentes
168
medicamentos . O proibicionismo, a essa altura, já era uma política vitoriosa.

Ainda no entre-guerras, firmaram-se, na cidade de Genebra, três


convenções internacionais sob os auspícios da Sociedade das Nações. A primeira, em
1925, agregou a heroína e o cânhamo ao rol de substâncias cuja tutela internacional
fora instituída na Haia, seguiu os princípios desta quanto à ilegitimidade de qualquer
uso não médico ou científico dos fármacos, e criou o primeiro comitê internacional
permanente de fiscalização. A segunda, em 1931, tencionou executar diretrizes
assentadas na anterior, estabelecendo avaliações das quantidades necessárias ao uso
autorizado que cada país se obrigava a apresentar anualmente169. A terceira, em
1936, caracterizou-se pela perfeita identidade entre os critérios estadunidenses e
aqueles assumidos pela autoridade internacional, obrigando os Estados-partes a
perseguirem o não apenas o tráfico mas qualquer relação com estupefacientes –
reprimindo severamente, inclusive, a sua posse e os atos preparatórios dos delitos
correspondentes170 – e recomendando-lhes criar serviços policiais especializados171.

O proêmio da guerra fria trouxe consigo um novo tempo de caça às


bruxas na América do Norte, o macarthismo, de que se aproveitou o FBN para
propalar um suposto complô comunista para a exportação clandestina de opiáceos,
visto que, aparentemente, grupos mafiosos russos se ocupavam do contrabando172.
Nenhuma menção se fez, contudo, ao suporte americano às máfias marselhesa e
chinesa – a qual se mudaria para Taiwan juntamente com o líder Chiang Kai-shek173.
Nesse contexto, novos diplomas legislativos seriam aprovados: o Boggs Act, de
1951, impunha pena mínima de dois anos de prisão a réus primários que
consumissem ou portassem qualquer quantidade de droga; ainda mais duro, o
Narcotics Control Act, de 1956, elevava a cinco anos tal limite mínimo, podendo

168
Idem, ibidem, p. 682.
169
A delegação norte-americana fixara a idéia de se estabelecerem limites atinentes à produção e
circulação dos fármacos de uso controlado para cada país.
170
Art. 2º, “a” e “d”.
171
A respeito, vide: ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa,
2000, pp. 699-705.
172
Não há evidências concretas de que as potências comunistas – URSS e China – hajam estimulado a
exportação de psicoativos como forma de subversão política, embora claramente possam ter lucrado
com tal comércio. Idem, ibidem, pp. 728-729.
173
Idem, ibidem, pp. 727-729.
56
chegar até a prisão perpétua ou mesmo, no caso de um adulto que vendesse droga a
um menor de 18 anos, a pena capital.

O resultado de novo recrudescimento foi uma elevação ainda maior


nos preços e, portanto, na rentabilidade do negócio. As importações contrabandeadas
massificaram-se, e, no varejo, a fim de desviarem-se dos rigores da lei, traficantes
recrutaram menores de idade para as vendas nas ruas174. O crescimento do consumo
e da dependência foi notável nos anos subseqüentes às leis Boggs e Narcotics
Control. Não obstante, o perfil dos usuários também experimentava uma sensível
modificação: iniciava-se a era dos junkies americanos.

Se, nos primórdios do proibicionismo, consumidores de drogas


satisfaziam seu desejo ou seu vício de forma oculta e geralmente ocasional, muitas
vezes visando a lidar com angústias pessoais ou cumprir com suas tarefas laborais, a
partir de meados da década de 1950, ao revés, jovens usuários introjetavam a
imagem erigida pelo ideário proibicionista ao consumir um bem que lhes conferia
irresponsabilidade e identificação com grupos de iguais com que se relacionariam e
compartilhariam hábitos e rituais de uso – no mais das vezes, intravenoso.
Incorporavam uma certa rebeldia sem causa como atitude ética e estética contraposta
à de heróis nacionais de seu tempo como o senador Joseph McCarthy e o czar
antidrogas Harry Anslinger 175, pelo que marginalizavam a si próprios e expunham
publicamente seus hábitos com drogas sem maior hesitação176. Nessa medida,
empreenderam um processo de mitificação do consumo de drogas em estratos sociais

174
Idem, ibidem, p. 735.
175
Chefe do FBN entre os anos de 1930 e 1963, Harry J. Anslinger desempenhou papel fundamental
na consolidação do probicionismo dentro e fora dos Estados Unidos. À sua liderança se atribuem em
grande medida as campanhas contra a maconha nos anos 30, e os resultados da terceira Convenção de
Genebra, de 1936. Mais tarde, no pós-guerra, a concentração de poderes que reunira em torno de si e
suas extraordinária influência política e identificação com os princípios patriótico-moralistas reinantes
nos EUA fariam do FBN pilar fundante da estrutura burocrática de segurança nacional desse país
(McALLISTER, William B. Drug diplomacy in the twentieth century. New York: Routledge, 2000,
pp. 147-148).
176
A introdução e popularização do termo e da cultura junkie se deve à obra do escritor William S.
Burroughs (especialmente em: Junkie. New York: Ace Books, 1953; e Naked lunch. New York:
Grove Press, 1959), que, ao lado de Allan Ginsberg e Jack Kerouac, liderou o chamado “movimento
beatnik” – ou “geração beat” – em meados da década, considerado o principal precursor a
contracultura nos EUA. Ginsberg, inclusive, chegou a publicar artigo sobre a maconha: (“The Great
marijuana boax: first manifesto to end the bringdown”. In: Atlantic Monthly, Nov/1966, pp. 104 et
seq.).
57
médios americanos, que se quedaria mais evidente no decênio posterior, com a
contracultura, e, ainda, que influenciaria grupos de jovens em diferentes países177.

Ao notável recrudescimento legislativo dos anos 50 e à emergência da


cultura junkie – e, com ela, a mitificação do consumo de drogas – seguiu-se uma
multiplicação do uso e dependência de substâncias proibidas nos EUA. Então, de
fato, o consumo de drogas como a heroína e a maconha tornava-se um problema de
consideráveis proporções – o que, ao contrário do que havia pretendido, no início do
século, a propaganda moralista e segregacionista que lhe ensejara, não sucedia antes
da escalada da proibição. A resposta, no entanto, foi apenas o óbvio: mais
endurecimento nos planos executivo e legislativo, a despeito de já haver muitas
contestações de sociólogos, médicos e juristas à eficácia da proibição sobre seus
manifestos propósitos preventivos e repressivos178.

De outra parte, convém assinalar que as três décadas que se seguiram


ao término da Segunda Grande Guerra conheceram, também a partir dos EUA, a
massificação do uso de pílulas medicinais manufaturadas – como analgésicos,
estimulantes, barbitúricos, tranqüilizantes e antidepressivos. Deveras, à medida que
se inebriar ou se embriagar tornara-se um hábito socialmente reprovável segundo
padrões culturais dominantes, e porquanto tais pílulas se apresentavam como
higiênicas e científicamente aprovadas, seu consumo veio, em certa medida,
preencher o espaço antes ocupado pelo consumo de álcool179. Tratava-se de uma
época de crescimento econômico sustentado sem precedentes no mundo
industrializado180, em que, contudo, remanesciam ansiedades e traumas sociais
decorrentes (i) da magnitude do conflito bélico que a precedera e das explosões
nucleares que marcaram seu crepúsculo e (ii) de momentos de extrema tensão

177
Quanto à influência do puramente alegórico no uso de drogas que então se irradiava, cabe citar dois
casos exemplares referidos por Escohotado: (i) o de um músico americano de jazz que, após detido
por embriaguez, seu comportamento fez crer aos médicos tratar-se de um heroinômano, levando-os a
lhe administrarem doses de manutenção para prevenir prejuízos maiores; ao depois, descobriu-se que
seu suposto vício não era senão uma fraude, e, no entanto, ele rogou aos médicos que não dissessem a
verdade à sua esposa e sua família pois não queria perder o status de toxicômano; (ii) o do primeiro
cliente dos Narcóticos Anônimos em Londres, que se apresentou como heroinômano mas que era
apenas um jovem “imbecilizado pelo uso massivo de barbitúricos”. ESCOHOTADO, Antonio.
Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, p. 739.
178
Idem, ibidem, pp. 732-745.
179
DAVENPORT-HINES, Richard. The pursuit of oblivion: a global history of narcotics. London –
New York: W. W. Norton, 2002, p. 299.
180
HOBSBAWM, Eric John. Era dos extremos: o breve século XX. Trad. Marcos Santarrita. São
Paulo: Cia. das Letras, 1995, pp. 253 et seq.
58
política entre os protagonistas da guerra fria 181. Ademais, a cultura individualista
predominante no mundo ocidental em muitos casos “degenerava em angústia
existencial, egoísmo e auto-destruição”182. Tudo isso levou à emergência de uma
nova realidade, em que o uso por milhões de pessoas de drogas industrializadas se
revelava irracional183, freqüentemente mais nocivo que o de substâncias proscritas,
mas não era devidamente observado pelas instâncias executivas oficiais 184. Assim,

enquanto que o uso recreativo de drogas por jovens era-


lhes, em geral, uma fase experimental transitória [mas que
lhes estigmatizava e estereotipava], mulheres donas-de-
casa estimuladas por anfetaminas e executivos sedados
por ‘miltown’ eram longevos usuários habituais que
repudiavam a idéia de que possuíssem problemas com
drogas185.

Estas permaneceriam, de fato, as condições farmacológicas em que


vivia a sociedade norte-americana ao tempo em que, poucos anos mais tarde, o país
lançar-se-ia decididamente à caça aos cultivos de cannabis, coca e papoula em todo o
mundo. Nada disso, ademais, constituiria qualquer embaraço a que,
simultaneamente, o país fomentasse vigorosamente as suas exportações de álcool,
tabaco, tranqüilizantes e estimulantes sintéticos; assim, onde houvesse cultura de uso
de psicoativos naturais, impor-se-ia, pela propaganda ou pela força, sua substituição
181
DAVENPORT-HINES, Richard. Op. cit., pp. 301-302.
182
Idem, ibidem, p. 302.
183
Números que apontam o crescimento do consumo de fármacos industrializados desde a metade do
século realmente impressionam: ilustrativamente, cite-se que, em grande medida estimulado por
maciços investimentos em propaganda, o consumo de analgésicos leves – como, v. g., aspirina –
dobrou nos Estados Unidos entre 1940 e 1948, assim como na Dinamarca entre 1951 e 1957 e na
Austrália entre 1955 e 1961. Na Inglaterra, 25% das mulheres com mais de quarenta anos eram
dependentes do uso diário de barbitúricos. O mercado de anfetaminas e tranqüilizantes também
experimentou crescimento exponencial no mesmo período. (Idem, Ibidem, p. 303-305;
ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, p. 885).
Assim é que, em 1960, o consumo de drogas estimulantes (excluindo-se a cafeína) manufaturadas nos
EUA chegava a quinhentas toneladas anuais, o que equivalia a aproximadamente quatro toneladas de
cocaína – cerca de trinta vezes mais que o consumo de 1910; a seu turno, o consumo de drogas
narcóticas ali chegava a duas mil toneladas, cuja atividade poderia equivaler a algo entre vinte e
cinqüenta mil toneladas de ópio – o que significava uma atividade entre três e sete vezes a cifra
máxima consumida pela sociedade chinesa, em fins do século XIX. Surgira, destarte, a “sociedade
adicta”. ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., pp. 786-787; 885.
184
Assinala-se que, de certo modo, a difusão dessas drogas se deveu a agentes terapêuticos – e
instituições oficiais – que viam nelas uma reserva das sociedades avançadas que se contrapunha aos
derivados do cânhamo, da coca, da papoula e da dormideira, cujo uso se associara a rituais de tempos
e nações remotas. Substituíam-se, pois, uns por outros fármacos, mas não a ansiedade do homem
contemporâneo; e, assim, “o que as pessoas fizeram foi confiar nos governos, e o que os governos
fizeram foi substituir uma farmacopéia por outra, seguindo a tendência de preferir o sintético ao
natural, o patenteado ao não patenteado, o manufaturado ao que germina espontaneamente e pode
ser usado mediante transformações mínimas”. ESCOHOTADO, Antonio. Ibidem, pp. 785-786. Trad.
livre.
185
DAVENPORT-HINES, Richard. Op. cit., p. 300.
59
por sucedâneos industrializados186. E somente nas últimas décadas do século XX as
chamadas drogas sintéticas viriam a se tornar objeto de maior preocupação de
formuladores de políticas públicas atinentes às drogas.

A intensificação, nos países centrais, desde fins dos anos 50, de


apresentações de estudos e relatórios científicos elaborados por médicos, sociólogos
e juristas apontando a contraproducência da proibição perante seus fins manifestos
levou a que, já no início da década subseqüente, houvesse importante alteração na
maneira de se tratar a questão do usuário. Este, até então visto como um degenerado
social, inexorável criminoso, passou a ser compreendido essencialmente como um
doente, que, portanto, deveria ser tutelado antes por médicos que pelas agências de
controle do crime. Isso significou, de certo modo, um restabelecimento de
prerrogativas médicas desprezadas na escalada proibicionista da primeira metade do
século. Significou, também, no âmbito da política interna norte-americana, uma
concessão do FBN, que abria mão de seu monopólio para gerenciar o problema a fim
de evitar maiores oposições ao seu modelo proibicionista, e deixava de perseguir
médicos e farmacêuticos. Mas, sobretudo, significou uma mudança apenas limitada
de abordagem do problema que, ao garantir a ingerência oficial sobre a esfera
privada de liberdade do indivíduo, justificava a plena manutenção do viés coercitivo.

Isso porque a novel concepção terapêutica da questão do consumo de


drogas impunha tratamentos a todos e quaisquer usuários, sem considerar seu
eventual desejo ou aquiescência a eles. Pressupunha que, como indivíduos doentes,
não possuíam condições psíquicas para se autotutelarem livremente, o que justificaria
a intervenção compulsória sob alegadas razões altruísticas – a ideologia do
tratamento187.

Sob influência dessa mudança na abordagem da questão do uso de


psicoativos, e mais uma vez tendo a diplomacia norte-americana como principal

186
“[...] Também por esses anos o Ministério da Agricultura americano se lança a fomentar o
consumo de tabaco no estrangeiro, subvencionando generosamente os estúdios de Hollywood para
que roteiristas inserissem cenas capazes de estimular o hábito. Em 1964 , centenas de toneladas que
provêm de excedentes da costa tabaqueira do ano anterior se incluem como aporte americano do
programa internacional Comida para a Paz. Já havia décadas que os principais destiladores
americanos também subvencionavam Hollywood para que houvesse em todas as cenas possíveis
alguém oferecendo uma taça de licor, sinal de modernidade e distinção quando se dispunha do
apropriado mobiliário”. ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit.., p. 788.
187
Idem, ibidem, pp. 744-758.
60
protagonista, firmar-se-ia, em 1961, a Convenção Única das Nações Unidas sobre
Entorpecentes, ampliando-se as deliberações multilaterais em favor da proibição,
mas aceitando a abordagem médica do tratamento do usuário. Já em seu preâmbulo,
explicitava-se a ideologia da norma internacional:

As partes, preocupadas com a saúde física e moral da


humanidade, [...] reconhecendo que a toxicomania é um
grave mal para o indivíduo e constitui um perigo social e
econômico para a humanidade, conscientes de seu dever
de prevenir e combater êsse mal [...]188.

Destarte, além de manter-se a anacrônica noção de “saúde moral”, sugeria-se a


ampliação do valor pretensamente tutelado pelas normas proibitivas, abarcando
também a ordem econômica, além da saúde individual e pública e da tranqüilidade
social.

Também em seu preâmbulo, reconhecia-se ser “o uso médico [...]


indispensável para o alívio da dor e do sofrimento”189, e que deviam tomar-se
“medidas adequadas [...] para garantir a disponibilidade de entorpecentes para tais
fins”190, limitando-se, no entanto, “o uso dessas substâncias a fins médicos e
científicos”191. Quanto ao consumo em si, a versão original em inglês192 diferenciava
claramente os conceitos de uso e abuso, mediante o critério arbitrário da mera
autorização legal – pelo que o consumo lúdico isolado, mesmo que em quantidade
insignificante, já constituía abuso, ao passo que uma overdose mediante prescrição
médica poderia não o ser. Inaugurava, ademais, o sistema de listas de substâncias
controladas: a lista I albergava ópio, morfina, cocaína, metadona e outras oitenta
substâncias, assimiladas a opiáceos, mesmo que fossem sintéticas; a lista II continha
codeína e outras oito, que contemplava um controle menos severo que a anterior; a
lista III, de drogas de fiscalização mais branda, abrangia composições com
substâncias da lista anterior ou com ópio, cocaína ou morfina até uma determinada
proporção; e a lista IV, cujos integrantes mereceram um controle extremo justificado

188
Tradução oficial para o português, conforme a internalização da convenção no direito brasileiro –
Decreto 54.216/64. Disponível em:
<http://www.unodc.org/pdf/brazil/Convencao%20Unica%20de%201961%20portugues.pdf>. Acesso
em: 10/01/2009.
189
Ibidem. Acesso em: 10/01/2009.
190
Ibidem. Acesso em: 10/01/2009.
191
Ibidem. Acesso em: 10/01/2009.
192
Disponível em: <http://www.unodc.org/pdf/convention_1961_en.pdf>. Acesso em: 10/01/2009.
61
por alegadas propriedades super-viciadoras, em que figuravam a heroína, a cannabis
e sua resina e dois outros opiáceos193.

Tal documento de 1961, por admitir o uso médico – ainda que


somente se sob intenso controle -, apresentou-se como progressista. Em verdade,
malgrado toda a campanha ideológica iniciada muitas décadas antes, somente os
EUA, com os junkies, tinham maiores problemas com drogas ilícitas naquele
tempo194. Compatibilizava-se a convenção, ademais, com os princípios paternalistas
próprios do modelo de welfare state então reinante especialmente na Europa. Não
obstante, a ausência de suas listas de muitas drogas sintéticas de efeitos similares ou
mais perniciosos que aquelas ali incluídas, porém, deixaria claro até que ponto
critérios que supostamente visavam à proteção da saúde humana eram de natureza
farmacológica ou deixavam de sê-lo 195.

Outrossim, ainda em fins dos anos 50, substâncias psiquedélicas


interessaram laboratórios e agências oficiais: aqueles buscavam, sem êxito, uma nova
panacéia farmacológica – razão por que haviam pressionado para que tais drogas não
fossem incluídas em qualquer das listas da Convenção Única de 1961196 –, visto que
a CIA197 e o exército estadunidense pretendiam obter algo capaz de manipular ou
neutralizar a mente de inimigos. Para isto, realizaram testes secretos a que dezenas de
milhares de pessoas foram inconscientemente submetidas198; verificada a inaptidão
do fármaco para as pretensões oficiais, interromperam-se os testes em 1959199.

193
Art. 2. As listas internacionais atualizadas de substâncias controladas encontram-se disponíveis em:
<http://www.incb.org/pdf/yellow_lists_all/47th_edition_dec_07_yellow-list_eng.pdf >. Acesso em:
10/02/2009.
194
ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, pp. 756-
757.
195
Idem, ibidem, pp. 757 et seq. Lembra o autor que as drogas lícitas – que seguiam propagandeadas
como panacéias por grandes laboratórios, e vendidas aos milhões (com ou sem prescrição médica) –
foram difundidas como substâncias seguras, infinitamente superiores àquelas provenientes do mundo
subdesenvolvido, e, ilustrativamente, que chegaram a ser oferecidas até pela missão diplomática
norte-americana na Índia às classes médias e altas deste país, sugerindo-lhes substituir, assim, o uso de
opiáceos naturais e da cannabis (p. 780). Lembra também que tranqüilizantes neurolépticos, demais
de seu alto índice potencial de causação de dependência, são, isoladamente, responsáveis por um
número de mortes por overdose acidental nos EUA superior às mortes causadas por overdose (e não
por adulteração) de todas as drogas ilícitas somadas (p. 782).
196
RODRIGUES, Thiago. Política e drogas nas Américas. São Paulo: Educ – Fapesp, 2004, p. 76.
197
Central Intelligence Agency, instituída em 1947.
198
ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., pp. 807-812.
199
Idem, ibidem, p. 811; RODRIGUES, Thiago. Op. cit., p. 76.
62
Contudo, a partir de análises experimentais de uma elite intelectual200, disseminar-se-
ia o uso de drogas visionárias durante a década de 1960 entre os movimentos
artísticos, contestatórios e de desobediência civil a cuja reunião se convencionou
chamar de contracultura201. Em face da variedade de novos psicoativos disponíveis, a
resposta da burocracia oficial, previsivelmente, foi a criação de novas agências de
controle e a gradual estigmatização e proscrição dessas substâncias que já não mais
se lhe revelavam interessantes202; chegou-se a afirmar, em 1966, que drogas
psiquedélicas constituíam “a maior ameaça que se impunha ao país; [...] mais
perigosa que a guerra do Vietnã” 203.

Grupos e comunidades que cultivavam a psiquedelia, ademais,


coincidiram em postular a despenalização do consumo da cannabis, que, de
substância de uso infreqüente e peculiar a imigrantes pobres, logo se tornou o
“fármaco favorito de classes média ilustradas e universitários”204. Em verdade, nos
anos 60, já havia um razoável consenso no plano médico-científico quanto à
imprestabilidade da cruzada ao uso de drogas ante seus manifestos fins
preventivos205, e, agora, dada a posição econômico-social de seus novos
consumidores, a abordagem segregacionista que até então a maconha merecera
200
ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., pp. 792-806. Entre os estudiosos pioneiros das drogas
ampliadoras da consciência encontram-se, por exemplo, o escritor britânico Aldous Huxley, o
psicólogo harvardiano Timothy Leary e o notável químico suíço Albert Hofmann – este, responsável
pela sintetização do ácido lisérgico (LSD).
201
ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., pp. 792-806; 836-858.
202
RODRIGUES, Thiago. Op. cit., pp. 78-79; ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., pp. 811; 864-879.
Entre outras conseqüências, assinala este autor que da proscrição resultou um derrame no mercado
negro de substâncias altamente impuras e tóxicas, ao passo que, até então, o LSD era um produto
barato cujo desenvolvimento mantinha-se, sobretudo, em poder de escrupulosos cientistas e de seus
seguidores nas principais universidades. Porém, mais que o uso em si, no caso do LSD a preocupação
oficial repousava nas investigações científicas mesmas que sua cultura trazia em seu bojo, e que, se
não podiam ser devidamente controladas pelo governo, haviam que ser prevenidas – razão por que, da
noite para o dia, de notável avanço psicofarmacológico o LSD seria convertido em substância
diabólica por força de mero ato legislativo (pp. 864-866).
203
McGLOTHLIN, William H. “Toward a rational view of hallucinogenic drugs”. In: Journal of
psychedelic drugs, vol. I, issue I. San Francisco: Haight-Ashbury, summer/1967, p. 99. Na esteira das
manipulações de opinião pública operadas pelos empresários morais e pelo mass media, vale anotar
que o autor dessa grave assertiva, Charles W. Sandiman, era um senador estadual em New Jersey que,
no ano anterior, fora derrotado em sua candidatura ao Congresso. Após sua campanha à frente de uma
comissão estadual de estudos sobre drogas, saiu vencedor da eleição subseqüente para o Congresso
(1967), e garantiu sua conseguinte indicação para candidatar-se a governador do estado pelo Partido
Republicano. BUNCE, Richard. “Social and political sources of drug effects: the case of bad trips on
psychedelics”. In ZINBERG, Norman E.; HARDING, Wayne M. (eds.). Control over intoxicant use:
pharmacological, psychological and social considerations. New York: Human Sciences Press, 1982,
p. 119.
204
ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., p. 858-859.
205
SKOLNICK, Jerome H. Coertion to virtue: the enforcement of morals, p. 260. Apud
ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., p. 792.
63
tenderia, ainda que de modo limitado, a se modificar perante a sociedade americana.
Reforçava-se então a idéia de que, antes da sanção penal, ao usuário cabia o
tratamento compulsório; a ideologia da repressão, destarte, apenas renovava-se e
consolidava a apresentação de uma nova face, que, se de um lado continuaria a impor
sanções aos usuários, de outro prestava-se muito bem a justificar a perenização e a
intensificação da cruzada através da tese de produtores opressores e de consumidores
oprimidos.

Superados os tempos de contestações políticas e efervescência cultural


que caracterizaram os anos 60, o encerro da década conheceu um marcante
recrudescimento da política criminal norte-americana como um todo, representado
pela emergência definitiva do discurso de lei e ordem (law and order) na vitoriosa
campanha eleitoral de Richard Nixon. Empossado o novo presidente em janeiro de
1969, passaram-se a implementar medidas de combate à criminalidade que visavam a
comunicar ao eleitorado uma sensação de incremento na eficácia do aparato
repressivo oficial. Foi nesse contexto que logo se identificaram as drogas como um
tema de particular apelo político-ideológico e propagandístico, o que determinaria o
tratamento a ser por elas merecido a partir de então206.

2.4.3. Anos 70: repressão de drogas como assunto de segurança nacional, e


posterior exportação da guerra às drogas sob a forma de intervencionismo
militarista

206
Anota Baum que, vencidas as eleições com o uso de propaganda fortemente baseada no discurso de
lei e ordem, impunha-se à – inexperiente – equipe que assumiria a Casa Branca a dificuldade de
cumprir o que alardeara, na medida em que a competência executiva e legislativa acerca de prevenção
e repressão da criminalidade urbana – ou seja, daqueles crimes que suscitam maior sensação de
insegurança social – era eminentemente estadual e a matéria era vista pela população como assunto de
natureza local. Havia-se que estabelecer, então, um campo de atuação federal nas políticas de
policiamento de ruas, tendo-se chegado a cogitar a federalização dos crimes de roubo e furto a
residências – algo que, entretanto, à evidência não teria qualquer base legal e constitucional. Sugeriu-
se, então, o envolvimento nas políticas de repressão ao comércio e uso de drogas, porquanto a
produção e a circulação de tais substâncias claramente implicavam questões de controle de fronteiras
nacionais e interestaduais, permitindo, assim, intervenção federal na matéria com vistas a responder as
expectativas criadas durante a campanha eleitoral (BAUM, Dan. Smoke and mirrors: the war on
drugs and the politics of failure. Boston: Back Bay Books, 1997, p. 13-17; 28). Assim, dado o
potencial propagandístico de uma intensificação da cruzada contra as drogas, pouco importava que o
número de americanos mortos em virtude do uso de drogas ilícitas no país em 1969 houvesse sido
inferior, por exemplo, ao de mortos engasgados com alimentos ou acidentados em escadarias (ibidem,
p. 28).
64
Ante o término da guerra no Vietnã em meados de 1971, afirmou
Nixon, em pronunciamento ao Congresso, que os Estados Unidos estavam diante de
uma “emergência nacional”, tendo as drogas tornado-se o “inimigo número um” da
nação, pelo que se impunha um plano de ataque sem precedentes na história 207. Era
necessário declarar-lhes guerra e, assim, nas semanas subseqüentes, surgiria a
expressão war on drugs para referir-se ao combate ao mercado de psicoativos dentro
dos EUA bem como sua produção e circulação em toda e qualquer parte do mundo.
Para o presidente, de fato, a intransigente caçada às drogas era uma questão crucial
para a moralidade norte-americana, assim como o era também para as suas
pretensões de reeleição208.

As medidas anunciadas por Nixon em junho daquele ano implicavam


imediatos investimentos de centenas de milhões de dólares e compreendiam o
financiamento de pesquisas para produção de herbicidas, o desenvolvimento de
novos mecanismos de detecção de drogas, maior controle alfandegário, a busca pela
responsabilização criminal de traficantes dentro e fora do país e o tratamento
compulsório a usuários209. O plano governamental incluía, ainda, a futura criação de
um órgão que centralizasse a coordenação das políticas de controle sobre psicoativos,
então dispersas entre nove agências federais, e que deveria abarcar também ações
militares210.

Efetivamente, em linhas gerais, tais medidas comporiam o cerne da


política do war on drugs que teria prossecução nas décadas seguintes, a qual ainda
justificaria numerosas ações de ingerência na política interna de outros países. Dessa
maneira, os EUA, que por razões diversas tornaram-se o principal mercado
consumidor de psicoativos, consagravam o discurso da existência de países
produtores e países consumidores, passando a se apresentar como vítimas de uma
suposta invasão externa. Referiam-se a grupos clandestinos que alegadamente
estariam a atentar contra a sua soberania, infringindo as suas leis e trazendo-lhes
problemas crônicos de segurança e saúde públicas. Justificar-se-iam, pois, aos olhos

207
“THE NEW PUBLIC ENEMY Nº 1”. Time Magazine, 28/06/1971. Disponível em:
<http://www.time.com/time/magazine/article/0,9171,905238-1,00.html. Acesso em: 10/01/2009>.
208
Ibidem. Acesso em: 10/01/2009. A alvorada da guerra às drogas contou com expressivo apoio do
mass media, que se refletiria nas pesquisas de opinião pública.
209
Ibidem. Acesso em: 10/01/2009.
210
Ibidem. Acesso em: 10/01/2009.
65
estadunidenses ações externas de combate, a partir do que se passou a tratar do tema
como política de segurança nacional, mobilizando-se todo um aparato militar.

No plano internacional seria firmado em Viena, no ano de 1971, a


Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas, que não possuiu qualquer pretensão de
suplantar a Convenção Única de 1961, mas de somar-se a ela. Tratou-se, em verdade,
de mais uma reunião estimulada pela diplomacia estadunidense, ora na pretensão de
proscrever internacionalmente também as drogas ampliadoras da consciência –
legitimando a sua opção político-jurídica interna –, e de manifestar alguma regulação
– ainda que simbólica – sobre os fármacos lícitos que tanto abuso ensejavam já havia
décadas.

Como ocorrera dez anos antes, o preâmbulo do documento acordado


referia-se à proteção da saúde física e mental da humanidade e à preocupação com
que não se restringissem indevidamente para uso médico e científico as substâncias
ali abrangidas211. Estabeleceram-se, então, novas listas de substâncias: a lista I
compreendeu todas as utilizadas pelos adeptos da contracultura, entre elas o LSD, a
psilocina, a mescalina e o THC212; a lista II, as anfetaminas e seus derivados e a
fenclicidina; a lista III, alguns barbitúricos e a glutetimida; a lista IV, outros
barbitúricos, o meprobamato e alguns hipnóticos não barbitúricos. As drogas que
compuseram a primeira lista eram, em regra, e de longe, as de menor toxicidade
(proporção entre dose ativa e dose letal), bem como não criavam dependência ou
tolerância como as outras. Porém, o controle que se lhes impôs foi marcadamente
ilógico: ao passo que, acerca das listas II, III e IV, prescreveu-se que cada uma das
partes limitaria a fins médicos e científicos, “por meio das medidas que considerar
apropriadas, a fabricação, a exportação, a importação, a distribuição, o comércio, o
uso e a posse”213 dessas substâncias, a lista I mereceu expressa vedação a “todo uso,
exceto para fins científicos e para fins médicos muito limitados, por pessoa
devidamente autorizada em estabelecimentos médicos e científicos que estejam

211
Versão oficial traduzida para o português (decreto nº 79.388/77) disponível [on-line] em:
http://www2.mre.gov.br/dai/psicotr%C3%B3picas.htm. Acesso em: 10/01/2009.
212
Arrola-se aqui o princípio ativo da cannabis – o THC –, erroneamente incluída na lista de
narcóticos em 1961, de regime excepcionalmente gravoso. Ao manterem-se como estavam as listas
anteriores, contudo, não se reparou o erro anterior, que se dera de forma idêntica igualmente com a
cocaína.
213
Art. 5º, 2.
66
diretamente sob controle de seus governos”214. Assim sendo, mantinha-se um
estatuto liberal para substâncias cuja produção era controlada por grandes
laboratórios, e que no mais das vezes “não eram senão sucedâneos melhores ou
piores da cocaína e de opiáceos”215, e condenava-se ao obscurantismo outras muito
menos perigosas à saúde humana e que ainda se revelavam cientificamente
promissoras, mas que eram vistas como drogas subversivas216.

Cabe anotar que, um ano depois, novamente reunidas as autoridades


governamentais em Genebra, estabeleciam-se algumas modificações no texto da
convenção de 1961 através da assinatura do Protocolo Adicional à Convenção Única,
que, entretanto, manteve intacta a essência do documento original.

Em 1973, o Congresso estadunidense autorizou a criação da Drug


Enforcement Administration (DEA)217, cujo escopo fundamental era garantir em
todos os cantos do país a aplicação das severas políticas e normas federais de
repressão às drogas, para o que recrutaria agentes da CIA para cargos diretivos e
empregaria métodos típicos de serviço secreto. Além de questões de política interna,
incluíram-se entre as suas atribuições incumbências externas, notadamente a
coordenação de ações de força e de inteligência, como o apoio a pesquisas e
treinamentos de agentes de repressão tanto dentro quanto fora do país.

Deveras, era o momento da definitiva exportação do war on drugs por


todo o mundo – desenvolvido e subdesenvolvido. Por ocasião da aprovação da
Convenção Única, dada a resistência de países periféricos para com a idéia de
imediato banimento do cultivo e do consumo de algumas substâncias que faziam

214
Art. 7º, “a”. Note-se que, não obstante, eventuais cientistas que ousassem solicitar a respectiva
licença às autoridades competentes para estudar tais drogas deparar-se-iam com um problema anterior,
haja vista que nenhum laboratório estabelecido legalmente se atreveria a suportar os complexos e
caros procedimentos para sintetizá-las se, ao cabo, a concessão de seu registro fosse incerta – o
mesmo valendo para os estabelecimentos onde poderiam ter lugar tais experiências. Mas, enfim, este
era o propósito da diplomacia norte-americana: a prevenção da ciência sobre as drogas ampliadoras da
consciência, não importasse o avanço médico-farmacológico que pudesse representar. A respeito,
ESCOHOTADO. Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, pp. 890-892.
215
Idem, ibidem, p. 890.
216
Idem, ibidem, p; 892. Efetivamente, a circunstância de o consumo de drogas visionárias haver sido
próprio de grupos contestadores das instituições vigentes também explica a reação desproporcional
por elas sofrida.
217
Note-se que o vocábulo “enforcement” tem aqui um significado de “aplicação da lei” ou execução
do direito, podendo também denotar “coerção” ou “coação”. A DEA nasceu sob a denominação Drug
Enforcement Agency, substituída apenas alguns meses após, ao momento em que também se
ampliavam seus poderes e atribuições.
67
parte de sua herança cultural secular, estipularam-se prazos para a definitiva
supressão dos estupefacientes em todas as nações218. Nesse contexto, a América
Latina passaria a ocupar papel de destaque entre as preocupações dos próceres do
proibicionismo, em virtude dos cultivos de ópio e cannabis no México e da coca nos
países andinos, onde era a relevante fonte de riqueza e parte importante componente
da cultura alimentar. O fato de a folha de coca ali ser mascada como sucedâneo
alimentar de grandes faixas populacionais impossibilitadas de consumir alimentos
mais nobres ou consumida em chás inofensivos não impediria, porém, que, a partir
de 1971, os EUA destinassem subsídios anuais da ordem de dezenas de milhões de
dólares para que os governos locais arrasassem safras e encarcerassem pequenos
comerciantes do produto, sem que nenhum centavo fosse investido para melhorar a
vida de indígenas cocaleiros219.

Não obstante, a década de 1970 foi marcada em seu todo pelo


exponencial crescimento do consumo de heroína, maconha e cocaína, sobremodo nas
sociedades economicamente avançadas. Isso, em grande medida, pode ser atribuído
ao combate e à redução do interesse por drogas alucinógenas (no caso da maconha),
somados à menor disponibilidade de algumas anfetaminas (no caso da heroína e da
cocaína); aos poucos, criam-se novos e rentáveis mercados para essas drogas,
especialmente – uma vez mais – nos EUA220.

Especificamente acerca da maconha, pesquisas apontavam que


dezenas de milhões de norte-americanos fumavam-na ocasionalmente ou haviam
fumado, assim como outros milhões de europeus. Nessa medida, conquanto e ao
mesmo tempo que matérias jornalísticas exaltando seu suposto caráter criminógeno

218
ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., pp. 915 et seq.
219
Idem, ibidem, pp. 922-928.
220
Idem, ibidem, pp. 971-972. O autor menciona ainda que, quanto à cocaína, sua produção mundial
até 1975 chegava a ser dez vezes menor que vinte anos antes; porém, a imposição de controles sobre
as vendas de anfetaminas e a concentração da atenção do aparato repressor sobre as drogas visionárias
desde fins da década anterior criaram condições para que se iniciasse um crescimento sustentado da
importação daquela droga desde diferentes pontos da América do Sul. Em uma época em que o
mercado americano era altamente receptivo a alternativas psicoativas, quantidades da droga eram ali
introduzidas por viajantes particulares interessados na rentabilidade de sua venda no mercado ilegal;
de outra parte, imigrantes cubanos anti-castristas conectados com grandes produtores bolivianos,
colombianos e peruanos criaram uma poderosa rede de contrabando e distribuição da droga em
grandes cidades da costa leste, dali expandindo-se para o oeste. A atuação destes era facilitada pelo
fato de, em virtude de seu status político – entre eles havia, inclusive, ex-assistentes de Fulgencio
Batista exilados –, terem contado muitas vezes com o beneplácito da CIA a prevenir maiores
investigações e responsabilizações (pp. 984-986).
68
se multiplicavam (especialmente nos EUA), chegou a haver uma tendência a que se
despenalizasse o consumo e a posse da marijuana, apoiada em novos estudos
científicos que demonstravam a relativa inocuidade da substância 221. Assim é que, a
partir de meados dos anos 70, porque ela passara a ser vista como uma droga leve e
imerecedora de proibição, operou-se um movimento de despenalização – formal ou
informal – em países como Holanda, Dinamarca, Canadá, Espanha, e até mesmo os
EUA (tribunais da Califórnia deixaram de impor privação de liberdade a usuários em
1976; ademais, o cultivo da cannabis era freqüente em muitos estados do país) 222.
Cabe anotar que a tolerância ao uso da cannabis não implicou, nessas localidades,
qualquer situação de emergência de saúde ou segurança públicas; ao revés,
constatou-se, com o passar do tempo, progressiva redução no interesse pela droga223.

Na superpotência norte-americana, porém, os tempos de relativa


liberalização das administrações Ford e Carter logo dariam lugar a outros que, se de
um lado foram marcados pela quase absoluta desregulamentação econômica, de
outro caracterizaram-se pelo forte intervencionismo na seara política: a era Reagan-
Bush, dominada pelo fundamentalismo conservador. A política de drogas voltaria a
ser pautada, então, por grupos proibicionistas, por vezes baseados em pesquisas de
questionáveis metodologia e conclusões, e invariavelmente articulados em fortes
campanhas mediáticas224; a seu turno, também a Suprema Corte mostrava sinais de
recrudescimento em matéria de drogas225.

221
Idem, ibidem, pp. 972-978.
222
Idem, ibidem, pp. 975-980. É de se notar que a defesa da despenalização ou descriminalização da
maconha, ora, não se subsidiava na oposição político-liberal à ingerência do Estado sobre a intimidade
do cidadão, como sucedera ao final da década anterior, mas ao mero entendimento de que se tratava
de uma droga mais leve que as demais, inclusive que o álcool, logo não merecia as restrições que se
lhe impunham.
223
Idem, ibidem, p. 980. A respeito, Escohotado traça um paralelo com a liberalização de publicações
eróticas quando da redemocratização espanhola, que, se nos anos iniciais resultou em uma explosão de
vendas de revistas como Playboy ou Penthouse, em seguida foi perdendo força de maneira consistente
até que se verificasse, após cinco anos, um público substancialmente menor que antes; igualmente,
segundo o autor, acontecera com a maconha e o haxixe após sua liberalização, porquanto se lhes
subtraía o conteúdo heróico ou herético e seu valor cerimonial, convertendo-se em substâncias de
importância menor.
224
Idem, ibidem, pp. 981 et seq.
225
The New York Times, 13/01/1982. “Supreme Court roundup: 40-year drug term held ‘legislative
prerogative’”. Disponível em:
<http://query.nytimes.com/gst/fullpage.html?sec=health&res=9A00E1D71038F931A25752C0A9649
48260&scp=1&sq=supreme%20court%20roundup:%2040-year%20term%20held&st=cse>. Acesso
em: 10/01/2009. Como seu título denota, a decisão da Suprema Corte sustentava que a duração de
pena era “puramente matéria de prerrogativa legislativa”, com o que justificava a manutenção de
69
Na virada dos anos 80, a cocaína já penetrara com sucesso na cultura
da sociedade americana, em grande medida por haver ressurgido em meio a elites
econômicas, e a transição da juventude local do radicalismo para o consumismo
propiciara-lhe ainda maior aceitação social. Tratava-se da assimilação e morte
definitiva da contracultura, porquanto o uso de uma substância ilícita determinada
não mais significava uma esperançosa contestação aos padrões políticos e culturais
então vigentes, mas um ideal yuppie de sucesso dentro das regras estabelecidas,
obtido por muitos e perseguido por outros tantos. Não mais se pretendia igualar-se ao
artista ou ao acadêmico contestador, mas a políticos poderosos ou a negociadores das
bolsas de valores e operadores do mercado financeiro; destarte, “se a maconha ou o
LSD haviam sido e ainda eram consumidos por gente desconforme com as pautas do
consumo de massas, a cocaína constituiu, desde seu renascimento, um puro consumo
de massas”226.

Assim sendo, a despeito de problemas crônicos de intoxicação pelo


uso de maconha e cocaína ainda serem estatisticamente irrelevantes, e a despeito de
ambas possuírem fiéis adeptos nas casas do Congresso e mesmo na Casa Branca,
logo se levantaram as vozes dos empresários morais em busca de mais rigor policial
e mais severidade penal pra os agentes provedores de tal “virtude privada e vício
público”227. Ao novamente endurecer suas ações repressivas, a DEA utilizava-se, a
pretexto de informar a população, de “clichês alarmistas, habitualmente
contraproducentes na juventude e em boa parte dos receptores”228. De outra parte,
perseguia cientistas e laboratórios que, entre outras coisas, publicavam pesquisas
sobre a queda na pureza da cocaína disponível no mercado e informavam sobre
compostos que lhe eram adicionados – fazendo, assim, com que traficantes menos
inescrupulosos evitassem a adição de substâncias muitas vezes mais venenosas.

sentença de 40 anos de prisão para um acusado de posse e distribuição de cerca de 250g de maconha
no estado da Virgínia (caso Hutto v. Davis).
226
Idem, ibidem, pp. 987-988. Trad. livre. Menciona o autor que, de acordo com o National Survey on
Drug Abuse, em 1979 cerca de 32% da população adulta do país – algo próximo a 45 milhões de
pessoas – seriam usuários ocasionais de cocaína, e outros 10%, usuários mais assíduos; dentre os
adolescentes, a penetração já era próxima de 6% (p. 989).
227
Idem, ibidem, pp. 988-992. Igualmente não faltaram, à semelhança de um lamentável pretérito,
episódios em que agentes da repressão transformaram respeitáveis médicos em (reputados) odiosos
traficantes. No que concerne a intoxicações, cabe anotar que sempre foram raras no caso da cocaína, e
praticamente nulas no caso da maconha; aquela somente viria a ensejar maiores problemas de saúde
pública quando se viria a difundir sua versão para classes pobres – o crack.
228
Idem, ibidem, p. 993.
70
Atribui-se a procedimentos peculiares como esse não só os problemas decorrentes da
redução na pureza da cocaína comercializada no país, mas a posterior disseminação
de compostos muito mais impuros e nocivos como a pasta base e o crack, que logo a
superariam em importações229.

Tampouco alcançavam os resultados pretendidos as ações externas de


combate à produção das drogas que inundavam o mercado estadunidense.
Revelaram-se inúteis as calamidades ambientais e humanas que visavam a erradicar
plantações de coca nos países andinos; reversamente, a cada ano aumentavam as
áreas cultivadas que, em meados da década, compreendiam desde a Venezuela e o
Equador até o Paraguai e o Chile, e ataques militares subitâneos a enclaves
camponeses pouco faziam senão incitar sentimentos revanchistas em sul-
americanos230. A economia de países como a Bolívia, a Colômbia e o Peru era
dependente da cultura da coca – da produção da planta e, a essa altura, também do
alcalóide –, e o proibicionismo ali não vinha a ser uma escolha voluntária, mas
produto de chantagens políticas. Tinham em comum aparatos policiais e militares
precários e, sobretudo, corruptos, que muitas vezes promoviam ações repressivas
contra pequenos produtores com o fito de obter uma imagem de cumprimento de
compromissos internacionalmente assumidos ao mesmo tempo em que garantiam a
consolidação de preços monopolísticos ou oligopolísticos a grandes traficantes.
Deste modo, enquanto que, aos poucos, organizavam-se estruturas oligárquico-
militares semelhantes a cartéis, camponeses indígenas obrigavam-se a suportar
pragas químicas e condenações perpétuas salvo se vendessem àqueles a matéria-
prima do negócio a preços irrisórios231.

Ante a complexidade adquirida pelas redes de tráfico e sua notável


penetração na burocracia de países centrais e periféricos por meio da corrupção,
decerto não faltaria quem os supusesse decorrência de uma possível permissividade
legislativa para com o tema. A verdade, porém, era oposta: o grande comércio de
drogas se lia inexoravelmente à severidade repressiva, a qual permite que traficantes
229
Idem, ibidem, p. 993. A pasta base é produzida mediante o amolecimento das folhas de coca com
querosene e composições sulfuradas, extraindo-se-lhe a cocaína em uma proporção de cerca de 20%
após lavagem com éter e acetona – solventes caros e de perigosa armazenagem e manipulação; a seu
turno, o crack deriva da mera adição à pasta base de semelhante proporção bicarbonato de sódio, o
que, além de significar um custo muito inferior, permite um rendimento cerca de dez vezes maior.
230
Idem, ibidem, pp. 993-994.
231
Idem, ibidem, pp. 995-997.
71
que mantêm relações privilegiadas com agentes oficiais resguardem-se de
concorrentes fustigados por um estatuto legal draconiano – assim ocorreu, e ainda
ocorre, no sul da Ásia, no Oriente Médio, na América Latina, e, também, no varejo
de países centrais232.

O resultado disso é que os EUA, que durante todo o século XX


haviam fomentado a corrupção e a repressão desmedida nos países periféricos do
continente233, ora se viam diante de um subproduto daquelas suas políticas
intervencionistas, ainda que se pretendessem, novamente, apenas vítimas de uma
invasão estrangeira (embora milhares de seus cidadãos também se ocupassem do
tráfico em países latino-americanos). Rapidamente, o poder de sedução do tráfico
unira nas mesmas atividades americanos do norte, do centro e do sul, anti-castristas e
castristas, sandinistas e contras, guerrilhas e oligarquias; contudo, a maior parte dos
bilhões de dólares anuais que lhe correspondiam acabavam em bancos europeus,
quando não reintroduzidos sem maiores problemas na economia estadunidense234.

A notável promiscuidade entre órgãos americanos de segurança e


inteligência e traficantes internacionais não constituiu óbice a que, repetindo uma
práxis do passado, autoridades oficiais convenientemente associassem o tráfico a
grupos políticos indesejáveis. No ano de 1984, Lewis Tambs, então embaixador
estadunidense na Colômbia, asseverou haver ali uma perigosa associação entre
tráfico de drogas e grupos políticos de esquerda, para cuja designação cunhou
expressão que se tornaria célebre: o “narcoterror”, ou “narcoterrorismo”235.

232
Idem, ibidem, pp. 997-1000. Com efeito, inúmeros são os relatos de introdução de grandes
quantidades de drogas nos EUA facilitada por altos dirigentes da CIA e outros agentes oficias –
especialmente de segurança nacional – que, quando não seduzidos pelos valores envolvidos no tráfico,
aceitavam como inevitável tal facilitação com vistas a um objetivo outro, que muitas vezes envolvia o
sustento de grupos anti-revolucionários através do intercâmbio de drogas por armas e influência
política; assim, por exemplo, afirmou-se que grandes traficantes colombianos eram “inimigos da DEA
mas amigos da CIA” (ibidem, pp. 1001-1003).
233
Primeiro com a doutrina Monroe; depois, com o big stick e, por fim, com a teoria da contenção à
ameaça comunista e a doutrina Truman.
234
ESCOHOTADO. Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, pp. 998-
1000.
235
GUÁQUETA, Alexandra. “Transformación y efectos de la cooperación antidrogas entre Colombia
y Estados unidos (1970-2000)”. In: CAMACHO GUIZADO, Álvaro. Narcotráfico: Europa, EEUU,
América Latina. Barcelona: Obreal – Universitat de Barcelona, 2007, p. 197. Da assertiva de Tambs
igualmente derivaria o termo análogo narcoguerrilha, ainda hoje bastante usado.
72
Em verdade, demais da corrupção de agentes do Estado,
particularmente na Colômbia observava-se um amálgama entre tráfico de drogas e
grupos paramilitares tanto de direita quanto de esquerda, os quais dividiam o controle
do país imerso em uma duradoura guerra civil. No início daquele ano, porém,
especulou-se que laboratórios de refino de cocaína interditados pela repressão oficial
eram protegidos pelas FARC236, circunstância que, mesmo incomprovada237, resultou
na aludida declaração238 – que, de resto, ao ser prodigamente reproduzida por
imprensa, empresários morais e órgãos oficiais, legitimaria definitivamente aos
norte-americanos a sua ingerência política e militar em toda a região andina e
adjacências239.

Internamente, com a ajuda decisiva das ações de repressão da DEA, na


metade dos anos 80 a disseminação do uso do crack viria a significar, de fato, um
real problema de saúde pública nos EUA. Em tempos de exacerbação do
consumismo e de alta receptividade a novos estimulantes, ao passo que a cocaína
simbolizara o luxo de ricos, a nova substância – muito mais barata, lucrativa e nociva
– materializava o luxo de pobres e miseráveis que, por sua mesma condição sócio-
cultural, revelavam-se menos capazes de dosar o produto, e acabavam por consumi-

236
Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia.
237
RODRIGUES, Thiago. Política e drogas nas Américas. São paulo: Educ – Fapesp, 2004, p. 266.
238
GUÁQUETA, Alexandra. Op. cit., p. 197. Cite-se, ainda, que tal afirmação contrariou o governo
do presidente Betancur, que se via em meio a delicadas negociações de paz com as FARC, que então
se inviabilizaram.
239
Além das sabidamente inúmeras operações nos países andinos, exemplos importantes da atuação
norte-americana com base em sua doutrina militarista e unilateralista de intervenções são as invasões
de Granada, em 1983, e do Panamá, em 1989. Essa parece merecer especial destaque: após haverem
invadido o país, causando cerca de 3 mil mortes, fuzileiros navais norte-americanos detiveram o seu
presidente-ditador, Gal. Manuel Noriega, para posteriormente levá-lo a uma corte em Miami que o
julgou e condenou a 40 anos de prisão – depois reduzidos a 30 – por associação para o tráfico de
drogas; no entanto, poucos anos antes Noriega cumprira um relevante papel como intermediário de
confiança da CIA no financiamento – através de “narcodólares” – da guerrilha de direita nicaragüense,
os Contras (a respeito, vide, cada qual enfocando diferentes aspectos da invasão, bem como suas
razões alegadas e latentes e as conexões do general com setores da inteligência dos EUA então
capitaneada pelo vice-presidente Bush: ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., p. 1001-1003; 10071;
RODRIGUES, Thiago. Op. cit., p. 258-262; 276-278; NEUMAN, Elias. La Legalización de las
drogas, 3ª ed. reestruct. e ampl.. Buenos Aires: Universidad, 2005, p. 107-111). Para os EUA,
doravante, a América Latina deixava de ser apresentada como uma ameaça comunista – o argumento
justificador de invasões e conspirações norte-americanas até então – para constituir uma ameaça à
segurança por meio do narcotráfico, ou seja, uma novel forma de subversão – pode-se dizer, um crime
internacional da nova ordem. Assim, no momento em que países latino-americanos voltavam a
experimentar o regime democrático com o ocaso do autoritarismo neles vigente desde o
recrudescimento da guerra fria nos anos 60, emergia, na visão estadunidense, nova ameaça grave ao
bem comum, tratando-se o tráfico de drogas como uma ameaça institucional a todo o Continente
Americano.
73
lo até a exaustão240. Por esse motivo, torna-se tarefa árida determinar se a alta
freqüência de intoxicações agudas verificada, em que se incluíam quadros de grande
depauperação psicossomática e episódios delirantes, derivava da nocividade
intrínseca do composto ou das pautas de uso por parte de consumidores
vulneráveis241. Todavia, o tratamento destinado à questão pelo mass media seguia o
errôneo modelo estabelecido ao longo de todo o século, conferindo-lhe status de
aterrorizante – e imprevisível – epidemia baseada em preferências espontâneas de
usuários, e mantendo omissos os fatores causais reais daquele fenômeno 242.

Retroalimentava-se o problema por via da desinformação. Outrossim,


ainda se ecoava a idéia – cada vez mais anacrônica – de “ameaça vermelha”
alardeada por alguns dos principais líderes políticos de então.

Sem embargo, em janeiro de 1986, declarava o presidente Reagan ser


evidente a ligação entre o tráfico internacional de drogas, o terrorismo e governos
aliados aos soviéticos, como Cuba e Nicarágua, referindo-se ao tráfico de drogas
como “gêmeos diabólicos” que constituiriam a mais perigosa ameaça ao ocidente243.
No mês de abril do mesmo ano, o gabinete presidencial editou a National Security
Directive on Narcotics and National Security (NSDD-221), documento em que o
governo manifestava oficialmente a

sua percepção de que a principal ameaça aos Estados


Unidos e ao hemisfério ocidental passara a residir na
simbiose entre terrorismo de esquerda e narcotráfico. [...]
A NSDD-221 “diagnosticava” o problema da “narco-
subversão” e expunha a necessidade imperiosa de que os
Estados Unidos se defendessem (e defendessem o
continente) da grande trama “narcoterrorista”.244

240
ESCOHOTADO. Antonio. Op. cit., p. 1013-1014.
241
Idem, ibidem, p. 1113. A título de comparação, lembra o autor que em 1976, quando da emergência
da cocaína nos EUA, não houve sequer um único caso de intoxicação fatal em todo o país; em 1986,
quando a droga emergente era o crack, o número de mortes foi de cerca de 600 apenas no primeiro
semestre.
242
Idem, ibidem, pp. 1113-1114. O mesmo raciocínio, assinala o autor, autorizaria também que os
envenenamentos decorrentes da ingestão de álcool metílico e outras destilações perniciosas havidos
duante os anos 20 fossem vistos como imprevisíveis e baseados em preferências espontâneas dos
consumidores – e não como um subproduto da lei seca.
243
MARSHALL, Jonathan; SCOTT, Peter D. Cocaine politics: drugs, armies and the CIA in Central
America. Los Angeles: UCLA, 1991, p. 23. Apud RODRIGUES, Thiago. Política e drogas nas
Américas. São Paulo: Educ – Fapesp, 2004, p. 268.
244
RODRIGUES, Thiago. Op. cit., p. 268-269.
74
Encontra-se explícita em tal documento a idéia de serem as drogas relevante ameaça
à segurança nacional do país, e seu tráfico um fator de instabilidade para a nação.
Assumia-se claramente o problema como questão geopolítica essencial, e que assim
reclamava ser tratado. Era a justificativa final para o extraordinário recrudescimento
das políticas afetas ao tema desde o início da década, e que se perenizaria ao depois –
mormente em administrações republicanas.

Com os EUA sob mais uma emergência moral, política, jurídica,


militar e de saúde pública, aprovou-se em 1988, em Viena, a Convenção das Nações
Unidas contra o Tráfico ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas245. Esse
documento marca o apogeu da aceitação global do proibicionismo 246. Dessa maneira,
foi possível inserir, em seu preâmbulo, a pueril idéia de “supressão” e “erradicação”
do tráfico, bem como a pretensão de “eliminar as causas profundas [...] do uso
indevido” de drogas247. O texto arrolou diversas modalidades delitivas relacionadas à
produção, distribuição e posse para uso próprio de psicoativos, a fim de que se
refletissem nas legislações internas dos Estados-partes248; ampliou formas de
cooperação internacional judiciária e policial249; e impôs o controle a substâncias
utilizadas no processo produtivo de drogas, como o éter e a acetona250.

Também durante a década de 1980, a exemplo da substituição da


cocaína por crack, novas substâncias sintéticas apareceriam no mercado como
alternativa para o controle imposto sobre as que antes possuíam mais livre
circulação. São, primeiramente, as designer drugs, ou “drogas sob medida”, novos
fármacos psicotrópicos feitos a partir de substâncias ordinariamente manipuladas em
laboratórios – como anfetamínicos e outros estimulantes –, e que, até então, não se
incluíam entre as substâncias proibidas. Uma vez consumidos de modo abusivo – em

245
Disponível em: <http://www.unodc.org/pdf/convention_1988_en.pdf>. Acesso em: 10/01/2009.
246
Aceitação essa que, em grande extensão, foi irrefletida, na medida em que a autoridade
internacional funcionou, durante quase todo o século XX – considerando-se desde a predecessora
Sociedade das Nações –, como mera instância homologatória de proposições trazidas pela diplomacia
norte-americana
247
Consoante a tradução oficial do documento, texto anexo ao decreto nº 154/91. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0154.htm>. Acesso em: 10/01/2009.
Lembre-se que, para a autoridade internacional, o “uso indevido” consiste tão só no mero uso de
substância ilegal. A convenção, outrossim, ainda dedicaria um artigo inteiro ao tema das “medidas
para erradicar o cultivo ilícito de plantas das quais se extraem entorpecentes e para eliminar a
demanda ilícita de entorpecentes e substâncias psicotrópicas” (art. 14).
248
Art. 3.
249
Arts. 6 usque 11.
250
Art. 12.
75
certa medida por desconhecimento de suas potencialidades –, apresentaram elevado
grau de toxicidade, tendo sido responsabilizados pelos primeiros sintomas de
Parkinson observados em jovens 251. De outra parte, reapareceria, a partir de
experimentos médicos havidos em grandes universidades252, o MDMA253 – ou
ecstasy –, que, visto como uma alternativa terapêutica às drogas alucinógenas, logo
seria igualmente adotado por movimentos alternativos como o new age californiano,
e começou a ser utilizado recreativamente em pequena escala até chamar atenção da
DEA. Esta, a despeito da inicial inocuidade e da utilização psicoterapêutica do
psicotrópico, rapidamente logrou inseri-lo na lista de substâncias proibidas254. Disso
resultou o exponencial aumento de seu preço, e, conseqüentemente, a emergência de
um relevante interesse em seu tráfico, acompanhada de adulterações em sua
composição; em seguida, adviriam os casos de abuso255.

Os casos do crack, das designer drugs e do ecstasy significaram o


surgimento, a partir dos países centrais, de um novo e importante fenômeno
característico de seu tempo: o das “drogas sucedâneas”256, as quais tinham em
comum o fato de terem nascido como alternativa a drogas proscritas existentes. Tal
circunstância, deveras, fez com que o seu mercado – tanto do ponto de vista da
demanda quanto da oferta – derivasse diretamente das políticas proibicionistas.
Assim, afirma-se que essas drogas

nasceram da proibição, e subsistem quase exclusivamente


graças a ela. Ao mesmo tempo, medem a capacidade de
resposta que o mercado negro e a imaginação rebelde
podem opor a medidas repressivas. [...] em apenas uma
década surgiram vários sucedâneos potentes, baratos e
simples de se produzir para cada uma das drogas ilícitas
prévias257.

251
ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa, 2000, p. 1005-
1009.
252
Sabe-se que a composição fora sintetizada em 1912 nos laboratórios da Merck, mas permaneceu
sem despertar maior interesse durante quase todo o século, até que cientistas de univesidades como
Harvard e Cambridge intensificassem pesquisas respeitantes. A respeito, vide: FREUDENMANN,
Roland W.; OXLER, Florian; BERNSCHNEIDER-REIF, Sabine. “The Origin of MDMA (ecstasy)
revisited: the true story reconstructed from the original documents”. Disponível em:
http://www.mdma.net/merck/ecstasy-mdma.pdf>. Acesso em: 12/01/2009; ESCOHOTADO, Antonio.
Op. cit., p. 1019-1022.
253
3,4 metilenodioximetanfetamina.
254
ESCOHOTADO, Antonio. Op. Cit., p. 1019-1023.
255
Idem, ibidem, p. 1022-1029.
256
Idem, ibidem, p. 1005.
257
Idem, ibidem, p. 1017.
76
De fato, a proibição seguia a operar como grande fator de expansão do mercado
ilegal, cuja definitiva explosão sucedeu precisamente nos tempos de maior
recrudescimento repressivo: os anos 80.

O decênio seguinte testemunhou a continuidade das políticas


consagradas na Convenção de Viena. Conquanto a administração democrata dos
EUA houvesse moderado o tom belicoso dos anos anteriores, a abordagem
obscurantista, em linhas gerais, permaneceu a mesma 258, bem como as políticas
intervencionistas sobre países produtores – cujo maior exemplo foi, sabe-se, o Plano
Colômbia 259.

Por outro lado, desde a década de 1990 desenvolveram-se foros de


discussão objetiva do tema em diversos países, impulsionados notadamente por
instituições acadêmicas e órgãos não-governamentais; outrossim, prosperaram
algumas iniciativas políticas liberalizantes, como os casos de permissões legislativas
para o uso médico da cannabis260 e das políticas de redução de danos – de que nos
ocuparemos mais adiante. Mesmo nos EUA, responsáveis pela difusão e patrocínio
da proibição em todo o mundo e onde durante grande parte do século o assunto fora
um tabu político intransponível261, objeções ao war on drugs deixariam de ver-se
circunscritas a minorias radicais do partido democrata, alcançando até mesmo grupos
conservadores influentes. Em 1996, o líder republicano no Congresso, Newton
Gingrich, adjetivou como ruinosos os resultados da guerra capitaneada por seu país;
pouco antes, o financista George Soros dotara com US$ 10 milhões uma fundação
com o escopo de promover o anti-proibicionismo. Assim, subsidiando-se em idéias

258
Idem, ibidem, p. 1085.
259
A respeito, vide: NEUMAN, Elias. La Legalización de las drogas, 3ª ed. reestruct. e ampl.. Buenos
Aires: Universidad, 2005, p. 162-168; FUCILLE, Luís Alexandre. “Plano Colômbia: o mito da
militarização contra as drogas e seu impacto no plano estatal. In: Estudios politicos militares, ano 2, nº
3, . Santiago de Chile: Universidad Arcis, jun/2002, p. 39-54.
260 Acerca da potencial utilização da cannabis para fins terapêuticos,

mencionando os debates travados a respeito no Canadá, Reino Unido e alguns


estados dos EUA a partir de meados dos anos 90, vide: FRENOPOULO, Christian.
“Issues in the biomedical approach to the use of cannabis as a medication”.
Disponível em: <http://www.neip.info/index.php/content/view/90.html#et>. Acesso
em: 10/01/2009.
261
Ilustrativamente, lembre-se que, desde o Marijuana Tax Act até a “declaração de guerra” de Nixon,
portanto entre 1937 e 1971, todas as dezenas de decisões das casas do Congresso em matéria de
controle de drogas foram, sem exceção, aprovadas por unanimidade, o que “mostra até que ponto será
para os deputados e senadores um ato de lesa majestade eleitoralista e, portanto, um suicídio político
qualquer gesto distinto do máximo rigor”. ESCOHOTADO, Antonio. Op. cit., p. 697. Trad. livre.
77
dos economistas liberais da escola de Chicago – entre os quais se incluiu Milton
Friedman –, esses defensores do fim da proibição invocam

razões praticamente idênticas às que se esgrimiram em


1933 contra a lei seca: em vez de suprimir ou sequer
reduzir substancialmente o tráfico e o consumo de certas
drogas, os gigantescos gastos sociais, policiais, judiciários
e penitenciários derivados da manutenção da legislação
vigente só têm servido para infiltrar cada vez mais a
ilegalidade nas instituições262.

Isso não significou, entretanto, ter havido qualquer refluxo na defesa


institucional da guerra às drogas, mas apenas, efetivamente, algumas contestações
pontuais que antes sequer se permitia haver.

Em junho de 1998, reuniu-se para tratar do tema em sessão especial a


Assembléia Geral das Nações Unidas. Coerentemente com a posição adotada pela
organização desde muito, os debates ali travados careceram de análises críticas
aprofundadas, as quais se quedaram preteridas em prol da obtenção de um consenso
formal para a elaboração de uma declaração política263. Chegou-se a estabelecer no
texto aprovado uma ilusória meta de 10 anos para a eliminação parcial ou total de
cultivares ilícitos em todo o mundo264 – algo que, hoje, a própria ONU parece
reconhecer impossível mesmo que a qualquer tempo –, bem como a drástica redução
na demanda265.

Nos anos iniciais do novo século, prossegue o império do


proibicionismo em todo o mundo – embora, em uma escassa quantidade de países,
haja sido limitadamente relativizado266. Jamais, até hoje, o EUA sinalizaram
qualquer mudança significativa em suas políticas, e, conseqüentemente, ainda que se
verifique um relativo consenso entre acadêmicos, think-tanks e autoridades de
diferentes países acerca do fracasso do modelo político-jurídico consagrado pelo war

262
Idem, ibidem, p. 1086-1087.
263
Disponível em: <http://un.org/ga/20special/poldecla.htm>. Acesso em: 10/01/2009. Fez-se sentir
na assembléia, entretanto, o nascente influxo de um discurso alternativo europeu, mais pragmático e
menos contaminado por ideologias no tratamento político da questão. Todavia, posições progressistas
como a defesa das políticas de redução de danos não deixaram de ser objeto censura na reunião
patrocinada pela autoridade internacional. A respeito, vide: BOEKHOUT VAN SOLINGE, Tim.
Drugs and decision-making in the European Union. Trad. Berveley Jackson. Amsterdam: Mets &
Schilt – CEDRO, 2002, p. 15.
264
§§ 14 et 19.
265
§ 17.
266
Especialmente no Continente Europeu, que será analisado em capítulo próprio.
78
on drugs, parcos são os progressos emanados da autoridade internacional submetida
à decisiva influência estadunidense.

Com efeito, e sempre desde o centro para a periferia econômica


mundial, a partir dos anos 80 a guerra às drogas logrou substituir a guerra fria no
ideário de combate permanente a um inimigo – interno e/ou externo – comum, que
tanto marcou a história da política norte-americana. A seu turno, o intervencionismo
externo próprio do war on drugs reaganiano permaneceu nas décadas que se lhe
seguiram, podendo-se afirmar que, mais recentemente, o combate ao narcotráfico e
ao terrorismo (ou narcoterrorismo) na região oculta o propósito latente de acesso e
ingerência estadunidense sobre os recursos naturais da região267.

Por outro lado, é de se ver que a avalanche propagandista político-


ideológica que, na era Reagan-Bush dos anos 80, caracterizou o auge da guerra às
drogas, perdeu considerável espaço na pauta jornalística e nos discursos oficiais
desde o 11 de Setembro de 2001, ofuscada que foi pela temática do war on terror de
George W. Bush.

Sob os auspícios da ONU, em meados de 2008 autoridades


internacionais reuniram-se em Viena para analisar o cumprimento das metas
estabelecidas na declaração de 1998 e revisá-las no que pareça devido268. Deste
encontro, cuja finalização dar-se-á em março de 2009, espera-se que as partes
envolvidas obtenham avaliações e proposições mais maduras e realistas, condizentes
com a noção de que a guerra às drogas é, mais que desnecessária, equivocada em
suas premissas e destinada ao fracasso – pelo que se impõe à comunidade
internacional a busca de modelos alternativos de política jurídica e social.

267
Note-se que a Colômbia é grande fornecedora de energia aos EUA, além de deter a segunda maior
biodiversidade do continente. A respeito: GUZZI, André Cavalles. As Relações EUA - América
Latina: medidas e conseqüências da política externa norte-americana para combater a produção e o
tráfico de drogas ilícitas. Dissertação de mestrado apresentada ao programa inter-institucional de
relações internacionais San Tiago Dantas (PUC-SP – Unesp – Unicamp). São Paulo: 2008, p. 110.
Assinala o autor que a execução do ambicioso Plano Colômbia não resultou, porém, em grandes
avanços na prevenção da oferta de drogas, porquanto a ênfase dedicada ao militarismo e ao combate a
grupos guerrilheiros suplantou a necessidade de implementação de programas de desenvolvimento
alternativo nas regiões cultivadas (p. 110-111).
268
Os trabalhos da reunião são divididos em cinco fóruns inter-governamentais de discussão, cada
qual sobre um tema: redução da oferta, redução da demanda, erradicação de cultivares e
desenvolvimento alternativo, lavagem de valores e análise de precursores e estimulantes
anfetamínicos – a grande preocupação atual dos países centrais em matéria de psicoativos. A respeito,
vide: <http://www.idpc.info/ungass.php>.
79
3. O MODELO LEGISLATIVO POSITIVO DA REPRESSÃO ÀS DROGAS

No Brasil, a política criminal de drogas é determinada pela Lei nº


11.343, de 23 de agosto de 2006, que substituiu os antigos diplomas atinentes ao
assunto, a Lei 6.368/76 e a Lei 10.409/02, ambas revogadas por completo.

A modificação da legislação até então vigente era sabidamente


desejada por grande parte dos estudiosos das ciências médicas, sociais e criminais,
visto que a ênfase quase absoluta na repressão não resultara na eficácia preventiva
almejada, e originava diversos outros problemas sociais. Entre estes, vale mencionar
a estigmatização e a marginalização social, o inchaço do sistema penal, a obstrução à
implementação de programas preventivos de eficácia comprovada – como o caso da
redução de danos.

No entanto, a despeito do alarde mediático que se verificou ao tempo


de sua promulgação – em virtude da não previsão de pena privativa de liberdade para
as condutas afetas ao usuário –, do ponto de vista jurídico-penal e político-criminal o
novel diploma não representou um avanço legislativo relevante.

Deveras, frustrando as expectativas da academia, o capítulo da Lei


11.343/06 atinente aos crimes e penas (cap. III) apresentou alterações pouco
significativas em comparação ao que se via na antiga Lei de Tóxicos (Lei 6.368/76).
É certo que o art. 28 progrediu em relação ao diploma antigo ao excluir a cominação
de pena corporal para a conduta de posse de drogas para uso próprio, e,
principalmente, ao retirar do rol de condutas análogas ao tráfico o cultivo, semeio ou
colheita de plantas em pequenas quantidades com o fim de consumir a droga
correspondente. É certo, igualmente, que o art. 33, que cuida do tráfico e condutas
análogas, conferiu tratamento menos gravoso à figura do cedente eventual em seu §
3º, ao qual se estatuiu pena de seis meses a um ano de detenção.

Nada disso, porém, exclui a manifesta ideologia repressiva da lei. Em


verdade, a não-incidência de pena privativa de liberdade ao usuário já era consabida
realidade em nossa práxis judiciária, sobretudo após o advento da Lei 9.099/95 e,
mais tarde, da Lei 10.259/01, que possibilitaram a suspensão condicional do processo
e a transação penal para a figura do art. 16 do diploma antigo. Ainda, a previsão do

80
art. 28, § 2º, segundo a qual cabe ao juiz recorrer à “natureza e quantidade da
substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às
circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”
para determinar se se trata de posse para uso ou para comércio da droga, constitui
exemplo típico de um abominável direito penal de autor269. Então, mantendo-se o
caráter penal da tutela da posse de drogas para uso próprio, manteve-se o tratamento
estigmatizante que lhe era imposto.

É de se ver que a Lei 11.343/06 atribui sanções extremamente severas


a tipos penais de mera periculosidade abstrata que, alegadamente, visam a tutelar um
bem jurídico coletivo de escassa referência a seus supostos titulares – especialmente
no caso da tutela penal das drogas. Assim, a não diferenciação, no tipo do art. 33,
entre a figura do traficante-usuário, a do traficante de varejo e a do grande traficante,
somada à elevação da pena mínima cominada para tais delitos, de três para cinco
anos de reclusão, constitui comportamento irresponsável do legislador, que
demonstrou parco desconhecimento da realidade que é objeto do tratamento legal270.
A notável pluralidade de condutas que são equiparadas à figura do tráfico de drogas
segue a implicar a ampliação do programa criminalizador em matéria de drogas,
punindo atos preparatórios com vistas à almejada punição do grande traficante, e
torna difícil a compreensão clara do alcance da norma.

Sem esclarecer o conteúdo semântico do vocábulo droga para seus


propósitos, a legislação pátria impõe uma pena semelhante àquela prevista para o
homicídio simples para qualquer um que importe, exporte, remeta, prepare, produza,
fabrique, adquira, venda, exponha à venda, ofereça, tenha em depósito, transporte,
traga consigo, guarde, prescreva, ministre, entregue a consumo ou forneça drogas
ou seus precursores desautorizadamente, ainda que de forma gratuita, bem como a
quem facilite o tráfico ilícito ou a quem semeie, cultive ou colha desautorizadamente
plantas de que se extraem drogas. Deveras, basta um olhar sobre os núcleos do tipo
penal do art. 33 da Lei 11.343 para constatar-se a singularidade do modelo de
269
PASCHOAL, Janaína Conceição. “A Importância do encontro sobre drogas: aspectos penais e
criminológicos”. In: REALE JR., Miguel. PASCHOAL, Janaína Conceição. Drogas: aspectos penais
e criminológicos – primeiro encontro de mestres e doutores do Departamento de Direito Penal da
Faculdade de Direito da USP. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 03.
270
Idem, ibidem, p. 02-03. Note-se que a autora manifestou suas censuras ao atual modelo repressivo
ainda no tempo em que o texto ainda tramitava no Congresso Nacional, sob a forma do Projeto de Lei
7.134/02 .
81
repressivo sobre drogas que é assimilado acriticamente desde disposições de
documentos internacionais que pouco se preocupam em compatibilizar-se com a
evolução da ciência conjunta do direito penal contemporânea.

Não é objeto deste trabalho a exegese dogmática da legislação


positiva, mas a ilegitimidade sob diferentes prismas da repressão penal imposta às
drogas e aos cidadãos que com elas se relacionam, e a busca de alternativas. Por isso,
deixam-se de lado as inúmeras críticas que se poderia fazer, especificamente, a cada
tipo penal previsto na lei de drogas. Há que se observar, contudo, tratar-se de um
modelo de criminalização que, a olhos vistos, apresenta dificuldades de adequação
aos limites e fins do direito penal do Estado democrático e social de direito, cuja
análise, ainda que breve, importa ao trabalho.

3.1. Tutela de drogas e principiologia penal

Em linhas gerais, entende-se o direito penal como o conjunto das


normas jurídicas que relacionam comportamentos humanos – os crimes – a
determinadas conseqüências jurídicas que lhe são próprias – as penas –271 somado ao
saber que sistematiza a devida interpretação dessas normas272, e considera-se que
possui como escopo salvaguardar valores fundamentais para a vida humana
individual ou coletiva, sem cuja proteção a convivência em sociedade tornar-se-ia
inviável. Nessa medida, costuma-se assinalar que a principal tarefa do direito penal
reside na proteção de bens jurídicos273 fundamentais contra determinadas ofensas –

271
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral, t. 1, 1ª ed. bras., 2ª ed. port. São Paulo –
Coimbra: Revista dos Tribunais - Coimbra Editora, 2007, p. 03. Lembra o autor a necessária ressalva
que há que ser feita sobre este entendimento, na medida em que, se de um lado a pena em sentido
estrito não é a única conseqüência jurídica estatuída pelo direito penal sobre os comportamentos
eleitos para sua tutela, havendo igualmente a medida de segurança, tampouco se pode falar em crime
acerca do comportamento que esta pressupõe, porquanto lhe falta elemento essencial estruturante do
delito: a culpabilidade (idem, ibidem, p. 03-04).
272
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro –
parte geral, 5ª ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 84.
273
POLAINO NAVARRETE, Miguel. Derecho penal – parte general, t. II. Barcelona: Bosch, 2000,
p. 554; CEREZO MIR, José. Derecho penal: parte general. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007,
p. 25; ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Op. cit., pp. 84-85; TOLEDO,
Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal, 5ª ed., 7ª tir. São Paulo: Saraiva, 2000, pp. 13-
14. DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 03;
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição, 3ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2003, p. 65.
82
reais ou potenciais – que lhe sejam intoleráveis, pelo que se chega à sintética idéia de
que ao direito penal incumbe a tutela subsidiária de bens jurídicos274 indispensáveis
à garantia da dignidade humana275 e da coexistência social.

Uma vez que traduz a mais intensa modalidade de intervenção estatal


a constringir a liberdade individual do cidadão, a atuação do direito penal
consubstancia, portanto, uma maneira violenta de se lidar com problemas que, a seu
turno, também denotam violência 276. Dados esse imanente conteúdo de violência
institucional e as indesejáveis conseqüências sociais que daí decorrem, sua incidência
há que ser limitada a situações em que tal modalidade de tutela se revele estritamente
necessária para os fins de conservação de uma convivência social relativamente
harmônica. Por essa razão, estabelece-se uma série de princípios limitadores à sua
atuação, frutos da evolução histórica das ciências criminais.

Os princípios fundamentais do direito penal, ao mesmo tempo em que


visam a limitar as hipóteses de sua violenta atuação e propiciar o sentimento de
segurança jurídica indispensável ao desenvolvimento das relações sociais, prestam-se
para justificar materialmente a intervenção estatal sobre a esfera de liberdade do
cidadão. De sua adequada observância depende, portanto, a própria legitimidade da
intervenção penal sobre cada caso específico.

No que se refere à criminalização das relações entre drogas e seres


humanos, muitos são os questionamentos que se põem na análise de sua adequação a
esses princípios fundamentais, o que desafia a legitimidade da intervenção penal
nessa seara.

274
ROXIN, Claus; ARZT, Gunther; TIEDEMANN, Klaus. Introdução ao direito penal e ao direito
processual penal. Trad. Gercélia B. de Oliveira Mendes. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 08. DIAS,
Jorge de Figueiredo. Op. cit., pp. 113-114. Zaffaroni e Batista, contudo, apontam-lhe alguma
imprecisão conceitual na medida em que a lei penal não teria o condão de, efetivamente, tutelar um
bem jurídico, mas apenas se prestaria a confiscar um conflito que atinja ou coloque em perigo um tal
bem: “é óbvio que no homicídio não se tutela com a pena a vida da vítima [...] a idéia de bem jurídico
tutelado digere e neutraliza o efeito limitador da idéia de bem jurídico lesionado ou exposto a
perigo”, pela qual os autores manifestam preferência (ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo;
ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro, vol. I, 2ª ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2003, p. 227). Sem embargo, opta-se neste trabalho por se manter a terminologia conceitual
apresentada, até para não se afastar em demasia de seu escopo fundamental.
275
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato e princípio da precaução na sociedade de
risco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 202.
276
MUÑOZ CONDE, Francisco. Direito penal e controle social. Trad. Cíntia Toledo Miranda Chaves.
Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 03.
83
Assim sendo, desatende-se ao princípio da lesividade na medida em
que, se tenciona sancionar as condutas nucleares típicas sem que haja qualquer
referência a uma mínima exposição a perigo do bem jurídico tutelado, a saúde
pública277. Ora, não se pode presumir que o cultivo, cessão ou comercialização de
uma quantidade qualquer de droga a terceiro exponha a perigo de lesão significante
sequer a saúde individual, tanto menos a saúde pública. Inexiste, evidentemente,
causação de perigo comum. Ademais, se não há lesividade, tampouco se pode
especular sobre a observância aos princípios da subsidiariedade e da
fragmentariedade do direito penal – o que não impede, entretanto, que se suponha
hipotética observância daquele para a análise do eventual atendimento a estes.

O princípio da subsidiariedade impõe a comprovação de que não há


outras maneiras de proteção do bem jurídico além da tutela penal. No caso da tutela
de drogas, porém, a proibição “não só não considera as alternativas existentes [as
quais, aliás, serão abordadas oportunamente], como ainda afeta negativamente os
sistemas terapêutico-assistencial e informativo-educativo”278.

A seu turno, o princípio da fragmentariedade implicaria a


incriminação somente das lesões mais gravosas à saúde pública que pudessem ser
acarretadas pelas interações entre seres humanos e substâncias psicoativas. No
entanto, em matéria de repressão às drogas, verifica-se a imposição arbitrária de
crimes e penas a todas e quaisquer relações entre pessoas e substâncias, inclusive as
mais inócuas, pelo que se despreza igualmente o princípio da intervenção mínima –
em matéria de drogas, a intervenção penal é máxima.

Do ponto de vista do princípio da legalidade, a amplitude do programa


criminalizador de drogas reclama o estabelecimento de tipos abertos, normas penais
em branco, redações vagas e indeterminadas – e confusas, dada a pouca técnica
legislativa aplicada – com o escopo de abarcar toda sorte de conduta. Não se
arriscam as legislações sequer a esclarecer o que deva ser entendido com droga, e
tampouco descrevem, em todas as suas circunstâncias, quais são as condutas
proibidas. No caso brasileiro, que lamentavelmente se repete em outros países, o
277
RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre as drogas ilícitas: o impacto
do proibicionismo no sistema penal e na sociedade. Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo: 2006, p. 220..
278
KARAM, Maria Lucia. De Crimes, penas e fantasias, 2ª Ed. Rio de Janeiro: Luam, 1993, p. 63.
84
recurso a norma regulamentar administrativa para se saber quais são as substâncias
proibidas subtrai ainda mais a frágil segurança jurídica que se pode supor existente
nos tipos incriminadores.

Por fim, a resoluta inobservância também do princípio da


proporcionalidade queda-se evidente pela análise sistemática do direito penal, na
medida em que a crimes indubitavelmente mais graves são dedicadas penas
significativamente mais leves – o incêndio, a explosão e a inundação
(respectivamente arts. 250, 251 e 254 do CP) possuem penas que variam de três a
seis anos de reclusão; a provocação de desastre ferroviário (art. 260, § 1º do CP)
merece penas entre quatro e doze anos de privação da liberdade279.

As condutas do usuário, ademais, podem, no máximo, configurar


espécie de autolesão, de todo impunível em nosso direito, sem qualquer repercussão,
sequer potencial ou presumível, no plano da saúde pública. E querer protegê-lo de si
mesmo, além de constituir flagrante desprezo à tutela constitucional da intimidade,
da vida privada e do respeito à diferença – corolários do princípio da dignidade
humana –280, seria de um paternalismo absolutamente incompatível com a concepção
de uma sociedade formada por indivíduos adultos auto-responsáveis.

Como se vê, mesmo de uma análise bastante sintética do tema à luz


dos princípios norteadores do direito penal é flagrante a ausência de dignidade
penal281 e de carência de tutela penal282 dos crimes de tráfico e posse de drogas, pelo
que ambos restam inidôneos de um tal tratamento legislativo 283. Não obstante,

279
Acerca da manifesta desproporcionalidade do crime de tráfico, vide: GRECO, Luís. “Tipos de
autor e Lei de Tóxicos ou: interpretando democraticamente uma lei penal autoritária” In: Revista
Brasileira de Ciências Criminais, ano 11, n. 43. São Paulo: Revista dos Tribunais, abr/jun 2003, p.
226 et. seq.
280
Art. 1º, III e art. 5º, X da Constituição Federal. Acerca de sua aplicabilidade concreta à questão do
uso de drogas, veja-se recente julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: TJSP, Apel.
Crim. 01113563.3/0-0000-000, Rel. Juiz José Henrique Rodrigues Torres.
281
Sobre a necessidade de haver-se dignidade penal para que um determinado valor possa ser objeto
de tutela, vide: REALE JR., Miguel. Instituições de direito penal, vol. I. Rio de Janeiro: Forense,
2002, p. 22.
282
Sobre as noções de dignidade penal e carência de tutela penal, vide: ANDRADE, Manuel da Costa.
“A Dignidade penal e a carência de tutela penal como referência de uma doutrina teleológico-racional
do crime”. In: Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 2º. Lisboa: abr/jun/1992, p. 173 et seq.
283
GOMES, Mariângela G. de Magalhães. “Notas sobre a inidoneidade constitucional da
criminalização do porte e do comércio de drogas”. In: REALE JR., Miguel. PASCHOAL, Janaína
Conceição. Drogas: aspectos penais e criminológicos – primeiro encontro de mestres e doutores do
85
também do ponto de vista da criminologia a intervenção penal sobre esses
comportamentos é extremamente questionável.

3.2. Algumas considerações de índole criminológica

De acordo com a criminologia moderna, é preciso haver,


necessariamente, o concurso de quatro requisitos para que se reconheça em
determinada conduta a possibilidade de ser reconhecida coletivamente como crime: o
fato deve ter incidência massiva no corpo social, real e efetiva incidência aflitiva,
relevante persistência espaço-temporal e implicar inequívoco consenso acerca de sua
etiologia e de técnicas de intervenção mais eficazes para seu controle 284. Mediante
esses critérios, tenciona-se evitar a criminalização de comportamentos isolados,
socialmente inócuos ou efêmeros, ou mesmo que se promova uma incriminação
inútil ou contraproducente.

No que toca à análise de tais requisitos, constata-se a cristalina falta às


condutas relacionadas ao uso e ao tráfico de drogas de consenso inequívoco quanto à
eficácia e justeza de seu tratamento penal, bem como, em muitos casos, carece
igualmente de incidência aflitiva real285. Ainda, com base no quanto observado em
capítulo anterior, mesmo a incidência massiva do fenômeno pode ser questionada, na
medida em que parte dela poderia ser atribuível às próprias políticas repressivas.

De outra parte, o uso de drogas e, dependentemente da concepção que


se adote, também o seu comércio, inserem-se na categoria dos “crimes sem vítimas”
(victmless crimes), em que (i) a participação dos atores no fato é consensual; (ii) não
há participantes demandantes pela proteção das agências penais; (iii) não há qualquer
sentimento de dano por parte da suposta vítima; (iv) oferecem-se bens socialmente

Departamento de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.
94-106.
284
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 43-47;
GARCIA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Criminologia, 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002, p. 71.
285
Lembre-se que a quantidade de dependentes de drogas é extremamente pequena se comparada ao
universo de pessoas que a consomem sem maiores implicações à sua vida pessoal a prefissional.
86
desaprovados, mas amplamente desejados286. E, como é evidente, essa circunstância
contribui para a ocorrência de uma notável disparidade entre a quantidade de delitos
havidos e a quantidade de delitos de que se toma conhecimento em um determinado
tempo e local, exsurgindo o fenômeno da cifra oculta da criminalidade (cifra negra).

Sob os mais diversos aspectos, portanto, somente se intensifica a


deslegitimação do tratamento penal reservado às drogas, traficantes e usuários.
Assim, utilizando-se da integração entre criminologia e direito penal no âmbito da
ciência conjunta penal, manifesta-se a doutrina, respectivamente sobre os victmless
crimes e a cifra oculta:

ressalta Ferrajoli ser ilegítima a incriminação do uso de


entorpecente [ao que acrescentamos, por razões
semelhantes, também o comércio], pois além de não
ofender nem s sociedade nem a quem quer que seja, não
tem eficácia dissuasória, apenas provocando a
marginalização do usuário. Os chamados “crimes sem
vítimas”, como o portar entorpecente para uso próprio
[...], não possuem dignidade penal e constitui um abuso
do poder de punir a sua incriminação287;

Como corolário natural do princípio descriminalizador


acerca das autonomias culturais, tem-se assinalado que
uma proibição não deve ser incluída numa lei penal se
não for possível colocá-la em vigor, ou, mais
precisamente, se só uma pequena porcentagem de
infratores é atingida288.

O fenômeno da cifra oculta, com efeito, agrava a seletividade do


sistema punitivo, e escancara a maneira iníqua com que é ordinariamente aplicado
pelas agências de repressão.

Há que se evitar a incriminação de condutas socialmente inócuas e/ou


meramente protetoras de valores morais289, como ocorre no caso da tutela de drogas,
se se almeja prevenir a acentuada estigmatização e marginalização de grupos sociais
que não compartilhem dos mesmos códigos – das quais podem advir distúrbios

286
CERVINI, Raul. Os Processos de descriminalização, 2ª ed. Trad. Luiz Flávio Gomes. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002, p. 208.
287
REALE JR., Miguel. Instituições de direito penal, vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 25.
288
CERVINI, Raul. Op. cit., p. 183.
289
GARCIA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Criminologia, 4ª ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002, p. 366.
87
sociais conseguintes, como o caso das subculturas delinqüentes290 e das carreiras
criminais291.

Embora pareçam bastantes – e, de fato, sejam-no – os argumentos


supra-expendidos, há ainda outros a serem tratados que demonstram, claramente, a
ilegitimidade e a imprestabilidade do proibicionismo penal das drogas.

290
Idem, ibidem, p. 363 et seq.; SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005, p. 241 et seq.
291
GARCIA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Op. Cit., p. 490-492; Nosso, “Breve estudo acerca da
atuação das instâncias de controle social formal e informal”. In: Ultima Ratio, ano 1, n. 1. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 499-500..
88
4. LIBERDADE INDIVIDUAL VERSUS PATERNALISMO
LEGAL

Não obstante as flagrantes arbitrariedade e ilegitimidade constatadas nos


critérios utilizados pelas instâncias oficiais para elegerem as drogas cujo consumo e
distribuição lhes seja conveniente292, a atuação estatal no sentido de impedir o uso de
determinados psicoativos pelos cidadãos ainda que estes os consumam
exclusivamente em seu ambiente doméstico implica, independentemente de quais
possam ser as substâncias escolhidas, a assunção por parte do Estado de uma
tarefa/responsabilidade que talvez não lhe incumba.

Stuart Mill, filósofo e economista político britânico, já em 1859 afirmava ser


o indivíduo naturalmente soberano acerca de si mesmo, de seu corpo e de sua
mente293, que comporiam, juntos, inexcedível esfera de liberdade individual. Esse
pensamento, a princípio, tenderia a reclamar a resoluta ilegitimidade da intervenção
coercitiva estatal sobre o consumo de drogas, ao menos em âmbito doméstico. É
certo, porém, que não caberia aceitar a sua aplicação prática absoluta, porque
incompatível com a convivência em sociedade, mormente nos atuais tempos de
relações sociais complexas294. Com efeito, a abolição de limites à liberdade
individual, uma vez levada às últimas conseqüências, exigiria admitir-se a plena
liberdade do indivíduo no que concerne, por exemplo, ao pagamento de tributos, ao
uso de cinto de segurança em veículos automotores, ao uso de capacetes em
motocicletas ou, mesmo, à escolha privada de limites de velocidade para o tráfego
em vias públicas295 A consideração de Mill segundo a qual a única razão para a
intervenção oficial sobre o comportamento humano residiria na causação de danos a
terceiros – com a qual fundamentava o chamado harm to others principle296 a repelir

292
Vide supra, cap. 3.
293
MILL, John Stuart. On Liberty and other essays. Oxford: Oxford University Press, 1991, p. 14.
294
Sobre a contextualização da vida atual na sociedade complexa, vide supra, item 4.1.1.
295
Convém anotar, de toda sorte, que as limitações impostas pelo Estado a tais liberdades é feita
através da utilização de normas de controle meramente administrativo, não ocorrendo a aguda tutela
penal – inclusive, evidentemente, no caso do não recolhimento de tributos, que necessariamente
requer a concorrência do elemento fraude para que seja erigido à categoria de delito. A lógica não é a
mesma, porém, no caso da intervenção estatal sobre os consumidores de psicoativos.
296
Em português, ‘princípio do dano a terceiro’, ou, ainda, ‘princípio da ofensa a terceiro’. MILL,
John Stuart. Op. cit., chap. IV, passim. Cabe observar, aqui, que a concepção material de crime
prevalente no pensamento jurídico anglo-americano desde o século XIX repousa justamente na
doutrina do princípio do dano (harm principle), fundada nas idéias pioneiras de Stuart Mill e
atualmente apoiada, em grande medida, no pensamento jusfilosófico de Feinberg. No direito europeu
89
intervenções classificáveis de paternalistas –, entretanto, parece permitir que, sem
necessariamente se opor ao seu pensamento nuclear, tencione-se legitimar a
incriminação do mero consumo de drogas com base no argumento de sua pretendida
nocividade social.

Em todo caso, é fato que uma desejada eticidade da intervenção punitiva


estatal, em princípio, haveria que reclamar a abstenção do direito penal quanto à
eventual punição de condutas de caráter essencialmente privado, como é o caso da
autolesão deliberada ou da tentativa de suicídio 297. A esse respeito, leciona-se que o
paternalismo legal pressupõe que o Estado conheça melhor os interesses particulares
dos cidadãos do que estes próprios os conhecem298, máxima que em nada parece
razoável299. Encontra-se circunscrita às fronteiras morais particulares da cada
indivíduo a possibilidade de se autogovernar, de soberanamente autodeterminar-se,
afigurando-se ilegítima a ingerência estatal em tal plano face às inextrincáveis
relações entre a autodeterminação pessoal e o constitucionalmente protegido campo
da privacidade individual300; entre a autodeterminação individual e a liberdade de
facto. Assim sendo, não seria lícito ao Estado, sobretudo através do direito penal – o
mais poderoso (e danoso) instrumento oficial de coerção –, ultrapassar essas
barreiras atinentes à soberania do indivíduo-cidadão301.

As intervenções legais de índole paternalista apresentam duas características


centrais: em primeiro lugar, visam a proteger um suposto interesse do próprio
indivíduo por elas atingido; em segundo, contêm necessária coerção, pelo que não se

continental, por influência da doutrina penal italiana, o termo ‘ofensividade’ (offensività) obteve maior
aceitação durante o desenvolvimento do conceito material do delito, acabando por se imbricar com a
própria noção de proteção de bens jurídicos, consoante exposto supra (cap. 4.1). A respeito, vide:
DIAS, Jorge de Figueiredo. Op. cit., pp. 109-110.
297
Tais comportamentos, de fato, não são contemplados pela tutela do direito penal no Brasil e em
grande parte dos demais países.
298
FEINBERG, Joel. The Moral limits of the Criminal Law, vol. 3: Harm to self. Oxford: Oxford
University Press, 1989, p. 23. Disponível [on-line] em: Oxford Scholarship Online,
<http://oxfordscholarship.com/oso/public/content/philosophy/0195059239/toc.html>. Acesso em:
13/09/2004.
299
Já tivemos oportunidade de nos manifestar introdutoriamente acerca do paternalismo legal, com
apoio nas teses de Mill e Feinberg, em: TAFFARELLO, Rogério Fernando, Da Legalização das
drogas como instrumento de política criminal. Tese de láurea apresentada à Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo. São Paulo: FDUSP, 2004, pp. 70-71.
300
Constituição Federal, art. 5º, esp. inc. IV, VI, VIII, IX, X e, por extensão, inc. XI e XII.
301
TAFFARELLO, Rogério Fernando. Op. cit., p. 71.
90
faculta ao atingido dissentir da intervenção que se lhe impõe302. Conquanto
pretendam possuir um nobre propósito de proteção dos administrados, revelam-se
temerárias à medida que esse propósito possa se prestar para ocultar outros de caráter
questionável, como a salvaguarda de determinadas codificações morais que,
consideradas em si mesmas, não se mostrariam dignas de tutela penal. Nessa medida,
intervenções paternalistas não constituiriam senão um pretexto para a imposição
ilegítima de padrões morais a indivíduos não submetidos a determinados modelos de
comportamento desejados pelo status social dominante303. Independentemente,
porém, de uma intervenção legal paternalista servir ou não a uma ocultação de seu
verdadeiro propósito, é inegável que supõe a impossibilidade de se considerarem os
indivíduos adultos componentes do tecido social como plenamente responsáveis
pelos próprios atos e suas conseqüências. Desta constatação decorre, efetivamente,
um certo e apriorístico – e, ademais, claramente justificado – ceticismo doutrinário
ante a existência de intervenções penais paternalistas304.

Por conseqüência, mesmo aquelas pessoas que adotam um estilo de vida que
possa ser considerado caótico para os padrões médios sociais devem ser vistas como
sujeitos racionais e competentes para sua autodeterminação, com condições de
desenvolverem uma concepção de vida própria e coerente com seus intentos, visto
que dotados de possibilidades de auto-reflexão e assunção das responsabilidades
implicadas por seus atos305.

Não se deve a priori estabelecer, contudo, que uma tal reflexão seja suficiente
para definir eventual ilegitimidade de da intervenção penal sobre este ou aquele
comportamento; deveras, há que se reconhecer a ocorrência de uma presunção
contrária à validade e plausibilidade de qualquer intervenção que traga em seu bojo

302
VON HIRSCH, Andrew. “Paternalismo direto: autolesões devem ser punidas penalmente?”. Trad.
Helena Regina Lobo da Costa. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 67. São Paulo: Revista
dos Tribunais, jul-ago/2007, p. 13.
303
A esse respeito, manifestam-se Zaffaroni e Batista: “O estado que pretende impor uma moral é
imoral, porque o mérito moral é fruto de uma escolha livre diante da possibilidade de optar por outra
coisa: carece de mérito aquele que não pôde fazer alguma coisa diferente. Por essa razão, o estado
paternalista é imoral. Em lugar de pretender impor uma moral, o estado ético deve reconhecer o
âmbito de liberdade moral, possibilitando o mérito de seus cidadãos, que surge quando eles têm a
disponibilidade da alternativa imoral [...]”. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA,
Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Op. cit., p. 225.
304
VON HIRSCH, Andrew. Op. cit., p. 13.
305
Idem, ibidem, p. 15.
91
fortes contornos de paternalismo legal306. Todavia, uma intervenção que pareça
meramente paternalista pode, de outra parte, ser legitimada por outros critérios
igualmente idôneos a autorizar a tutela da norma penal307, ainda que sua potencial
legitimação se veja enfraquecida sob o ponto de vista filosófico-liberal308. É fato,
outrossim, que sanções que se afigurem meramente paternalistas possam ter o
legítimo escopo de tutelar situações em que pessoas, hipossuficientes em alguma
medida, não hajam genuinamente consentido com o risco a que se expõem, o que
torna inválido tal consentimento e reclama a proteção institucional de seu
interesse309. Tampouco se afirme, peremptoriamente, que, em casos em que se
verifique a inaceitabilidade da intervenção jurídico-penal sobre a esfera de liberdade
do cidadão, não possa haver o controle oficial através de outras formas menos agudas
de regulação jurídica310; estas, ao revés, uma vez observando-se os demais princípios
norteadores do direito punitivo em um Estado democrático e social, podem se
mostrar bastante adequadas a certas situações determinadas.

Isso posto, importa investigar se a incriminação do porte de drogas para uso


próprio constitui uma intervenção penal de cariz paternalista e, se o caso, examinar a
sua legitimidade sob essa ótica.

Ora, na medida em que se propõe, fundamentalmente, a proteger o usuário de


potenciais males que possam ser acarretados à sua saúde física e/ou psíquica,

306
Idem, ibidem, p. 14.
307
ESTELLITA, Heloisa. “Paternalismo, moralismo e direito penal: alguns crimes suspeitos em nosso
direito positivo”. In: Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, ano 15, n. 179. São Paulo:
IBCCRIM, out/2007, p. 18.
308
Idem, ibidem, p. 18.
309
Idem, ibidem, pp. 17-18.
310
Apontando uma resistente carência de desenvolvimento doutrinário acerca do paternalismo legal
em diversos aspectos, Von Hirsch lembra, inicialmente, que “a discussão sobre o paternalismo nos
anos 80 deu pouca atenção à questão acerca de quais podem ser as diferenças fundamentais entre
proibições paternalistas no direito penal e em outras formas de intervenções estatais coativas
(exemplificativamente, as do direito civil ou do direito administrativo) que se direcionem a impedir
comportamentos autoprejudiciais”. VON HIRSCH, Andrew. Op. cit., p. 14. Mais à frente, pondera:
“segundo meu julgamento, existem problemas específicos quando se acionam sanções penais, ainda
que o modelo de um paternalismo limitado possa justificar intervenções coercitivas estatais de outras
naturezas (por exemplo, de natureza civil ou administrativa)”. Idem, ibidem, p. 18. E, finalmente,
arremata: “Se minha argumentação anterior, que se concentrou na característica de censura da sanção
e na inapropriação da censura penal para comportamentos autoprejudicias, está correta, seria possível
argumentar que, tendo em vista, por exemplo, a baixa gravidade da sanção relativa à obrigação de usar
cinto de segurança, não existiria uma reação verdadeiramente de censura nos termos do direito penal
tradicional. No direito alemão, tais formas de comportamento seriam frequentemente consideradas
infrações contra-ordenacionais (Ordnungswidrigkeiten) e não exprimiriam, por isso, uma verdadeira
censura penal”. Idem, ibidem, pp. 26-27.
92
indiciariamente parece claro estar-se diante de um exemplo de indevida intervenção
paternalista311 direta312. A questão se torna um pouco mais complexa se se considera
que o âmbito de proteção da norma penal incriminadora do consumo de substâncias
tóxicas deva se estender à prevenção de ofensas colaterais resultantes de tal
consumo, como é o caso dos já observados males sociais que se supõe mantenham
relação de simples causa/efeito com o uso de psicoativos. Trata-se aqui, portanto, de
eventual prevenção de possíveis vitimizações futuras de terceiros, com o que o
escopo da incriminação do porte de drogas para uso próprio passaria a albergar o
evitamento de potenciais delitos como furtos, vandalismos, lesões corporais e até
homicídios, entre outros. Nesse mister, discute-se se as lesões causadas
mediatamente deveriam dar causa a uma antecipação da tutela penal com base na
alegada natureza criminógena do consumo de psicoativos313.

Tal compreensão, entretanto, necessariamente implicaria a admissibilidade da


responsabilização penal por fato futuro e incerto, seja ele próprio ou mesmo – e
espantosamente – alheio. Ressalta-se na hipótese, desde logo, um flagrante conflito
com o princípio da responsabilidade penal própria 314, fundamental a um direito penal
democrático315, que estabelece ser a responsabilidade penal imputável a pessoas
determinadas e em virtude de fatos determinados a que tenham dado causa316.
Absolutamente, não se afigura razoável aceitar-se a incriminação de condutas pelo
mero fato de possibilitarem eventuais lesões ulteriores sobre as quais o ator original

311
ESTELLITA, Heloísa. Op. cit., p. 18.
312
Von Hirsch explica a diferença existente entre o paternalismo legal direto e o paternalismo
indireto: enquanto que este tenciona proteger o interesse de uma pessoa ante lesão causada por
outrem, ainda que genuinamente consentida, o primeiro pretensamente protege o interesse de alguém
sobre eventual lesão causada por si próprio – razão pela qual o professor de Frankfurt e Cambridge
não admite a sua justificação em sede de direito penal. VON HIRSCH, Andrew. Op. cit., esp. pp. 12-
13; 23-26.
313
Idem, ibidem, p. 25.
314
Idem, ibidem, p. 25. Sobre o fundamento do princípio da responsabilidade penal própria (pessoal),
Cirino dos Santos, com referências a Baratta, aponta ser “a culpabilidade, como expressão do
princípio nulla poena sine culpa (derivado do art. 5º, LXII, CR, que institui a presunção de inocência),
indicada pelas condições pessoais de saber[-se] o que faz (imputabilidade), de conhecimento real do
que [se] fez (consciência da antijuridicidade), e do poder concreto de não [se] fazer o que [se] fez
(exigibilidade de comportamento diverso), que estruturam o juízo de reprovação do conceito
normativo de culpabilidade: somente a culpabilidade pode fundamentar a responsabilidade penal
pessoal para a realização do tipo de injusto”. SANTOS, Juarez Cirino. Op. cit., pp. 31-32 (grifos do
originial). Ainda a respeito do mesmo princípio, ora tratado como princípio da intranscendência ou
transcendência mínima e compreendido de uma maneira mais ampla, vide: ZAFFARONI, Eugenio
Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Op. cit., pp. 232-233.)
315
E que, de tão elementar e incontroverso, nem mesmo mereceu ser abordado no capítulo deste
trabalho que discute a principiologia do direito penal (supra, cap. 4).
316
A respeito, em nosso ordenamento, art. 13 do Código Penal.
93
não detém controle ao tempo de sua ação, objeção que remanesce válida ainda que,
mediante decisões futuras, o mesmo ator possa vir a concorrer para a prática de tais
lesões317. Com isso, não se exclui a adequada e necessária responsabilização penal
sobre casos em que o agente original, desde logo, apresente desígnio concorrente
com a decisão futura de causação da ofensa; ao mesmo tempo, permite-se refutar
toda intervenção estatal que revele a ilegítima expressão de um paternalismo penal
direto318.

317
VON HIRSCH, Andrew. Op. cit., p. 26.
318
Idem, ibidem, p. 26.
94
5. INEFICÁCIA MANIFESTA DA CRIMINALIZAÇÃO DO
COMÉRCIO DE DROGAS ANTE OS FINS A QUE SE PROPÕE
(o war on supply, o paradoxo dos lucros e o efeito hidra)

Em estudo bastante profundo e acurado sobre o tema, Bertram et al


desmistificam alguns dos falsos axiomas ligados à política repressiva estadunidense,
demonstrando a sua patente ineficácia e a sua inegável contraproducência. Lembram
os autores, inicialmente, que se podem dividir as estratégias políticas do chamado
war on drugs em duas partes complementares: a guerra ao fornecimento (war on
supply) e a guerra ao uso (war on use) de substâncias psicoativas, cada qual com suas
respectivas – e inerentes – falhas, derivadas de sua própria concepção e
pressupostos319. Enquanto que a guerra ao uso equivoca-se ao supor, de maneira
extremamente simplista, que o simples temor da sanção penal teria poder dissuasório
suficiente para evitar o consumo de drogas320, os equívocos da guerra ao
fornecimento se apresentam mais complexos, baseados, especialmente, em duas
questões-problema, respectivamente, o paradoxo dos lucros (profit paradox) e o
efeito hidra (hydra effect)321. Ambos são conseqüências diretas das políticas da
guerra às drogas.

O paradoxo dos lucros tem a sua gênese no fato de as políticas oficiais de


combate à produção e circulação de drogas almejarem interferir no mercado dessas
substâncias, tornando-as cada vez mais escassas e, com isso, caras. Com efeito, a
repressão tem conseguido elevar os preços da oferta de psicoativos em virtude do
conseguinte aumento dos custos operacionais de sua produção, bem como do
incremento dos riscos experimentados por quem atua no mercado ilegal. No entanto,
ocorre que, com a permanência da demanda por drogas – o que, pode-se arriscar-se a

319
BERTRAM, Eva; BLACHMAN, Morris; SHARPE, Kenneth; ANDREAS, Peter. Drug war
politics: the price of denial. Berkeley - Los Angeles - London: University of California Press, 1996,
pp. 09 et seq.
320
A esse respeito, analisando criticamente cada uma das teorias sobre as finalidade da pena, Ferrajoli,
ao tratar da prevenção geral negativa, assinala a sua ineficácia recorrendo, inclusive, ao caso do
consumo de psicoativos como ilustração de seu argumento: “[...] inclusive no aborto ou no consumo
de estupefacientes se admite que as penas, como parece demonstrado por investigações empíricas
comparadas, são completamente ineficazes para preveni-los”. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón –
teoría del garantismo penal, 4ª ed. Trad. Perfecto Andrés Ibáñez et. al. Madrid: Editorial Trotta, 2000,
p. 280. Trad. livre do esp. para o port.
321
BERTRAM, Eva; BLACHMAN, Morris; SHARPE, Kenneth; ANDREAS, Peter. Op. cit., p. 13 et
seq.
95
dizer, tem ocorrido de modo consistente em toda a história desde as primeiras
descobertas de seus efeitos322 –, sejam elas lícitas ou ilícitas, o seu mercado se torna
extraordinariamente lucrativo para produtores, distribuidores e comerciantes,
precisamente pelo fato de serem os produtos mais escassos – e mais caros – do que o
seriam acaso não fossem proibidos323.

Tal fenômeno se deve, em grande medida, ao fato de que a curva de demanda


no peculiar mercado das drogas, malgrado apresente variações de acordo com
diferentes categorias de usuários324, tende a ser considerada preço-inelástica, ou de
pouca elasticidade325. Disso decorre a limitada eficácia da promoção do incremento
artificial nos preços para fins de contenção da demanda por drogas326, na medida em
que o desejo de consumi-las é, no mais das vezes, suficientemente forte para se
desconsiderarem os altos custos de seu consumo – ainda que, para se poder satisfazê-
lo, arrisque-se, por exemplo, a cometer um crime patrimonial327.

É de se observar que, sob o ponto de vista econômico, a dinâmica do mercado


de drogas funciona semelhantemente à dinâmica de qualquer mercado de

322
Vide supra, cap. 3.1.
323
A respeito, os pesquisadores da Universidade da Califórnia citam dois casos exemplares de seu
estudo de 1996: à época, 1g de cocaína pura, se adquirido legalmente para fins medicinais, custaria
entre US$ 15,00 e US$ 20,00, ao passo que, no mercado ilegal norte-americano, a mesma quantidade
sairia por um prelo médio de US$ 143,00; de outra parte, constataram que os 330kg de folhas de coca
necessários para se produzir 1kg de cocaína pura rendiam cerca de US$ 110,00 ao seu produtor rural
na Bolívia, e, após feito o seu processamento, refino e finalização, a mercadoria era vendida em
Miami, ainda no atacado, por algo entre US$ 16.000,00 e US$ 25.000,00, podendo chegar a atingir,
após fracionada em pequenas porções, no varejo das ruas das grandes cidades dos EUA, as
impressionantes cifras de entre US$ 70.000,00 e US$ 300.000,00. BERTRAM, Eva; BLACHMAN,
Morris; SHARPE, Kenneth; ANDREAS, Peter Op. cit., p. 12 et 15.
324
Naturalmente, usuários em situação de dependência ou semi-dependência tendem a considerar
menos o preço da droga na decisão de sua compra do que usuários ocasionais ou potenciais novos
usuários.
325
BARTON, Adrian. Illicit drugs: use and control. London - New York: Routledge, 2003, pp. 92-93;
KUZYEMKO, Ilyana; LEVITT, Steven David. “An empirical analysis of imprisioning drug
offenders”. In: Journal of Public Economics, n. 88. Lausanne: Elsevier - Thomson Scientific, 2004,
pp. 2054-2055. Disponível [on-line] em:
<http://pricetheory.uchicago.edu/levitt/Papers/KuziemkoLevitt2004.pdf>. Acesso em: 10/01/2008;
STORTI, Cláudia Costa; DE GRAWE, Paul. “Globalization and the price decline of illicit drugs”, p.
08. Disponível [on-line] em: <http://www.cesifo-
group.de/pls/guestci/download/CESifo%20Working%20Papers%202007/CESifo%20Working%20Pa
pers%20May%202007/cesifo1_wp1990.pdf>. Acesso em: 10/01/2008.
326
Sobre o conceito econômico e estatístico de elasticidade-preço da demanda, vide: KHEMANI,
Rughvir Shyam; SHAPIRO, Daniel M. Glossary of industrial organisation economics and
Competition Law. Paris: OECD Directorate for Financial, Fiscal and Enterprise Affairs, 2002. pp. 41-
42. Disponível [on-line] em: <http://www.oecd.org/dataoecd/8/61/2376087.pdf>. Acesso em:
10/01/2008.
327
GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Op. cit., pp. 99-100.
96
commodities, porquanto se rege fundamentalmente pela lei de oferta e demanda; por
outro lado, apresenta idiossincrasias que lhe conferem um caráter particular,
especialmente em virtude de dois fatores: a quase estática elasticidade-preço da
demanda, de um lado, e a sua ilicitude, de outro. E a concorrência de tais fatores
propicia o influxo do fenômeno ora analisado: o aumento dos riscos do negócio e a
manutenção do interesse pelo produto implicam um grandioso incremento nas
margens de lucro do mercado ilegal, conseqüência direta da proibição oficial. Desta
forma, quanto mais exitosas as movimentações estatais no sentido da repressão, tanto
maiores resultam os lucros obtidos; estes, a seu turno, funcionam como um enorme
incentivo a que os atores do citado mercado nele permaneçam, e a que outros
negociantes nele se iniciem. E porque se mantém, a despeito de todos os esforços
institucionais, uma considerável oferta do produto no varejo, os preços, conquanto
elevados, jamais atingem patamares suficientemente altos para fazerem cessar a
demanda latente por psicoativos. Paradoxalmente, as próprias estratégias políticas de
combate às drogas acabam por minar a si próprias, na medida em que o aumento de
preços por elas almejado é suficiente para seduzir os seus negociantes, mas
insuficiente para afastar os seus consumidores328.

Com isso, apesar de as crescentes apreensões de drogas das últimas décadas


impressionarem, revelam-se pouco significativas para cumprir as pretensões de
enfraquecimento da produção e circulação de tais mercadorias: estima-se que as
empresas do tráfico de drogas internacional possam suportar, em média, uma perda
de até 80% de seu produto sem que resultem deficitárias, graças aos seus altíssimos
índices de lucratividade, artificialmente elevados e sustentados pelo war on drugs329.

A ocorrência do efeito hidra330, por sua vez, faz com que as operações
aparentemente bem-sucedidas – e invariavelmente muito custosas – de combate à

328
A esse respeito, manifesta-se Wisotsky: “Se a indústria da cocaína contratasse um consultor para
criar um mecanismo voltado à garantia de sua lucratividade, não poderia ele fazer melhor do que a
guerra às drogas: pressões bastantes para inflacionar preços, mas não o bastante para manter seu
produto fora do mercado”. WISOTSKY, S. Beyond the war on drugs: overcoming a failed public
policy. Buffalo - New York: Prometheus Books, 1990, p. 36. Trad. livre.
329
BERTRAM, Eva; BLACHMAN, Morris; SHARPE, Kenneth; ANDREAS, Peter. Op. cit., p. 15.
330
Explicam Houaiss e Villar que a utilização figurativa do vocábulo hidra designa “fonte inesgotável
de malefícios e destruição”, e tem sua origem na mitologia grega: “h. de Lerna serpente cujas sete
cabeças renasciam ao serem cortadas, destruída por Hércules”. HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro
de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, 1ª reimpr. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004, p.
1527.
97
produção e distribuição de substâncias psicoativas, em vez de apresentarem os
pretendidos resultados de redução das atividades ligadas ao tráfico, apenas acabam
garantido novos mercados a outros atores. Isso porque a supressão de um grupo de
negociadores que domina determinada fatia do mercado é acompanhada de sua
substituição por outros grupos, seduzidos pelas altas lucratividades e pela pressão da
demanda em relação à súbita escassez de oferta.

Assim sendo, vale lembrar, ilustrativamente, que, em 1989, o ocaso do assim-


chamado cartel de Medellín – reputado grupo dominante do tráfico internacional dos
anos oitenta – representou, em um primeiro momento, decréscimo significativo da
oferta da cocaína colombiana, mas, em pouco tempo, revelou-se apenas haver aberto
espaço para a emergência de novos grupos, tendo-se recompostos os patamares
perdidos de oferta em apenas seis meses331. Rapidamente, o cartel de Cali assumiria a
posição de ator dominante do mercado, até que, em 1995, quando da derradeira
ofensiva oficial contra essa agremiação, numerosos grupos de traficantes mais jovens
e mais violentos prontamente ocuparam o espaço por ele deixado no mercado332.
Fatos semelhantes já haviam ocorrido nos decênios anteriores: no início dos anos de
1970, quando pressões internacionais – sobretudo dos EUA, o maior mercado
consumidor de quase todas as drogas – contra a produção turca de heroína
contribuíram para o acelerado crescimento de sua produção em terras mexicanas,
igualmente voltada para o abastecimento do mercado estadunidense333; ao final da
mesma década, pressões contra a produção mexicana de maconha desempenharam
papel determinante na massificação de sua produção na Colômbia e nos próprios
Estados Unidos334, hoje os maiores produtores mundiais da cannabis335. De volta a
meados da década de 1990, vale lembrar que ao declínio do cartel de Cali
correspondeu não apenas o aparecimento de grupos de traficantes a ocuparem o
espaço vazio da produção e distribuição colombiana, mas igualmente a dispersão da

331
BERTRAM, Eva; BLACHMAN, Morris; SHARPE, Kenneth; ANDREAS, Peter. Op. cit., p. 19.
332
Idem, ibidem, p. 19.
333
Idem, ibidem, p. 19.
334
Idem, ibidem, p. 19.
335
“Inside dope: the unstoppable economics of a booming process”. In: Forbes. New York: Forbes,
28/10/2003, p. 146.
98
produção de cocaína em outros países andinos como, especialmente, a Bolívia e o
Peru336.

Cumpre assinalar, não obstante, que a mesma lógica do efeito hidra se repete
no combate às drogas verificado no varejo das grandes cidades: nelas, o estouro de
determinados pontos de venda provoca a emergência de outros, assim como a
neutralização de determinados grupos de comerciantes ilegais possibilita o
aparecimento de outros a substituírem-nos e gozarem desse lucrativo negócio.

A ocorrência dos chamados paradoxo dos lucros e efeito hidra prestam-se


evidentemente para minar de modo estrutural a eficácia das estratégias de guerra às
drogas, e concorrem para reclamar soluções políticas diferentes desta que, com
efeito, parece irremediavelmente fadada ao insucesso337.

336
BERTRAM, Eva; BLACHMAN, Morris; SHARPE, Kenneth; ANDREAS, Peter. Op. cit., p. 19.
337
Importa anotar, outrossim, que a constatação de que houve, nos últimos anos, uma sensível redução
nos preços de psicoativos ao consumidor final nos mercados internacionais não vem a contestar as
observações acima desenvolvidas; antes, mais parecem confirmá-la, pois denotam uma possível
estabilização da demanda internacional por drogas ao passo que a oferta continua a crescer,
certamente em virtude dos lucros sedutores (paradoxo dos lucros) e a despeito das contínuas
interceptações dos órgãos de repressão oficial (efeito hidra). Ainda, é de se notar que as
impressionantes margens de lucro forjadas pela repressão conferem grande elasticidade-preço à oferta
de drogas, sendo que, ainda que a competição exija a sua deflação no varejo, o negócio continue sendo
deveras atrativo economicamente (a respeito, vide supra, nota 120).
99
6. TENDÊNCIA ALTERNATIVA EMERGENTE: O ATUAL
TRATAMENTO DA MATÉRIA NA EUROPA

Antes de se analisar em separado diferentes políticas e legislações


nacionais de países europeus acerca da matéria, cabe indagar, primeiramente, se, e
em que medida, haveria uma política de controle de drogas comum em âmbito
continental europeu338.

Isso porque, como se sabe, a despeito das muitas dificuldades


inerentes a uma tal movimentação, há décadas o continente vem convergindo no
sentido de uma ampla integração supranacional, que, se em seu início voltava-se
fundamentalmente a questões de índole comercial, atualmente compreende também
medidas legislativas e diretrizes políticas das mais diferentes ordens.

Essa análise adquire especial relevância à medida que, nas duas


últimas décadas – desde que as políticas de redução de danos começaram a ser
aceitas em diversos países –, a Europa vem gradualmente retomando parte da
influência perdida para os EUA durante quase todo o século XX em matéria de
formulação de políticas de controle de drogas. Em anos recentes, pode-se sentir uma
maior presença européia em instâncias internacionais de particular relevo para a
elaboração de políticas públicas concernentes, como é o caso da Comissão de
Narcóticos das Nações Unidas (CND339) e do Programa das Nações Unidas para o
Controle de Drogas (UNDCP340), para cujo custeio as contribuições da União
Européia têm aumentado de maneira notável341.

338 No mesmo sentido, vide: RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle


penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na
sociedade. Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo. São Paulo: 2006, p. 101.
339 Comission on Narcotic Drugs. Trata-se do principal órgão formulador de políticas

atinentes a drogas no âmbito da ONU.


340 United Nations International Drug Control Programme.
341 BOEKHOUT VAN SOLINGE, Tim. Drugs and decision-making in the European Union.

Trad. Berveley Jackson. Amsterdam: Mets & Schilt – CEDRO, 2002, p. 15. Segundo o
autor, em 2002 a participação da União Européia no orçamento do UNDCP atingira
70%.
100
Assim, já na Sessão Especial da Assembléia Geral das Nações Unidas
342
(UNGASS ) de 1998, pôde-se notar algum influxo da visão européia de atuação
particular sobre a demanda – de que derivam as políticas de redução de danos –
como contraponto à tradicional abordagem repressiva ali prevalente, a qual foi
historicamente influenciada pelas políticas da DEA norte-americana. Deste modo,
verificou-se desde então a incorporação em sede multilateral da noção de que se deve
trabalhar para reduzir os efeitos negativos do uso de drogas, algo que, efetivamente,
identifica-se com aquelas políticas européias – malgrado o órgão internacional, tal
como os EUA, obviasse a reprodução da expressão redução de danos343. O mesmo se
diga quanto à consolidação, após a UNGASS, do princípio da responsabilidade
compartilhada entre as nações acerca da oferta e da demanda por drogas, que
significou uma relativização da idéia – igualmente assentada, década antes, pelos
EUA – de que os países centrais eram vitimados pelos países periféricos
responsáveis pela produção e oferta344.

Todavia, à atuação conjunta da União Européia nesse mister põem-se


relevantes óbices. Em primeiro lugar, em meio às quase três dezenas de países que
formam o bloco, evidentemente muitas são as divergências de políticas verificadas
entre as preferidas de cada país, o que faz com que, por exemplo, idéias progressistas
e liberalizantes que têm sido recentemente adotadas por países como Portugal, Itália
e Espanha quedem-se opostas à doutrina repressiva predominante na Suécia e na
França, vistos como os mais conservadores345. Ademais, não se pode olvidar

342 United Nations General Assembly Special Session.


343 Idem, ibidem, p. 15.
344 Idem, ibidem, p. 15. A emergência do princípio da responsabilidade

compartilhada foi possibilitada, outrossim, pelo fato de o governo Clinton haver


ensaiado uma aproximação com líderes sul-americanos, a qual reclamava um
discurso menos intervencionista-militarista que o de seus antecessores (RODRIGUES,
Thiago. Política e drogas nas Américas. São paulo: Educ – Fapesp, 2004, p. 266).
Ademais, a respeito das divergências político-criminais verificadas no âmbito da UE,
e com uma análise comparativa detalhada entre os casos opostos da Holanda, de
um lado, e da França e Suécia, de outro, veja-se, do mesmo autor: Dealing with
drugs in Europe - an investigation of European drug control experiences: France, The
Netherlands and Sweden. Utrecht: Willem Pompe Institute for Criminal Law and
Criminology, 2004, passim. Em sua análise, o autor constata que as notáveis
diferenças de abordagem apresentada pelos países estudados têm menos relação
com a natureza e intensidade de seus problemas sociais internos com a questão
das drogas que com as tradições histórico-culturais-sociais que influem na política
de cada nação.
345 BOEKHOUT VAN SOLINGE, Tim. Drugs and decision-making in the European Union.

Trad. Berveley Jackson. Amsterdam: Mets & Schilt – CEDRO, 2002, p. 16.
101
princípio político-jurídico essencial das ordens democráticas, não raro consagrado
constitucionalmente, segundo o qual somente compete ao Estado nacional legislar
em matéria penal, o que impede uma legislação unificada supranacional – embora
não impeça que diretrizes supranacionais influenciem, direta ou indiretamente, o
âmbito jurídico interno dos Estados-partes346.

De toda sorte, constata-se ainda não ser possível falar-se em uma


“política de drogas européia”, mas apenas em “políticas de drogas européias”347, as
quais, embora possam almejar uma integração futura348, ora esbarram em relevantes
dificuldades políticas, jurídicas e culturais.

É possível, destarte, que a influência da União Européia sobre os


entendimentos e políticas internacionais de controle de drogas venha a crescer no
futuro, mas isso dependerá do grau de consenso e coesão que a generalidade

346 A respeito das implicações dos processos de integração sobre o direito penal
interno, tomando-se em consideração os específicos casos da União Européia e do
Mercosul, vide: ESTELLITA, Heloísa. Integração regional e direito penal. Tese de
doutoramento apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,
2004, passim. Convém lembrar, outrossim, que, se uma legislação comunitária em
matéria penal ainda não é possível, a cooperação policial e judicial em matéria
penal constitui um dos três pilares sobre os quais se assenta a integração européia
(a respeito: LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Globalização, regionalização e
soberania. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 188; BOEKHOUT VAN SOLINGE, Tim.
Op. cit., p. 19-40), e que teóricos daquele continente já discutem possibilidades de
atribuição futura de competência legislativa penal no âmbito da UE (DIAS, Augusto
Silva. “De que direito penal precisamos nós europeus? Um olhar sobre algumas
propostas recentes de constituição de um direito penal comunitário”. In: COSTA,
José de Faria; SILVA, Marco A. Marques da. Direito penal especial, processo penal e
direitos fundamentais: visão luso-brasileira. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 337).
347 RODRIGUES, Luciana Boiteux de F. Controle penal sobre as drogas ilícitas: o

impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade. Tese de


doutoramento apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
São Paulo: 2006, p. 102. Tais políticas, entretanto não deixam de apresentar pontos
de intersecção, como nos casos da quase unanimidade com que se aplica
institucionalmente as políticas de redução de danos, bem como nos processos de
despenalização – em diferentes graus – do mero usuário de drogas.
348 Anote-se também que, já nos primeiros anos desta década, ministros de Estado

da Justiça dos países membros da UE discutiram a efetiva unificação das políticas


repressivas nacionais no tocante ao tráfico, o que abrangeria os modelos típicos do
delito e o preceito secundário para cada modalidade – o tratamento da posse
para consumo próprio e a classificação das substâncias controladas permaneceria
sob os critérios de cada país. A respeito: O Estado do Paraná (s.a.). “UE quer unificar
penas e coordenar combate às drogas”, 30/12/2003. Disponível em:
<http://www.parana-online.com.br/editoria/mundo/news/69572/>. Acesso em:
15/01/2009.

102
daqueles países consiga atingir previamente dentro do próprio bloco. Por ora, e ao
menos por algum tempo, é certo que, embora hajam logrado integrar parte do
tratamento da matéria e apresentem elevado grau de cooperação entre si para o
cumprimento de suas diretrizes, remanescem essencialmente divididos na formulação
e execução de políticas de prevenção e repressão349.

Por outro lado, há que se ter em conta que as limitações havidas no


campo da elaboração legislativa em matéria penal não se aplicam a outras searas,
sendo que, em matéria de saúde pública, a competência legislativa comunitária já é
uma realidade – o que facilita, por exemplo, o planejamento de políticas em conjunto
e a adoção de medidas comuns preventivas e de redução de danos350. A autonomia
dos Estados nacionais para desenhar as suas próprias políticas em matéria de drogas
é, deveras, cada vez menor351. O tema do controle de drogas inseriu-se na agenda de
prioridades da União Européia já no ano do Tratado de Maastricht, em 1993, quando
se instituiu o European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction
(EMCDDA)352, sediado em Lisboa, com o fito de coordenar e avaliar estratégias e
planos de ações comunitários plurianuais353 e de reunir informações e estudos sobre
as políticas de cada país em matéria de drogas, com o que contribui igualmente na
elaboração de políticas nacionais respeitantes. Não obstante, a avaliação das
estratégias nacionais relacionadas às drogas constitui parte do processo de análise da
candidatura de novos países à admissão no bloco354.

Demonstrando a visão mais liberal da União Européia em relação à


abordagem hegemônica da autoridade internacional, o próprio Parlamento Europeu,

349 BOEKHOUT VAN SOLINGE, Tim. Op. cit., p. 16.


350 RODRIGUES, Luciana Boiteux de F. Op. cit., p. 102.
351 BOEKHOUT VAN SOLINGE, Tim. Op. cit., p. 16.
352 Ou, na tradução oficial para o português, Observatório Europeu da Droga e da

Toxicodependência (OEDT).
353 A estratégia estabelecida pelo Conselho da UE para os anos de 2005 a 2012,

bem como os planos de ação quadrienais do período, encontram-se disponíveis no


website do EMCDDA:
<http://www.emcdda.europa.eu/html.cfm/index6790EN.html>.
354 Desta forma, o EMCDDA monitora igualmente as concernentes estratégias

nacionais de países membros e de países candidatos, disponibilizando as


respectivas informações em seu website:
<http://www.emcdda.europa.eu/html.cfm/index1360EN.html>.
103
que já testemunhou proposições extremamente progressistas355 – embora,
imanentemente sujeito a alterações políticas em sua composição, nem sempre haja
mantido uma coerência em suas compreensões a respeito –, manifestou de forma
oficial a necessidade de se oferecer a toxicômanos “programas de cunho sanitário e
social que não podem correr o risco de serem obstaculizados pela repressão”356. A
seu turno, refletindo a atual tendência liberal européia, o Conselho da União
Européia 357 recomenda de forma explícita a criminalização da posse de drogas
somente se constatada a intenção de tráfico358 – ainda que contenha a ressalva, como
é próprio de documentos legais internacionais, de os Estados nacionais poderem
entender por uma legislação interna mais rígida359 360.

O tema também se vê incluído na política externa comunitária, na


medida em que a adoção de determinadas ações de controle de drogas podem
constituir um pré-requisito para acordos de cooperação com a UE361.

355 O Relatório D’Anconna, ali debatido em 1998 a propósito da UNGASS, propôs

originalmente a adoção comum de medidas como a descriminalização da


cannabis, a administração de heroína a dependentes e a recomendação para
reforma das convenções internacionais da ONU; após um sucesso inicial atribuído à
abstenção de conservadores dos debates, acabou desfigurado por emendas que
forçaram um recuo da relatora (a respeito, vide: BOEKHOUT VAN SOLINGE, Tim. Op.
cit., p. 62-63). De peculiar importância por sua atualidade, o Relatório Buitenweg,
votado aos 02 de dezembro de 2008, alude em seu parágrafo 149 a que se garanta
a dependentes pleno acesso a serviçoos de tratamento, e a que não se tratem
cidadãos como criminosos pelo único motivo de consumirem psicoativos ilícitos
(disponível em:
<http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?type=REPORT&mode=XML&refer
ence=A6-2008-0479&language=EN#title3>. Acesso em: 15/01/2009.
356 Resolution la lutte contre le drogue, nov/1995 – renovada em 1998. Apud

RODRIGUES, Luciana Boiteux de F. Op. cit., p. 103.


357 Reunião dos chefes de Estado nacionais.
358 Decisão-quadro 2004/757/JHA, art. 2, 1, “c”. Referido texto legal estabelece

elementos mínimos constitutivos do delito de tráfico de entorpecentes para serem


adotados nas legislações internas dos países membros, bem como orientações
para o sancionamento penal do tráfico – incluindo, vale mencionar, a sugestão de
responsabilização criminal da pessoa jurídica para quando o fato seja cometido em
seu benefício (preâmbulo, parágrafo 8). Disponível em:
<http://eldd.emcdda.europa.eu/html.cfm/index5173EN.html?pluginMethod=eldd.sh
owlegaltextdetail&id=3161&lang=en&T=2>. Acesso em: 15/01/2009.
359 Preâmbulo, parágrafo 4.
360 Importa ainda lembrar que os órgãos decisórios e de formulação e

recomendação de políticas e diretrizes no seio da UE são muitos, razão por que


assuntos relacionados a drogas acabam por ser discutidos em diversos deles – o
que, mais uma vez, demonstra a importância ali adquirida pelo tema.
361 BOEKHOUT VAN SOLINGE, Tim. Op. cit., p. 08.

104
No tocante a pontos de intersecção observados entre as diferentes
políticas internas dos países membros, ressaltam-se, desde logo, a quase unanimidade
com que se aplica institucionalmente as políticas de redução de danos362, bem como
os processos e tendências de despenalização ou descriminalização da conduta do
mero usuário 363. Há ainda, em geral, a tendência à diferenciação da resposta
dependentemente do tipo de droga envolvido em cada caso concreto364, pelo que
especialmente a cannabis é merecedora de tratamento mais brando, muitas vezes
com autorizações para uso terapêutico365 e até mesmo para pequena produção
doméstica voltada ao consumo pessoal366. De outra parte, o tratamento dispensado ao
comércio de psicoativos ilícitos diferencia, em muitos casos, o agente que vende à
droga com o fim de sustentar seu vício daquele meramente movido pelo lucro367,
sujeitando-se ambos, igualmente, às diferenciações decorrentes da natureza “leve” ou
“pesada” da droga correspondente368.

Estas, em linhas gerais, as similaridades verificadas nas diferentes


políticas legislativas adotadas pelos Estados europeus, dentre os quais, ora,
escolhem-se alguns 369 para análise individualizada370 371.

362 Idem, ibidem, p. 15.


363 Rodrigues aponta que, além da descriminalização recentemente operada por
Espanha, Itália e Portugal (e do caso da Holanda, já mais antigo), também países
como Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Irlanda, Reino Unido e Suíça
houveram por despenalizar a conduta do usuário. RODRIGUES, Luciana Boiteux de
F. Controle penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no sistema
penal e na sociedade. Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo. São Paulo: 2006, p. 103.
364 Casos da Áustria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, Holanda, Irlanda, Itália,

Luxemburgo, Reino Unido e Portugal. Idem, ibidem, p. 104.


365 Casos da Alemanha, Bélgica, Espanha e Reino Unido. Idem, ibidem, p. 104.
366 Caso da Holanda.
367 RODRIGUES, Luciana Boiteux de F. Op. cit., p. 106.
368 Cabe anotar que tais diferenciações, geralmente válidas tanto para usuários

quanto para comerciantes, são, no mais das vezes, observadas pelos textos
legislativos de diferentes países, mas, outras vezes em que não o são, acabam por
se tornar praxe jurisprudencial – como os casos da Alemanha e da Suíça. Idem,
ibidem., p. 104.
369 Os critérios para tal escolha – arbitrária, de certo modo – repousam a princípio

na circunstância de, a nosso ver, os eleitos parecerem deter, dada a sua


proeminência política e/ou tradição jurídica, maior potencial de influenciar outros
sistemas legislativos. Não obstante, também se considerou como critério
determinante a circunstância de tais países apresentarem, em maior ou menor
medida, algum viés alternativo à hegemonia do proibicionismo – eis a razão
principal da exclusão da França (que, de resto, a despeito de sua tradição em
direito público – constitucional, administrativo e sancionador – pouco influencia a
105
6.1. Alemanha

A República Federal da Alemanha adotou, em junho de 2003, o Plano


de Ação sobre Drogas e Adição372, que abrange quatro principais focos: (i)
prevenção do uso; (ii) aconselhamento, tratamento e reabilitação; (iii) auxílio à
sobrevivência e redução de danos; (iv) repressão e redução da oferta373. Alude à
drogadição sob uma manifesta perspectiva política de saúde pública374, e, demais de
visar apenas às relações diretas com drogas ilícitas, volta sua atenção igualmente a
outros grupos determinados como filhos de usuários, grupos de risco, usuários de
outras substâncias assemelhadas, condutores de veículos.

Referida política substituiu o anterior Plano para o Combate de


Drogas, datado de 1990, e, como evidenciado por seus próprios nomes, significou
uma mudança de política no sentido de uma perspectiva menos agressiva e mais
realista e objetiva, em consonância com a supra-referida evolução da compreensão
européia acerca da matéria – portanto, menos influenciada, em certa medida, pela
abordagem belicista dos EUA e das Nações Unidas.

teoria e legislação penal de outros países), cuja abordagem repressiva, como já


aludido, destoa da maioria dos países da UE.
370 Cumpre esclarecer que o estudo doravante apresentado não almeja

aprofundar-se em classificações dogmáticas sobre normas de diferentes países e


culturas jurídicas – o que, de resto, seria impossível dentro dos limites deste trabalho
–, mas, fundamentalmente: (i) apresentar a maneira como suas instituições e
agências de controle respondem a problemas – de natureza penal ou não –
derivados das relações entre drogas e cidadãos; e (ii) colaborar na busca de
alternativas ao pensamento proibicionista que, se aos poucos parece perder parte
de sua influência sobre países europeus ocidentais, ainda reina com tranqüilidade
em todo o continente americano, e influencia sobremaneira – e, a nosso ver,
negativamente – a política criminal brasileira.
371 Esclareça-se, outrossim, que as análises de textos legislativos doravante

procedidas utilizaram como fonte, em regra geral, o European legal database on


drugs, disponível no website do EMCDDA.
372 Germany. Federal Ministry of Health and Social Security. Action Plan on Drugs and

Addiction. Disponível em:


<http://www.emcdda.europa.eu/attachements.cfm/att_35452_EN_Germany%20Ac
tion%20plan%202003-%20Englisch.pdf>. Acesso em: 15/01/2009.
373 Ibidem, cfr. p. 3; 15-16. Acesso em: 15/01/2009
374 Ibidem, p. 13-15. Acesso em: 15/01/2009

106
No que toca especificamente ao tratamento legal e penal, o plano
dispõe que previsões e revisões legislativas devem ser feitas à luz das convenções
internacionais e normas comunitárias vigentes, e conforme se entenda necessário 375.

De acordo com o direito alemão376, o consumo pessoal de psicoativos


não é tratado como delito em sentido estrito. Contudo, a posse para consumo próprio,
quando desprovida de autorização escrita para a sua aquisição, constitui ofensa nos
termos do art. 29, § 1 da Lei de Narcóticos de 1981. Há, após uma emenda de 1992,
um considerável espaço de discricionariedade administrativa quanto à persecução, na
medida em que o promotor de justiça pode abster-se de prosseguir com qualquer
procedimento criminal se, tratando-se de quantidade pequena de droga –
inequivocamente para uso próprio – considerar limitadas a reprovabilidade da
conduta e o interesse público que dela derive; neste caso, mesmo a eventual opinião
da autoridade judicial em contrário – ou seja, favorável à persecução – não há que ser
levada em consideração (art. 31a)377.

Tendo analisado a ofensa de consumo pessoal em 1994, o Tribunal


Constitucional Federal alemão declarou a constitucionalidade de sua incriminação378
bem como da reserva de discricionariedade supracitadas, entendendo estarem
observados os princípios da proporcionalidade, igualdade e liberdade individual.
Observou, porém, que autoridades administrativas e judiciais devem cuidar para (i)
que o disposto no art. 31a seja plenamente aplicado; (ii) que o tratamento jurídico
nos casos concretos seja isonômico; (iii) que, especialmente em casos de posse para

375 Ibidem, p. 39-41.


376 A Lei de Drogas alemã foi consultada em língua inglesa, de acordo com a
tradução oficial realizada pelo Ministério da Saúde e Seguridade Social local, e
encontra-se disponível em:
<http://eldd.emcdda.europa.eu/html.cfm/index5173EN.html?pluginMethod=eldd.sh
owlegaltextdetail&id=677&lang=en&T=2#C1>. Acesso em 15/01/2009.
377 Todavia, a contrario sensu, é dada às cortes a possibilidade de, entendendo não

haver interesse público na continuidade da persecução, arquivar o feito no estado


em que se encontre. BÖLLINGER, Lorenz. “Symbolic Criminal Law without limits”.
Disponível em: <http://www.drugtext.org/library/articles/94-const.html>. Acesso em:
15/01/2009.
378 A afirmação da constitucionalidade de um modelo incriminador desprovido de

lesividade substancial foi criticada por Böllinger, que condenou a utilização de uma
política criminal baseada no simbolismo no afã de se tentar resolver problemas
sociais. BÖLLINGER, Lorenz. “Symbolic Criminal Law without limits”. Disponível em:
<http://www.drugtext.org/library/articles/94-const.html>. Acesso em: 15/01/2009.
107
uso próprio de pequenas quantidades de cannabis, atentasse-se ao princípio geral de
prevenção de punições excessivas379.

As substâncias de uso controlado no país figuram taxativamente em


três listas referidas pelo art. 1 da Lei de Narcóticos, as quais compreendem todas as
substâncias arroladas pelas convenções da ONU, além de algumas outras
mencionadas por decisões normativas da UE ou pelo governo alemão ali
classificadas como estupefacientes. Agrupam-se nas listas segundo a sua
prescritibilidade potencial para fins medicinais e implicações de menor ou maior
controle 380. Alterações nas listas podem ser feitas através de ordens da administração
federal que, com o consentimento do Senado, adquirem força de lei (art. 1, § 2); não
obstante, em caso de risco urgente à saúde pública derivado do uso indevido de
determinada substância, mesmo à falta de consentimento do Senado pode o Ministro
da Saúde inseri-la no rol por um período de um ano (art. 1, § 3).

Todas as infrações, sanções e disposições correlatas são previstas


entre os arts. 29 e 34 da lei alemã, que as distribui, em regra, em quatro categorias:
(i) ofensas criminais ordinárias, puníveis com até cinco anos (sem limite mínimo) de
prisão ou multa nos termos do art. 29, § 1, itens 1 a 14; (ii) ofensas criminais de
maior gravidade, puníveis com prisão de um a quinze anos nos termos dos arts. 29, §
3 et 29a; (iii) crimes, puníveis com prisão de dois (em certos casos, três ou cinco) a
quinze anos nos termos dos arts. 30 usque 30b; (iv) infrações administrativas,

379 European Union. EMCDDA. European Legal Database on Drugs. Contry profile:

Germany. Disponível em:


<http://eldd.emcdda.europa.eu/html.cfm/index5174EN.html#B6>. Acesso em:
15/01/2009. A esse respeito, o atual Plano de Ação previu a realização de um
estudo empírico sobre a aplicação prática do art. 31a em todo o país, a fim de
avaliar a sua desejada uniformidade conforme a determinação do Tribunal
Constitucional. Isso porque, conquanto se soubesse, desde outro estudo empírico
realizado em 1997, que, em se tratando de cannabis, a opção dos promotores pela
não persecução em casos de posse de até 10g da droga fosse praticamente
unânime, ainda remanesciam divergências sobre o significado de “pequenas
quantidades” entre as orientações dos órgãos de persecução de diferentes regiões
do país. Não obstante, previu o Plano de Ação a realização de outra pesquisa
empírica, com o fito de verificar o impacto preventivo-especial nas pessoas até
então afetadas pela aplicação do art. 31a. Germany. Federal Ministry of Health
and Social Security. Action Plan on Drugs and Addiction, p. 42. Disponível em:
<http://www.emcdda.europa.eu/attachements.cfm/att_35452_EN_Germany%20Ac
tion%20plan%202003-%20Englisch.pdf>. Acesso em: 15/01/2009
380 European Union. EMCDDA. European Legal Database on Drugs. Ibidem. Acesso

em: 15/01/2009.
108
sujeitas apenas a multas (naturalmente, de caráter administrativo) nos termos do art.
32. A produção, cultivo, distribuição e comercialização de substâncias proibidas,
como condutas análogas ao tráfico, inserem-se entre as merecedoras de respostas
mais graves, em especial quando envolvam quantidades “não insignificantes” de
droga; porém, a sua classificação entre aquelas categorias, e, por conseguinte, a
sanção a ser aplicada varia de acordo com a concretude de cada caso, conforme
podem subsumir-se a uma ou mais circunstâncias explicitamente previstas na lei. São
estas, entre outras, a comercialização de substância proibida para menor de 18 anos
(art. 29a, § 1, 1), a inserção de menor no tráfico (art. 30a, §2, 1), a criação de risco
para diversas pessoas (art. 29, § 3, 2), a adesão ao tráfico ilícito na forma de
atividade comercial (art. 30, §1, 2) ou como parte de um bando (art. 30, §1, 1), o
emprego de arma no cometimento da ofensa ou delito relacionado à droga (art. 30ª,
§2, 2).

Ainda, cabe observar que os estatutos legais de crimes e ofensas acima


referidos aplicam-se igualmente a quaisquer substâncias listadas, independentemente
de seu tipo e classificação. Porém, no momento de imposição de eventual sanção, a
autoridade judicial necessariamente haverá que considerar, além da quantidade, a
periculosidade da substância e o grau de criação de riscos não permitidos envolvidos
na conduta em apreço.

Em face da consagração da abordagem de saúde pública na política de


drogas alemã, modificações graduais em sua legislação pretenderam estimular o
tratamento em lugar da mera sanção. Assim é que, embora não se diferenciem
expressamente as figuras típicas do traficante-usuário e do traficante-empreendedor,
a possibilidade de suspender a execução da sanção privativa da liberdade alcança
plenamente aquele, caso assim escolha (art. 35). O programa de “terapia em vez de
pena”, vigente desde 1982, é referido pela política oficial alemã como de
comprovado sucesso381, embora o adiamento e suspensão da pena nos termos do art.

381 Neste sentido, aceita-se não apenas a suspensão da execução da pena em seu
início, como também a sua interrupção quando o apenado deseje submeter-se a
tratamento.Germany. Federal Ministry of Health. Action Plan on Drugs and
Addiction, p. 42. Disponível em:
<http://www.emcdda.europa.eu/attachements.cfm/att_35452_EN_Germany%20Ac
tion%20plan%202003-%20Englisch.pdf>. Acesso em: 15/01/2009
109
35 apresentem elevado grau de revogação em casos concretos382. A legislação alemã
também estabelece critérios de registro e regulação de terapias médicas de
substituição, bem como regras mínimas para a existência de narco-salas383 – cuja
regulamentação é complementada pela autoridade executiva federal384.

Por fim, cite-se que, devido a emendas aprovadas desde meados da


década de 1990, permite-se o cultivo de cannabis para fins comerciais lícitos
atendendo-se a alguns pressupostos e limitações, como a necessidade de especial
registro, a submissão a fiscalização permanente e a concentração máxima de 0,3% de
THC (art. 19, § 3)385.

Como se nota, a política criminal alemã contempla um modelo


despenalizador para com a conduta do usuário, ao qual se põe uma abordagem, muita
vez, mais voltada à perspectiva da saúde pública que à da repressão penal. Nesse
mister, é de se ver que, conquanto haja norma proibitiva de natureza penal a tutelar a
posse para uso próprio, subsistem mecanismos legais para que o órgão responsável
pela persecução decline do processamento de muitos casos menores – ou se ele não o
fizer, para que a própria autoridade judicial o faça.

Outrossim, a decisão de 1994 do Tribunal Constitucional, se por um


lado merece críticas pela admissão da constitucionalidade de condutas desprovidas
de antijuridicidade material, por outro acertou em estabelecer limites rígidos à

382 O Plano de Ação determinou a realização de estudos empíricos para investigar


as razões dessa alta incidência de revogações e, se o caso, modificar a legislação.
Ibidem, p. 42.
383 As narco-salas na Alemanha são reguladas pela legislação federal e oferecidas

por municipalidades que optem por fazê-lo. De acordo com o Plano de Ação
tedesco, resultados iniciais de avaliações em todo o país indicam sucesso no
propósito de alcançar grupos de heroinômanos raramente acessíveis a outras
políticas, importando em contribuição para a redução de danos à saúde pública.
Germany. Federal Ministry of Health and Social Security. Action Plan on Drugs and
Addiction, p. 38. Disponível em:
http://www.emcdda.europa.eu/attachements.cfm/att_35452_EN_Germany%20Acti
on%20plan%202003-%20Englisch.pdf. Acesso em: 15/01/2009.

384 European Union. EMCDDA. European Legal Database on Drugs. Contry profile:
Germany. Disponível em:
<http://eldd.emcdda.europa.eu/html.cfm/index5174EN.html#B6>. Acesso em:
15/01/2009.
385 Ibidem. Acesso em: 15/01/2009.

110
criminalização secundária do usuário – logrando conferir-lhe maior segurança
jurídica – e em ressaltar a necessidade de não se punirem fatos insignificantes.

Demais da imperiosa necessidade de descriminalizar a posse para uso


próprio, parece faltar à legislação tedesca, igualmente, uma diferenciação legal entre
as condutas de traficar para sustentar o próprio consumo e traficar com intuito de
obtenção de lucro, porquanto ambas apresentam reprovabilidade diversa.

Em face do contexto internacional repressivo, todavia, é certo que a


instituição de medidas – legislativas ou executivas – despenalizadoras e a
objetividade com que o país vem empregando, com sucesso, programas preventivos e
de redução de danos, denotam que o país se situa entre os avançados no campo de
políticas públicas de controle de drogas.

6.2. Espanha

A Espanha adotou na virada do século a sua Estratégia Nacional de


Drogas 2000-2008, cujos objetivos gerais foram agrupados em três principais áreas
de intervenção: redução da demanda, redução da oferta e cooperação
internacional386. desenvolvimento regulatório, pesquisas e treinamentos e sistemas de
informação e avaliação. Após um estudo de sua evolução realizado em 2004, foi
complementada no ano seguinte pela instituição de um Plano de Ação quadrienal
(2005-2008), que definiu foco em seis eixos de trabalho: coordenação, prevenção e
sensibilização social, assistência integral, ampliação do conhecimento respeitante,
redução da oferta e cooperação internacional387.

O país divide-se em dezessete comunidades autônomas, que possuem


competência legislativa e executiva em campos como saúde, higiene e assistência
social (conforme art. 148.1, §§ 20 e 21 da Constituição espanhola). Medidas

386 Spain. Ministry of Interior. National Drugs Strategy 2000-2008, p. 41. Disponível em:
<http://www.emcdda.europa.eu/attachements.cfm/att_35466_EN_Spain%20Strateg
y%202000-2008%20English.pdf>. Acesso em: 15/01/2009.
387 España. Ministerio de Sanidad y Consumo. Plan de Acción 2005-2008, p. 19.

Disponível em:
<http://www.emcdda.europa.eu/attachements.cfm/att_35464_ES_Spain%20Action
%20Plan%202005-2008%20Spanish.pdf>. Acesso em: 15/01/2009.
111
preventivas e de tratamento de usuários, portanto, diferem de uma a outra
comunidade, embora todas devam seguir as orientações postas pelos supracitados
Estratégia Nacional e Plano de Ação, que concentram foco como na busca de
detecção precoce de fatores de risco388, no tratamento precoce389, na reintegração
social e laboral390 e na assistência às famílias de toxicômanos391. Ademais, a
exemplo da experiência alemã, a realização de políticas de redução de danos
merecem especial atenção das autoridades e sociedade espanhola, havendo ali bem-
sucedidos programas de trocas de seringas – inclusive no interior de
estabelecimentos penitenciários –, testes de qualidade de comprimidos em festas
raves, terapias de substituição392 e disponibilização de narco-salas para consumo
seguro393.

Conquanto haja sido, ao lado do Chipre, o primeiro país de todo o


mundo a ratificar a Convenção de Viena de 1988394, somente em 1992 a Espanha
veio a regular, propriamente, a posse e o consumo pessoal de drogas (Lei Orgânica
1/1992)395.

388 Ibidem, p. 28.


389 Ibidem, p. 28.
390 Ibidem, p. 33.
391 Ibidem, p. 30.
392 RODRIGUES, Luciana Boiteux de F. Controle penal sobre as drogas ilícitas: o

impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade. Tese de


doutoramento apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
São Paulo: 2006, p. 115.
393 Ibidem, p. 31-33. A respeito, vale acrescentar que, em 2000, a Espanha optou por

regulamentar a existência de narco-salas, a exemplo do que sucedera


primeiramente na Suíça, em 1986, e depois na Holanda e na Alemanha, no início
dos anos 90. Consoante relatório coordenado pelo EMCDDA, esses são os quatro
países europeus que as adotam até o presente momento (em um total de 72
cidades), sendo que Luxemburgo e Noruega devem oferecê-las em breve – o que
demonstra uma certa tendência de ampliação e um possível reconhecimento de
sucesso da política. European Union. EMCDDA. European report on drug
consumption rooms – Executive Summary. Disponível em:
<http://www.emcdda.europa.eu/index.cfm?fuseaction=public.AttachmentDownlo
ad&nNodeID=2943&slanguageISO=EN >. Acesso em: 15/01/2009.
394 ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa,

2000, p. 1124.
395 A Lei 17/1967 considerou ilegal o consumo e posse de drogas, ainda que para

finalidades medicinais; entretanto, não previu qualquer conseqüência


sancionatória. Entre 1971 e 1983, o art. 344 do Código Penal visava a abranger,
além do tráfico e condutas análogas, também o consumo de psicoativos, embora
dedicasse-lhes sanções idênticas, desrespeitando flagrantemente o princípio da
proporcionalidade; não obstante, a legislação franquista apresentava cláusulas
abertas que violavam, igualmente, os princípios da tipicidade e legalidade estrita.
112
Referido diploma, todavia, dedicou sanções meramente
administrativas às condutas do usuário de drogas, as quais, mesmo após a reforma
global do Código Penal de 1995, permaneceram descriminalizadas. Assim sendo, a
legislação espanhola apenas proíbe a posse e o consumo de drogas em locais
públicos, nos termos da Lei Orgânica 1/1992 (art. 25, 1), impondo-lhes multas que
podem variar de € 300 a € 30000. É possível haver, ademais, a suspensão da
execução da multa administrativa caso o infrator submeta-se voluntariamente a
programa oficial de tratamento a drogaditos, (art. 25, 2 da mesma lei, regulamentado
pelo Decreto Real 1079/1993).

Visto inexistirem no direito espanhol listas específicas de drogas


controladas, faz-se referência direta às normas que internalizaram no ordenamento a
Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961 e a Convenção sobre Drogas
Psicotrópicas de 1971396, bem como a outras normas locais que lhes adicionam
substâncias a serem controladas.

No que toca ao tráfico e condutas análogas, sem embargo, a legislação


do país é uma das mais severas do continente397. As penas ordinárias para tais
delitos, insculpidos nos arts. 368 a 378 do Código Penal, são, em via de regra, de três
a nove anos de prisão quando envolvam “substâncias ou produtos que causem
graves danos à saúde” (art 368) e de um a três anos “nos demais casos” (art. 368)398,

Reforma de 1983 excluiu do Código Penal condutas atinentes ao usuário, que já


eram, dadas as incoerências dogmáticas, inaplicadas segundo jurisprudência
pacífica no país. A respeito: Idem, ibidem, p. 1106; DE LA CUESTA ARZAMENDI, José
Luis. “La Política criminal en materia de drogas en España, tras el nuevo Código
Penal”. In: Cuadernos de derecho Judicial. Política criminal comparada, hoy y
mañana. Madrid: CGPG, 1999, p. 88.
396 Respectivamente, art. 2 da Lei 17/1967 e art. 1 do Decreto Real 2829/1977.
397 Deveras, nesse particular, a tutela de drogas constituiu uma exceção ao ideal

progressista do novo Código Penal espanhol de 1995, ao manter um “puro e simples


continuísmo” da tutela desmesuradamente repressiva ali estabelecida em 1988 em
face de pressões internacionais. DE LA CUESTA ARZAMENDI, José Luis. Op. cit., p. 88
et seq.
398 Observe-se que, com tal diferenciação, o legislador espanhol visou a

estabelecer alguma proporcionalidade na resposta punitiva de acordo com o grau


de periculosidade da substância cultivada, elaborada, traficada ou cujo consumo
foi haja sido de qualquer modo promovido, favorecido ou facilitado pelo agente.
Impõe-se-lhe, porém, a dificuldade de se estabelecer com segurança quais seriam
as substâncias subsumíveis às sanções mais severas e quais as merecedoras das
sanções menos severas, sobretudo considerando-se a ausência de referência a
uma classificação qualquer – embora se saiba, por exemplo, que a heroína ou a
cocaína certamente figurariam na primeira. Outra dificuldade à legitimidade da
113
somadas a multas de, respectivamente, até três e duas vezes o valor da mercadoria.
Adicionalmente à primeira hipótese, pode implicar uma exasperação da pena até o
limite de vinte anos e três meses de prisão e multa de até o quádruplo do valor da
mercadoria a incidência de agravantes como: (i) a introdução de drogas em escolas
ou instituições penitenciárias ou militares – art. 369, 1º; (ii) a venda a menores de 18
anos – art. 369, 1º; (iii) a venda em estabelecimento aberto ao público realizada por
proprietário ou funcionário deste – art. 369, 2º; (iv) a afetação de grandes
quantidades de droga na conduta – art. 369, 3º; (v) o oferecimento de drogas a
pessoas em tratamento (art. 369, 4º); (vi) a adulteração da pureza do psicoativo e
conseguinte incremento de nocividade – art. 369, 5º; (vii) o pertencimento do agente
a associação, ainda que transitória e ocasional, que tenha como finalidade a difusão
das substâncias – art. 369, 6º; (viii) o agente participar de outras atividades delitivas
organizadas ou cuja execução se facilite com o cometimento do delito – art. 369, 7º;
(ix) a venda praticada por autoridade, funcionário público, trabalhador social ou
educador servindo-se de sua função – art. 369, 8º; (x) e a inserção de menores de 16
anos no tráfico – art. 369, 9º.

O Código Penal espanhol também considera crime contra a saúde


pública a produção, circulação e comercialização sem autorização e controle de
substâncias precursoras, punível com sanções de entre três e seis anos de privação da
liberdade (art. 371).

Na parte geral do código, juntamente com a previsão da embriaguez


acidental, há também a previsão da intoxicação acidental como excludente de
responsabilidade (art. 20, § 2). Situações em que dependentes cometem crimes contra
o patrimônio com o escopo de, mediante o valor aproveitado, sustentar seu vício,
quando hajam sido cometidos com o agente sob efeito do uso de drogas ou de crise
de abstinência, podem implicar a que o juiz, ao fim do processo, declare impunível o
fato e ordene aquele a submeter-se a tratamento residencial. Em casos outros, é

incriminação advém do fato de a figura típica ser de periculosidade abstrata, pelo


que resulta questionável a incriminação, a pretexto de tutela da saúde pública, de
uma conduta de cultivo ou comércio de substância que não cause grave dano à
saúde individual ou coletiva – hipótese da parte final da descrição típica. Isso
porque, como instrumento de tutela subsidiária de bens jurídicos, o direito penal
deve cuidar apenas de lesões particularmente relevantes à manutenção da
coexistência humana e convivência social, e não de lesões potenciais presumidas
e singelas.
114
possível aplicar-se, preenchidos determinados requisitos legalmente estabelecidos,
atenuante genérica de dependência grave (art. 21, § 2). Por derradeiro, nos casos em
que a pena aplicada seja igual ou menor de três anos de prisão, sua execução pode ser
suspensa, reduzida ou substituída se o apenado se submeter voluntariamente a
tratamento; eventual abandono do tratamento ou cometimento de novo delito durante
o espaço temporal a ele atinente – que pode variar entre três e cinco anos – acarretará
a sua revogação (art. 81, 1, 3 et 4).

Não há, entretanto, previsões legais de circunstâncias atenuantes para


casos de tráfico e condutas análogas em que o agente os pratique com o fim de
financiar seu vício.

Em virtude de o país haver promovido uma reforma global em seu


Código Penal na metade da década passada, a legislação espanhola, dentre as
analisadas, é a que se encontra mais bem organizada e sistematizada. É digna de
aplausos, ademais, por não impor ao usuário as conseqüências restritivas e altamente
estigmatizantes que resultam da tutela penal, permitindo-se oferecer-lhe programas
preventivos e terapêuticos mais amplos e eficazes.

A previsão de hipótese de exclusão de responsabilidade


consubstanciada na intoxicação acidental é igualmente positiva, porquanto não
haveria motivos para tratá-la diversamente do tratamento dispensado à embriaguez –
inscrita no mesmo art. 20, § 2.do Código Penal (parte geral).

É de se lamentar, entretanto, a desatenção do legislador de 1995 para


com a proporcionalidade das penas tocantes ao tráfico e condutas análogas, visto que
pouco fez senão perenizar tendências de uma legislação repressiva aprovada em 1988
sob forte influência de campanhas mediáticas399 e de pressões internacionais ao
tempo da Convenção de Viena 400 – prontamente ratificada pelo país. Lamenta-se,
outrossim, e também no caso espanhol, a ausência de diferenciação legal entre

399 ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed. Madrid: Espasa,
2000, p. 1103-1110.
400 DE LA CUESTA ARZAMENDI, José Luis. “La Política criminal en materia de drogas

en España, tras el nuevo Código Penal”. In: Cuadernos de derecho Judicial. Política
criminal comparada, hoy y mañana. Madrid: CGPG, 1999, p. 88.
115
condutas que mereceriam tratamento diverso: o tráfico para fins comerciais e o
tráfico para exclusivo financiamento do consumo de drogas.

6.3. Holanda

Os princípios básicos da política de drogas holandesa, a distinção


entre drogas leves e drogas pesadas e a abordagem integrada e equilibrada do tema,
vêm estabelecidos no documento intitulado Política de Drogas: Continuidade e
Mudanças, datado de 1995. Nele, em cujo âmbito se incluem somente as drogas
consideradas ilícitas no país, estabeleceram-se quatro objetivos nucleares: (i)
prevenção do uso, tratamento e reabilitação de usuários; (ii) redução de danos a
usuários; (iii) redução de incômodos públicos causados por usuários (“public
nuisance”); (iv) combate à produção e tráfico de drogas. Esse planejamento global
vem sendo complementado, com o passar do tempo, por diversas outras estratégias
políticas, no mais das vezes voltadas a fins mais específicos, como os casos do
combate à produção e tráfico de ecstasy (datada de 2001), da cocaína (de 2002) e,
inclusive, da cannabis (de 2004).

O governo central atribui grande ênfase a políticas de prevenção; as


escolas devem obrigatoriamente oferecer, desde a educação primária, programas de
promoção de comportamentos saudáveis401, e a implementação de programas de
prevenção coletiva incumbe às municipalidades402. Avaliações e pesquisas para o
melhor desenvolvimento de centros de assistência a drogaditos são freqüentes403, e o
sistema prisional conta com mecanismos legais e órgãos que visam a estimular o
interesse de internos por tratamento404.

O diploma legislativo neerlandês cardeal em matéria de controle de


drogas é a chamada Lei do Ópio (“e outras substâncias narcóticas”), promulgada

401 Nesse mister, há dois diplomas legislativos particularmente relevantes: a Lei da


Educação Primária e a Lei de Bases para a Educação Secundária.
402 Assim, a Lei de Prevenção Coletiva e Saúde Pública.
403 Nos termos da Lei de Qualidade de Instituição de Assistência, de 1996.
404 European Union. EMCDDA. European legal database on drugs - contry profile:

The Netherlands. Disponível em:


<http://eldd.emcdda.europa.eu/html.cfm/index5174EN.html#>. Acesso em:
15/01/2009.
116
originalmente em 1919 como conseqüência das Convenções da Haia (1912-1914), e
que em 1928 ganhou um novo texto que, em certa medida, permanece até hoje como
base do controle ali empregado405.

A Lei do Ópio 406 experimentou uma fundamental reforma no ano de


1976, a qual determinou a abordagem atual: consagrou-se a distinção entre
substâncias, atendendo-se a recomendações de um grupo de trabalho formado em
1972 pelo governo local que sugeriu a introdução de uma escala de risco fundada em
indicadores médicos, farmacológicos, psicológicos e sociológicos407. Destarte, desde
a reforma de há três décadas, incorporou-se à lei a noção que separa drogas que
alegadamente implicam riscos inaceitáveis das demais, pelo que a cannabis e
derivados passaram a ser legalmente vistos como drogas leves, e as demais, drogas
pesadas408. Essa divisão possui notáveis reflexos sobre a medida da repressão penal
destinadas a condutas afetas a cada grupo.

Parte da política nacional de drogas holandesa é descentralizada e


incumbida aos municípios, como é o caso do controle sobre o incômodo público
relacionado com o consumo de droga; no entanto, devem eles, naturalmente,
observar as orientações estabelecidas pela política nacional, a qual limita seu campo
de discricionariedade executiva e legislativa. Como regra, a formulação e execução
de políticas nas municipalidades são gerenciadas por um sistema tripartite de
consultas e tomada de decisões, em que têm lugar o chefe de polícia e o chefe da
promotoria pública locais e o prefeito municipal409.

As substâncias psicoativas merecedoras de controle são divididas em


duas listas anexadas à Lei do Ópio: a lista I, que arrola as drogas de riscos
inaceitáveis, entre as quais figuram opiáceos, cocaína, óleo de cannabis, codeína,
anfetaminas e LSD, e a lista II, que compreende as demais, como a cannabis mesma,
tranqüilizantes e barbitúricos.

405 Ibidem. Acesso em: 15/01/2009.


406 O texto da lei holandesa foi consultado no idioma inglês. Disponível em:
<http://eldd.emcdda.europa.eu/html.cfm/index5173EN.html#>. Acesso em:
15/01/2009.
407 Ibidem. Acesso em: 15/01/2009.
408 Terminologia não oficial.
409 European Union. EMCDDA. Op. cit. Acesso em: 15/01/2009.

117
A lei prevê ressalvas que autorizam, em certas circunstâncias, a
manipulação e administração de drogas para fins médicos, farmacêuticos e
veterinários (art. 5, §§ 1 et 2), bem como exceções a serem outorgadas pelo
Ministério da Saúde Pública e Proteção Ambiental para fins comprovadamente
científicos voltados ao desenvolvimento da saúde pública ou de animais (art. 8).

O mero uso de drogas na Holanda não é crime, malgrado se veja


sujeito a restrições em muitos casos, como em escolas e transportes públicos410.
Também a posse de pequenas quantidades de qualquer droga para consumo, embora
legalmente proibida (Lei do Ópio, arts. 2 et 3), acaba por ser uma prioridade menor,
o que faz com que qualquer pessoa flagrada em posse de até 0,5g, mesmo de droga
considerada pesada, não venha a ser objeto de persecução penal411, embora a polícia
deva confiscar a droga e consultar um órgão de assistência 412.

Deveras, a não-punição do consumo sustenta-se na idéia de que tudo


há que ser feito com vistas a evitar que usuários ingressem em subculturas criminais
onde se quedariam distantes do alcance das instituições responsáveis pela prevenção
e assistência 413. Deste modo, prioriza-se a alocação de recursos reservados à
repressão para a investigação e persecução das condutas análogas ao tráfico,
especialmente quando se trate de tráfico internacional414.

Como acima indicado, a legislação penal do país em matéria de drogas


assenta-se na separação dos mercados de drogas leves e pesadas – sendo que aquele
basicamente é composto pela cannabis e derivados, como o haxixe –, e deve ser
compreendida à luz desse princípio.

410 A competência para a regulação de tais restrições é descentralizada, não


cabendo, portanto, às autoridades executiva e legislativa nacionais. A respeito:
Ibidem, acesso em: 15/01/2009.
411 Nesse sentido, o Ministério Público holandês, em consonância com a política

nacional de drogas, estabeleceu diretivas em 1996, revisadas em 2001, explicitando


a desnecessidade de prisões e de criminalização secundária de usuários em posse
de pequenas quantidades de quaisquer drogas. Ibidem, acesso em: 15/01/2009.
412 Ibidem, acesso em: 15/01/2009. No que concerne à cannabis, vale mencionar

que a posse de até 5g não implicará investigação ou persecução.


413 Essa noção, consagrada pela legislação e política executiva neerlandesas,

também encontra guarida em práticas judiciais tendentes à despenalização


verificadas em uma pluralidade de outros países.
414 European Union. EMCDDA. Op. cit., acesso em: 15/01/2009.

118
Assim, após a reforma legislativa de 1976, gradualmente emergiram
os coffeeshops como pontos de venda de cannabis. Através de um rígido controle,
tolera-se a existência de tais estabelecimentos com o escopo de afastar a população
jovem, em seus experimentos com a erva, do contato com outras drogas. A venda de
pequenas quantidades de cannabis remanesce tecnicamente como uma infração legal,
mas é tolerada nos coffeeshops desde que observem os seguintes critérios postos pela
procuradoria-geral: (i) nenhuma transação pode envolver mais de 5g por pessoa; (ii)
drogas pesadas não podem ser vendidas sob qualquer circunstância; (iii) drogas não
podem ser objeto de propagandas; (iv) o estabelecimento não pode causar incômodo
à tranqüilidade pública; (v) coffeeshops não podem comercializar bebidas alcoólicas;
(vi) menores de 18 anos não podem adentrá-los, bem como não se lhes pode vender
drogas em nenhuma circunstância 415. Ante a inobservância de tais requisitos, pode o
prefeito municipal determinar o fechamento do estabelecimento nos termos do art.
13b da Lei do Ópio.

À parte os coffeeshops e sua regulação, considera-se a posse de drogas


com fins comerciais uma infração mais grave que a produção e posse para consumo
pessoal, e, portanto, merecedora de persecução. A pena máxima cominada para a
posse de até 30g cannabis para os citados fins é de um mês de prisão e/ou uma multa
de € 2300 (art. 11, § 1 cc. §5). Quanto à posse das demais substâncias nesta
modalidade, as penas chegam a um ano de prisão e multa de € 4500 (art. 10, § 5). Ao
seu turno, a produção e tráfico das drogas pesadas pode significar uma pena privativa
de liberdade de até 8 anos, cumulada com multa que pode chegar a € 45000 (art. 10,
§3).

A exportação ou importação de qualquer droga listada é considerada


infração grave pela Lei do Ópio, sujeita a penas privativas de liberdade cujas
previsões máximas in abstracto variam desde quatro anos, para a cannabis (art. 11, §
4), até doze anos, para as drogas pesadas (art. 10, § 4).

415Ibidem. Acesso em: 15/01/2009. Cite-se que, em anos recentes, face a pressões
de países próximos, o governo holandês avalia a possibilidade de obstar o acesso
aos coffeeshops para cidadãos estrangeiros. A respeito: O Estado do Paraná (s.a.).
“UE quer unificar penas e coordenar combate às drogas”, 30/12/2003. Disponível
em: <http://www.parana-online.com.br/editoria/mundo/news/69572/>. Acesso em:
15/01/2009.

119
Crimes patrimoniais cometidos com o fim de financiar o uso de
drogas são incluídos na noção de prevenção a incômodos públicos potencialmente
gerados por usuários, e tendem a merecer tratamento brando dos órgãos de repressão
quando suas circunstâncias concretas denotarem uma reprovabilidade menor – isto é,
pequenos valores envolvidos, ausência de colaboração criminosa, não-reincidência.
Tendência igual é verificada, outrossim, em casos de vendas de pequenas
quantidades de drogas com aquela mesma finalidade – especialmente se se tratar de
drogas leves –, sempre havendo a possibilidade de encaminhamento do envolvido a
instituições de tratamento e reabilitação416.

A legislação holandesa prevê ainda a possibilidade de assistência para


usuários condenados por crimes não relacionados a drogas, permitindo a sua
destinação a instituições especiais de tratamento intensivo por até dois anos
consoante lei especial de 2001; a despeito do princípio de estímulo ao tratamento
voluntário, ele pode ser compulsório nas hipóteses em que a toxicodependência seja
causa de reiterado envolvimento do agente em fatos delituosos417.

No que respeita à práxis das agências de persecução no país, é comum


que, em consonância com diretivas estabelecidas pela chefia do Ministério Público, a
própria polícia decida – conquanto não detenha expressa autorização legal para tanto
– por arquivar procedimentos de pouca importância. Por sua vez, aquele órgão atua
com base no princípio da oportunidade (opportuniteitsbeginsel), a partir do qual
estabelece as diretivas que visam a orientar igualmente o exercício funcional de seus
membros e as atividades policiais. Em tais documentos apresenta, entre outras
disposições, o que deva ser considerado como balizas de “pequena quantidade” de
drogas para uso pessoal, a regulação dos coffeeshops e o tratamento procedimental
dos delitos e infrações tuteladas pela Lei do Ópio 418. Titular exclusivo da ação penal
no país, o Ministério Público, com o propósito de melhor se ocupar de casos mais
graves e relevantes, freqüentemente renuncia à ação quando o interesse seja

416 Ibidem. Acesso em: 15/01/2009.


417 Conforme arts. 38m usque 38u do Código Penal, adicionados pela Lei de 21 de
Dezembro de 2000.
418 European Union. EMCDDA. European legal database on drugs - contry profile:

The Netherlands. Disponível em:


<http://eldd.emcdda.europa.eu/html.cfm/index5174EN.html#>. Acesso em:
15/01/2009.
120
menor419, podendo fazê-lo condicionadamente ou não, nos termos dos arts. 167 e 242
do Código de Processo Criminal.

É possível que a Holanda seja o país europeu cujo controle de drogas


é mais racional e abrangente – algo em certa medida tributável a seu pioneirismo
liberalizante, que decerto permitiu, com o transcorrer do tempo, uma melhor
observação de políticas preventivas e mesmo repressivas com vistas a seu
aperfeiçoamento.

Assim, parecem ser providências positivas a descentralização e a


coordenação do gerenciamento das políticas preventivas e de redução de riscos à
saúde de usuários, bem como a manifesta preocupação com incômodos públicos
potencialmente ocasionados por aqueles. No mesmo sentido, a atenção conferida a
programas educacionais informativos e de incentivo à vida saudável provavelmente
contribui de modo relevante a que o país, malgrado sua maior tolerância ao uso de
drogas, não apresente índices superiores de consumo ou de problemas derivados do
consumo em relação aos demais países europeus.

A abrangência dos programas de assistência neerlandeses é notável, e,


mais que nos demais países, constata-se uma maior pretensão de que a adesão de
usuários a tratamento seja voluntária, melhor se respeitando a liberdade individual –
conquanto se prevejam, igualmente, casos de internação compulsória na execução de
uma sanção. A seu turno, a repressão menor e a inclusão entre as public nuisances de
crimes patrimoniais relacionados a drogas e a pequenas vendas com fim de sustento
do uso denotam a integração daqueles programas com a legislação e com a práxis da
Justiça criminal. Evidencia-se uma preocupação concreta com a saúde pública e uma
atuação institucional para além do mero simbolismo da norma penal.

As penas para o tráfico e condutas análogas segundo o direito


holandês são, como visto, menores que aquelas atribuídas pelo direito alemão e,
sobretudo, pelo direito espanhol. Malgrado a dificuldade, senão impossibilidade, de

419 Ibidem. Acesso em: 15/01/2009. A possibilidade de transação prévia à


instauração de eventual ação penal é uma das modalidades de renúncia, e pode
ocorrer em casos cuja pena cominada seja inferior a seis anos de privação de
liberdade, mediante o pagamento de quantia não superior à multa prevista ao
delito correspondente ou o cumprimento de outras condições.
121
se avaliar a eficácia dissuasória de cominações penais, é certo que não se tem notícia
de tal circunstância em algum momento haver causado emergência social no país.
Em verdade, aqui as sanções parecem melhor atender ao primado da
proporcionalidade, o que raramente ocorre nos demais países em matéria de drogas:
nessa peculiar seara do direito penal, vêem-se freqüentemente penas para tipos de
perigo abstrato equivalentes ou superiores àquelas previstas para o homicídio e
outros tipos de dano bastante graves.

Do ponto de vista econômico, dada a consabida escassez de recursos


dos sistemas de Justiça criminal em todo o mundo, resulta racional a opção por
concentrar-se a repressão sobre condutas potencialmente mais danosas, deixando-se
de lado a bagatela e casos de pequeno relevo – até pelo fato de a repressão penal a
qualquer custo ter se revelado inútil e contraproducente perante seus fins manifestos.

A nosso ver, contudo, o critério da separação entre drogas leves e


pesadas – que, de certa forma, se não pela lei, é adotado pela práxis judiciária
também de outros países – afigura-se excessivamente arbitrário: não obstante os
propagandistas da proibição haverem ocupado décadas tentando demonstrar uma
maldade ínsita a certas substâncias, a nocividade de cada droga ainda depende
fundamentalmente da forma como é utilizada, e, por outro lado, mesmo substâncias
presentes em todas as listas de maior repressão, como os opiáceos, apresentam
inegáveis propriedades medicinais – as quais não se sabe se já foram suficientemente
exploradas. De toda sorte, no que respeita à cannabis e à sua classificação
privilegiada, com efeito, nos dias de hoje evidencia-se o fato de sua ofensividade
potencial ser comparável à de alimentos ordinariamente consumidos em quaisquer
culturas.

Durante as mais de três décadas já passadas de sua vigência, a


descriminalização das condutas do usuário resistiu às censuras impostas pelo
contexto internacional de intensificação da guerra às drogas (liderada pelos EUA de
Reagan e Bush) e a pressões exercidas pela ONU. Em face disso, é lícito crer que,
não apenas do ponto de vista da legitimidade e humanidade, mas também do ponto
de vista da eficácia preventivo-repressiva, é uma estratégia definitiva – tanto mais a
partir do momento em que passa a ser, ainda que com diferenças, adotada por outros

122
países. Por outro lado, esse modelo tem limitações, e, do ponto de vista lógico, cria
um paradoxo irresolúvel pelo fato de um mesmo bem tornar-se lícito na demanda e
ilícito na oferta.

6.4. Itália

O governo da Itália adotou, no início de 2008, um plano de ação desde


logo previsto para ser substituído depois de um ano por novo documento que deve
abarcar o quadriênio 2009-2012, em paralelo ao plano de ação comunitário
europeu420. O Plano Italiano de Ação sobre as Drogas de 2008 elegeu 66 diferentes
medidas para serem implementadas ao longo do ano, agrupadas em cinco macro-
áreas principais: coordenação, redução da demanda, redução da oferta, cooperação
internacional e informação, formação, pesquisa e avaliação421.

Já em sua introdução, vale mencionar, o documento de 2008 deixa


expressa a necessidade de que venha a ser avaliado e monitorado durante todo o
período de sua aplicação, visto que só assim se “permite identificar eventuais
modificações necessárias às intervenções para serem sucessivamente planejadas”422.

Desde 1999, ano de sua instituição sob os auspícios do Ministério da


Assistência Social, o desenvolvimento de políticas atinentes à prevenção, tratamento,
reabilitação e reintegração social de usuários de psicoativos incumbe ao Observatório
Nacional de Drogas. No mesmo ano, instituiu-se o Comitê Nacional de Coordenação
Antidrogas e estabeleceu-se a descentralização das políticas executivas,

420 Italia. Ministero della Solidarietà Sociale. Piano italiano di azione sulle drogue, p.
05. Disponível em:
<http://www.emcdda.europa.eu/attachements.cfm/att_50769_EN_Italy%20Action%
20Plan%202008.pdf>. Acesso em: 15/01/2009.
421 Ibidem, p. 08-32. Vale mencionar que, comparativamente aos demais países

europeus até aqui analisados, a ênfase conferida pelo plano italiano à importância
de políticas de redução de danos é menor; a própria expressão “redução de
danos” é mencionada uma única vez entre as 51 páginas do documento (p. 43).
422 Ibidem, p. 06-07. Trad. livre.

123
determinando-se a transferência de 75% do pertinente orçamento nacional às regiões
e províncias autônomas423.

O direito italiano em matéria de drogas baseou-se, historicamente, no


princípio da não-criminalização do consumo, malgrado legislação aprovada em 1975
declarasse ilegal a posse – condicionando, desde então, a resposta estatal à
quantidade da substância e à finalidade com que era possuída. Essa regulação,
todavia, mereceu severas críticas da doutrina jurídica italiana durante a década e
meia de sua vigência, porquanto sua aplicação concreta resultava em graves
divergências na imposição de sanções424.

A aprovação, em 1990, da Lei nº 162, de 26 de junho, foi seguida do


Decreto Presidencial (DPR) nº 309, de outubro do mesmo ano, que significou uma
consolidação e revisão das normas até então vigentes em um texto único. Mais que
isso, aquele diploma introduziu no direito italiano a proibição do consumo de drogas
e de todas as condutas a ele relacionadas – como a posse, a aquisição e o transporte –
, sujeitas a multas administrativas as quais variavam, inicialmente, conforme a
quantidade droga envolvida.

Após semelhantes críticas e um referendo popular, três anos depois se


aprovou uma reforma na legislação, que ab-rogou o art. 72, 1 do DPR 309 e, com ele,
fulminou a proibição do uso pessoal, a intervenção do juiz criminal em caso de
inobservância de sanções administrativas e a concepção de uma quantidade média
diária de consumo como critério determinante de posse para uso próprio ou para fins
comerciais (arts. 75, 76 et 78, 1, “b” et “c”). O mero consumo, em si, deixou, então,
de ser referido como infração na lei italiana vigente425.

Contudo, comportamentos como a posse, a aquisição e a importação


para consumo pessoal remanescem proibidas como infrações administrativas,

423 European Union. EMCDDA. European legal database on drugs - contry profile:
Italy. Disponível em:
<http://eldd.emcdda.europa.eu/html.cfm/index5174EN.html#&pluginMethod=eldd.
countryprofiles&country=IT&language=it>. Acesso em: 15/01/2009.
424 Ibidem. Acesso em: 15/01/2009. Deveras, o estabelecimento de quantidades

fixas como critério diferenciador das condutas de traficante e usuário pode levar a
injustiças flagrantes, como a condenação do último nas penas cominadas à
conduta do primeiro.
425 Ibidem. Acesso em: 15/01/2009.

124
cabendo às autoridades judiciais a verificação concreta da finalidade do ato, de que
depende o correspondente tratamento administrativo ou penal426.

As substâncias controladas segundo o direito italiano (Decreto de 4 de


março de 1992 e respectivas emendas) são distribuídas em seis listas: a lista I
compreende opiáceos, cocaína e derivados, anfetaminas; a lista II, a cannabis e
derivados; a lista III, barbitúricos altamente aditivos, hipno-sedativos; a lista IV,
substâncias medicinais que causam dependência; a lista V, preparados que contêm
psicoativos; a lista VI, estimulantes. A resposta legal a atividades ilícitas varia de
acordo com a classificação da substância em cada lista, sendo que as listas I e III são
merecedoras de repressão mais severa que as listas II e IV.

Na primeira oportunidade em que alguém é encontrado na posse para


uso próprio de drogas, a conseqüência ordinária é a sua intimação para uma
entrevista com o chefe de polícia local, o qual registrará a ocorrência e entregar-lhe-á
um documento oficial que menciona os males potencialmente causados pela droga e
formalmente adverte-lhe a não mais consumir substâncias ilegais; sempre que
possível, sua família será informada a respeito e convidada a procurar serviços de
assistência social e terapêutica427. Se o fato volta a ocorrer com a mesma pessoa,
sucede nova entrevista com o chefe de polícia, ora assistido por consultores dos
serviços assistenciais locais, e se lhe impõe uma sanção administrativa (suspensão de
direitos como porte de arma ou habilitação para conduzir veículos automotores,
apreensão do passaporte, etc.). Esta sanção temporária valerá por dois meses se a
substância possuída houver sido das listas II ou IV, ou quatro meses se das listas I ou
III.

Nestas hipóteses, pode o indivíduo – adolescente ou adulto – solicitar


a sua inscrição em serviços de tratamento ou reabilitação, o que implica a suspensão
dos procedimentos administrativos supracitados até a sua avaliação após um período
previamente determinado. Se, no entanto, deixa de comparecer ao programa sem
justificativa válida, é convocado a nova entrevista com o chefe de polícia, que o
alertará sobre as conseqüências de uma eventual segunda desistência – caso em que o

Ibidem. Acesso em: 15/01/2009.


426
427Ademais, independentemente da classificação da substância, essa será a
abordagem quando o possuidor seja um menor de 18 anos.
125
fato será reportado ao Ministério Público, para análise e acompanhamento. Em uma
eventual terceira desistência, sujeita-se o indivíduo a uma ou mais das seguintes
sanções administrativas, por um período de dois a quatro meses (listas II e IV) ou
três a oito meses (listas I e III): apreensão do passaporte; suspensão de porte de arma;
suspensão de habilitação para dirigir; comparecimento bissemanal perante a
autoridade policial; privação de visitação a locais determinados; prestação semanal
de serviços à comunidade; apreensão do veículo utilizado no transporte ou
armazenamento da droga; e, no caso de cidadãos extra-comunitários, suspensão da
permissão de residência no país.

Sanções de natureza penal são destinadas exclusivamente à posse de


drogas com o fim de obtenção de lucro, bem como às demais condutas análogas. A
esses ilícitos, a legislação italiana atribui penas severas: a produção e tráfico de
substâncias das listas I e III implicam penas de oito a vinte anos de privação de
liberdade, mais multas de entre € 25000 a € 250000; se se tratar de drogas contidas
nas listas II e IV, as penas variam entre dois e seis anos de prisão, e as multas, entre €
2000 e € 77000.

No caso de pequenas quantidades, as penas para a produção e o tráfico


variam entre um a seis anos de privação da liberdade e multas de € 2600 a € 26000
para as listas I e III, e entre seis meses e quatro anos de prisão e multas de € 1000 a
€10000 para as listas II e IV.

Inexistem benefícios legais a quem comete crimes patrimoniais com o


fim de sustentar seu consumo ou satisfazer sua dependência de drogas, embora, no
caso do furto (Código Penal, art. 624), a exemplo do que ocorre no Brasil, as sanções
podem ser bastante leves se o prejuízo resultante também o for, além de se lhe
aplicarem benefícios processuais. Igualmente, não há concessões legais para casos de
comercialização de drogas com o fim de sustento do hábito ou vício, embora a práxis
judiciária tenda a impor a tais situações penas mais próximas das mínimas cominadas
para cada fato428.

428 European Union. EMCDDA. European legal database on drugs - contry profile:
Italy. Disponível em:
126
Na Itália, também semelhantemente ao caso brasileiro, vige o
princípio da obrigatoriedade da ação, que afasta eventual margem de
discricionariedade do promotor público para arquivar casos que considere de menor
interesse. O mesmo ocorre em sede policial, na medida em que cada ocorrência há
que ser imediatamente relatada ao Ministério Público, que, por sua vez, havendo
materialidade delitiva e indícios de autoria, tem, como visto, o dever de instaurar a
persecução.

Faculta-se a usuários apenados com privação da liberdade a


possibilidade de converter seu encarceramento em terapias intensivas, neste caso,
porém, deve o juiz ser convencido do comprometimento do apenado ao tratamento e
da adequação deste ao quadro toxicológico daquele. Deveras, medidas alternativas de
tratamento em vez da mera privação da liberdade são disponibilizadas a todos,
embora com variações de um caso a outro, e os serviços de assistência social e de
saúde têm desempenhado um papel cada vez maior em instituições penitenciárias do
país429.

Como visto, também o direito italiano optou pela descriminalização


das condutas do usuário – o qual, no entanto, remanesce sujeito a sanções
administrativas. Um dado curioso do processo descriminalizador italiano é o fato de
haver sido precedido de uma movimentação da opinião pública e até mesmo de um
plebiscito nacional, o que indica uma notável resistência da população à imposição
arbitrária do modelo criminalizador em detrimento da liberdade individual.

No que concerne ao tráfico, repetem-se as sanções desarrazoadamente


elevadas, e também aqui parece faltar previsão legal diferenciadora entre o
traficante-profissional e o traficante-usuário. Não obstante, seria desejável um
tratamento especial para autores de crimes patrimoniais motivados pelo uso de
drogas que fosse além da opção pela aplicação concreta de penas mais próximas do
limite mínimo, como sucede no modelo holandês. Essas ausências tornam-se mais
relevantes porquanto no direito italiano não se aplicam as margens de
discricionariedade de que dispõem – e, efetivamente, utilizam-se – promotores

<http://eldd.emcdda.europa.eu/html.cfm/index5174EN.html#&pluginMethod=eldd.
countryprofiles&country=IT&language=it>. Acesso em: 15/01/2009.
429 Ibidem. Acesso em: 15/01/2009.

127
alemães e holandeses para afastar o usuário de uma criminalização secundária em
muitos casos despicienda, que poderia ser resolvida também através de multas
administrativas e/ou da reparação de danos.

De outra parte, depreende-se dessa breve análise o caráter mais


humano da abordagem não-criminalizante destinada ao usuário, que, a princípio, não
haveria por que perder eficácia dissuasória se comparada às abordagens mais
repressivas. Não deixa de haver controle social formalizado; porém, é positivo o fato
de haver, em vez do mero conflito suscitado pela atuação das agências de repressão
penal, maior espaço para diálogo entre usuários e agentes oficiais.

Se se trata de não abandonar o paradigma sancionador, a imposição de


sanções administrativas parece muito mais razoável para uma conduta socialmente
inócua como a posse para uso próprio – desde que não cause dano a terceiros – de
substâncias psicoativas. É de se indagar, no entanto, se esse seria o paradigma mais
adequado, visto que restringe a liberdade individual para proteger o usuário de si
mesmo.

6.5. Portugal

Em Portugal, a Estratégia Nacional para a Luta contra as Drogas,


datada de 1999, definiu metas gerais e vem sendo implementada pelo Plano Nacional
Estratégico 2005-2012, o qual se funda em seis eixos principais de ação – sendo que
os quatro primeiros apresentam explícita transcendência sobre todas as medidas
pertinentes, com o que se tenciona lograr sucesso no foco aos dois últimos:
coordenação; cooperação internacional; informação, pesquisa, treinamento e
avaliação; revisão de ferramentas legais; redução da demanda; redução da oferta430.
Particularmente acerca da redução da demanda, concedeu-se ênfase à ação em cinco
sub-áreas: prevenção e dissuasão para não-usuários ou usuários ocasionais, e redução
de riscos e danos, tratamento e reabilitação (sem excluir, também, a dissuasão) para

430Portugal. Gabinete do Primeiro Ministro. Executive Summary of the National Plan


against Drugs and Drug Addiction 2005-2012, p. 03-04. Disponível em:
<http://www.emcdda.europa.eu/attachements.cfm/att_35503_EN_Portugal%20Sum
mary%20Strategic%20Plan%202005-2012%20English.pdf>. Acesso em: 15/01/2009.
128
usuários freqüentes ou dependentes431. O objetivo fundamental da política
portuguesa repousa na redução significativa do uso de drogas pela população e dos
negativos impactos sociais e à saúde pública por ele gerados432.

Há, ainda, o Plano Nacional contra Drogas e Drogadição 2005-2008,


ainda não atualizado para o próximo quadriênio, que concentra foco em áreas como
coordenação, cooperação internacional, informação, formação, treinamento e
avaliação, redução da demanda e redução da oferta, identificando para cada qual a(s)
parte(s) responsável(is) por sua execução, cronogramas de trabalho e indicadores e
instrumentos de avaliação para monitorar a implementação da política planejada433.

A principal lei portuguesa em matéria de controle de drogas é o


Decreto-Lei 15/93, que sofreu sucessivas modificações e foi parcialmente revogado
pela Lei 30/2000434. Além de estabelecer crimes e penas – inclusive abarcando a
lavagem de valores – (cap. III), aquele diploma clarifica muitos aspectos da política
do país concernente ao assunto, como prescrições médicas, autorizações,
certificações e fiscalização (cap. II), assim como aponta responsabilidades ante a
prevenção e tratamento (cap. IV) e investigação criminal (cap. VI).

No que toca à prevenção, o referido Decreto-Lei cuida especialmente


do envolvimento dos serviços de saúde na execução da norma. O drogadito não é
considerado criminoso, mas um doente, ao qual a legislação dedica significativa
atenção. Todavia, embora historicamente a lei tenha optado pelo tratamento como
substitutivo da punição, a falta de estrutura física dos serviços assistenciais, muitas
vezes, criou grandes filas de espera e ensejou certa tendência de aplicação de
medidas punitivas em seu lugar435.

As recentes estratégias, porém, consagraram definitivamente a idéia


de constituir o tratamento e reabilitação de dependentes um dos pilares fundamentais

431 Ibidem, p. 04.


432 European Union. European legal database on drugs - contry profile: Portugal.
Disponível em:
<http://eldd.emcdda.europa.eu/html.cfm/index5174EN.html#&pluginMethod=eldd.
countryprofiles&country=PT&language=pt>. Acesso em: 15/01/2009.
433 Ibidem. Acesso em: 15/01/2009.
434 Esta norma, em seu art. 28º, revogou expressamente parte do art. 40º e o art. 41º

daquela, uma vez que descriminalizou as condutas afetas ao usuário.


435 European Union. EMCDDA. Op. cit. Acesso em: 15/01/2009.

129
da política de drogas portuguesa, no que foram contempladas por recentes alterações
legislativas. Deste modo, substituiu-se a promotoria pública pela Comissão para a
Dissuasão da Toxicodependência no acompanhamento da execução dos programas
direcionadas a usuários que não tenham envolvimento em delitos violentos (Decreto-
Lei 130-A/2001)436.

O país divide as substâncias controladas em seis listas anexadas ao


Decreto-Lei 15/93 (regularmente atualizadas por outros decretos-lei), cuja
classificação repercute na repressão aos ilícitos a elas relacionados: a lista I
compreende opiáceos, coca e cannabis e respectivos derivados; a lista II, drogas
alucinógenas, anfetaminas e barbitúricos; a lista III, preparados de substâncias
controladas; a lista IV, tranqüilizantes e analgésicos; as listas V e VI, precursores.

Até julho de 2001 o consumo de drogas e a sua posse para tal fim
eram considerados infrações penais para o direito português, resultando em sanções
de até 3 meses de detenção ou multa – em caso de posse de quantidades mais
elevadas para consumo, poder-se-ia chegar a um ano de privação da liberdade. A
entrada em vigor, naquele mês, da Lei 30/2000 representou a descriminalização do
uso e posse para uso de quaisquer substâncias controladas, embora haja mantido a
ilicitude administrativa de tais comportamentos (arts. 1º et 2º)437 438.

Desde então, quando alguém é surpreendido na posse de determinada


quantidade de substâncias psicoativas para uso próprio, inexistindo suspeitas de que
possa se tratar de posse para outro fim (e.g., comércio ou tráfico), a polícia deve

436 Ibidem. Acesso em: 15/01/2009.


437 Na terminologia jurídica lusa, o consumo de drogas passou a ser matéria do
direito de mera ordenação social, sendo que as chamadas contra-ordenações
constituem infrações de caráter administrativo, e não penal. A respeito, vide: DIAS,
Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral. T. I. Coimbra – São Paulo: Coimbra –
Revista dos Tribunais, 2007. p. 157.
438 Em face dessa modificação substancial no tratamento jurídico da matéria, a lei,

aprovada em outubro e promulgada em novembro do ano anterior, estatuiu um


largo período de vacatio legis para que as instituições se adaptassem à nova
regulação do consumo de drogas – consoante o disposto em seu art. 29º, in verbis:
“A descriminalização aprovada pela presente lei entra em vigor em todo o território
nacional no dia 1 de Julho de 2001, devendo ser adoptadas, no prazo de 180 dias a
contar da data da sua publicação, todas as providências regulamentares,
organizativas, técnicas e financeiras necessárias à aplicação do regime de
tratamento e fiscalização nela previsto”.

130
encaminhá-lo à sobredita Comissão para a Dissuasão da Toxicodependência local.
Cabe a esta, composta por um advogado, um médico e um assistente social avaliar a
situação do sujeito sob o ponto de vista do tratamento que possa merecer. Eventual
imposição de sanção administrativa, conquanto possível neste momento, não é a
prioridade central439. Destarte, às autoridades responsáveis pela repressão incumbe
concentrar-se no combate à oferta de drogas.

A nosso ver, importante disposição da lei lusitana acerca do consumo


é a que, de forma mais clara que o fizera a legislação anterior440 garante anonimato a
quem voluntariamente solicite os serviços de assistência. Tal garantia, que obsta a
ilicitude administrativa e é válida inclusive perante autoridade policiais e judiciais,
abrange informações não apenas quanto à natureza do eventual tratamento, mas
também quanto à sua evolução (art. 3º), o que tende a emprestar maior eficácia
preventiva à norma e às políticas pertinentes.

Sobre o tráfico e condutas análogas, objeto do Decreto-Lei 15/1993,


cumpre assinalar que a lei portuguesa estabeleceu diversos critérios diferenciadores
da resposta estatal que lhes deva corresponder. O principal deles concerne à natureza
das substâncias envolvidas no delito: enquanto que as listas I a III mereceram penas
privativas de liberdade que variam entre quatro e doze anos (art. 21º, caput), à lista
IV dedicou-se penas de entre um e cinco anos de prisão (art. 21º, 4). Circunstâncias
agravantes aumentam em um terço os limites mínimo e máximo (art. 24º). Outros
critérios operam no caso do “traficante-consumidor”441, em que a pena se reduz a até
três anos, para as listas I a III, ou um ano, para a lista IV, de privação da liberdade
(art. 26º); no caso do “tráfico de menor gravidade”442, as penas variam entre um a
cinco anos de prisão, para as listas I a III, ou até um ano ou multa, para a lista IV (art.
25º). A associação criminosa para o tráfico e mesmo o tráfico de precursores
mereceram penas severas, respectivamente de até vinte e cinco anos (art. 28º) e até

439 European Union. EMCDDA. European legal database on drugs - contry profile:
Portugal. Disponível em:
<http://eldd.emcdda.europa.eu/html.cfm/index5174EN.html#&pluginMethod=eldd.
countryprofiles&country=PT&language=pt>. Acesso em: 15/01/2009.
440 Art. 41 do Decreto-Lei 15/93, integralmente revogado.
441 Aquele que trafica exclusivamente para sustentar seu consumo pessoal.
442 Aquele cuja conduta, segundo a norma, vê sua ilicitude reduzida ante “os meios

utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a


quantidade das plantas, substâncias ou preparações”.
131
doze anos (art. 22º) de privação da liberdade. Por fim, vale citar que ao abandono de
seringas também foi cominada pena de até um ano de prisão (art. 32º).

Não há, outrossim, margens de discricionariedade policial ou


ministerial no tocante á persecução443.

Políticas de redução de danos, como terapias substitutivas e trocas de


seringas – sendo que estas são realizadas não apenas em estabeleciemntos oficiais,
mas em farmácias privadas de todo o pais –, também são consideravelmente
aplicadas em Portugal444.

Cabe assinalar que a experiência portuguesa, a qual também logrou


considerável progresso ao descriminalizar as condutas do usuário, demonstra, por
outro lado, a dificuldade de adaptação institucional a uma abordagem não-repressiva
do assunto, na medida em que mesmo após a descriminalização houve casos em que
a pretensa abordagem terapêutica converteu-se em repressão. Isso mostra, ademais, a
temeridade e autoritarismo de uma abordagem excessivamente terapêutica, sobretudo
se se considera que a absoluta maioria dos usuários de drogas faz-lhes uso ocasional,
e não apresenta problemas patológicos ou sociais dele decorrentes.

Nesse mister, a substituição do responsável pela acusação na seara


penal – o Ministério Público – por um órgão interdisciplinar com funções
específicas – a Comissão para Dissuasão da Toxicodependência – no
acompanhamento e avaliação de usuários em tratamento denota alteração relevante
de paradigma sobre a questão do usuário, complementada pela redução do foco na
imposição imediata de sanção e pelo estímulo à adesão voluntária aos programas de
tratamento.

443 Importa mencionar que, até a descriminalização do uso havida em meados de


2001, ocasionalmente sucedia de o Ministério Público sugerir medidas alternativas
de tratamento quando lhe parecessem mais eficazes em casos concretos que a
mera repressão; porém, mesmo nestas situações, raramente se renunciava à pena
ou esta era suspendida com potencial extinção posterior da punibilidade – o que
foi interpretado como incoerência, à qual a edição da Lei 30/2000 também visou
prevenir. A respeito: European Legal Database on Drugs. Op. cit. Acesso em:
15/01/2009.
444 RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre as drogas

ilícitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade. Tese de


doutoramento apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
São Paulo: 2006, p. 131.
132
Quanto aos crimes e penas, merecem destaque as figuras típicas do
traficante-consumidor e do tráfico de menor gravidade, que conferem, na medida do
que resta possível ao direito penal de drogas, maior proporcionalidade entre
circunstâncias fáticas e respectivas respostas penais.

6.6. Reino Unido

No início de 2008, o Reino Unido adotou a sua segunda estratégia


decenal sobre o tema, denominada “Drogas: Protegendo Famílias e Comunidades” e
válida até 2018. Com foco nas relações entre cidadãos e substâncias ilícitas,
compreende quatro áreas principais de concentração de ações: repressão à oferta de
drogas, a crimes correlatos e a comportamentos anti-sociais445; prevenção de danos a
crianças, jovens e famílias afetadas446; oferecimento de novas abordagens de
tratamento e reintegração social447; campanhas de informação pública, comunicação
e engajamento comunitário 448.

A estratégia britânica atual acompanhou-se, pela primeira vez, de um


plano de ação trienal, o qual previu 86 medidas a serem implementadas até 2011.
Ainda, com base na estratégia decenal do reino, a Irlanda do Norte449, a Escócia 450 e
o País de Gales451 mantêm as suas próprias estratégias locais.

445 United Kingdom. Home Secretary. Drugs: protecting families and communities –
the 2008 drug strategy, p. 14-20. Disponível em:
<http://www.emcdda.europa.eu/attachements.cfm/att_50809_EN_UK%20Strategy%
202008-2018.pdf >. Acesso em: 15/01/2009.
446 Ibidem, p. 21-26. Acesso em: 15/01/2009.
447 Ibidem, p. 27-32. Acesso em: 15/01/2009.
448 Ibidem, p. 33-36. Acesso em: 15/01/2009.
449 . North Ireland. Department of Health, Social Services and Public Safety. New

Strategic Direction for Alcohol and Drugs 2006-2011. Disponível em:


<http://www.emcdda.europa.eu/attachements.cfm/att_50804_EN_Northern%20Irel
and%20Strategy%202006-2011.pdf>. Acesso em: 15/01/2009.
450 Scotland. Ministry for the Public Safety. The Road to Recovery: a New Approach

to Tackling Scotland’s Drug Problem. Disponível em:


<http://www.emcdda.europa.eu/attachements.cfm/att_53209_EN_Scotland%20Stra
tegy%202008.pdf>. Acesso em: 15/01/2009.
451 Wales. Ministry for Social Justice and Local Government. Working together to

reduce harm: the substance misuse strategy for Wales 2008-2018. Disponível em:
<http://www.emcdda.europa.eu/attachements.cfm/att_50808_EN_Wales%20Strate
gy%202008-2018.pdf>. Acesso em: 15/01/2009.
133
Um dos mais importantes objetivos da política britânica é propiciar a
quem apresente problemas relacionados a uso de drogas a manutenção de vidas
saudáveis e distantes da criminalidade, estabelecendo-se metas ambiciosas para
ampliar a adesão aos programas de assistência. Para o seu cumprimento criou-se a
Agência Nacional de Tratamento do uso Indevido de Drogas, cujo escopo é atuar em
conjunto com o Departamento do Interior e o Departamento de Saúde possibilitando
acesso imediato a tratamento de alta qualidade a qualquer pessoa que dele necessite
em todo o país 452. Essa agência regulatória ainda tem sob sua competência a
avaliação da qualidade de cada modalidade de tratamento, bem como a coordenação
– e otimização – do orçamento unificado de todos os órgãos executivos encarregados
do controle de drogas no país (polícias, instituições penitenciárias, governos locais e
autoridades de saúde) 453.

Deveras, no campo preventivo e de atenção à demanda, o Reino


Unido é comumente lembrado por haver sido pioneiro em políticas bem sucedidas de
redução de danos, que ali se intensificaram desde a década de 1980454 e vêm sendo
aplicadas sem interrupções.

No decênio presente, empresta-se notável ênfase a políticas


preventivas para com grupos de jovens que apresentam maior vulnerabilidade e a
programas terapêuticos com foco especial sobre a redução de danos. Nesse mister, o
governo britânico não exclui a possibilidade de permitir a administração médica de
cannabis ou até mesmo de heroína – neste caso, como recurso para estabelecer uma
ligação entre usuários da droga e terapias diversivas com uso de metadona455.

Destacada meta da estratégia britânica reside na redução drástica da


reincidência de delitos cometidos por usuários. Nesse mister, desde a adoção do
primeiro plano decenal em 1998, o governo tem aumentado sensivelmente os

452 European Union. EMCDDA. European legal database on drugs - contry profile:
United Kingdom. Disponível em:
<http://eldd.emcdda.europa.eu/html.cfm/index5174EN.html#>. Acesso em:
15/01/2009.
453 Ibidem. Acesso em: 15/01/2009.
454 A respeito, vide: REGHELIN, Elisângela Melo. Redução de danos: prevenção ou

estímulo ao uso indevido de drogas injetáveis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002,
p. 80-83.
455 European Union. EMCDDA. Op. cit. Acesso em: 15/01/2009.

134
investimentos em tratamento para usuários condenados pela prática de delitos, e
procurado desenvolver um rol inovador de intervenções no sistema de Justiça
criminal e execuções penais para identificar usuários e oferecer-lhes assistência
adequada456. Assim, entre outras medidas, no início do atual decênio implementou-se
com sucesso um programa com vistas a que todas as forças policiais tivessem, em
cada cárcere do país, funcionários envolvidos em programas de assistência para
drogaditos que pudessem, já desde o primeiro contato com um usuário detido por
qualquer delito, encorajá-lo a ingressar em tais programas457.

Em 2000, foi promulgado novo diploma legislativo que introduziu e


regulamentou a possibilidade de, ao julgar delitos cujo cometimento acredite haja
sido influenciado pelo uso de drogas, a autoridade judicial impor, na sentença
condenatória, obrigação de abstinência ao apenado face a drogas da classe A –
inclusive com a periódica e compulsória realização de exames toxicológicos para o
acompanhamento de seu progresso pela autoridade judicial458. Pretende-se, deste
modo, quebrar a ligação entre o usuário e a droga, para que, no longo prazo, seu
contato com ela seja definitivamente perdido. Com o mesmo propósito de afastar o
usuário da droga, é possível impor-se, paralelamente à obrigação de abstinência,
medidas alternativas ao mero recolhimento à prisão, em uma sorte de reaproximação
do usuário à comunidade conjugada com abstinência e tratamento compulsórios459.

Ao longo desta década, outrossim, a administração penitenciária da


Inglaterra e País de Gales houve por disponibilizar albergues que visam a oferecer
apoio intensivo nos primeiros meses de liberdade de ex-usuários apenados. Visa-se,

456 Ibidem. Acesso em: 15/01/2009.


457 Ibidem. Acesso em: 15/01/2009.
458 Powers of Criminal Courts (Sentencing) Act (2000), art. 58A, inserido pelo Criminal

Justice and Court Services Act (2000), art. 47. A realização compulsória de exames
toxicológicos pode ocorrer, nos termos da lei, tanto para apenados presos quanto
para os que estejam em livramento condicional, bem assim para detidos
cautelarmente. Ademais, acerca de exames toxicológicos compulsórios, vale
mencionar que o Drug Act de 2005 possibilitou a sua realização também em
hipóteses de detenção cautelar, com o fim de submeter a tratamento todos
quantos apresentam resultado positivo.
459 European Union. EMCDDA. European legal database on drugs - contry profile:

United Kingdom. Disponível em:


<http://eldd.emcdda.europa.eu/html.cfm/index5174EN.html#>. Acesso em:
15/01/2009.
135
destarte, a prevenir, por meio da assistência ao egresso, o retorno do contato com as
drogas e uma possível reincidência delituosa ou infracional a elas relacionada460.

No campo legislativo-repressivo, convém considerar que o principal


diploma legal britânico em matéria de controle de drogas é o Misuse Drugs Act
(MDA), em vigor desde 1971 – alterado por muitas emendas promulgadas desde
então, e complementado por outra considerável quantidade de normas. O MDA
instituiu um conselho consultivo em matéria de drogas que analisa indicadores de
uso indevido no reino e aconselha ministros de Estado sobre problemas sociais que
derivem desse uso indevido (art. 1).

De acordo com o MDA (art. 2 cc. Schedule 2), as substâncias


psicoativas controladas distribuem-se em três diferentes classes, em ordem
decrescente de severidade de repressão: a classe A compreende opiáceos e derivados
da coca; a classe B, anfetaminas; a classe C, cannabis461, sedativos e barbitúricos. A
regulação das substâncias também varia conforme cinco listas cujo critério
diferenciador é a utilidade para fins médicos. Destarte, a lista 1 compõe-se de drogas
consideradas terapeuticamente imprestáveis, e as demais seguem em ordem crescente
de utilidade medicinal e decrescente de controle 462.

Ainda consoante o MDA, a punição do consumo de drogas é feita


através do modelo incriminador da posse para uso, e não do uso em si463. Distingue-
se a mera posse de droga controlada (art. 5.2) da posse de droga controlada com
intuito de fornecimento a terceiro (art. 5.3). A resposta às infrações diferencia-se
também conforme o procedimento judicial adotado, que pode ser sumário, perante a
Magistrates Court, ou on indictment, perante a Crown Court. Assim sendo, a
condenação sumária por posse ilegal de substâncias da classe A pode resultar em até
seis meses de prisão ou multa de até £ 5000; a seu turno, condenação on indictment
pode levar a penas de até sete anos de prisão e/ou multa sem limite máximo
cominado. Para as drogas da classe B, a mesma conduta merece pena de até três

460 Ibidem. Acesso em: 15/01/2009.


461 A cannabis fez parte da classe B até 2004, quando foi reclassificada.
462 European Union. EMCDDA. Op. cit. Acesso em: 15/01/2009.
463 Todavia, como exceção a essa regra, o art. 9 do MDA prevê a proibição do ato

de fumar ópio – muito embora, cumpre anotar, a persecução penal de fatos


subsumíveis a essa modalidade é rara na atual realidade britânica. Ibidem. Acesso
em: 15/01/2009.
136
meses ou cinco anos de prisão, e multa alternativa de até £ 2500 ou ilimitada (neste
caso, alternativa ou cumulada com a privação da liberdade), respectivamente para
condenações sumárias ou on indictment. Por fim, para drogas da classe C, a posse de
drogas pode implicar até dois meses de prisão ou multa de até £ 1000 no
procedimento sumário, ou até dois anos de prisão e/ou multa ilimitada no
procedimento on indictment464.

Em virtude da atribuição de margens de discricionariedade ao controle


executado pelos órgãos de repressão, às penas supra-aludidas adicionam-se sanções
alternativas voltadas à posse para uso próprio de substâncias psicoativas, a saber:
notificação informal do chefe de polícia (de que não deriva qualquer sorte de registro
policial); notificação formal (em documento oficial que requer ao sujeito não repetir
o comportamento para evitar conseqüências mais graves; permanece registrada
apenas localmente); advertência (registrada no sistema policial global do reino)465.

A repressão ao tráfico de drogas e suas condutas análogas no Reino


Unido foi determinada pelo Drug Trafficking Act, de 1994466, e, a exemplo do que
sucede com a posse para consumo, varia de acordo com a classificação das drogas
envolvidas (estabelecida pelo MDA, norma axial do controle britânico) e o
procedimento e respectiva competência jurisdicional. Dessa maneira, as sanções mais
severas atribuídas pelo direito britânico são aquelas para casos de competência da
Crown Court, onde se realizam os procedimentos on indictment. Nessa hipótese, a
pena corporal máxima para o tráfico de psicoativos da classe A repousa em prisão
perpétua467, e para substâncias da classe B, em 14 anos de privação da liberdade
(MDA, Schedule 4).

Nos termos do Drug Trafficking Act, uma condenação por tráfico ou


conduta análoga perante a Crown Court poderá468 acompanhar-se de uma estimativa

464 Ibidem. Acesso em: 15/01/2009.


465 Ibidem. Acesso em: 15/01/2009.
466 Esta lei define o tráfico (arts. 1 usque 3) como qualquer produção, transporte,

armazenamento, fornecimento, exportação, importação, etc., de substâncias


abrangidas pelo MDA.
467 Ainda acerca do tráfico de drogas da classe A, o Powers of Criminal Courts Act

de 2000 introduziu disposição que determina uma pena privativa de liberdade


mínima de sete anos para uma eventual terceira condenação nesta espécie.
468 Aparentemente, isso é o que ocorre na maioria dos casos.

137
do lucro auferido pelo agente com o delito, para que valor correspondente seja objeto
de confisco. Ao proceder a tal estimativa, permite-se às cortes estabelecer a
presunção – relativa – de que todos os ativos do agente ao tempo da condenação,
somado a quaisquer propriedades que tenham sido suas em algum momento dos seis
anos anteriores, possam formar o proveito da atividade delituosa e, portanto, ser
objeto de confisco (art. 2 cc. art. 4)469.

Não obstante, o Criminal Justice and Police Act de 2001 conferiu às


cortes britânicas o poder de impor proibições de viagens internacionais a condenados
a um mínimo de quatro anos de prisão por tráfico com conexões internacionais,
podendo-se apreender o passaporte de cidadãos britânicos pelo período concernente
(art. 33)470. Com isso, tenciona-se prevenir o restabelecimento de relações com
cidadãos estrangeiros que possam facilitar o trânsito internacional de substâncias
ilícitas e a sua conseqüente oferta no mercado nacional471.

Quanto à práxis ordinária das agências britânicas de controle social


formal ante os casos que lhes são submetidos, há que se mencionar, primeiramente,
que a posse para uso pessoal de quaisquer drogas em pequenas quantidades tende a
receber uma resposta leve; uma notificação ou uma advertência, a qual pode se
repetir em uma segunda ou até mesmo terceira oportunidade – dependentemente de
circunstâncias concretas do fato e do agente472. O fornecimento de drogas a terceiros,
por sua vez, sempre implicará uma pena mais severa, ainda que subsista com o
exclusivo fim de financiar o próprio consumo; entretanto, neste caso, a pena a ser
imposta tende a ser mais branda que o seria para um traficante profissional. Com
efeito, as penas para negociadores comerciais de substâncias proibidas tendem a ser
invariavelmente severas, mormente tratando-se de grandes quantidades – hipótese

469 Outrossim, não é demais observar que tal procedimento pode haver mesmo que
não haja sido pleiteado pela acusação – bastando, apenas, que a corte o
entenda devido (art. 2, 1, “b”).
470 Nos termos do art. 33, 3, se preenchidos os requisitos para a proibição, ela deverá

ser imposta por um período não inferior a dois anos após a soltura do apenado.
471 European Union. EMCDDA. European legal database on drugs - contry profile:

United Kingdom. Disponível em:


<http://eldd.emcdda.europa.eu/html.cfm/index5174EN.html#>. Acesso em:
15/01/2009.
472 Ibidem. Acesso em: 15/01/2009.

138
em que a natureza da droga e sua classificação tornam-se menos importantes para
fins de atribuição de sanção473.

Não há estatísticas fiáveis acerca de respostas usuais das cortes


britânicas em face de crimes patrimoniais cometidos com o escopo de financiar o
consumo de drogas. De acordo com o EMCDDA, entrevistas indicaram que usuários
preferem não revelar seu consumo por duas principais razões: (i) o fato tornar-se-ia
inafiançável; (ii) sanções tenderiam a ser mais severas. Evidências concretas a esse
respeito, porém, inexistem, e a única hipótese vista como abstratamente provável é a
de que as cortes adicionariam à sanção o tratamento obrigatório – o que pode
explicar, em certa medida, a refratividade daqueles (e, por conseguinte, uma certa
contraproducência da severidade repressiva consubstanciada no afastamento de
usuários de possibilidades de tratamento)474.

Como visto, o Reino Unido conta com excelente estrutura


institucional do ponto de vista regulatório e de implementação e avaliação de
políticas públicas sobre drogas, o que contribui para que seja visto como um dos
principais modelos internacionais no que toca à prevenção e redução de danos.
Combinam-se estratégias de longo prazo com planos de ação de médio prazo,
estabelecendo-se metas cuja execução é permanentemente monitorada.

Mantém-se uma ampla rede de assistência social, que possibilita


amplo acesso a tratamento e orientação – de que não se excluem, vale destacar, os
estabelecimentos penitenciários e centros de apoio a egressos.

A legislação britânica atinente à repressão de drogas é bastante vasta e


complexa. Apresenta uma gama de sanções alternativas para usuários que a situa em
um modelo despenalizador das condutas deste, a exemplo do caso tedesco. No
entanto, para as condutas análogas ao tráfico, institui penas gravíssimas tanto
corporais quanto pecuniárias, muita vez flagrantemente desproporcionais e abusivas.
Ainda, seu sistema de Justiça criminal não apenas fomenta tratamentos forçados, mas
permite intervenções como a realização de exames toxicológicos compulsórios para
averiguação de um detido ou avaliação do progresso de alguém sob tratamento.

473 Ibidem. Acesso em: 15/01/2009.


474 Ibidem. Acesso em: 15/01/2009.
139
Assim sendo, se as redes de assistência e prevenção britânicas, e
mesmo a sua abordagem inicial para com usuários de drogas leves, remanescem
deveras exemplares, não é possível dizer o mesmo de sua estrutura legislativa de
repressão ao tráfico e condutas análogas, cujo autoritarismo não parece corresponder
ao estado atual de desenvolução da axiologia do direito penal.

6.7. Reflexões ulteriores

Da análise dos sistemas de controle de drogas alemão, espanhol,


holandês, italiano, português e britânico, ademais, ressaltam-se algumas constatações
relevantes: em primeiro lugar, mesmo entre uma quantidade pequena de países, e
ainda que eles se localizem próximos uns dos outros, e a despeito das próprias listas
estatuídas pela ONU, não se verifica uma coerência entre as listas de controle de
substâncias por eles consagradas. Excetuando-se o fato de opiáceos e derivados de
coca figurarem nas listas de maior controle em todos os casos, a topologia
classificatória das demais substâncias varia de um país para outro, sendo que a
própria cannabis, a droga mais tolerada em diversos países como a Espanha, a
Holanda e o Reino Unido, é listada entre as de máximo controle em Portugal. Este,
ademais, ao lado da Itália, apresenta seis listas de psicoativos controlados, ao passo
que a Holanda, apenas duas – e a Espanha abstém-se de fazê-lo. Tudo isso apenas
reforça a idéia de que inexiste um critério científico universal e seguro para afirmar o
que seja uma substância boa e o que seja uma substância má, o que acaba se
reservando ao mero arbítrio legal – deslegitimando, também aqui, uma legislação
repressiva que ainda pretende ser universal.

Ainda no que concerne às listas, note-se que, em via de regra, são elas
estabelecidas em leis em sentido estrito (casos da Alemanha, Holanda, Itália,
Portugal e Reino Unido). Isso previne o problema de a norma penal incriminadora
ser completada por norma regulamentar ou portaria emanada do Poder Executivo –
caso do direito brasileiro –, conferindo-se maior segurança jurídica aos cidadãos e
evitando-se maiores questionamentos acerca da conformidade, nesse particular, da
figura típica com o princípio da legalidade. Não obstante, embora pudesse ser óbvio,
vale lembrar que, para o direito europeu, todo rol de substâncias consideradas
140
proibidas é taxativo, não se podendo impor as sanções referentes ao controle de
drogas a condutas que envolvam substâncias outras, como ocorre atualmente no país
modelo e propulsor do proibicionismo 475.

A observação de algumas previsões legais proibitivas européias em


matéria de drogas informa, ademais, que, em diversas hipóteses, inclusive quando se
trate de figuras típicas de condutas análogas ao tráfico às quais se atribuem sanções
bastante graves, inexiste a cominação de pena mínima, possibilitando à autoridade
judicial competente impor a sanção mais condizente – e proporcional – com as
circunstâncias concretas do fato. Isso porque, em matéria de repressão penal a
drogas, é de amplo conhecimento que as mesmas figuras típicas podem abranger
condutas de reprovabilidade real e lesividade potencial bastante díspares, como os
casos do pequeno cultivador ou do pequeno operado de vendas em ruas comparados
ao do grande capitalista do tráfico internacional. Nesse sentido, pois, são os casos
exemplares da totalidade das incriminações da Lei do Ópio holandesa (cujas sanções
vêm insertas no arts. 10 et 10a) e do MDA britânico (arts. 3 usque 6 cc. Schedule
2)476.

Deveras, quanto ao usuário, o modelo descriminalizador adotado pela


Holanda e seguido por Itália, Espanha e Portugal deve prevalecer, em virtude de

475 Diante da frustração repressiva em face das drogas sucedâneas introduzidas no


mercado desde os anos 80 – especialmente as designer drugs, cuja composição
nem sempre poderia ser enquadrada nas listas de controle –, os EUA reagiram com
a promulgação do Designer Drugs Act. Este, ao condicionar a licitude de qualquer
substância à sua expressa autorização pelos órgãos regulatórios competentes,
subverteu a lógica do controle penal, introduzindo o princípio de que, na peculiar
seara jurídica afeta às drogas, tudo o que não é expressamente permitido está
proibido. A respeito: ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas, 3ª ed.
Madrid: Espasa, 2000, p. 22; 1008-1009.
476 A respeito, porém, impende observar que a correta distribuição da Justiça na

seara criminal depende essencialmente da cultura jurídica praticada pelas


autoridades judiciais, algo de que o caso brasileiro é exemplar: como se sabe, a
reforma da parte geral do Código Penal, em 1984, teve como um de seus
pressupostos a atribuição de poderes aos juízes para que, utilizando-se da
abrangente redação do então novel art. 59, aplicassem as penas mais adequadas
para cada hipótese concreta. Entretanto, a práxis judiciária resultou na
inobservância do preceito, na medida em que freqüentemente prevalece, por um
lado, a chamada “cultura da pena mínima” com que juízes se desobrigam de
fundamentar eventual imposição de sanções maiores em casos que as
mereceriam, e por outro, a majoração de penas com base em critérios a-técnicos
como a ocorrência de circunstâncias fáticas que não são mais que elementares do
próprio tipo ou considerações de caráter ideológico. Nessa medida, o desprezo aos
princípios da proporcionalidade e da igualdade na imposição das penas é gritante.
141
todas as considerações históricas, sociológicas, filosóficas, criminológicas e
dogmáticas que o tema comporta. Há que se avaliar, porém, qual seria a melhor
regulação extrapenal do tema, ao passo que ao direito penal cabe reservar o
tratamento de condutas que efetivamente possam lesionar interesses de terceiros,
como o caso da condução de veículo automotor sob efeito do uso de substância
psicoativa477.

477Exemplificativamente, veja-se o caso da reforma global do Código Penal


espanhol, que, conquanto haja consagrado a descriminalização do consumo de
drogas, não olvidou a tutela desse comportamento lesivo, estabelecida em seu art.
379.
142
7. REFLEXÕES CONCLUSIVAS

Constitui o proibicionismo em matéria de drogas, desde suas origens,


um modelo político-repressivo altamente segregacionista e moralista, incompatível
com o atual estado evolutivo da ciência penal. Suas justificações históricas, quando
desveladas, revelam-se ilegítimas, e um século inteiro de império de tal modelo
parece demonstrar que se trata de uma política imprestável do ponto de vista
preventivo, repressivo e pedagógico. Não se compatibiliza com a principiologia
penal, nem oferece proteção à saúde pública ou mesmo à segurança pública. Ao
revés, consubstancia um paternalismo estatal indevido.

Reclama investimentos infindáveis em órgãos de repressão, e resulta


em cada vez maiores índices de criminalização secundária, sem, todavia, lograr a
queda no consumo ou no tráfico de drogas que almeja. E, ainda, impede a execução
de políticas preventivas e redutoras de danos eficazes. Ignora, portanto, a complexa
dinâmica do problema a que se propõe simploriamente resolver.

Ante a notável deslegitimação – que se espera haver demonstrado nestas páginas –


do modelo político criminal proibicionista, e ante a sua falência como política
preventiva, e feitas algumas análises de políticas que se pretendem alternativas,
importa desenhar, em linhas gerais, alguma sugestão de alteração no paradigma
essencialmente repressivo que ainda impera em nosso país.

Com efeito, viu-se que as políticas da proibição penal em matéria de


drogas, não apresentam o desejado efeito preventivo, pelo que se impõe a busca por
uma alternativa viável, mais condizente com princípios penais fundamentais e
postulados constitucionais de um Estado democrático, que não cerceia a busca da
alteridade nem sanciona criminalmente condutas desprovidas de ofensividade a
interesses fundamentais de terceiros.

Nessa medida, o caminho a ser buscado há que ser o da


descriminalização da maior parte das condutas hoje incriminadas pela Lei 11.343/06,
incluindo-se aquelas insertas no art. 33, que, dadas as idiossincrasias da matéria,

143
devem integrar um direito sancionador de natureza administrativa. A regulação que
se pode sugerir à sua produção e comercialização seria semelhante àquela atualmente
merecida por medicamentos controlados: fiscalização permanente, proibição de
propaganda, controles administrativos.

Para o consumo, igualmente deve haver controles, conquanto jamais


de natureza penal. Deve-se indubitavelmente restringir o consumo de drogas em
locais públicos ou privados de acesso público, a exemplo da tendência atual das
legislações sobre o tabaco.

Ao direito penal, então, caberiam figuras realmente relevantes, como a


administração ilícita a terceiros de quantidades de drogas aptas a causar graves danos
à saúde; a condução de veículo automotor sob influência do uso de psicoativos; a
indução, instigação ou auxílio ao consumo danoso de crianças e adolescentes.

No que toca à prevenção, a ampla disponibilização de programas de


redução de danos como trocas de seringas, terapias de substituição, salas de consumo
seguro e outros deve ser objetivo central de uma política pragmática. O sistema
penitenciário igualmente há que ter programas de tratamento efetivos, que, antes de
impô-los, tenha mecanismos para estimular a adesão voluntária.

A consideração de aspectos socioculturais de usuários e grupos de usuários também


deve ser feita, cabendo, inclusive, o recrutamento de usuários para o trabalho nos
programas preventivos, como forma de incrementar o diálogo entre as instituições
oficiais e os diversos grupos que compõem a sociedade.

E, fundamentalmente, o ponto de partida de toda a estratégia


preventiva deve residir em programas pedagógicos voltados aos interesses de todas
as faixas etárias escolares, estimulando, através de uma cultura de tolerância e
responsabilidade, escolhas individuais de vida saudável.

Urgente se faz, portanto, o reconhecimento da derrota da guerra às


drogas, e a conseqüente adoção de políticas jurídicas e sociais sensatas neste
importante campo de intervenção estatal.

144
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