Você está na página 1de 49

A racionalidade da revelação divina especial

Gordon H. Clark
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por
Editora Monergismo
Caixa Postal 2416
Brasília, DF, Brasil ─ CEP 70.842-970
Sítio: www.editoramonergismo.com.br

1ª edição, 2016
Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto
Revisão: Fabrício Tavares de Moraes

PROIBIDA A REPRODUÇÃO POR QUAISQUER MEIOS, SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM


INDICAÇÃO DA FONTE.

Todas as citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revista e


Atualizada (ARA) salvo indicação em contrário.

Título original: Special Divine Revelation as Rational


Sumário
Prólogo à edição brasileira
1. A racionalidade do cristianismo
2. A revelação natural e a cosmovisão bíblica
3. O colapso das leis científicas e incompletude da lei da consciência
4. A leitura de Van Til
5. Raízes no vazio: o irracionalismo de Van Til
6. A tirania do irracionalismo
7. Após as trevas, a luz
Introdução
I. Inadequação da revelação geral
II. Defesa da revelação racional
III. Alguns problemas contemporâneos
Bibliografia
Sobre o autor
PRÓLOGO À EDIÇÃO BRASILEIRA
1. A racionalidade do cristianismo
Diferentemente de muitos de nossos atuais líderes eclesiásticos, teólogos e
pensadores cristãos, o filósofo norte-americano Gordon Clark se valeu da
lógica como um instrumento cirúrgico para dissecar não somente os corpos
putrefatos dos sistemas heréticos, mas também para remover as máculas e
feridas que, por vezes, se alastram silenciosamente no meio do pensamento
cristão ortodoxo e genuíno.
Essencialmente, a lógica trabalha com o conjunto metafísico de
possibilidades e impossibilidades do real, no qual, por assim dizer, o próprio
universo está inserido. Todavia, Clark sempre foi presto em relacionar a
lógica com o Logos por meio do qual todas as coisas foram feitas. Com
efeito, as leis lógicas não são somente invioláveis, mas são a condição mesma
da existência de um ente; isto porque a lógica, tal qual por nós apreendida, é
um reflexo da mente do Logos, vale dizer, Deus. Todas essas questões,
felizmente, são ponto comum hoje em dia não apenas no meio reformado,
mas também em outras tradições cristãs, com exceção talvez dos laivos ainda
restantes do existencialismo cristão.
No presente artigo, “A racionalidade da revelação divina especial”,
Clark analisa a questão da inadequação da revelação natural; para o filósofo,
o ponto crucial é que os céus, que declaram a glória de Deus, e o firmamento,
que anuncia as obras de suas mãos, são arautos menos eloquentes do que nós,
cristãos, imaginamos. Evidentemente, a Queda, por meio dos chamados
efeitos noéticos do pecado, obnubilou nossos raciocínios e nossa capacidade
de apreensão plena e exaustiva dos entes e suas relações. Contudo, para
Clark, ainda no estado pré-lapsariano, Adão dependeu da revelação especial
— a Lei-palavra de Deus — a fim de saber como proceder no Éden.
Nenhuma investigação empírica, nenhuma análise e taxonomia botânicas
poderiam, por exemplo, levá-lo à conclusão de que o comer da árvore do bem
e do mal o conduziria à desobediência e, portanto, à separação de Deus.
Portanto, a “natureza” (termo em si mesmo inadequado)[1] não
contém em si as diretrizes para uma vida piedosa perante o Senhor. Não
obstante, há duas questões problemáticas com as quais atualmente nos
deparamos, e que procedem, ambas, de conclusões erradas com relação aos
temas abordados no artigo de Clark.
Em primeiro lugar, alguns movimentos negam, por completo, o termo
“teologia natural”, apontando para sua impossibilidade ou mesmo
heterodoxia. Atribuem ao método evidencialista de apologética uma origem
romanista ou arminiana, revelando, assim, não somente um desconhecimento
histórico, mas também impropriedade filosófica. Na verdade, deparamo-nos
na Escolástica Protestante, na Nadere Reformatie holandesa (A segunda
Reforma ou a Reforma mais profunda), com Wilhelm à Brakel e Hermann
Witsius, e no período pós-Reforma, com Heinrich Heppe, na Alemanha, com
amplas evidências do uso de argumentos evidencialistas. Todavia, o uso de
tais argumentos sempre foi acompanhado pela advertência de que os
raciocínios ali presentes somente apontavam para o conhecimento inato da
Divindade (sensus divinitatis), e, por si só, jamais seriam capazes de gerarem
a fé no coração dos homens.
O teólogo à Brakel, por exemplo, no seu Christian’s Reasonable
Service [O culto racional do cristão], tratando nos capítulos iniciais de sua
obra sobre o sentimento religioso universal, elenca alguns argumentos que,
hoje em dia, alguns chamariam de evidencialistas:
Os filósofos mais brilhantes fizeram progresso
considerável no tocante a esse conhecimento [da
existência da Divindade] como resultado da observação
das criaturas. É possível crescer nesse conhecimento de
três modos:
(1) Pela via da negação, negando a Deus toda
imperfeição, fragilidade, fim e insignificâncias, todas as
quais são encontradas na criatura;
(2) Pela via da excelência, atribuindo infinita e
perfeitamente a Deus tudo aquilo que pode ser
observado como glorioso, belo e deleitável na criatura,
pois a causa original sempre excederá aquilo que é
encontrado em qualquer objeto criado;
(3) Pela via da causalidade, ascendendo de um simples
elemento até sua causa, daí procedendo para a causa
superior, e, assim, finalmente chegando à causa final que
é Deus, e dele descendo por meio de várias causas até a
menor de todas as criaturas.
Essas três vias apresentadas por à Brakel são, respectivamente, a via
negativa, a via dos graus de perfeição e a via da causa eficiente, de Tomás de
Aquino. Decerto, nenhum apologista romanista ou arminiano competente
afirmaria que a simples exposição de evidências é capaz de “promover a fé”;
na verdade, um dos mais celebrados evidencialistas contemporâneos, William
Lane Craig, sempre chama a atenção de que seu intuito é apenas demonstrar a
racionalidade ou razoabilidade da fé cristã.
De semelhante modo, a tentativa de submeter a Palavra de Deus aos
critérios da razão autônoma humana é não somente idolatria, mas uma
própria inversão do real. E é disto que os evidencialistas, no mais das vezes,
são injustamente acusados. Cremos, entretanto, que há aqui um falso dilema,
pois se o cristianismo é a própria verdade — o que o diferencia de todas as
doutrinas —, e se o Logos divino preside sobre toda a realidade, segue-se que
tudo que é ilógico está em oposição à verdade divina.
O marxismo, por exemplo, não somente é ilógico por não estar em
conformidade com a cosmovisão bíblica, mas também porque vários de seus
elementos, especialmente a filosofia da história a ele subjacente, estão em
desconformidade com a própria estrutura do real. Basta perceber que
nenhuma das noções distintamente marcadas pelo sistema econômico
capitalista deu lugar naturalmente — como apregoa o socialismo científico
— ao socialismo e, posteriormente, ao comunismo.
Desse modo, lamentavelmente, o pressuposicionalismo tem sido
adotado por inúmeros professores e estudantes de seminários não como uma
ferramenta que, a depender da situação, é a mais útil e efetiva; pelo contrário,
partindo da infalibilidade das Escrituras, muitos se entregaram a uma letargia
intelectual mascarada de piedade e submissão à verdade de Deus. Em sua
incapacidade ou indisposição de analisar e apontar os ilogismos e
contradições internas dos sistemas heréticos, muitos simplesmente, por meio
de bravatas intelectuais e num modo caricaturalmente ex cathedra, inibem ou
suprimem de antemão qualquer discussão por meio da proclamação da
superioridade da cosmovisão bíblica.
Todo cristão genuíno sabe e reconhece essa superioridade. Todavia, a
doutrina e sistematização a qual hoje temos acesso é fruto de um empenho
laborioso e contínuo, repleto de revezes e controvérsias, além de diversos
pontos sobre os quais ainda não há o mínimo consenso. Sob a arquitetura
harmoniosa das Institutas, da Suma Teológica ou da Dogmática Reformada,
de Herman Bavinck, por exemplo, há ruínas e detritos de antigos sistemas,
heterodoxias e mesmo imprecisões de teólogos ortodoxos que se
sedimentaram ao longo do tempo. De fato, todos os grandes pensadores
cristãos foram movidos pela certeza de que a fé que uma vez lhes fora
confiada era superior a todos os sistemas engendrados pela mente humana —
isto, todavia, não anulou ou desestimulou seus esforços para dissecar e refutar
cada heresia, seja por meio das Escrituras ou da simples análise lógica.
Portanto, aqueles que efetivamente buscam dar razão de sua fé não
submetem a verdade bíblica à razão autônoma humana; na verdade, qualquer
razão que esteja em oposição à revelação é inerentemente irracional ou está
equivocada em algum de seus elementos.

2. A revelação natural e a cosmovisão bíblica


Neste pequeno artigo, controverso entre os círculos de pressuposicionalistas
vantilianos, Gordon H. Clark trabalha com a inadequação da revelação
natural para orientar o homem ao cumprimento da vontade de Deus. Decerto
a ira de Deus se manifesta do céu; indubitavelmente as estrelas são pequenos
lampejos de uma glória maior; e a harmonia e simetria da Criação apontam
para um Criador sábio. Todavia, a partir da simples observação da natureza, o
homem não é capaz de deduzir o drama da salvação preparado desde a
eternidade por Deus. Observando o mundo e os fenômenos ao seu redor, o
homem é capaz apenas de roçar, ou delinear de modo bastante indistinto,
alguns pilares da cosmovisão bíblica, e mesmo assim apenas de modo
distorcido.
Em primeiro lugar, tomemos a Criação. Os filósofos da Antiguidade,
percebendo a ordem do cosmos, evidentemente se indagaram sobre sua
origem. Os pensadores pré-socráticos, num afã monista, atribuíam a algum
elemento o princípio (arché) de todas as coisas. Heráclito de Éfeso, por
exemplo, entendeu que tudo procedia do fogo, ao passo que Anaxímenes
concebia que tudo, inclusive os deuses, provinham do ar.
Aristóteles, por exemplo, propôs a eternidade do universo, e partiu da
antiga concepção grega de ὕλη (húlē), para se referir à matéria primordial, ou
mesmo à massa indistinta de potencialidades que, para sua apreensão, exige a
forma. Já em Timeu, de Platão, por exemplo, a ὕλη, em oposição à doutrina
bíblica da Criação, é uma espécie de matéria-prima extraída do abismo do
caos primordial e utilizada pelo Demiurgo na criação do universo.
Em suma, a observação do mundo e sua ordem (significado do termo
grego kosmos) e o entendimento de que há um Criador não conduziram o
homem para uma compreensão mais profunda do Deus vivo; antes,
engendrou um ídolo que é coeterno ao caos,[2] e por isso necessita confrontá-
lo a fim de criar a ordem, mas ao mesmo tempo depende do caos como
matéria-prima de sua criação, ou melhor, organização.
Contudo, a verdade bíblica ensina que a Criação se deu ex nihilo (a
partir do nada), mediante o poder de Deus, “que chama à existência as coisas
que não existem” (Romanos 4.17); portanto, não se dá a partir de uma
matéria preexistente, mas, sim, a partir de um princípio absoluto, a Palavra de
Deus: “o universo [foi] formado pela palavra de Deus, de maneira que o
visível veio a existir das coisas que não aparecem” (Hebreus 11.3).
Ademais, diferentemente de todos os demais sistemas, o conceito de
Criação bíblico implica não somente os entes físicos, mas também as
entidades espirituais (anjos, potestades, etc.). A isto podemos acrescentar
ainda o entendimento de Kuyper, posteriormente desenvolvido por Albert M.
Wolters, acerca das potencialidades que subjazem à Criação e que são e
devem ser exploradas pelo homem por meio do mandato cultural. Destarte, a
ciência, as artes, a política e afins são partes essenciais do plano divino,
embutidas, por assim dizer, na estrutura do universo e soberanamente regidas
mediante as leis criacionais estabelecidas pelo próprio Deus.
Em segundo lugar, a mente humana, destituída da revelação especial,
atentando-se para a Criação e para o próprio coração, percebeu, ainda que de
maneira confusa e obliterada, que tanto o cosmos quanto o espírito humano
se encontram num estado de anormalidade. Aquilo que chamamos de Queda,
cujos efeitos são tão mais visíveis quanto mais pertos de Deus estamos,
assoma, por vezes, e de modo muito compacto, em escritos dos filósofos
antigos. Todavia, como se deu no caso do primeiro alicerce analisado, os
homens se desviaram da verdade, propondo sistemas que, ainda que
provenientes da análise de uma experiência real, acabaram por se divergir do
eixo revelacional. Os órficos, por exemplo, supostos seguidores do poeta e
místico Orfeu, influenciados por correntes orientais, entendiam que o homem
foi criado a partir das cinzas dos titãs malignos que devoraram Zagreu (o
deus Baco ressurreto), de maneira que era um misto de bem e mal. De
semelhante modo, criam que a alma racional e imortal do homem, tendo se
originado nos céus luminosos, caiu nesta terra tenebrosa, tornando-se, pois,
prisioneira do corpo material. A partir dessa condição miserável, a alma
humana estava condenada ao ciclo ininterrupto de nascimento, morte e
renascimento.
Grosso modo, os místicos, poetas e filósofos reconhecem uma queda,
no entanto, conforme visto acima, é uma queda incompleta ou dualista (a
alma permanece pura e em oposição antitética ao corpo) ou cuja origem não
está na desobediência à lei de Deus, mas na própria finitude metafísica do
homem. Em resumo, para esses pensadores, a queda do homem não é ética,
mas uma consequência da própria essência do homem. Desse modo, qualquer
conceito de pecado original ou depravação total é, para eles, inconcebível.
Em terceiro lugar, não há, em qualquer pensamento filosófico
anterior ao cristianismo, a ideia de uma redenção cósmica seguida de um
julgamento moral. Evidentemente é possível encontrar em alguns escritos e
mitos uma expectativa de um futuro paraíso terreno, um retorno à era dourada
da humanidade. Porém nenhum deles contempla simultaneamente a
restauração de todas as coisas por meio do sacrifício do próprio Deus e o
estabelecimento de um julgamento universal no qual há uma continuidade
entre história e eternidade. Nos termos de Bavinck, a história não é o
julgamento de Deus, mas sem dúvida é um de seus julgamentos.
Em quarto e último lugar, a Consumação, a restauração, glorificação
e submissão de todas as coisas a Cristo, que governará com paz, alegria e
santidade. Sem dúvida os sistemas filosóficos, pelo menos em sua maioria,
apresentam, ainda que tacitamente, uma escatologia. Josiah Royce, o filósofo
norte-americano, fundamentava sua filosofia com a ideia de que cada ente do
real é percebido não somente em sua substancialidade, mas também em seu
potencial teleológico, isto é, sua inclinação a algum fim ou finalidade. Em
seu livro Problem of Christianity [O problema do cristianismo], Royce afirma
que “o mundo real é a Comunidade da Interpretação… Se a interpretação é
uma realidade, e se interpreta verdadeiramente o todo da realidade, então a
comunidade alcança sua finalidade (a representação plena do Ser), e o mundo
real inclui seu próprio intérprete”.
Tal exemplo serve para corroborar a ideia clarkiana de que o homem,
ainda que tendo nascido numa sociedade majoritariamente cristã, não é capaz,
por meio da simples observação do real, de concluir que, num ponto histórico
específico, os entes serão conduzidos pelo poder divino a uma nova e
superior condição (a glorificação). A observação da mutabilidade das coisas
em geral leva o homem à conclusão sumarizada nos versos de Georg Trakl:
“todos os caminhos desembocam em negra podridão”; e jamais, portanto, na
restauração gloriosa da todas as coisas.
Somente as Escrituras, a revelação divina especial, ensina e fortalece
o homem para esperar a manifestação visível do Reino de Deus.

3. O colapso das leis científicas e incompletude da lei da consciência


De modo bastante sucinto, podemos dizer que uma compreensão superficial e
deliberadamente equivocada do mecanicismo de Newton conduziu a ciência à
crença de eternidade das chamadas “leis naturais”. Na verdade, após conceber
a realidade como uma estrutura maquinal cuja totalidade é prontamente
apreensível, muitos encontraram na ciência não um método de busca pela
verdade, mas um instrumento de poder sobre a natureza, incluindo o próprio
homem.
Para tal mentalidade, não importa muito descobrir o que determinado
ente é, mas, sim, suas capacidades e utilidades. Todavia, dada sua
contingência, é impossível depreender do movimento da natureza alguma lei
fixa e imutável; e dessa frustração surge o relativismo pós-moderno, ou o
perpectivismo nietzschiano. Afinal, tendo pressuposto equivocadamente uma
estrutura autônoma e autocontida chamada Natureza, e lhe imputado
subsequentemente certas leis imutáveis, o homem engendrou para si um
universo fechado, abarcável e exaustivamente conhecido. Contudo, com os
fracassos de vários experimentos, e com a impredictibilidade de alguns
fenômenos, não apenas da física quântica, mas mesmo do macrocosmo, a
ânsia humana de poder, controle e previsão do comportamento e
potencialidades da natureza, vendo-se frustrada, alardeia a relatividade de
todas as coisas. A acidentalidade e o acaso tornam-se os suseranos de todos
os entes.
Clark, juntamente com Cornelius Van Til, sabem que o universo é
iluminado e interpretado pela luz das Escrituras. Sem a unidade da soberania
de Deus, o universo é regido pelo fortuito; e tudo aquilo que é completamente
ocasional é, por definição, irracional, como no mundo de Alice, de Lewis
Carroll. Curiosamente, Clark estabelece a inadequação da revelação natural e
simultaneamente a racionalidade da revelação especial (as Escrituras).
Lamentavelmente a igreja moderna adotou pressupostos iluministas no
tocante à doutrina da revelação e da inspiração da Bíblia. Trabalhando sob a
falsa dicotomia entre “razão x revelação”, vários crentes eventualmente se
deparam com um beco sem saída, sendo obrigados a renunciar à inspiração
plenária ou infalibilidade das Escrituras ou à racionalidade.
Por meio da leitura de seu artigo, torna-se claro que Clark busca,
antes, refutar qualquer tentativa de conceber uma lei natural, uma lei moral
inerente à natureza, do que dizer que o universo, como um todo, não
resplandece — como pequenos fragmentos de espelho refletem a luz do sol
— a glória de Deus. Na verdade, grande parte do conflito atual entre Estado e
Igreja, entre autonomia e teonomia, laicidade e cultura cristã, provém de uma
metamorfose do conceito de lei natural. Rousas John Rushdoony, por
exemplo, em Cristianismo e Estado, citando teólogos cristãos medievais,
demonstra como a cristandade sempre concebeu o Evangelho como a lei
natural por excelência. Por exemplo, em seu Decreto, o monge e jurista
Graciano afirma que “a humanidade é governada de dois modos: a saber, por
meio da lei natural e pelos costumes. A lei da natureza é aquela contida na
Lei e Evangelhos, por meio da qual é ordenada a fazer para com o outrem
aquilo que deseja que se faça para si mesmo, e é proibido de infligir no
próximo aquilo que não gostaria que fizessem para consigo”. No século XII,
Rufino afirma: “a lei natural, que fora completamente perdida no primeiro
homem (Adão), foi restaurada na lei mosaica, aperfeiçoada no Evangelho, e
adornada nos costumes”.
Portanto, para o pensamento jurídico e teológico medieval, a lei
bíblica é a lei natural, visto que procede de Deus cuja lei se encontra sobre e
em todos os seres. Foi somente no período iluminista que tal compreensão
literalmente sofreu uma reviravolta. Clark herda a antiga tradição, pois
defende que apenas a lei natural, isto é, a lei bíblica é adequada para revelar
aos homens certos atributos de Deus. Todavia, em seu livro The Protestant
Doctrine of Scripture, Cornelius Van Til, criticando o posicionamento de
Clark neste artigo em questão e em outras de suas obras, afirma:
Ora, Clark, por mais franca e honestamente
comprometido com a fé reformada que seja, falha, pois,
em desafiar o descrente a apresentar suas credenciais.
Ele não diz ao cientista descrente que a natureza
claramente revela o senhorio de Deus, o Criador-
Redentor. Clark simplesmente desiste de exigir ao
homem natural que reconheça o caráter revelacional do
campo dos fatos no qual realiza sua pesquisa. Clark diz
simplesmente que a ciência “não deve ser vista como
cognitiva”. (Van Til, The Protestant Doctrine of
Scripture, grifo nosso)
Ora, se a “natureza claramente revela o senhorio de Deus, o Criador-
Redentor”, porque tantas concepções distintas da Divindade ao longo da
história, nos povos que não receberam a revelação especial? E se tal clareza é
tão indiscutível, não há necessidade alguma de Clark, ou qualquer outro
teólogo ou pregador, “de exigir ao homem natural que reconheça o caráter
revelacional do campo dos fatos no qual realiza sua pesquisa”.
Em que sentido o cientista descrente pode deduzir que Deus é o
Redentor, quando na verdade todas as coisas demonstram a ira de Deus
contra aqueles que sufocam o senso da divindade? Van Til se afirma como
herdeiro da tradição neocalvinista holandesa; no entanto, um dos seus
principais nomes, Herman Bavinck, compreende a questão de modo
semelhante a Clark:
Aquilo que nem a natureza, nem a história, nem mente
nem coração, nem a ciência nem arte podem nos ensinar,
isto nos é dado a conhecer — a vontade fixa e inalterável
de Deus em resgatar o mundo e salvar os pecadores, uma
vontade em desacordo com a quase totalidade da
aparência das coisas. Essa vontade divina é o segredo da
revelação. Na criação, Deus manifesta o poder de sua
mente; na revelação, cujo centro é a redenção, ele
descerra para nós a grandeza de seu coração. (Herman
Bavinck, Filosofia da fevelação)
A vontade de Deus, fixa e inalterável, está em desacordo com a
quase totalidade das coisas aparentes. A observação da natureza serve no
mais das vezes para ocultar ou falsear a revelação geral.

4. A leitura de Van Til


Analisando a crítica de Van Til (em The Protestant Doctrine of Scripture) à
visão clarkiana da revelação natural, há apenas três conclusões possíveis para
uma pessoa sensata: primeiramente, o teólogo holandês não leu o artigo e
pautou-se, portanto, em meros espantalhos ou boatos; em segundo lugar, não
compreendeu em absoluto os argumentos ali apresentados; e, finalmente,
imbuído de ojeriza e antipatia a Clark, decidiu simplesmente distorcer ou
interpretar, de mau grado, a posição exposta no artigo. Pelo bem da piedade
cristã e da honestidade intelectual, esperamos sinceramente que a crítica de
Van Til seja o resultado da segunda opção. Em certa passagem, Van Til
afirma com relação ao artigo de Clark:
Contudo, Clark compartilha, juntamente com o cientista
descrente, da visão operacional de natureza. Butler ao
menos afirmava ser capaz de provar a possibilidade e
verdade provável do ensino cristão no que diz respeito a
Cristo e sua relação com a natureza. Mas Clark não pode
legitimamente afirmar nada acerca da superioridade dos
ensinos cristãos com relação à natureza sobre os demais
pontos de vista. Se a ciência não é cognitiva, este é o fim
de toda argumentação. Pois isto implica em dizer que a
natureza não revela claramente o poder e divindade de
Deus. (Cornelius Van Til, The Protestant Doctrine of
Scripture)
Ora, em momento algum o filósofo norte-americano defende uma
visão operacional da natureza, já que isto implicaria no mais grosseiro
deísmo e, por conseguinte, numa rejeição à doutrina da Providência divina, a
qual é basilar ao pensamento e teologia calvinistas. Citando o próprio Clark,
“a natureza tem menos mensagem que algumas pessoas, particularmente
alguns cristãos, pensam”. Não é dito que a natureza nada revela acerca de
Deus, mas que tem menos a dizer do que supomos. Metaforicamente falando,
para Clark, a natureza não é, de modo algum, muda, mas sem dúvida também
não é eloquente — como Moisés, sua língua é pesada. Contudo, Clark
esclarece qualquer possível dúvida acerca de sua posição mais adiante:
Os planetas acima e as plantas abaixo mostram algo da
sabedoria e poder de Deus; isto é, mostram isso àqueles
que já creem que Deus os criou. Mesmo para um cristão
devoto, contudo, o universo não mostra o pleno poder e
sabedoria de Deus, pois Deus não exauriu a si mesmo em
sua criação. Sem dúvida os sistemas estelares demonstram
um vasto e inimaginável poder; todavia, um número
maior de estrelas com movimentos mais complicados é
concebível. Portanto, a onipotência não é uma conclusão
necessária a partir das estrelas. Nem é a justiça. Os
atributos morais que a Bíblia atribui a Deus são ainda
menos dedutíveis a partir de uma observação da natureza.
(Gordon Clark, A racionalidade da revelação divina
especial)
Conforme já demonstrado, e apoiado por Herman Bavinck, não é
possível deduzir a justiça e menos ainda a misericórdia de Deus a partir da
observação dos fenômenos naturais. Nas pragas do Egito, por exemplo, por
meio das quais Deus demonstrou não apenas seu poder soberano sobre a
natureza mas também sua superioridade em relação aos deuses egípcios, cada
evento milagroso foi acompanhado do anúncio ou posterior explicação de
Moisés. As densas trevas que o Senhor trouxe à terra do Egito foi uma
demonstração tanto de seu poder sobre a luz e as trevas (tal como na Criação)
quanto da inferioridade de Rá, o deus-sol do panteão egípcio. Não fosse o
anúncio e pregação de Moisés, os egípcios poderiam simplesmente
interpretar as trevas como um sinal de desprazer de seu falso deus.
Também segundo o dr. Cornelius Van Til, Clark supostamente
adota a ideia de factualidade bruta, isto é, a concepção de que existem fatos
isolados da interpretação divina e, portanto, não integrados na estrutura geral
do drama da salvação (que é a própria “história do universo”, por assim
dizer), conforme podemos notar em seu comentário:
Devemos notar os seguintes pontos com relação a esse
argumento [de Clark]. É preciso (a) lembrarmo-nos de
que, segundo Clark, o descrente faz jus à natureza caso
diga que suas leis (da natureza) são simplesmente
operacionais e, de modo nenhum, revelacionais dos
atributos de Deus. Isto exclui a possibilidade de qualquer
alegação, mesmo aquela de que há maior probabilidade
de veracidade na afirmação de que a natureza é a obra da
ação criativa-redentiva de Deus do que na afirmação de
que a natureza veio à existência por acaso. E, então, (b)
Clark afirma que os descrentes por vezes concordaram
com os crentes na afirmação de que Deus existe. Mas
isto é apenas formalmente verdade. O conteúdo da
palavra “Deus”, o sentido do termo, sempre difere
radicalmente entre um cristão e um não cristão…
Quando Clark concorda com o descrente acerca da visão
meramente operacional da natureza, ele virtualmente
afirma que o descrente e o crente podem ainda crer no
mesmo Deus. Todavia, desta vez, o descrente está em
vantagem no jogo. Ele conduziu astutamente Clark em
direção a uma admissão virtual de que o Deus triúno não
opera claramente no mundo do espaço-tempo.
(Cornelius Van Til, The Protestant Doctrine of
Scripture)
O objetivo do argumento clarkiano não é apresentar uma suposta
neutralidade e opacidade do universo, como se fosse possível que um ente
criado por Deus não carregasse consigo, como a própria condição de sua
existência, as leis do Logos divino; pelo contrário, Clark, a despeito das
acusações de racionalismo que lhe atribuem, defende vigorosamente a
imprescindibilidade da revelação especial — e mais do que isto, sua
racionalidade. Desse modo, as palavras de Clark são suficientes para
demonstrar que seu posicionamento é diferente e não tão simplório quanto
Van Til nos leva a acreditar:
Se, agora, alguém deseja argumentar que essa divergência
ética não indica a inadequação da revelação geral, mas
meramente as trevas da mente pecaminosa, a réplica
segura, para um cristão, é que Deus falou com Adão antes
da queda e lhe deu mandamentos que ele não poderia ter
conhecido de outra forma. Quando Adão foi criado e
colocado no Jardim do Éden, ele não sabia o que fazer.
Nem um estudo do Jardim teria levado a qualquer
conclusão necessária. Seu dever foi imposto sobre ele por
uma revelação divina. (Gordon Clark, A racionalidade…).
Retomando o texto de Van Til, percebemos outra crítica do
pensamento de Gordon Clark, mais especificamente a suposta assertiva de
que, por vezes, crentes e descrentes creem, em comum, na existência de
Deus: “Clark afirma que os descrentes por vezes concordaram com os crentes
na afirmação de que Deus existe”. E, em seguida, Van Til refuta tal
concepção afirmando que cada uma das partes compreende de modo distinto
o termo Deus. No entanto, a leitura mais superficial de A racionalidade da
revelação divina especial demonstra precisamente o contrário. Nas palavras
do próprio Clark:
Na verdade, o problema do mal — calamidades físicas
como terremotos e tragédias causadas por ímpios – tem
levado alguns filósofos a negar completamente a
existência de Deus, ou a propor um deus finito. John
Stuart Mill pensava que o universo tendia
imperfeitamente para a produção do bem; humanistas
modernos são mais propensos a dizer que o universo é
neutro com respeito às esperanças e aspirações do
homem; enquanto Bertrand Russell e Joseph Wood
Krutch aconselham a bravura em face da derrota
inevitável. Essas várias opiniões, embora parcialmente
devidas à pecaminosidade humana, dependem muito,
creio eu, da inadequação da revelação geral em si. A
mensagem de Deus nos céus simplesmente não é
abrangente para cobrir essas questões. (Clark, A
racionalidade da revelação divina especial)
Com a erudição filosófica que lhe é própria, Clark expõe várias
correntes e concepções diferentes acerca de Deus, mas que podem ser
presentemente resumidas em: finitismo, isto é, a crença num deus finito, não
onipotente ou não todo amoroso, crença popularizada a partir dos dilemas
(falaciosos) propostos David Hume, por exemplo, e atualmente defendida
pelo rabi Harold Kushner; e o ateísmo filosófico de Bertrand Russell e
Krutch e, por um tempo, de Antony Flew. Como é possível, a partir desse
trecho supracitado, concluir que haja alguma identificação que o deus finito
defendido por alguns pensadores é o mesmo Deus onipotente e soberano de
Clark e Van Til? Com efeito, Clark critica até mesmo a crença de Mill de um
universo saturado de acidentalidades que se dirige essencialmente ao bem; e
discorda completamente da crença na neutralidade do universo (e, portanto,
dos fatos) apregoada pelos humanistas modernos.
Conforme Clark argumenta, o fim último do universo não é
deduzível da observação empírica do universo; afinal, “a mensagem de Deus
nos céus simplesmente não é abrangente para cobrir essas questões”. Van Til,
todavia, ao afirmar que todos os fatos perante os quais o homem se posta são
revelacionais, cria uma dificuldade ou uma petição de princípio irresolvível.
Como é possível que o cientista ou o homem comum que se depara com os
fatos do universo possam perceber todos os fatos como sendo “revelacionais
dos atributos de Deus” sem a tão alardeada estrutura de referência vantiliana
(no caso a narrativa bíblica de Criação-Queda-Redenção-Consumação)?
Em seu artigo “A ressurreição como uma parte da verdade cristã”, o
filósofo do Westminster Theological Seminary afirma: “A ressurreição de
Cristo é um fato, e seu significado ser-nos-á inteligível somente se pensarmos
nela como estando relacionada ao sistema da verdade cristã tomado como
uma unidade indivisa”. Não há dúvidas quanto a isto, afinal, a ressurreição do
Cristo é fulcral à fé cristã. Todavia, se ela é um fato, e se todo fato é, segundo
Van Til, revelacional dos atributos de Deus, como é possível que a
ressurreição não seja inteligível à parte da verdade cristã como uma unidade
indivisa? De acordo com o teor de sua crítica dirigida a Clark, não seria este
fato — a ressurreição de Cristo — por si só, revelacional dos atributos de
Deus?
Para Van Til, a fim de se entender corretamente o fato da
ressurreição, é necessário entender a estrutura de referência; todavia, “os
fatos sobre Jesus e a ressurreição são o que são apenas na estrutura das
doutrinas da criação, providência e consumação da história no juízo final.
Ninguém é capaz de encontrar essa estrutura, a não ser que seja convertido de
outra estrutura por meio do próprio fato da morte e ressurreição de Jesus ser
aplicado a si mediante o Espírito Santo e seu poder regenerador. É necessário
o fato da ressurreição para perceber a referência apropriada, e é necessária a
referência para perceber o fato da ressurreição” (Cornelius Van Til, Paulo em
Atenas).[3] Trata-se não somente de tautologia, mas de uma contradição à
própria assertiva vantiliana de que todo fato é revelacional dos atributos de
Deus.
Certamente, como já dissera o apóstolo, a ira de Deus se
manifesta contra toda a impiedade dos homens. As estrelas e galáxias podem
demonstrar a ordem e o poder da Divindade, no entanto, não são suficientes
para apresentar a misericórdia divina.

5. Raízes no vazio: o irracionalismo de Van Til


Um dos raciocínios mais profundos de Cornelius Van Til é a relação entre
epistemologia e o caráter pactual do homem. De acordo com seu raciocínio,
cada ação humana, sendo soberanamente governada por Deus e estando
ubiquamente sob sua lei, somente pode ser interpretada apropriadamente com
base nessa mesma lei:
Paulo sustenta que o pecador é responsável por não
perceber, na natureza e em si mesmo, a presença dos
atributos de Deus. Todavia, Paulo assim o faz porque
concebe o homem como um ser inerentemente pactual.
O pecador é um transgressor do pacto em e com Adão.
Todo fato que se apresenta ao homem, tanto por meio de
sua própria constituição quanto por meio de seu
ambiente, o coloca face a face com Deus. Ele deve,
portanto, lidar com todos os fatos aos quais tem acesso
visando a glória de Deus. Como um cientista, ele deve
usar hipóteses, e somente aquelas baseadas na
pressuposição de que todo fato é aquilo que é devido ao
lugar que ocupa no plano de Deus (Cornelius Van Til,
The Protestant Doctrine of Scripture).
Sendo o homem um ser inerentemente pactual e, não obstante cada
um de seus atos ou pensamentos sejam violações ou consecuções da lei de
Deus, podemos claramente afirmar que somente são interpretados e julgados
infalivelmente pela lei de Deus. É possível, portanto, afirmar que os fatos são
revelacionais somente se analisados mediante o prisma da lei divina. Em
termos concretos, o idólatra que se curva perante um ídolo, uma pedra
sagrada, por exemplo, está transgredindo um mandamento; no entanto, para
si, subjetivamente falando, realiza um ato de culto, piedoso e louvável, a uma
caricatura da Divindade.
A afirmação de Cornelius Van Til aparentemente funde os aspectos
ético e epistemológico. Sem sombra de dúvida, todos os atos humanos e
todos os eventos do universo são interpretados e julgados por Deus. Não há
neutralidade ética ou religiosa neste ponto, conforme ele afirma. O homem,
como ser pactual, está em constante e ininterrupta relação ética com a lei de
Deus, mas não necessariamente numa relação de conhecimento dessa lei. Um
indivíduo que esteja temporariamente inconsciente permanece sujeito às leis
da lógica e mesmo às “leis naturais”, ainda que, naquele espaço de tempo,
seja incapaz de percebê-las (por exemplo, ele não pode estar deitado e em pé,
numa mesma perspectiva e ao mesmo tempo).
Ora, só faz sentido chamar um fato de revelacional se de fato desvela
para uma inteligência uma nova realidade, uma nova proposição, ou relação
até então não percebida. Portanto, seguindo o raciocínio de Van Til,
nomeadamente, de que todos os fatos são revelacionais, como ele pode
afirmar que “Clark concorda com o descrente acerca da visão meramente
operacional da natureza”? Se o descrente possui uma visão simplesmente
operacional do cosmos, então evidentemente não é capaz de perceber seu
aspecto revelacional.
Ironicamente, o próprio Van Til afirma isso em Common Grace and
the Gospel: “Pois o homem natural busca interpretar todos os fatos deste
mundo de modo imanentista. Ele procura por sentido nos fatos deste mundo
sem considerar que tais fatos carregam consigo a revelação e, com isso, as
reivindicações de Deus. Ele (o homem natural) deseja determinar o que pode
ou não pode, o que é possível ou não é possível, por meio do escopo da
lógica humana que se assenta sobre o próprio homem, como seu
fundamento”. Ora, a apologética vantiliana é celebrada justamente por
reconhecer o aspecto universal e absoluto da Palavra de Deus. A revelação
especial é infalível e a base inamovível de qualquer sistema de pensamento.
Todavia, se o homem natural não é capaz de perceber o aspecto
revelacional dos fatos, segue-se que a revelação mediante os fatos não é,
portanto, infalível. Se, segundo Van Til, ela pode ser suprimida ou
obnubilada pelo raciocínio humano — como de fato o é —, o teólogo de
Westminster, ao fim e ao cabo, simplesmente concorda com Clark: a
revelação natural é real, mas inadequada se tomada em si mesma.

6. A tirania do irracionalismo
Antecipando problemas intelectuais que defrontariam o Ocidente a partir da
segunda metade do século XX, Clark resguarda a revelação especial dos
ataques oriundos das novas ciências da linguagem.
O estruturalismo de Saussure, com seus pares de oposição entre
langue e parole, eixo sincrônico e eixo diacrônico, significante e significado,
bem como a sua concepção da linguagem como uma estrutura, um sistema ou
mesmo um jogo de pares de oposições, deu lugar, posteriormente, ao
desconstrucionismo de Derrida. Antes disso, todavia, Johann Gottfried
Herder, em sua obra Ensaio sobre a origem da linguagem, rompeu com a
ideia da origem divina da linguagem, atribuindo-a à imitação dos sons da
natureza e à necessidade intrínseca de comunicação por parte do homem.
Tempos depois, também Friedrich Nietzsche lançou as sementes da dúvida
sobre a capacidade da linguagem de apreensão do real. Em seu livro A
verdade e a mentira num sentido extra-moral, o filósofo alemão propõe que
todas as línguas, sendo em si mesmas nada mais do que ruídos guturais, não
possuem uma relação essencial com o real, sendo, antes, metáforas do real.
Gordon Clark, embora não trate extensivamente do problema da crise
da linguagem, disseca os pressupostos evolucionistas que subjazem às teorias
sobre a origem da linguagem e, de semelhante modo, apresenta uma defesa
lógica da possibilidade da revelação objetiva proposicional. No seu
entendimento:
As teorias contemporâneas são frequentemente baseadas
numa filosofia evolucionária na qual se supõe que a
linguagem humana tenha se originado de gritos e
grunhidos de animais. Essas teorias evolucionárias da
linguagem, e algumas que não são explicitamente
evolucionárias, revelam sua conexão com a
epistemologia ao tornar as impressões sensoriais a fonte
imediata da linguagem. As primeiras palavras uma vez
pronunciadas foram supostamente substantivos ou
nomes produzidos ao imitar-se o som produzido por um
animal ou uma cachoeira; ou se o objeto não fazia
nenhum ruído, algum método mais arbitrário foi usado
para atribuir um substantivo a ele. (Gordon Clark, A
racionalidade…)
Na verdade, Clark, demonstrando o problema que surge com a
procedência sensorial ou bestial da linguagem, simplesmente aponta aquilo
que já causara incômodo ao próprio Darwin, em sua famosa carta a William
Graham, a 3 de julho de 1881: “De todo modo, tu expressaste minha íntima
convicção, embora de modo bem mais vívido e nítido que eu seria alguma
vez capaz, a saber, que o Universo não é o resultado do acaso. Sempre surge
em mim a horrível dúvida de que as convicções da mente do homem, as quais
se desenvolveram a partir da mente de animais inferiores, possuem algum
valor ou são dignas de confiança”. Atualmente, no entanto, o consenso
acadêmico se pauta na doutrina evolucionista para explicar a origem da
linguagem, tendo talvez em Steven Pinker (O instinto da linguagem) seu
maior divulgador.
A visão de Clark, todavia, é que a linguagem é evidentemente
resultado do fato da criação do homem segundo a imagem de Deus. Além
disso, para o filósofo, o objetivo principal da linguagem não é primariamente
a investigação do mundo sensorial — embora, é claro, também atue nesse
sentido —, mas a revelação da verdade divina e a possibilidade do indivíduo
se dirigir em oração a Deus. Portanto, aquele que divorcia linguagem e
lógica, eventualmente anula sua própria capacidade comunicativa:
Se a razão, i.e., a lógica, que torna o discurso possível, é
uma faculdade dada por Deus, ela deve ser adequada
para sua tarefa divinamente designada. E sua tarefa é a
recepção de informação divinamente revelada e a
sistematização dessas proposições em teologia
dogmática. Resumindo: a linguagem é capaz de
transmitir verdades literais porque as leis da lógica são
necessárias. Não existem substitutos para elas. Filósofos
que as negam reduzem sua própria negação a sílabas
sem sentido. Mesmo onde a necessidade da lógica é
negada, se a razão é usada em algum outro sentido como
uma fonte de verdade, o resultado tem sido ceticismo.
(Gordon Clark, A racionalidade…)
Esse posicionamento também foi alvo das críticas de Van Til, pois,
segundo ele, isto implica em submeter a vontade e revelação divina aos
“ditames da lógica” tal como concebida pelo homem caído e natural. Clark
defende a racionalidade das Escrituras não no sentido de que todos os eventos
narrados precisam de comprovação empírica, mas, sim, de que são lógicos,
não contraditórios, e por isso apreensíveis pelo aparato da razão humana: “a
lei da contradição, ou razão, não é um teste externo da Escritura. A
consistência lógica é exemplificada na Escritura; e assim, esta pode ser uma
revelação significativa para a mente racional do homem. Proposições
autocontraditórias seriam absurdas, irracionais e não poderiam constituir uma
revelação” (Gordon Clark, A racionalidade…, grifo nosso). Ora, o filósofo
esclarece que a lógica não é uma superestrutura que impomos sobre a massa
das Escrituras; pelo contrário, a Bíblia é inerentemente lógica, já que não
contém contradições ou ilogismos ou impossibilidades.
Todavia, Cornelius Van Til, surpreendentemente, interpreta a posição
de Clark como sendo o oposto do que é dito, pois afirma que a mente racional
do homem é o critério objetivo que analisa e julga a revelação:
Então [para Clark], é a “mente racional do homem”, isto
é, a mente racional do descrente que determina quais
proposições feitas por Deus em Cristo têm sentido.
Portanto, se Deus deseja transmitir sentido ao homem,
ele deve falar de acordo com as exigências da lei da
contradição tal como concebida pelo homem natural. E o
homem natural a concebe como se ela operasse num
universo não criado ou governado pelo acaso. O homem
natural, hoje, talvez siga o exemplo de Aristóteles e
pense acerca da lei lógica como sendo, de algum modo,
completamente compreensível, em operação num
universo de acaso. O homem natural pode, hoje, seguir
Kant, e afirmar que as leis do pensamento constituem
um equipamento a priori da mente humana, com o qual
ele constrói a ordem no material puramente contingente
que o envolve. Em todo caso, é ao homem natural que é
virtualmente concedido o direito de estabelecer aquilo
que Deus pode ou não pode fazer. E, de todo modo, o
homem natural concebe as leis da lógica como se
constituíssem princípios abstratos que operavam em
relação correlativa ao material factual, bruto e puro da
experiência. Como um pensador cristão, Clark sustenta
que as leis da lógica são o equipamento do homem tal
como criado à imagem de Deus. Se Clark levar a cabo
sua convicção cristã consistentemente, ele argumentará
que a lei da contradição pode operar apropriadamente
somente num universo que é aquilo que é devido ao
plano de Deus com relação a ele. (Van Til, The
Protestant Doctrine of Scripture)
Curiosamente, as leis da lógica não foram deduzidas a partir de
raciocínios áridos por parte de Aristóteles, mas sim a partir da observação e
classificação dos entes da realidade, mais especificamente, animais e plantas.
As leis da lógica não são condições para a possibilidade apenas do raciocínio
humano, mas, sim, da própria existência dos entes. Antes de serem essenciais
para a organização do pensamento, as leis da lógica são demandas
ontológicas; afinal, para que um círculo exista, é impossível que seja um
quadrado.
Dizer que um ímpio “concebe como se ela operasse num universo não
criado ou governado pelo acaso” é um flatus vocis, pois independente da
interpretação descrente acerca da natureza ou a fonte da lógica, sua própria
existência e, portanto, pensamento, se submetem, ainda que contra sua
vontade, à lógica. Nenhum homem pode invalidar ou transgredir a lei da
contradição ou a lei da identidade, por maior que seja sua insurreição contra
Deus. Clark, assim como os pensadores escolásticos, aboliram qualquer falso
dilema ao dizer que a lógica é um análogo do modo pelo qual a própria mente
divina trabalha. Deus pensa logicamente, e por isso nada que seja
logicamente impossível (um círculo quadrado, por exemplo) pode vir à
existência. Até o mais depravado dos homens, por fim, submete-se à lógica,
já que não pode estar vivo e morto simultaneamente e num mesmo sentido.
Clark simplesmente aponta para uma obviedade — se não houvesse
coerência interna nas Escrituras, e se estas fossem repletas de
autocontradições, definitivamente não constituíram uma revelação, mas uma
nuvem do não saber, trevas e ilogismos. Como poderíamos compreender a
salvação efetuada por Cristo na cruz do Calvário se, numa situação
hipotética, lêssemos um versículo dizendo que Cristo morreu e, logo em
seguida, outro versículo que, contradizendo o anterior, afirmasse que Cristo
não morrera? A razão não é um teste ou critério de credibilidade das
Escrituras, mas certamente é um pressuposto para compreendê-la
adequadamente. Tal fato é de uma obviedade estonteante que sua própria
reafirmação é embaraçante.
Entretanto, Van Til, talvez com fins piedosos de marcar nitidamente a
distância entre criatura e Criador, invalida por completo a razão humana:
“Em nenhum lugar as Escrituras apelam para a razão irregenerada como um
juiz qualificado… Quando a Bíblia diz: ‘Vinde, pois, e arrazoemos’ (Isaías
1.18), geralmente o faz com relação ao povo de Deus, não se dirige aos
outros, jamais os vê como iguais a Deus ou como verdadeiramente
competentes para julgar” (Cornelius Van Til, Introduction to Systematic
Theology). E também: “Destarte, não podemos sujeitar os pronunciamentos
autoritativos das Escrituras acerca da realidade ao escrutínio da razão, porque
é a própria razão que aprende, das Escrituras, suas funções apropriadas”.[4]
Se a razão humana não é suficientemente competente para julgar as
Escrituras, se o chamado de “vir e arrazoar” é apenas para o povo de Deus,
podemos nos indagar como pregaremos o Evangelho aos descrentes. Van Til
afirma que o único ponto de contato em comum entre ímpios e crentes é o
sensus divinitatis, o já referido “senso da divindade” universal e inerente ao
homem. Mas como é possível alcançar esse senso se a via da razão não é
capaz de julgar os pronunciamentos das Escrituras? Devemos nos comunicar
intuitivamente ao sensus divinitatis?
Ademais, se é esse o único ponto de contato, o que dizer acerca da
linguagem? Afinal, todo homem (salvo raríssimas exceções) nasce e se
desenvolve numa sociedade que detém determinada linguagem por meio da
qual vive, comercializa e se relaciona. Cornelius Van Til sem dúvida
escreveu suas obras apologéticas em inglês com o intuito de alcançar as
pessoas do país onde residia, as quais evidentemente possuíam a mesma
língua. Todavia, como Clark argumenta, a linguagem deve ser lógica caso
queira ser compreendida; a estrutura sintática é, em si mesma, a organização
lógica do discurso. Aparentemente Van Til cria um abismo entre linguagem e
lógica, entre a revelação divina e a razão humana. Afinal, como podemos nos
certificar de que a expressão “Deus amou o mundo” na verdade significa que
“Deus odiou o mundo”; ou que, por “Deus enviou seu Filho, Jesus Cristo”,
devemos entender “Deus não enviou seu Filho, Jesus Cristo”?
Por fim, as Escrituras nos ordenam a pregação do Evangelho; de
semelhante modo, nos ensinam que a fé vem do ouvir a Palavra de Deus.
Todavia, segundo o raciocínio vantiliano, não é necessário sequer o uso do
vernáculo para a pregação, já que o único ponto de contato é o senso da
divindade. Certamente alguns dirão que tal assertiva é um espantalho dos
ensinos do teólogo; porém, afirmar a compreensão da linguagem, por parte
do ímpio, é corroborar com a ideia de que há um entendimento comum, um
mínimo denominador cultural numa sociedade, que é a condição essencial
para a pregação do Evangelho. Se fosse o contrário, não haveria a
necessidade de missionários aprenderem a língua e parte da cultura de um
povo — bastava apelar ao senso da divindade. Portanto, se é necessário o uso
da linguagem para a propagação do Evangelho, e uma vez que o uso da
linguagem requer o mínimo de capacidade lógica, segue-se que a lógica é um
pressuposto para o entendimento, por parte dos homens, acerca do
Evangelho.

7. Após as trevas, a luz


Gordon Clark sempre teve em mente a atração que os sistemas filosóficos
não cristãos exercem sobre a mente e curiosidade humanas. Nos dias de hoje,
o Brasil se vê num falso dilema entre mente e coração, pois ao mesmo tempo
em que, perceptivelmente, muitos se voltam para a teologia reformada no afã
de suprir suas necessidades intelectuais, de possuir uma sistematização
doutrinária racional e harmoniosa, e de montar um aparato apologético para
responder às objeções da fé; ao mesmo tempo que percebemos tudo isso,
deparamo-nos também com um emocionalismo histérico em nossas liturgias
e cultos públicos. Com efeitos, muitos buscam na teologia reformada apenas
as conclusões concisas e cristalizadas das doutrinas e, especialmente, a
autoridade que advém do apego a uma fé ortodoxa; no entanto, possuem
verdadeira aversão ao estudo sistematizado, à disciplina filosófica e ao rigor
lógico que caracterizam o pensamento de Gordon Clark e outros.
Nossa oração é que esta publicação possa não apenas despertar o povo
de Deus para as necessidades de uma formação mais sólida e de um preparo
mental mais vigoroso, mas também nos relembrar que, por mais tenebrosos
que sejam nossos tempos, e por mais obscuros que sejam nossos
pensamentos, a Palavra de Deus reluz fulgurosamente sempre.

Post Tenebras Lux


— Fabrício Tavares de Moraes
Londres, agosto de 2016
INTRODUÇÃO
A glória e a obra das mãos de Deus demonstradas pelos céus e pelo
firmamento têm sido chamadas de revelação divina geral. Nessa categoria é
possível incluir também a constituição da personalidade humana, pois o
homem em si é uma criação de Deus e em algum sentido carrega as marcas
de seu Criador. Essa “luz da natureza e as obras da criação e da providência
manifestem de tal modo a bondade, a sabedoria e o poder de Deus, de modo a
deixar os homens inescusáveis, contudo elas não são suficientes para dar
aquele conhecimento de Deus e de sua vontade que é necessário à salvação”.
É assim que a Confissão de Westminster brevemente nos adverte que a
revelação geral é inadequada. Essa inadequação é parcialmente um resultado
dos efeitos noéticos do pecado, mas há uma inadequabilidade anterior e
inerente também.
I. INADEQUAÇÃO DA REVELAÇÃO GERAL
Os efeitos obscurescedores do pecado sobre a mente à medida que ela tenta
descobrir Deus e a salvação na natureza podem ser mais bem vistos nos
resultados divergentes obtidos entre as religiões pagãs. Os antigos babilônios,
egípcios e romanos olharam para a mesma natureza que é vista pelos
modernos muçulmanos, hindus e budistas. Mas as mensagens que eles
pretendem receber são consideravelmente diferentes. Isso, que é tão evidente
quando essas religiões extremamente distantes são mencionadas, mantém-se
verdadeiro na civilização ocidental. O que o humanista e positivista lógico vê
na natureza é inteiramente diferente do que o cristão ortodoxo crê sobre a
natureza. Mesmo que o humanista professe descobrir na experiência certos
ideais morais e valores espirituais, que são no mínimo superficialmente
similares àqueles da Bíblia, pode muito bem ser suposto que ele na verdade
aprendeu tais coisas de sua herança cristã, e não de um estudo independente
da natureza e do homem. A atmosfera gentil do humanitarismo está
notavelmente ausente das sociedades nas quais a mensagem cristã não foi
levada.
A existência de conceitos divergentes de Deus, de ideais morais, e
acima de tudo de esquemas de salvação mostram o poder do pecado na mente
do homem; mas também mostram a inadequação inerente da revelação geral.
Não é por causa somente do pecado que o homem falha em entender a
mensagem de Deus. A verdade é que a natureza tem menos mensagem que
algumas pessoas, particularmente alguns cristãos, pensam.
Os planetas acima e as plantas abaixo mostram algo da sabedoria e
poder de Deus; isto é, mostram isso àqueles que já creem que Deus os criou.
Mesmo para um cristão devoto, contudo, o universo não mostra o pleno
poder e sabedoria de Deus, pois Deus não exauriu a si mesmo em sua criação.
Sem dúvida os sistemas estelares demonstram um vasto e inimaginável
poder; todavia, um número maior de estrelas com movimentos mais
complicados é concebível. Portanto, a onipotência não é uma conclusão
necessária a partir das estrelas.
Nem é a justiça. Os atributos morais que a Bíblia atribui a Deus são
ainda menos dedutíveis a partir de uma observação da natureza. Na verdade,
o problema do mal — calamidades físicas como terremotos e tragédias
causadas por ímpios – tem levado alguns filósofos a negar completamente a
existência de Deus, ou a propor um deus finito. John Stuart Mill pensava que
o universo tendia imperfeitamente para a produção do bem; humanistas
modernos são mais propensos a dizer que o universo é neutro com respeito às
esperanças e aspirações do homem; enquanto Bertrand Russell e Joseph
Wood Krutch aconselham a bravura em face da derrota inevitável. Essas
várias opiniões, embora parcialmente devidas à pecaminosidade humana,
dependem muito, creio eu, da inadequação da revelação geral em si. A
mensagem de Deus nos céus simplesmente não é abrangente para cobrir essas
questões.
Novamente, a visão hebraico-cristã que “os céus declaram a glória de
Deus” não significa, em minha opinião, que a existência de Deus pode ser
formalmente deduzida a partir de um exame empírico do universo. Se
baseado em outros fundamentos cremos no Deus de Abraão, Isaque e Jacó,
podemos ver que os céus declaram a sua glória; mas isso não é dizer que uma
pessoa que não crê nesse Deus poderia demonstrar sua existência a partir da
natureza. Referências adicionais a esse ponto serão feitas um pouco adiante.
Finalmente, a inadequação da revelação geral é mais óbvia no caso de
ideais ou normas éticas. E essa inadequação não é o resultado do pecado
somente, mas é uma inadequação inerente. A exposição de infantes na
Grécia, a prostituição no templo na Babilônia, o sacrifício humano em Canaã
e em outros lugares, não eram práticas que aquelas sociedades condenavam;
elas tinham plena sanção social. Essas eram as suas normas, esses eram os
seus ideais morais. De semelhante modo, o humanismo contemporâneo,
embora alguns dos seus valores sejam superficialmente similares aos
preceitos cristãos, diverge mais e mais da identificação bíblica de certo e
errado. Jesus não é mais considerado como sem pecado, mas é acusado de
minimizar os valores da inteligência científica, de sustentar visões
sociológicas inferiores sobre trabalho e propriedade, e mesmo de insistir num
padrão sexual muito rígido.
Se, agora, alguém deseja argumentar que essa divergência ética não
indica a inadequação da revelação geral, mas meramente as trevas da mente
pecaminosa, a réplica segura, para um cristão, é que Deus falou com Adão
antes da queda e lhe deu mandamentos que ele não poderia ter conhecido de
outra forma.
Quando Adão foi criado e colocado no Jardim do Éden, ele não sabia
o que fazer. Nem um estudo do Jardim teria levado a qualquer conclusão
necessária. Seu dever foi imposto sobre ele por uma revelação divina. Deus
lhe disse para ser frutífero e se multiplicar, subjugar a natureza, fazer uso dos
animais, comer do fruto das árvores, com uma fatídica exceção. Assim,
normas, mandamentos e proibições morais foram estabelecidos por uma
revelação especial, e não geral. Somente assim o homem poderia conhecer os
requerimentos de Deus, e assim ele poderia aprender mais tarde o plano da
salvação.
Tal é o ponto de vista cristão. Filósofos seculares hoje afirmam que a
história de Adão é um mito e que a ideia de uma revelação especial é
irracional. A dependência é colocada sobre a razão, não na revelação. Toda a
verdade deve ser obtida por um método, o método da ciência. Alega-se que a
Bíblia é autocontraditória e historicamente inexata; seus padrões morais são
de uma era ultrapassada; e acredita-se que a evolução refuta a criação. Esses
temas têm sido bem publicados e amplamente aceitos. Pode o cristão,
portanto, encarar a acusação de desonestidade intelectual, frequentemente
trazida contra ele, e refutar a objeção que a revelação é irracional?
II. DEFESA DA REVELAÇÃO RACIONAL
Na história do pensamento cristão, a antítese entre fé e razão tem sido
abordada por vários métodos diferentes. O debate, quer entre cristãos ou entre
cristãos e secularistas, algumas vezes gera confusão porque os termos não são
sempre claramente definidos. Não somente Agostinho e Kant diferem quanto
à natureza da fé, mas o próprio termo razão carrega significados diferentes.
Após fornecer um pano de fundo histórico mínimo, o escritor espera evitar tal
confusão sugerindo uma definição de razão que possa ajudar na defesa da
revelação como racional.
A tentativa escolástica medieval
Nessa breve análise histórica, o primeiro método de relacionar fé e razão a ser
discutido será a filosofia tomista da Igreja Católica Romana. À parte do
assentimento pessoal do crente, fé, nesse sistema, significa a informação
revelada contida na Bíblia, na tradição e presumivelmente na voz viva da
Igreja. Fé, então, é verdade revelada. Razão significa a informação que pode
ser obtida pela observação sensorial da natureza como interpretada pela
intelecção. Enquanto os racionalistas do século XVII contrastavam a razão
com a sensação, Tomás contrasta a razão com a revelação. As verdades da
razão são aquelas verdades que podem ser obtidas pelo equipamento
sensorial e intelectual natural do homem, sem a ajuda de graça sobrenatural.
Essas definições de fé e razão tornam a revelação “desarrazoada”
somente numa maneira verbal; a revelação não pode ser chamada de
desarrazoada ou irracional em nenhum sentido pejorativo. Por vezes suspeita-
se que os secularistas se apoderam do verbalismo a fim de sugerir algo mais
sinistro.
Os tomistas de fato insistem numa incompatibilidade entre fé e razão,
mas trata-se de uma incompatibilidade psicológica. Se a Bíblia revela que
Deus existe, e se cremos na Bíblia, temos essa verdade da fé. É possível,
contudo, de acordo com o tomismo, demonstrar a existência de Deus a partir
da observação ordinária da natureza. Aristóteles fez isso. Mas quando uma
pessoa tiver demonstrado racionalmente essa proposição, ela não mais
“crerá” nela, não mais aceita-a com base na autoridade; ela a “conhece”. É
psicologicamente impossível “crer” e “conhecer” a mesma proposição. Um
professor pode dizer a um aluno que um triângulo contém 180 graus, e o
estudante pode crer no professor; mas se o estudante aprende a prova, ele não
mais aceita o teorema com base na palavra do professor: ele conhece-o por si
mesmo. Nem todas as proposições da revelação podem ser demonstradas na
filosofia racional; mas, por outro lado, algumas verdades capazes de
demonstração também foram reveladas ao homem, pois Deus bem sabia que
nem todos os homens têm a capacidade intelectual de Aristóteles; portanto,
Deus revelou algumas verdades, embora demonstráveis, por causa da maior
parte da humanidade.
O conteúdo não demonstrável da revelação (tais como a doutrina da
Trindade e os sacramentos), embora fora do alcance da razão como definida,
não é irracional ou sem sentido. Os muçulmanos medievais e os humanistas
modernos podem alegar que a Trindade é irracional; mas a razão é bem
competente para mostrar que essa doutrina não contém nenhuma
autocontradição e as objeções a ela são falaciosas. As verdades mais altas da
fé não violam nenhuma das conclusões da razão; pelo contrário, as doutrinas
da revelação completam o que a razão não poderia terminar. As duas séries
de verdades, ou, melhor, as verdades obtidas por esses dois métodos
diferentes são complementares. Longe de ser um obstáculo à razão, a fé pode
advertir um pensador que ele está cometendo um erro estúpido. Não
deveríamos retratar o crente como um prisioneiro da sua fé que deve ser
libertado; a fé restringe apenas do erro. Dessa forma, fé e razão estão em
harmonia.
Somente uma crítica dessa construção será feita, mas é uma que os
tomistas e objetores concordarão ser crucial. Se o argumento cosmológico
para a existência de Deus é uma falácia lógica, o tomismo e sua visão da
relação entre fé e razão não podem permanecer de pé.[5]
As dificuldades com o argumento cosmológico lembram os
comentários anteriores sobre a inadequação da revelação geral. Se for
assumido que todo o conhecimento começa na experiência sensorial e que,
portanto, uma pessoa olha para a natureza em ignorância de Deus, as
calamidades manifestas dos homens e a finitude e mudança da natureza —
vastas quanto possam ser as galáxias — impedem qualquer conclusão
necessária da existência de um Deus onipotente que também seja bom.
A essas objeções que Hume declarou vigorosamente podem ser
adicionadas críticas específicas da formulação aristotélica de Tomás. Três
serão mencionadas. Primeiro, o tomismo não pode sobreviver sem os
conceitos de potencialidade e atualidade;[6] todavia, Aristóteles nunca teve
sucesso em defini-los. Em vez disso, ele ilustrou-os pela mudança de
fenômeno, e então definiu mudança ou movimento em termos de atualidade e
potencialidade. Justificar essa objeção requereria excessivo aparato técnico
para o presente propósito; e se o leitor desejar, não precisa colocar nenhuma
ênfase sobre esse primeiro ponto.
Em segundo lugar, Tomás argumenta que se rastrearmos as causas
dos movimentos, mesmo esse regresso não pode ir ao infinito. A razão
explicitamente dada na Summa Theologica para se negar um regresso infinito
é que em tal caso não poderia haveria um primeiro movedor. Mas essa razão,
que é usada como uma premissa para concluir a negação, é precisamente a
conclusão que Tomás coloca no final do argumento completo. Supõe-se que
o argumento prova a existência de um primeiro movedor, mas esse primeiro
movedor é pressuposto para se negar um regresso infinito. Obviamente,
portanto, o argumento é uma falácia.
Há uma terceira e ainda mais complicada crítica. Visto envolver
material que se tornou recentemente um assunto de debate generalizado, é
digno de atenção mais detalhada.
Para Tomás de Aquino há duas formas de se conhecer a Deus;
primeiro, o caminho da teologia negativa, que não discutiremos; e segundo, o
método da analogia. Uma vez que Deus é um ser puro, sem partes, cuja
essência é idêntica à sua existência, os termos aplicados a ele não podem ser
usados precisamente no mesmo sentido em que se aplicam às coisas criadas.
Se é dito que um homem é sábio e Deus é sábio, deve ser lembrado que a
sabedoria do homem é uma sabedoria adquirida, enquanto Deus nunca
aprendeu. A mente humana está sujeita à verdade; a verdade é seu superior.
Mas a mente de Deus é a causa da verdade por pensá-la, ou, talvez, Deus é a
verdade. Dessa forma, o termo “mente” não significa precisamente a mesma
coisa no caso de Deus e o homem. Não somente esses termos, mas a noção de
existência, também, não é a mesma. Visto que a existência de Deus é a sua
essência, uma identidade sem duplicação em qualquer outro caso, mesmo a
palavra “existência” não se aplica univocamente a Deus e ao mundo da
criação.
Ao mesmo tempo, Tomás não deseja admitir que esses termos são
equívocos. Quando se diz que os limpos de coração verão a Deus, enquanto o
verão tem um calor insuportável,[7] a palavra não tem nenhum significado
em comum. Embora as letras e a pronúncia sejam a mesma, o conteúdo
intelectual nos dois casos é completamente diverso. Entre tal equívoco e
univocidade estrita, Tomás afirma que palavras podem ter um uso analógico;
e que no caso de Deus e o homem, os predicados são aplicados
analogicamente.
Ora, se o significado analógico de “sábio” ou de “existência” tem uma
área comum de significado, essa área comum poderia ser designada por um
termo unívoco. Esse termo então poderia ser aplicado univocamente a Deus e
ao homem. Mas Tomás insiste que nenhum termo pode ser aplicado assim.
Isto, com efeito, remove todos os vestígios de significado idêntico nos dois
casos. Mas se é assim, como pode um argumento, o argumento cosmológico,
ser formalmente válido, quando suas premissas usam termos num sentido e a
conclusão usa aqueles termos num sentido completamente diferente? As
premissas do argumento cosmológico falam de existência de movedores
dentro do espectro da experiência humana; a conclusão diz respeito a
existência de um primeiro movedor. Mas se esses termos não podem ser
tomados univocamente, o argumento é uma falácia.
Portanto, a tentativa tomista de relacionar fé e razão — mais devido à
sua visão da razão, do que sua visão da fé — deve ser considerada como um
fracasso, e outra tentativa deve ser feita para defender a racionalidade da
revelação.
O ataque renascentista
O domínio do ponto de vista escolástico medieval, do qual Tomás foi o
exemplo mais brilhante, cessou com a Reforma e a Renascença. Visto que
este artigo pretende defender a posição da Reforma, a da Renascença será
discutida primeiramente. A discussão deve ser extremamente breve; pois,
visto que a Renascença deu origem à filosofia secular moderna, o assunto é
muito vasto; a filosofia moderna, além disso, não é um método de harmonizar
fé e razão, mas de negar a fé em favor da razão. Todavia, algo deve ser dito
para indicar que esse ataque moderno sobre revelação não foi completamente
bem-sucedido.
Certos detalhes sobre o ataque, tais como as alegações que Moisés
não poderia ter escrito o Pentateuco pois a escrita não tinha sido inventada
em seus dias, e que os hititas nunca existiram, são mais apropriadamente
tratadas sob o tópico da alta crítica. Aqui somente os princípios norteadores
de sua filosofia podem ser mantidos à vista.
Esses princípios norteadores foram aqueles empregados no problema
crucial do conhecimento. Epistemologia é a tentativa de mostrar que o
conhecimento é possível; e a filosofia moderna é fortemente epistemológica.
Será que essas escolas tiveram sucesso em estabelecer o conhecimento
racional à parte da fé ou revelação?
A primeira escola importante foi a escola do racionalismo do século
XVII. Sua crença básica era que todo conhecimento é derivado da lógica
somente. Dever-se-ia observar que, por razão, esses homens queriam dizer a
lógica em oposição à sensação. A experiência, na opinião deles, era a fonte
do erro. Somente aquilo que pudesse ser demonstrado como teoremas da
geometria, i.e., sem apelo à experimentação, demonstraria ser confiável.
Em geral, esses pensadores, dos quais Descartes, Espinoza e Leibniz
foram de longe os maiores, dependiam do argumento ontológico para provar
a existência de Deus. O argumento ontológico alega que Deus tem o atributo
de justiça assim como um triângulo tem o atributo de conter 180 graus. Negar
que Deus existe é tão autocontraditório quanto negar o teorema geométrico.
Dessa forma, a existência de Deus é provada pela razão somente, isto é, pela
lógica pura, sem apelo à experiência sensorial. Então, a partir da existência de
Deus, os racionalistas tentam deduzir as leis da ciência.
Poucos filósofos contemporâneos pensam que o argumento
ontológico é válido; nenhum pensador contemporâneo admite que Descartes
ou Espinoza tiveram sucesso em deduzir os conteúdos da ciência da maneira
indicada. Não importa quão estimulantes possam ser os racionalistas, não
importa quão instrutivos sejam com relação a alguns pontos, eles são
universalmente julgados como tendo falhado na matéria principal de mostrar
que o conhecimento é possível. Portanto, um cristão pode legitimamente
alegar que o ataque deles sobre a revelação colapsa com o sistema deles
como um todo. Esse é um tratamento breve e resumido do racionalismo, sem
dúvida, mas ninguém esperará uma história completa da filosofia moderna
nessas páginas.
O empirismo permanece hoje como uma filosofia viva. Portanto, não
pode ser dito que Locke, Berkeley e Hume são universalmente considerados
como fracassos completos. Sim, o empirismo de hoje é notoriamente
diferente da variedade do século XVIII; e em alguns casos nos quais se
apresenta maior similaridade, alguém se pergunta que respostas o empirista
daria às objeções padrões contra Hume.
Há três objeções principais ao empirismo. Primeiro, a impossibilidade
de descobrir qualquer “conexão necessária” entre eventos ou ideias (i.e., a
negação da causalidade) torna a investigação histórica e científica fútil. Na
melhor das hipóteses, o conhecimento não poderia se estender além das
impressões presentes de alguém e seus traços na memória. Segundo, a
desintegração do “ego” resulta num mundo de percepções que nenhuma
pessoa perceptiva percebe. Isto na prática aniquila a memória. Terceiro e
fundamental, o empirismo faz uso do espaço e tempo sub-repticiamente no
começo do processo de aprendizagem, enquanto explicitamente esses
processos são aprendidos somente no final.
Dessa forma, objeções empíricas à revelação, e em particular o
argumento de Hume contra os milagres, são destituídos de todo fundamento.
Immanuel Kant tentou bravamente remediar os defeitos do empirismo
ao atribuir à mente certas formas a priori. Supunha-se que espaço e tempo
preservam o significado para a experiência sensorial, e as categorias a priori
deveriam tornar o pensamento possível. As obras de Kant permanecem como
um monumento ao seu gênio, mas dificilmente teriam os últimos volumes
sido publicados tivesse Jacobi colocado seu dedo num ponto muito dolorido.
Para entrar no sistema de Kant é necessário supor “coisas em si mesmas”,
mas a teoria completa das categorias torna a suposição impossível. Esse
conflito entre as formas a priori da mente e a matéria dada na sensação deu
início ao avanço de Hegel.
Durante seu tempo de vida, Hegel alcançou o ápice do
reconhecimento profissional. E por mais setenta e cinco anos o seu
pensamento foi extremamente influente. Todavia, hoje vemos que dois dos
seus estudantes, que rejeitaram completamente seu idealismo absoluto, Karl
Marx e Soren Kierkegaard, têm vencido a batalha decisiva contra ele. Ainda
há idealistas, sem dúvida; e Hegel ainda pode contar com uns poucos
seguidores. Mas a afirmação da falência hegeliana não pode ser descartada
como um artifício de preconceito cristão para manter a teoria da revelação.
Contudo, conquanto Hegel tenha alguns discípulos, e conquanto
restos do empirismo ainda permaneçam, alguém poderia insistir que essas
filosofias não foram conclusivamente refutadas. Portanto, embora esses
pontos de vista não sejam, em minha opinião, a posição característica do
século XX, uma defesa cristã da revelação está provavelmente sob alguma
obrigação de mostrar como eles deveriam ser tratados. Infelizmente, não mais
que um exemplo pode ser incluído.
O falecido Edgar Sheffield Brightman (1884-1953) elaborou uma
filosofia da religião ao longo de linhas primariamente empíricas, embora
retendo algumas ideias de Kant. Valores e ideias religiosos deveriam ser
descobertos na experiência; a revelação não desempenha nenhuma parte, ou,
se é teoreticamente possível, ainda deve ser julgada sobre a base da razão. A
revelação, ele diz, deve ser testada pela razão, não a razão pela revelação.
Pelo termo razão, Brightman não quer dizer o processo de lógica como o
faziam os racionalistas; para ele, a razão é uma série de princípios
empiricamente derivados pelos quais organizamos o universo da nossa
experiência. Ele fala da razão empírica concreta como oposta à mera lógica
formal. A revelação, ele afirma, não pode ser usada como o princípio básico
pelo qual organizamos a experiência.
Historicamente, sem dúvida, a revelação tem sido usada assim; e
Brightman nunca demonstrou porque, se existe um Deus vivo, a revelação
não poderia nos fornecer informações que nos permitiria compreender o
mundo e organizar nossas vidas. Analisei as falhas graves na concepção de
Brightman sobre Deus em outro lugar (cf. Uma visão cristã dos homens e do
mundo).
O que talvez seja a dificuldade básica é uma que Brightman
compartilha com os humanistas, embora geralmente ele e eles estejam em
discordância radical. A concordância deles sobre esse ponto, portanto, é de
importância considerável, pois fornece um teste que se estende além das
visões de um homem.
O ponto vulnerável do método empírico de Brightman, e de todo
empirismo contemporâneo, é a derivação professa de valores genuínos a
partir da experiência. Que há fatores na experiência que pessoas de fato
gostam não deve ser negado. Mas o problema é ir dos prazeres reais e
diversos a valores que tenham uma reivindicação legítima sobre todas as
pessoas. Um homem gosta de orar; outro de uísque. Um homem gosta da vida
de um erudito aposentado; outro, de ser um ditador brutal. Pode a experiência
mostrar que essas são algo mais que preferências pessoais? Pode a
experiência fornecer uma base para uma obrigação moral universal? Minha
conclusão, apoiada pelo argumento detalhado no volume já citado, é que isso
é impossível. Por tais razões, então, essas filosofias restantes falham em
minar a revelação bíblica.
A filosofia pós-hegeliana é um fator importante para se chegar a esse
julgamento negativo sobre a “razão” de Espinoza, Hume e Hegel. As críticas
de Marx, Nietzsche e dos instrumentalistas contemporâneos têm depreciado
essa razão de forma irremediável. Na medida em que esses homens têm
assinalado o fracasso da filosofia moderna para resolver o problema
epistemológico, suas conclusões parecem incontroversas. Mas visto se
oporem violentamente à revelação, eles têm sido forçados a adotar um
ceticismo tão profundo que nem mesmo a razão no sentido das leis da lógica
está isenta.
Em antecipação de Freud, Nietzsche nos diz que todo pensamento é
controlado por funções biológicas. A distinção entre verdade e falsidade
como tal não é importante: uma opinião falsa que sustenta a vida é melhor
que uma verdade que não o faz. De fato, a verdade poderia muito bem ser
definida como o tipo de erro sem o qual uma espécie não pode viver. A
lógica com sua lei da contradição é o resultado de uma evolução cega que
poderia ter sido diferente. De qualquer forma, a lógica falsifica a natureza; ela
coloca coisas diferentes na mesma categoria por ignorar suas diferenças; e
quanto mais espesso o órgão, maiores similaridades se vê. O fato que usamos
a lógica significa meramente a nossa incapacidade de examinar mais de
perto; e o resultado é que a lógica é válida somente para existências
assumidas que criamos e não para o mundo real.
F. C. S. Schiller, A. J. Ayer, Jean Paul Sartre, cada um deles a seu
modo ataca a necessidade da lógica. Assim, a posição filosófica típica do
século XX não deve ser tanto designada como ceticismo, mas como
irracionalismo total.
A transigência neo-ortodoxa
Embora esses homens sejam abertamente anticristãos, há também uma forma
de irracionalismo no século XX, derivada diretamente de um estudante de
Hegel, Kierkegaard, que se veste com terminologia cristã e tenta evitar os
excessos de Nietzsche mediante um apelo à revelação. Algumas vezes ela
alega ser um retorno ao ponto de vista da Reforma. É preciso se indagar não
somente se essa alegação pode ser historicamente justificada, mas, mais
particularmente, se essa filosofia fornece uma validação adequada do
conceito cristão de revelação.
O assim chamado movimento neo-ortodoxo ou existencial admite de
bom grado que a razão fracassou terrivelmente. Mesmo a natureza inanimada
está além do entendimento intelectual porque não há nenhum movimento na
lógica e nenhuma lógica no movimento. O devir está em aberto e a realidade
é puro acaso. Se a lógica naufraga no movimento físico, ela é ainda mais
impotente nas questões da vida. O que é necessário não são conclusões
lógicas, mas decisões. Devemos, portanto, dar um salto de fé e aceitar uma
revelação de Deus.
Para muitas pessoas devotas, perturbadas pela popularidade do
cientificismo secular, oprimidas pela influência sufocante do modernismo, e
(injustificadamente) assustadas pelas negações da alta crítica, a neo-ortodoxia
parece um maná do alto. A revelação agora foi salva; a razão foi derrotada!
Contudo, antes que os herdeiros de Lutero e Calvino possam
propriamente se regozijar, eles devem saber precisamente o que é essa
revelação, que tipo de fé se quer dizer, e se alguma coisa de valor permanece
depois da derrota da razão. O fracasso do racionalismo do século XVII não
causa alarme algum; pode-se conformar com o destino de Hume e Hegel; a
razão concreta e empírica de Brightman pode muito bem ser dispensada; mas
o que resta se a razão, no sentido das leis da lógica, precisa ser abandonada?
De que valor seria uma revelação irracional ou ilógica?
A principal lei da lógica é a lei da contradição, e essa é a lei que
mantém a distinção entre verdade e falsidade. Se essa distinção não pode ser
mantida, então como os antigos sofistas mostraram, todas as opiniões são
verdadeiras e todas as opiniões são falsas. Qualquer proposição é tão crível
quanto qualquer outra. E, portanto, Nietzsche ou Freud usaram o raciocínio
para chegar às suas posições, e se o raciocínio distorce a realidade, e se uma
teoria não é mais verdadeira que a outra, segue-se que esses homens não têm
nenhum bom fundamento para afirmar suas teorias. Negar a razão, no sentido
das leis da lógica, é esvaziar a conversa ou o argumento de todo significado.
Ora, isso é o que a neo-ortodoxia bem como Nietzsche fazem. Em seu
Concluding Unscientific Postscript [Post-scriptum conclusivo não científico],
Kierkegaard havia dito que não há diferença alguma se um homem ora a
Deus ou a um ídolo, conquanto ore com paixão. A verdade, disse, reside no
Como interior, e não no O que exterior. Se somente o Como da relação do
indivíduo é “verdade”, então o indivíduo está na verdade, mesmo que ele
esteja, desse modo, relacionado com a inverdade.
Brunner também abole a distinção entre verdade e falsidade. Primeiro,
ele se refere a um tipo de “verdade” que não pode ser expressa em palavras
ou apreendida em conceitos intelectuais. O que essa verdade é, ninguém pode
dizer. Segundo, as palavras, sentenças e conteúdo intelectual que “apontam
para” essa verdade oculta podem ou não serem verdadeiras. Deus pode
revelar a si mesmo (Wahrheit als Begegnung, p. 88) por meio de proposições
falsas, bem como verdadeiras. Nunca podemos estar certos, portanto, se o que
Deus nos diz é verdade. Falsidade e verdade têm igual valor.
Certamente tal valor deve ser muito pequeno. Por um lado, nos alivia
da responsabilidade de sermos consistentes. Nosso credo pode conter artigos
contraditórios. Brunner argumenta que a “inferência direta” deve ser refreada.
Não ousamos seguir nossos princípios até suas conclusões lógicas. Nem
sempre, de qualquer forma. Brunner, de fato, aponta a contradição de
Schleiermacher em insistir tanto no caráter absoluto do cristianismo como na
descoberta de um elemento comum em todas as religiões. Ele é consistente
também quando argumenta que o homem deve ter sido criado justo, pois de
outra forma não teria havia nenhuma Queda. Mas quando Brunner chega a
Romanos 9 e considera seu significado repugnante, ele declara que a eleição
é ilógica e que se extrairmos inferências a partir dela, concluiremos que Deus
não é amor. Não se pode ter amor e lógica. Portanto, a Bíblia é
consistentemente ilógica.[8]
Mas se a Bíblia é ilógica e se Brunner é ilógico, não temos um direito
lógico de ignorá-los, visto não haver nenhuma necessidade ilógica de que
nossa fé deva saltar na direção deles?
O propósito de todo o argumento nesta conjuntura tem sido
estabelecer três pontos: a defesa irracional da revelação pela neo-ortodoxia é
autodestrutiva; o ataque racional da filosofia moderna sobre a revelação deixa
a si mesma sem um fundamento epistemológico; e o tipo de razão usado pelo
tomismo para defender a revelação estava permeado de falácias. Mas agora
para continuar o argumento, o procedimento geral do pensamento da
Reforma fornece uma possibilidade para uma revelação racional.
O caminho da Reforma
Neste caso, uma revelação racional é aquela que preserva a distinção entre
verdade e falsidade. Ela é em sua inteireza auto-consistente. Em outras
palavras, a razão é identificada como as leis da lógica. O cristianismo não
está sob nenhuma obrigação de justificar a si mesmo como racional em
nenhum outro sentido. Pois a história da filosofia tem mostrado que todos os
outros sentidos resultam em ceticismo. Portanto, alegar que a eleição, ou a
expiação, ou qualquer outra doutrina é “irracional” não é nada mais que
afirmar que essas doutrinas são desagradáveis ao objetor. A acusação não é
uma conclusão intelectual substanciada, mas uma antipatia emocional. Se as
doutrinas bíblicas são auto-consistentes, elas passaram pelo único teste
legítimo da razão. Esse teste de lógica é precisamente o requerimento para
uma série de proposições ter sentido, quer proferidas por Deus ou pelo
homem. E se proposições não têm sentido, obviamente não revelam coisa
alguma.
É justo perguntar agora se essa construção é historicamente o ponto
de vista da Reforma. Lutero e Calvino aceitaram a Bíblia como auto-
consistente, e reconheceram os testes únicos da lógica?
A primeira dessas perguntas é a mais fácil de responder. Que a Bíblia
apresenta um sistema intelectual auto-consistente, e que Calvino estava
convencido dele, está suficientemente claro em suas Instituições e
Comentários. A Confissão de Westminster é testemunho adicional. O amor
calvinista pela lógica é bem conhecido; e, como tem sido visto, foi um
repúdio pelo calvinismo que levou Brunner a rejeitar a lógica. Este ponto,
portanto, é característico da fé reformada.
A segunda dessas duas perguntas é mais complicada pois os
reformadores não discutiram explicitamente a lógica como o único teste de
uma revelação racional. O seu silêncio é compreensível, contudo, pois o
irracionalismo é primariamente um fenômeno do século XX que eles não
anteciparam. Todavia, o fato de que a construção anterior está implícita em
suas visões pode ser plausivelmente inferido de seus métodos. Eles
abandonaram a filosofia escolástica; não gastaram nenhum tempo tentando
provar a existência de Deus, muito menos a origem sensorial do
conhecimento; o contraste entre as Instituições e a Summae de Tomás é
inequívoco. Consequentemente, eles não poderiam ter usado nenhuma
“razão concreta e empírica”. Então, também, o princípio de que a Escritura é
o seu próprio intérprete infalível, e aquilo que é obscuro numa passagem
pode ser entendido mediante uma comparação com outras passagens, não é
nada senão a aplicação da lei da contradição. A lógica, portanto, deve ter sido
o único teste que os reformados poderiam ter usado.
Admito livremente que algumas passagens em Calvino parecem
permitir uma reação menos cética ao curso da filosofia que este artigo
apresenta. Elas devem, contudo, ser entendidas à luz de outras declarações
bem definidas encontradas nos mesmos contextos. Um dos reconhecimentos
mais generosos de Calvino do conhecimento pagão é encontrado nas
Instituições II.ii.14ss. O sumário e interpretação a seguir podem ser
facilmente comparados com o original. Após rejeitar a pré-existência da
alma, Calvino afirma que a engenhosidade humana nos constrange a
reconhecer um princípio intelectual inato na mente humana. Visto que isso
possivelmente não poderia ser a razão empírica concreta de Brightman, não é
mais provável que Calvino tinha as leis da lógica em mente? Com esse
equipamento inato, os juristas romanos apresentaram princípios justos de
ordem civil; filósofos descreveram a natureza com uma ciência requintada;
aqueles que pela arte da lógica têm nos ensinado a falar racionalmente não
podem estar destituídos de entendimento; matemática pagã não poderia ter
sido o delírio de loucos. Não, os escritos dos antigos são excelentes porque
eles procederam de Deus.
Isso é realmente um grande elogio. De fato, é tão grande elogio que
seu objeto pode dificilmente ser a verdade teorética das filosofias pagãs.
Admitidamente, Calvino não estava ciente de quão equivocado era o
conhecimento antigo; nem poderíamos supor que ele tivesse uma elaborada
teoria instrumental de ciência. Todavia, sua admiração da física, lógica,
matemática e outras artes e ciências da Antiguidade podem confortável e mui
plausivelmente ser dividida com o brilho intelectual demonstrado e as
aplicações práticas tornadas possíveis. É a energia, a engenhosidade, o
requinte dos antigos que ele admira, e não a verdade dos sistemas deles.
Na sequência imediata, Calvino corrige alguns equívocos quanto à
sua intenção. Com respeito ao reino de Deus e a sabedoria espiritual, os mais
sagazes da humanidade são mais cegos que as toupeiras. A mais adequada de
suas observações denuncia confusão. Eles veem os objetos apresentados à sua
visão de tal maneira que com a visão eles não são direcionados à verdade,
muito menos chegam a ela. Fortuitamente, por acidente, algumas sentenças
isoladas podem ser verdadeiras; mas a razão humana não se aproxima, nem
tende ou direciona sua visão rumo à verdade de Deus.
Que Calvino não baseou a verdade e racionalidade da Escritura em
suportes externos é mais bem visto num capítulo anterior (I, viii). O título é:
A prova racional para estabelecer a crença da Escritura. Num século XX,
esse título é enganoso. Hoje tal título sugeriria um apelo à autoridade superior
da, quem sabe, experiência religiosa. Essa não era a intenção de Calvino.
Sem uma certeza prévia da revelação, ele diz, uma certeza mais forte
que qualquer julgamento de experiência, a autoridade da Escritura é
defendida em vão por argumentos, pelo consentimento da igreja, ou por
qualquer outro tipo de apoio. A fé está fundamentada, não na sabedoria dos
homens, mas pelo poder de Deus. Pois a verdade é vindicada de toda dúvida,
quando, sem socorro de ajuda externa, é suficiente para o seu próprio suporte.
O pensamento dessa sentença significativa é repetida no final do mesmo
capítulo. Embora haja muitas razões subsidiárias pelas quais a dignidade
inerente das Escrituras pode ser vindicada, ele diz que, sozinhas, não são
suficientes para produzir uma fé firme nela, até que o Pai celeste,
desvendando o seu próprio poder nela (i.e., nas próprias Escrituras), coloca
sua autoridade além de toda controvérsia.
A essas palavras de Calvino, gostaria de adicionar somente que a lei
da contradição, ou razão, não é um teste externo da Escritura. A consistência
lógica é exemplificada na Escritura; e assim, esta pode ser uma revelação
significativa para a mente racional do homem. Proposições autocontraditórias
seriam absurdas, irracionais e não poderiam constituir uma revelação.
III. ALGUNS PROBLEMAS CONTEMPORÂNEOS
Posto que Calvino não poderia ter se dirigido explicitamente ao século XX, a
obrigação está ainda mais sobre nossos ombros. Sem dúvida, há muitos, mas
há um ataque imediato sobre a possibilidade de uma revelação racional que
não deveria ser ignorado.
Teorias da origem, natureza e propósito da linguagem têm sido
recentemente desenvolvidas para que impeçam Deus de falar a verdade do
homem sob o fundamento que a linguagem não pode transmitir uma verdade
literal. Alguns escritores dizem que toda linguagem é simbólica ou
metafórica. Por exemplo, Wilbur Marshall Urban (Language and Reality, pp.
383, 433) afirma que “não existem sentenças estritamente literais… não
existe tal coisa como verdade literal… qualquer expressão em linguagem
contém algum elemento simbólico”. Outros escritores fazem alegações mais
restritas e dizem apenas que toda linguagem religiosa é metafórica. De onde
se segue que caso Deus use linguagem, ele não pode nos contar a verdade
literal, mas deve falar em simbolismo ou mitologia.
Aqueles que defendem a Bíblia como uma revelação verdadeira
devem insistir que ela transmite verdade literal. Isso não significa que Deus
não possa usar, por vezes, simbolismo e metáfora. Certamente há simbolismo
em Ezequiel, há parábolas nos Evangelhos, e há metáforas espalhadas por
toda a Bíblia. Deus poderia ter usado até mesmo mitologia e fábula. Mas a
menos que haja declarações literais juntamente com essas figuras de
linguagem, ou no mínimo, a menos que as figuras de linguagem possam ser
traduzidas em verdade literal, um livro não transmite nenhum significado
definido.
Suponha que a cruz seja selecionada como um símbolo cristão, e
suponha que algum orador florido dissesse: “Vivamos à sombra cruz”. O que
ele pode querer dizer? O que a cruz simboliza? Simboliza o amor de Deus?
Ou simboliza a ira de Deus? Simboliza o sofrimento humano? Ou simboliza a
influência da igreja? Se não existem declarações literais para a informação
sobre o que cruz simboliza, essas perguntas são irrespondíveis.
Deixemos que uma pessoa diga que a cruz simboliza o amor de Deus.
Contudo, se toda linguagem ou toda linguagem religiosa é simbólica, a
declaração que a cruz simboliza o amor de Deus é em si mesma um símbolo.
Um símbolo do que? Quando essa última pergunta for respondida, veremos
que a resposta é novamente um símbolo. Então outro símbolo será necessário,
e outro. E todo o processo se tornará sem sentido.
Essa teoria contemporânea da linguagem está aberta às mesmas
objeções que são levantadas contra a noção tomista de conhecimento
analógico. A fim de ter significado, uma analogia, uma metáfora, ou um
símbolo deve ser apoiado por alguma verdade literal. Se Sansão era tão forte
como um touro, então um touro deve ser literalmente forte. Se Cristo é o leão
da tribo de Judá, então algo deve ser literalmente verdade sobre leões e sobre
Cristo também. Não importa com que embelezamento literário a comparação
seja feita, deve haver uma declaração estritamente verdadeira que deu origem
a ela. E uma teoria que diz que toda linguagem é simbólica é uma teoria que
não pode ser tomada como literalmente verdadeira. Suas próprias declarações
são metafóricas, e sem significado.
Além disso, uma teoria de linguagem tem que ser tomada como parte
de um sistema filosófico mais geral. Embora alguns linguistas possam estudar
uns poucos detalhes minuciosos, uma teoria que concerne à origem, natureza
e propósito da linguagem pressupõe alguma visão global da natureza humana
e do mundo no qual ela existe. As teorias contemporâneas são
frequentemente baseadas numa filosofia evolucionária na qual se supõe que a
linguagem humana tenha se originado de gritos e grunhidos de animais. Essas
teorias evolucionárias da linguagem, e algumas que não são explicitamente
evolucionárias, revelam sua conexão com a epistemologia ao tornar as
impressões sensoriais a fonte imediata da linguagem. As primeiras palavras
uma vez pronunciadas foram supostamente substantivos ou nomes
produzidos ao imitar-se o som produzido por um animal ou uma cachoeira;
ou se o objeto não fazia nenhum ruído, algum método mais arbitrário foi
usado para atribuir um substantivo a ele.
Quando essa visão é aceita por tomistas, eles herdam o problema de
passar de uma linguagem baseada no sensorial para um modo apropriado de
expressar proposições teológicas. Os positivistas lógicos, por um lado,
concluem com maior demonstração de razão que isso não pode ser feito, e
que linguagem teológica é um disparate. Mas em todo caso, uma teoria da
linguagem deve ser posta num sistema completo de filosofia. Ela não pode
ficar isolada.
Tanto o evolucionista naturalista como o cristão evangélico têm seus
princípios norteadores. O primeiro não tem escolha, senão desenvolver a
linguagem a partir de gritos de animais — não importa quais dificuldades
possam existir, e elas são insuperáveis. O último, em razão da doutrina da
criação, deve manter que a linguagem é adequada para todas as religiões e
para a expressão teológica — não importa quais dificuldades possam existir,
e elas não são grandes. A possibilidade da comunicação racional entre Deus e
o homem é facilmente explicada sob pressuposições teístas.
Se Deus criou o homem à sua própria imagem racional e o capacitou
com o poder de discurso, então um propósito da linguagem, na verdade, o
propósito principal da linguagem, seria naturalmente a revelação da verdade
ao homem e as orações do homem a Deus. Numa filosofia teísta, não se
deveria dizer, como um tomista recentemente disse, que toda linguagem foi
concebida para descrever e discutir os objetos finitos de nossa experiência
sensorial (E. L. Mascall, Words and Images, p. 101). Pelo contrário, a
linguagem foi concebida por Deus, isto é, Deus criou o homem racional para
o propósito de expressão teológica. A linguagem é, certamente, adaptável à
descrição sensorial e à rotina diária da vida, mas é desnecessário inventar o
problema de como expressões sensoriais podem ser transmutadas num
método apropriado de se falar sobre Deus.
Isso derruba imediatamente a objeção à inspiração verbal que é
baseada na alegada finitude e imperfeições da linguagem. Se a razão, i.e., a
lógica, que torna o discurso possível, é uma faculdade dada por Deus, ela
deve ser adequada para sua tarefa divinamente designada. E sua tarefa é a
recepção de informação divinamente revelada e a sistematização dessas
proposições em teologia dogmática.
Resumindo: a linguagem é capaz de transmitir verdades literais
porque as leis da lógica são necessárias. Não existem substitutos para elas.
Filósofos que as negam reduzem sua própria negação a sílabas sem sentido.
Mesmo onde a necessidade da lógica é negada, se a razão é usada em algum
outro sentido como uma fonte de verdade, o resultado tem sido ceticismo.
Portanto, a revelação não é apenas racional, mas é a única esperança de
manter a racionalidade. E isso é corroborado pela consistência real que
descobrimos quando examinamos a revelação verbalmente inspirada
chamada a Bíblia.
BIBLIOGRAFIA
Loraine Boettner, The Inspiration of the Scriptures. Grand Rapids: Wm. B.
Eerdmans Publishing Co., 1937.
John Calvin, A Instituição da religião cristã. Tomo 1 e 2. São Paulo: UNESP,
2008.
Gordon H. Clark, Uma visão cristã dos homens e do mundo. Brasília:
Monergismo, 2013.
____________, De Tales a Dewey. São Paulo: Cultura Cristã, 2012.
Paul K. Jewett, Emil Brunner’s Concept of Revelation. London: James Clarke
& Company, 1954.
SOBRE O AUTOR
O dr. Gordon Haddon Clark (1902-1985) foi um brilhante filósofo, teólogo
calvinista, educador renomado internacionalmente e criador de extensa obra
(escreveu mais de 40 livros). Foi presidente do Departamento de Filosofia da
Universidade Butler por 28 anos, além de ter ensinado por mais de 60 anos
em dezenas de faculdades e seminários. Profundo conhecedor de filosofia
antiga e contemporânea, defendeu a revelação proposicional contra o
empirismo e o racionalismo. Foi chamado por muitos de “um dos maiores
pensadores do século XX”.

[1] Rousas John Rushdoony, em The Mythology of Science (Nutley, NJ: Craig Press, 1968, p. 96), diz
o seguinte acerca do conceito moderno de Natureza: “Não há na Bíblia um termo como ‘Natureza’. E,
na verdade, as Escrituras não reconhecem a Natureza como a fonte e causa dos fenômenos naturais;
pelo contrário, elas veem Deus em operação direta e absoluta em todos os fenômenos naturais. Não há
lei inerente à ‘Natureza’, mas, sim, uma lei sobre a ‘Natureza’. Destarte, o termo ‘Natureza’ é um
coletivo para uma realidade não coletivizada, e com isto queremos dizer que a ‘Natureza’ não possui
unidade em e de si mesma que faça dela uma ordem unificada. Afirmar a existência da unidade na e
como ‘Natureza’ é advogar um princípio hierárquico no tocante ao universo e suas esferas”.
[2] Dizer que o khaos (termo grego que significa cesura, fenda ou abismo) é eterno implica na
atribuição de um atributo da divindade. Não gratuitamente, pois, que o poeta grego Hesíodo, em sua
Teogonia, coloca Khaos como o deus primordial. Rousas John Rushdoony, em O ateísmo da Igreja
primitiva, trata das consequências políticas e mesmo estéticas dessa visão: se o mundo procede do caos,
pensa o revolucionário e o subversivo, se a ordem provém da total desordem, basta, a fim de criar uma
nova ordem, instaurar novamente o caos. Portanto, o homem, sendo incapaz de criar a partir do nada,
adota, ainda que inconscientemente, os pressupostos helênicos para que possa agir como um demiurgo
na instauração de uma nova realidade. De semelhante modo, ainda segundo o pensamento de
Rushdoony, o conceito de criação artística como expressão do inconsciente (em especial no movimento
surrealista com a técnica da escrita automática) compreende que o id humano, na sua massa indistinta e
informe de pulsões e recalques, é uma espécie de caos primordial, prenhe de potencialidades, que
anseia pela forma do deus-artista para vir à tona na criação artística.
[3] Editora Monergismo, versão Kindle.
[4] Embora se julgue herdeiro do pensamento e apologética de Calvino, Van Til adota precisamente a
posição antípoda do reformador de Genebra. Em suas Institutas, capítulo 11, 15 é-nos dito: “Se
considerarmos que a única fonte da verdade seja o Espírito de Deus, nem repeliremos nem
desprezaremos a própria verdade, onde quer que apareça, a não ser que queiramos injuriar o Espírito de
Deus. Com efeito, os dons do Espírito não são vilipendiados sem o desprezo e o opróbrio do Espírito. O
que, então? Negamos que brilhasse a verdade dos antigos legisladores, que com tanta equidade
revelaram a ordem civil e a disciplina? Dizemos que estivessem cegos os filósofos na elegante
contemplação da natureza e em sua descrição artística? Dizemos que tenha faltado discernimento aos
que, pela constituição da arte da discordância, ensinaram-nos a falar com razão? Dizemos que fossem
insensatos os que, construindo a medicina, dedicaram a nós seu trabalho? O que dizer de toda a
matemática? Não a reputaríamos delírios de dementes? Pelo contrário, certamente não sem enorme
admiração, poderíamos ler os escritos antigos sobre todas essas coisas. Ora, admiramos porque fomos
impelidos a reconhecer o quão são notáveis. Além disso, declaramos que seja louvável ou notável algo
que não reconheçamos ser proveniente de Deus? Envergonhe-nos tamanha ingratidão, na qual não
incorreram os poetas pagãos, que confessaram ter sido descobertas dos deuses tanto a filosofia como as
leis e todas as boas artes. Portanto, como é patente que esses homens, a quem a Escritura chama
ψυχικουϖ, sempre foram argutos e perspicazes na investigação das coisas inferiores, aprendamos por
tais exemplos quantos bens o Senhor deixou para a natureza humana depois que foi espoliada do
verdadeiro bem”.
[5] Alguns romanistas tomam o argumento cosmológico, não como logicamente demonstrativo, mas
como um método de direcionar a atenção para certas características de seres finitos a partir das quais a
existência de Deus pode ser vista sem um processo discursivo. Cf. E. L. Mascall, Words and Images, p.
84. Julgo, porém, que esse não é o tomismo padrão.
[6] Atualidade, no sentido aristotélico, provém da supracitada divisão entre potência e ato, entre aquilo
que se encontra no campo inerente de possibilidades de um ente e o ato, isto é, a concretização de uma
dessas potencialidades, respectivamente. Há inerentemente ao gato, por exemplo, a potência de saltar; o
salto, em si, é o ato, a atualização dessa potência. [N. do R.]
[7] O exemplo no original é “Quando se diz que playboys levam vidas rápidas (fast), enquanto ascetas
jejuam (fast)”, impossível de ser vertido para o português. [N. do T.]
[8] Para uma análise cuidadosa do pensamento de Brunner, veja o excelente volume, Brunner’s
Concept of Revelation, de Paul King Jewett.

Você também pode gostar