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Psicologia & Sociedade; 19 (1): 61-68; jan/abr.

2007

A SAÚDE E OS PROCESSOS DE TRABALHO NO CAPITALISMO:


REFLEXÕES NA INTERFACE DA PSICODINÂMICA DO TRABALHO
E DA SOCIOLOGIA DO TRABALHO
Álvaro Roberto Crespo Merlo
Naira Lima Lapis
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil

RESUMO: A organização dos processos de trabalho nos quais estão inseridos os trabalhadores produz graves conse-
qüências sobre a saúde. Essas têm origem, principalmente, na separação entre concepção e execução, introduzidas pelos
modelos de gestão taylorista e fordista. As mudanças promovidas pela implementação do modelo de gestão japonês
passaram a demandar um trabalhador aparentemente mais engajado ao seu trabalho, apto a realizar diversas operações
e mais escolarizado. Porém, observa-se que ao sofrimento daqueles que trabalham em tarefas que não foram atingidas
pela reestruturação produtiva, acrescenta-se o sofrimento provocado pelas transformações em curso no trabalho, exi-
gindo novos atributos ao trabalhador, atingindo a saúde física e mental.
PALAVRAS-CHAVE: Processos de trabalhos; sofrimento psíquico no trabalho; saúde mental.

HEALTH AND LABOR PROCESSES IN CAPITALISM: CONSIDERATIONS ON THE


INTERFACE BETWEEN THE PSYCHODYNAMICS AND SOCIOLOGY OF WORK
ABSTRACT: Workers are submitted to labor processes that produce serious health consequences. Mainly, these conse-
quences originate from management models that separate conception from execution, introduced by Taylorism and
Fordism. The implementation of the Japanese management model incurred changes that demanded a more educated
worker capable of accomplishing several tasks, and who is apparently more committed to his/her work. However, the
physical and mental health of workers whose activities were not affected by production restructuring is being affec-
ted by the transformations presently in course in the workplace, such as new performances and demands.
KEYWORDS: labor processes, psychic suffering in the workplace, mental health.

1. Considerações Iniciais intensivo de mão-de-obra assalariada. Ela é freqüentemente


A percepção de que o trabalho tem conseqüências associada ao trabalho pesado e insalubre na indústria têx-
sobre a saúde dos indivíduos é antiga. Pode-se encontrá- til, tendo como referência tecnológica fundamental o uso
la no clássico Tempos Modernos, de Charlie Chaplin – da máquina a vapor. Dois aspectos importantes dessa fase
sensível às degradações física e mental provocadas pela do capitalismo cabem serem referidos: a qualificação do
implementação do modelo taylorista/fordista sobre os trabalhador e as suas estratégias de resistência.
trabalhadores –, e nas pesquisas da Sociologia do Traba- Modificações substanciais aconteceram na sua quali-
lho de Friedmann e Naville (1962), que relataram as conse- ficação. O trabalhador, que, até então, detinha um signi-
qüências do trabalho na linha de montagem, na França dos ficativo conhecimento sobre o conteúdo do seu trabalho,
anos 50 do século passado, ou ainda, mais remotamente, passou, gradualmente, a ter expropriado seu saber-fazer,
nos estudos de Ramazzinni, considerado o fundador da ao mesmo tempo em que se aprofundou a divisão do traba-
Medicina do Trabalho no século XVIII. lho. Não se pode, contudo, afirmar que houve uma desquali-
O processo da gênese e da consolidação do capitalismo ficação generalizada do trabalhador. Ferreira (2002, p.
compreendeu diversos ciclos de crescimento e de crises. 69) ressalta, que “...a evolução da Primeira Revolução In-
As suas diferentes fases de desenvolvimento foram mar- dustrial se teria tornado difícil sem o perfil profissional e
cadas por importantes mudanças em termos de inovações as qualificações do operariado.”
tecnológicas, qualificação do trabalhador, modos de orga- No que tange às estratégias de resistência dos trabalha-
nização do trabalho e da produção, estratégias empresa- dores, entrelaçaram-se diferentes formas para dificultar
riais, formas de controle sobre os trabalhadores, desem- o desenvolvimento da produção, que vão desde a sabota-
penho dos sindicatos e papel do Estado. Esse conjunto de gem, como danificação das máquinas, atrasos e absenteísmo,
transformações, características de determinadas etapas até a ocorrência de greves. Essa resistência operária se ali-
históricas do capitalismo, costuma ser chamado de Revo- cerçava, dentre outros, em dois importantes pilares: por
lução Industrial. um lado, o relativo desconhecimento do empregador quanto
A Primeira Revolução Industrial ocorreu em meados ao conteúdo do trabalho, o qual era transmitido oralmente
do século XVIII, na Inglaterra, quando se iniciou o uso de geração em geração, sendo que os métodos e as técni-

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cas de trabalho não eram registrados ou documentados; eletricidade passou gradativamente a fazer parte do coti-
por outro, a complexidade da maquinaria era ainda inci- diano das cidades e a alimentar os motores das fábricas,
piente. Nesse contexto, foi possível aos trabalhadores exer- caracterizou-se pela administração científica do trabalho
cerem um relativo controle sobre o processo de trabalho e pela produção em série. Foi a época da difusão do modelo
no que concerne às pausas, aos movimentos e aos tempos taylorista/fordista de organização do trabalho, da rígida
de realização das operações. especialização das tarefas e da racionalização da produção.
Nessa primeira etapa do capitalismo, o controle exer- O taylorismo, ou a administração científica do traba-
cido sobre os trabalhadores expressava-se sob a forma lho, surgiu, nesse período, como uma nova cultura do tra-
mais autoritária possível. O despotismo fabril materiali- balho, quando o conhecimento científico se tornou rele-
zava-se em agressões físicas, ameaças, castigos, multas e vante, sobretudo para o desenvolvimento das indústrias
demissões. Tal fase caracterizou-se pela intensificação do química, elétrica e metalúrgica, correspondendo às neces-
trabalho, por longas jornadas – de 12 a 15 horas diárias –, sidades de uma etapa do capitalismo internacional, perío-
por condições de trabalho precárias e por salários avil- do de atuação monopolista do capital.
tantes. O movimento sindical estruturava-se de forma Em seus estudos, Taylor (1995) observou que boa
ainda débil, e era tímida a função do Estado enquanto parte dos problemas de baixa produtividade das fábricas
regulador das relações entre o capital e o trabalho. se deviam à enorme variação de tempo e de rendimento
Nesse cenário, onde os trabalhadores não dispunham no trabalho individual dos operários. Coexistiam, numa
de um efetivo sistema de proteção social, sucediam-se mesma empresa, diversas maneiras de executar uma idên-
inúmeros e graves acidentes de trabalho, como perda de tica atividade, e os métodos de produção eram, em geral,
dedos, esmagamento de mãos, queimaduras, lesões cau- transmitidos oralmente de trabalhador a trabalhador ou
sadas pelas ferramentas que caíam sobre os mesmos. Dife- aprendidos por intermédio da observação. Prêmios, amea-
rentes tipos de doenças profissionais acometiam os traba- ças e sanções não obtinham os resultados esperados.
lhadores e, muito freqüentemente, levavam à morte de Taylor (1995) sabia que os empregadores desconhe-
crianças, mulheres e homens: doenças pulmonares, cutâ- ciam parte significativa dos conteúdos do trabalho e do
neas, cardíacas, respiratórias e estresse físico e mental. tempo necessário para a execução de cada atividade e que,
Marx retrata, em sua obra O Capital, a desproteção à enquanto isso ocorresse, ou seja, enquanto os operários
qual estavam submetidos os trabalhadores, notadamente detivessem o conhecimento de uma parte importante do
as mulheres e as crianças, no período de apogeu da indús- processo de trabalho, não seria possível diminuir os tem-
tria têxtil, na Inglaterra. No que diz respeito ao trabalho pos ociosos e o “fazer cera”, tão desastrosos do ponto de
infantil, esse autor (1968, p. 482) descreve os riscos aos vista da produtividade. A questão implicava buscar méto-
quais as crianças estavam expostas: “As máquinas de fiar dos objetivos de execução, os quais, além de serem uni-
automáticas são talvez as mais perigosas. A maioria dos formes, deveriam ser determinados de forma externa, pres-
acidentes atinge crianças que se arrastam embaixo das má- critos pela gerência. Segundo a lógica taylorista, as ativi-
quinas para varrer o chão, enquanto elas estão em movi- dades não mais poderiam ser realizadas ao bel-prazer dos
mento.” trabalhadores.
Quanto ao trabalho das mulheres, Marx (1968), citan- A administração científica de Taylor (1995) visava ra-
do o relatório do Inspetor de Fábrica Saunders, de 1844, cionalizar a organização do trabalho, o que envolveu bus-
também referente à indústria têxtil na Inglaterra, revela a car normas, procedimentos sistemáticos e uniformes. Pela
brutal sujeição à qual elas estavam entregues, destacando, observação, pela descrição e pela medição, seria possível
dentre outros fatores, a extensão da jornada de trabalho: simplificar as operações, eliminar os movimentos desne-
cessários, lentos e ineficientes e encontrar “o modo me-
Entre as mulheres operárias, há mulheres que tra- lhor”, o movimento certo e mais rápido em todos os ofí-
balham muitas semanas seguidas, com exceção de cios. Embora a cronometragem já houvesse sido utilizada
alguns dias, de 6 da manhã até meia-noite, com
para coordenar e acelerar o trabalho, com Taylor, o estudo
menos de 2 horas para refeições, de modo que, em 5
dias na semana, só dispõem de 6 horas das 24, a fim
do tempo, associado ao estudo dos movimentos, levou à
de ir para casa, dormir e voltar (Saunders, apud Marx, busca do único e melhor método de execução como norma
1968, p. 460). a ser seguida permanentemente pela empresa.
Esses métodos e técnicas de trabalho não eram elabo-
2. Os processos de trabalho Taylorista rados pelos trabalhadores – embora fosse das sugestões
e Fordista e o adoecimento do trabalhador deles que deveriam partir as melhores idéias para apri-
2.1 O modelo Taylorista de organização do trabalho morar o processo produtivo –, visto que a preparação do
A Segunda Revolução Industrial, no final do século trabalho passou a ser atribuição de especialistas, como
XIX e início do século XX, nos EUA, período em que a engenheiros. Estava consolidando-se, no capitalismo, uma

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radical separação entre o saber e o fazer; entre a concep- No modelo taylorista, a principal fonte de agressão à
ção, o planejamento e a execução; entre o trabalho manual saúde do trabalhador é a própria organização do trabalho.
dos operários e o trabalho intelectual das gerências. Na medida em que a concepção passa a ser monopólio da
Com o estudo dos tempos e movimentos, o trabalho gerência científica, é necessário que as tarefas a serem rea-
foi decomposto em parcelas cada vez mais elementares e lizadas pelos trabalhadores sejam predefinidas nos seus
simplificadas. Cada tarefa passou a corresponder a um mínimos detalhes. Trata-se da essência mesmo dos prin-
posto de trabalho, o qual deveria ser ocupado não por cípios indicados por Taylor (1995), descrever minuciosa-
qualquer trabalhador, mas pelo homem certo. Isso signi- mente cada tarefa a ser executada, para garantir a máxima
fica que Taylor percebeu a importância de se aprimorarem produtividade. Aqui, é oportuno distinguir tarefa de ati-
as formas de recrutamento. Estas passaram a ter como obje- vidade. A primeira corresponde ao que deve ser feito
tivo principal selecionar de maneira criteriosa o trabalha- segundo definições precisas; a segunda, ao que é efetiva-
dor mais adequado para cada tarefa, para cada posto de mente realizado. Entre tarefa e atividade haverá, portanto,
trabalho, o que ficou conhecido como “o homem certo um necessário ajuste, que conduzirá a uma redefinição dos
no lugar certo.” objetivos inicialmente fixados. Esse reajuste constitui uma
Segundo Heloani (2002, p. 30): parte enigmática do trabalho, e sua resolução fica neces-
sariamente ao encargo do trabalhador, para que a produ-
A formulação ‘científica’ das práticas de seleção e ção possa fluir conforme as quantidades calculadas, com
treinamento reflete a consolidação do padrão tecnoló- a qualidade prevista e com condições mínimas de segu-
gico da Segunda Revolução Industrial. Esse padrão
rança para os indivíduos e para as instalações (Merlo, 1998).
passa a exigir formas de administração mais sofis-
ticadas, que aprofundam as exigências de adestra-
A principal crítica dirigida ao taylorismo é a de que ele im-
mento. Como conseqüência, a seleção deve ser indi- pede a conquista da identidade no trabalho, a qual ocorre,
vidualizada, e a antiga forma de recrutamento ‘em precisamente, no espaço entre trabalho prescrito e traba-
massa’ deve ser abandonada nos principais ramos lho real. A organização científica do trabalho não se li-
(industriais de ponta). mita apenas à desapropriação do saber; ela inibe também
qualquer iniciativa de organização e de adaptação ao tra-
Além do estudo das tarefas, da seleção do trabalhador
balho, pois tal adaptação exige uma atividade intelectual
mais adequado para a sua execução e do treinamento,
e cognitiva não almejada pelo taylorismo (Dejours, 1993),
configuram-se, entre os objetivos tayloristas de raciona-
apesar de, na prática, ela não desaparecer totalmente. No
lização do trabalho, os incentivos salariais com vistas à
entanto, na prática, isto não ocorre, pois o trabalho real
elevação da produtividade.
implica algum grau de aleatoriedade e imprevisão, o que
Estímulos ao desempenho individual, como salários e deve ser, obrigatoriamente, resolvido pela inteligência e
prêmios por produção, associados ao estudo de tempos e pela experiência do trabalhador (Daniellou, Laville & Tei-
movimentos, tiveram como fundamento, na óptica tay- ger, 1989). Essa possibilidade de intervir de alguma ma-
lorista, modelar a subjetividade do trabalhador, o qual neira para preencher as lacunas não previstas pelas deter-
“...assimila o ‘desejo’ de aumentar a produção e passa a minações da gerência e o reconhecimento, pelo próprio
reorientar a sua percepção para este aumento” (Heloani, trabalhador, desse tipo de contribuição individual à manu-
2002, p. 31). Acrescenta-se que o taylorismo se associa, tenção da qualidade e da produtividade são essenciais para
ainda, à criação de uma estrutura organizacional rígida, a conservação de sua saúde mental e vão de encontro ao
hierarquizada, com especialistas de controle, normas buro- prescrito no modelo taylorista.
cráticas e vigilância permanente dos supervisores.
As “marcas” do trabalho (Teiger, 1980), que aparecem
Essas considerações permitem perceber a estreita re- sob a forma de modificações de conduta no ambiente
lação entre a administração científica taylorista e a apro- fora do trabalho, de sofrimento psíquico ou mesmo de
priação do conhecimento do trabalhador. O trabalho é doenças físicas e psíquicas, têm, como uma de suas fontes,
transformado em atividade parcelada, repetitiva e sem a rigidez do taylorismo, no qual a distância entre o traba-
sentido, retirando do indivíduo a sua capacidade criativa. lho prescrito e o trabalho real é quase inexistente e onde
Taylor de fato exprime, com cinismo brutal, o fim da não está prevista a iniciativa por parte do trabalhador.
sociedade americana; desenvolver no trabalhador, A fragmentação da tarefa, tal qual instaurada pelo tay-
no máximo grau, atitudes maquinais e automáticas, lorismo, exige respostas fortemente personalizadas, que
despedaçar o velho nexo psicofísico do trabalho direcionam, prioritariamente, para dois sofrimentos pro-
profissional qualificado, que exigia uma certa parti-
vocados pelo trabalho: o medo e a monotonia.
cipação ativa da inteligência, da fantasia, da inicia-
tiva do trabalhador e reduzir as operações produti- No que concerne à monotonia, a intensificação do
vas ao seu único aspecto físico maquinal (Gramsci, ritmo de trabalho, a extrema parcelização das tarefas, a
1978, p. 328). rotina burocrática, o permanente controle, os movimentos

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repetitivos, determinados pela esteira rolante, tornam o houve uma expressiva diminuição no tempo de produção,
trabalho um pesado fardo. Quanto ao medo vivenciado aumento da quantidade produzida e redução no preço do
pelo trabalhador (Dejours, 1993), aponta distintas dimen- famoso Modelo Ford T. Isso representou muito mais do
sões. Aquele relacionado ao desgaste do funcionamento que meras inovações restritas ao universo fabril.
mental e do equilíbrio psicoafetivo, o qual pode originar- O fordismo consolidou um novo modelo de desen-
se na desestruturação das relações entre os colegas, mani- volvimento, caracterizado pela produção em massa e pelo
festando-se por meio da discriminação, da suspeição ou, consumo de massa, o que colocava as necessidades de
ainda, de relações de violência e de agressividade, opondo ampliar mercados e de estabelecer um novo patamar de
trabalhadores entre si e com a hierarquia. Existe também rendimentos para aos trabalhadores. Como forma de esti-
o medo específico relativo à desorganização do funcio- mular a produção, Ford propôs a jornada de oito horas a
namento mental, devido à auto-repressão exercida sobre US$ 5, quase o dobro do salário médio de então. Segundo
o aparelho psíquico e pelo esforço empregado para se Harvey (1992, p. 121), no entanto, especial e inovador
manterem comportamentos condicionados. Há, ainda, o em Ford foi:
medo referente à deterioração do corpo físico, vinculado
diretamente às más condições de trabalho. ...seu reconhecimento explícito de que a produção
de massa significava consumo de massa, um novo
Sem negar a importância dos cerceamentos psíquicos sistema de reprodução da força de trabalho, uma
ligados ao trabalho na geração do sofrimento, Dejours (1993) nova política de controle e gerência do trabalho,
chama atenção para o fato de que é principalmente a falta uma nova estética e uma nova psicologia, em suma,
de possibilidades para se mudarem, ou mesmo aliviarem, um novo tipo de sociedade democrática, racionali-
esses cerceamentos a origem dos problemas de saúde. zada, modernista e populista.

2.2 Apontamentos a Respeito do Modelo Fordista Em sua análise sobre a expansão do fordismo nos EUA,
de Organização do Trabalho Gramsci (1978) salienta que novos métodos de trabalho
A partir de 1910, a organização científica do trabalho são inseparáveis de um novo modo de viver. Assim, ques-
expandiu-se, e a difusão e a consolidação do taylorismo tões relacionadas à sexualidade, à moralidade e ao con-
deram-se pela sua associação com os princípios, com os sumismo estavam vinculadas ao surgimento de um novo
métodos e com a tecnologia utilizados pelo também norte- tipo de trabalhador, de um novo padrão de produção e de
americano Henry Ford.1 Se, com Taylor (1995), já havia consumo, enfim, de um novo tipo de sociedade. Esse autor
um controle dos tempos de trabalho de cada operário, a destaca que aquele que não tinha uma vida regrada era
conexão entre as diferentes tarefas ainda não tinha sido visto, por Ford, como um mau trabalhador, da mesma
efetivada. Ford criou, então, a esteira rolante, cujas peças forma que a exaltação passional, na visão fordista, não
desfilavam diante dos trabalhadores colocados, lado a lado, estaria de acordo com os movimentos cronometrados do
na linha de montagem, unindo tarefas individuais suces- mais perfeito automatismo.
sivas, fixando uma cadência regular de trabalho e redu- Beyon, ao descrever a fábrica de automóveis de River
zindo o transporte entre as operações. Rouge, de Ford, nos anos 30 e 40 do século XX, cita o
Com o fordismo, a divisão do trabalho e a parcelização livro de Keith Sward, onde é retratado o sofrimento físico
e psíquico ao qual estavam entregues os trabalhadores,
das tarefas foram intensificadas. A busca da diminuição
submetidos a intenso ritmo de trablaho, severa disciplina
dos tempos ociosos estendeu-se à integração entre os postos
e rígido controle no interior e fora da fábrica:
de trabalho, à medida que o tempo de transferência das
peças passou a ser dado não exclusivamente pelas ordens Conversar ou confraternizar com colegas de traba-
hierárquicas, mas principalmente por meio de dispositivos lho na hora do almoço era tabu nos velhos tempos,
mecânicos, encadeando as tarefas continuamente. É como época que durou vinte anos ou mais. Era então nor-
se as ordens das chefias e o controle direto aperfeiçoados mal, durante o intervalo do meio dia, ver um empre-
gado da Ford agachado no chão, carrancudo e reser-
por Taylor (1995), com a imposição de tempos e de movi-
vado, mastigando sua comida no mais completo iso-
mentos de execução, fossem incorporados às instalações. lamento (Sward apud Beyon, 1995, p. 54).
Os trabalhadores ficaram mais submetidos ao ritmo auto-
mático, à cadência das máquinas, à rotina, executando, No que concerne à proibição de falar, cantarolar, asso-
várias vezes, um mesmo movimento em uma linha de mon- biar e sorrir no trabalho, medida adotada para não atrasar
tagem. a linha de produção, os trabalhadores desenvolveram dife-
Com a fragmentação das operações distribuídas por rentes habilidades – para driblar os vigilantes e se comu-
diversos postos de trabalho, com a linha de montagem nicar entre eles – que ficaram conhecidas como a “fordi-
acoplada à esteira rolante, o que evitava o deslocamento zação da face”:
dos trabalhadores e garantia um fluxo contínuo das peças Um mecânico muito inteligente nesse departamento
e de partes destas, em 1914, nas usinas Ford, de Detroit, (ferramenteiros e estampadores) inventou um tipo

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todo próprio de ‘linguagem da Ford’: aprendeu a lístico. Quanto aos concorrentes nesse ramo da economia,
falar com o ventríloquo. Depois de passar dez anos ou se adaptavam, ou desapareciam, e o modelo estendeu-
trabalhando na Ford, esse homem transformou-se se a ponto de condicionar a maioria das empresas a im-
em objeto de ridículo para a esposa e os amigos, plementá-lo. Salienta-se, contudo, que, quando sua aplica-
pois o hábito de falar pelo lado da boca sem mover ção se generalizou, a competição se acirrou, e os recursos
os lábios acabou por torna-se ingovernável; ele
destinados a certas melhorias nas condições de trabalho
passou a falar dessa maneira inconscientemente, em
casa ou em conversas informais com pessoas fora do
passaram a ser reduzidos. A busca por diminuição nos
ambiente de trabalho (Sward apud Beynon, 1995, custos de produção levou vários países da Europa Ociden-
p.54). tal dos anos 60, por exemplo, a introduzir trabalhadores
imigrantes, para pressionar os salários, deteriorando as con-
O modelo fordista está estreitamente associado tanto dições de trabalho (Gounet, 1999).
ao modo norte-americano de trabalhar e viver, aos au-
O modelo taylorista/fordista, com suas particularida-
mentos salariais para estimular o consumo e, de certa for-
des, prevaleceu como modo de organizar o trabalho e a
ma, convencer o trabalhador a submeter-se ao ritmo ace- produção nos países capitalistas desenvolvidos até meados
lerado de trabalho, deixando o prazer para a vida no pós- dos anos 70. Nessa época, a “era de ouro” do capitalismo,
trabalho, quanto a um novo tipo de Estado. com crescimento econômico e relativa redistribuição de
A produção em série atingia seu ápice ligada, inevita- renda, estava chegando ao fim. O modelo de produção
velmente, ao triunfo da sociedade de consumo e à melhoria em massa exigia crescimento estável em mercados de
do nível de vida norte-americano de 1920 a 1929. O mo- consumo constantes.
delo fordista foi recebido, no mundo, como o american Os países capitalistas avançados vivenciaram então
way of life no final da Segunda Guerra Mundial, fundado um período de crise, que se manifestou em diferentes ins-
no hedonismo – na busca da felicidade por meio do au- tâncias. O movimento estudantil passou a criticar os valo-
mento do consumo como uma meta a ser alcançada. res e o modo de vida prevalecentes no sistema capitalista.
No que diz respeito à difusão do fordismo – preser- Acirraram-se as lutas dos trabalhadores diante do trabalho
vadas as especificidades de cada país, como a sua história, parcelado, repetitivo, especializado, com rígida disciplina
os sistemas político, social, cultural e o nível de desen- e severo controle. A esse contexto agregaram-se os cho-
volvimento econômico – sua propagação diversificada ques do petróleo, o término da convertibilidade do dólar
expandiu-se pela Europa Ocidental. No pós Segunda em ouro e a flutuação das moedas. As conseqüências ex-
Guerra Mundial, consolidou-se o intervencionismo esta- pressaram-se na inflação ascendente e na diminuição dos
tal, apoiado nas políticas keynesianas, especialmente nos investimentos na produção. Lipietz (1991) denominou
países europeus, sob a égide da social-democracia. essa crise como de lucratividade. Começou a desfazer-se
O Estado de Bem-Estar Social assumiu, então, um con- o compromisso fordista entre Estado, empregador e tra-
junto de atribuições. A produção em massa necessitava, balhador.
para ser lucrativa, de uma demanda estável, com políticas 3. Notas sobre o Toyotismo e sua relação
dirigidas a investimentos públicos vitais para o cresci- com a saúde do trabalhador
mento da produção e do consumo e para garantir o pleno A Terceira Revolução Tecnológica em curso, iniciada
emprego. Além disso, buscava-se fornecer um forte com- nos anos 70 do século passado, tem como modelo de orga-
plemento ao salário do trabalhador/consumidor, com um nização do trabalho a experiência japonesa conhecida por
amplo programa de políticas públicas, como educação, toyotismo. Foi agilizada pelos avanços da microeletrônica
saúde, habitação, seguro-desemprego, seguridade social. e vem apresentando formas de organizar o trabalho dis-
Afinal, o sistema de previdência social permitia aos assa- tintas do modelo anterior, fundadas na diversificação de
lariados continuarem como consumidores mesmo quando operações e no envolvimento do trabalhador com os obje-
desempregados, doentes ou aposentados. tivos da empresa.
As políticas de proteção social do Welfare State serviam Essa nova fase do capitalismo foi marcada por mu-
em muito para acalmar o movimento dos trabalhadores, danças profundas. Difundiu-se uma nova base técnica, a
intensificado, por uma lado, pela quebra de autonomia e microeletrônica – desenvolvendo a informática, a auto-
iniciativa, própria do modelo taylorista/fordista, e, por mação, a robótica e a telemática –; os mercados e a produ-
outro, desde a Revolução Russa, fortemente influenciado ção internacionalizaram-se, comprometendo a regulação
pelas idéias socialistas. fordista.
Com o Plano Marshall pela recuperação da Europa Oci- Para enfrentar a crise, reformularam-se as estratégias
dental, com aporte do capital norte-americano, no pós empresariais. As empresas passaram a buscar a superação
Segunda Guerra Mundial, o fordismo tornou-se referência da rigidez do modelo fordista, a procurar novas linhas de
para o setor industrial, principalmente no ramo automobi- produtos e novos nichos de mercado, a dispersar geogra-

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ficamente a produção para regiões onde as organizações seus movimentos controlados pelo cronômetro e suas ta-
sindicais fossem menos organizadas e os salários mais refas segmentadas?
baixos, a recorrer às fusões e a medidas para acelerar o Segundo Malaguti (1996), esse novo trabalhador e as
tempo de giro do capital. “virtuosas” relações de trabalho japonesas não servem de
Passaram, assim, a ser adotadas novas formas de orga- contraponto ao modelo taylorista/fordista. Basear a crítica
nização do trabalho e da produção, inspiradas no modelo a esse modelo nesse pretenso virtuosismo é uma ilusão,
japonês. Os diferenciais trazidos pelos métodos japoneses pois o que realmente muda é que, agora, cada trabalhador
devem-se, em boa parte, às adaptações à produção fordista deve concentrar-se não mais em uma única tarefa, mas
no pós Segunda Guerra Mundial. À época, no Japão, a num conjunto de operações diferentes e encadeadas não-
demanda mostrava-se reduzida, diversificada e dirigida, linearmente:
no caso dos automóveis, a veículos menores, quando com-
...os movimentos e os gêneros de raciocínio próprios
parados aos norte-americanos. Assim, foi preciso adequar a todas, e a cada uma delas, devem estar sempre pre-
a produção em série ao padrão de consumo do país. O sentes nas memórias corporal e intelectual do tra-
crescimento da indústria automobilística do Japão foi tam- balhador. Ao mesmo tempo, é aumentado o número,
bém impulsionado pelo governo, na medida em que foram e diminuída a extensão temporal, dos intervalos de
erguidas barreiras alfandegárias, concedidos empréstimos adaptação intertarefas, provocando uma mais nume-
subsidiados, encorajada a concentração das empresas, rosa sucessão de esforços antiinerciais. Em outras
racionalizado o ramo de autopeças e desenvolvida a malha palavras, durante toda a jornada de trabalho, o tra-
rodoviária. Nasceu, desse modo, o modelo japonês de balhador vê aumentada sua tensão nervosa, mus-
gestão conhecido como toyotismo,2 já que a Toyota foi a cular e intelectual. Em resumo, o método kanban
elevou a intensidade do trabalho a níveis somente
primeira empresa a implementá-lo.
observados na época áurea do taylorismo... (Mala-
Tendo como objetivos elevar a produtividade, reduzir guti, 1996, p. 59).
custos e promover um controle preciso da qualidade, o
toyotismo apresentou ao Ocidente técnicas, métodos e Nas células de produção, características do toyotismo,
princípios de relações humanas e de participação no inte- a polivalência e a rotatividade de operações são formas
rior da empresa diferentes dos utilizados até então. Des- de garantir a continuidade e o ritmo da produção diante
tacam-se o Just-in-Time, o Kanban, o Kayzen, os sistemas das ausências, das pausas e das dificuldades, ocorrendo
de sugestões, os círculos de controle de qualidade e os uma certa complementaridade do trabalho, em que ativi-
programas de Total Quality Control, este envolvendo for- dades de manutenção e de qualidade passam a ser incorpo-
necedores e subcontratados na luta pela qualidade. radas ao dia-a-dia. As rígidas formas de controle, típicas
do modelo taylorista/fordista, aparecem transformadas
Dessa forma, a partir dos anos 70, o toyotismo come-
em lideranças motivadoras, num ambiente em que o pró-
çou a difundir-se pelos diferentes países, e seus conceitos,
prio grupo exerce pressão sobre os indivíduos.
integrados ou isoladamente, passaram a ser aplicados,
significando uma alternativa para solucionar os problemas ...parte da disciplina externa na forma de despotismo
enfrentados pelo capitalismo ocidental. Pautado na utili- direto é substituída por uma disciplina que emana
zação de métodos capazes de manter sua eficiência sob do despotismo coletivo. Ou seja, quanto mais fortes
condições de demanda restrita e com oscilações constan- são as formas indiretas de controle sobre a força de
trabalho, menores tendem a ser as formas diretas
tes no mercado, no chamado modelo japonês de gestão, a
de controle (Cipolla, 2003, p. 88-89).
concorrência alicerçou-se na criação de novas necessida-
des, no aprimoramento da qualidade, na diversificação e Malaguti (1996) salienta que o exercício direto do con-
na personalização da oferta. trole tende, assim, a se atenuar, pois os grupos de trabalho
Mas o que interessa refletir aqui são as demandas desse criam reações psíquicas de autocontrole nos seus integran-
novo modelo – com seus diferentes matizes3 – sobre o tes, tais como: a introjeção dos valores da empresa, o estí-
trabalhador: um trabalhador mais escolarizado, com racio- mulo ao orgulho profissional, o controle “corpo a corpo”
cínio lógico, com capacidades de se relacionar com os e a emulação psicológica, a qual visa, antes de tudo, escon-
colegas e de operar equipamentos diversificados e com- der a oposição de interesses entre trabalhadores e gerência,
plexos, apto a realizar diversas operações, motivado para num clima de pseudoliberdade.
o trabalho, engajado com os objetivos da empresa, um Ao mesmo tempo em que se flexibilizam as empresas,
colaborador. Será que, enfim, o autômato taylorista seria o trabalho, os trabalhadores, a produção, os produtos, os
substituído por um trabalhador participativo e envolvido mercados e os padrões de consumo, cresce o desemprego
com seu trabalho? Será que essa nova maneira de preo- – advindo, em boa parte, da introdução de inovações tecno-
cupar-se com os recursos humanos significa repudiar o lógicas poupadoras de mão-de-obra –, e disseminam-se
esgotamento físico e psicológico do trabalhador que tem formas precárias de relações de trabalho, como os contra-

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Psicologia & Sociedade; 19 (1): 61-68; jan/abr. 2007

tos por tempo parcial, os contratos temporários e a sub- Quem quer se manter empregado acaba – pela neces-
contratação. Sennett (2001), refletindo sobre as caracte- sidade de formação permanente, a qual implica estar cons-
rísticas do “novo capitalismo” e detendo-se na intensa tantemente despendendo energias – tendo a tensão como
flexibilidade e na visão de curto prazo, emulando valores parte de seu cotidiano. Diante da ameaça da precarização
como lealdade, ajuda mútua e confiança e estimulando do trabalho e do desemprego, os trabalhadores vivenciam
outros como a ode ao individualismo e à competitividade, o medo, medo este que reforça, muitas vezes, condutas
combinados ao gradual desaparecimento de carreiras está- de obediência, de submissão, quebrando a reciprocidade
veis e de vínculos profissionais duradouros, indaga-se se e a solidariedade entre os colegas de trabalho, na medida
tais condições não estariam contribuindo para corrosão do em que o temor pessoal separa, individualiza o sofrimento
caráter, criando novas subjetividades. A esse cenário, soma- daqueles que estão na mesma condição (Dejours, 2001).
se a ascensão do ideário neoliberal, onde o mercado apa- Para Dejours, existe o sofrimento dos que exercem tarefas
rece como regulador da sociedade, em especial, da relação que não foram atingidas pela reestruturação econômica,
entre o capital e o trabalho. Ocorre igualmente a abertura isto é, taylorizadas, fordizadas. Há também o sofrimento
dos mercados nacionais como estímulo à concorrência. daqueles que têm medo de não serem capazes de manter
O Estado de Bem-Estar Social começa ser desestruturado, uma performance adequada no trabalho e de não estarem
com a privatização das empresas estatais e o enfraqueci- à altura das novas exigências: de tempo, de cadência, de
mento de suas políticas públicas. Paralelamente, estrutura- formação, de informação, de aprendizagem, de nível de
se o Estado mínimo, mas suficientemente forte para conter conhecimento, de experiência, de adaptação à cultura ou
a inflação, manter a estabilidade monetária, implementar à ideologia da empresa. Assim, às demandas anteriores,
reformas fiscais e abolir controles sobre os fluxos finan- típicas do modelo taylorista/fordista, juntam-se agora
ceiros (Anderson, 1995). novos requisitos oriundos da reestruturação promovida
pelas firmas para se manterem competitivas.
Acredita-se, também, que a considerável progressão,
no Brasil, das Lesões por Esforços Repetitivos (LER) Pelas novas tendências de organização do trabalho
ocorre em direta associação com as transformações na difundidas nas empresas, quem não quer ver seu nome na
organização do trabalho e com a introdução de novas tec- lista de demissões deve estar sempre pronto a colaborar.
nologias que demandam cadências mais rápidas (Merlo, A falência ou os avanços da concorrência são referências
obrigatórias nas reuniões de equipe, como maneira de con-
1997, 1998). Estudos têm mostrado que a incorporação
quistar uma dedicação extra, tanto individual quanto co-
dessas tecnologias – salvo exceções – não reduziram o
letiva, um esforço maior do trabalhador, intensificando o
ritmo de trabalho, mas ocasionaram a sua intensificação, o
trabalho para melhorar o desempenho e a qualidade.
que está intimamente relacionado com a expansão das LER.
Nesse contexto de tendência à precarização das rela-
4. Observações Finais ções de trabalho e de risco constante de ingressar nas
Encerrando essas reflexões acerca da interface entre a estatísticas alarmantes do desemprego, aumentam a ansie-
Psicodinâmica e a Sociologia do Trabalho, é possível dade e o medo do trabalhador, a tal ponto que os desgastes
evidenciar a estreita relação de saúde com trabalho. Tem- físico e psicológico passam, muitas vezes, a ser banaliza-
se presente que as transformações em curso no mundo do dos e encarados como se fossem parte da forma normal de
trabalho podem ter um efeito positivo sobre os trabalha- trabalhar e viver.
dores, por meio do uso adequado da tecnologia, no sen- Esse cenário apresenta-se sombrio. Porém a existên-
tido de efetivamente diminuir a carga de trabalho e redu- cia, no âmbito internacional, de grupos, classes e movi-
zir a sua jornada, sem decrescer os salários. Mas a alteração mentos sociais comprometidos com as lutas pela huma-
do quadro atual depende das relações de força entre os nização do trabalho e da sociedade pode constituir-se na
atores envolvidos, empregador e trabalhador, através de matriz de um outro padrão civilizatório.
seus respectivos sindicatos, intermediados pela participa-
ção do Estado, enquanto regulador dessa relação. Notas
Porém, nesses duros tempos sociais, com o enfraque- 1
Taylor e Ford foram contemporâneos, nasceram em 1856 e 1863,
cimento do movimento sindical, a desestruturação do respectivamente. Parte de suas experiências foram realizadas no
Estado de Bem-Estar Social e de sua rede de proteção de mesmo período histórico, pois, enquanto Taylor publicava o livro
políticas públicas, a desconstituição dos direitos sociais Princípio de Administração Científica (1911), fruto de seus es-
dos trabalhadores, a expansão de formas de trabalho pre- tudos sobre os tempos e os movimentos, Ford introduzia, em
sua fábrica de Highland Park, em 1913, a linha de montagem
cárias, a elevação das taxas de desemprego e o cresci-
movida a volante magnético. Neste artigo, o desdobramento
mento da exclusão social, a realidade apresenta-se adversa analítico dos modelos por eles implentados visa apontar algu-
para importantes segmentos de trabalhadores, afetando mas diferenças e semelhanças. Mas a difusão da principal crítica
sua saúde tanto física como mental (Lapis, 2002). dirigida ao taylorismo é a de que ele impede a conquista da iden-

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Merlo, Á.R.C.; Lápis, N.L. “A saúde e os processos de trabalho no capitalismo contemporâneo...”

tidade no trabalho, a qual ocorre, precisamente, no espaço entre Lapis, N. L. (2002). Projeto CAPRES/ICCTI n. 093/02, Transfor-
trabalho prescrito e trabalho real. A organização científica do mações do trabalho e do emprego no contexto da reestruturação
trabalho não se limita apenas à desapropriação do saber; ela econômica. In: Piccinini, V. (Org.) Caderno de debates. Porto
inibe também qualquer iniciativa de organização e de adaptação Alegre.
ao trabalho, pois tal adaptação exige uma atividade intelectual e Lipietz, A. (1991). Audácia: Uma alternativa para o século 21. São
cognitiva não almejada pelo taylorismo (Dejours, 1993), apesar Paulo, SP: Nobel.
de, na prática, ela não desaparecer totalmente. Os princípios, mé- Malaguti, M. L. (1996). A ideologia do modelo japonês de gestão.
todos e técnicas ultrapassaram seus fundadores e solidificaram- Ensaios FE, 17(1), 43-73.
se em um modelo que, hoje, alguns estudiosos denominam de Marx, K. (1968). O Capital. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.
modelo talylorista-foridsta de organização do trablaho.
2
Merlo, A. R. C. (1997). Tecnologia da informação e doenças do tra-
Chamado também de produção enxuta, produção flexível e auto- balho: Um estudo sobre o processamento de massa de dados no
mação flexível. Harvey denominou de acumulação flexível as Brasil. Saúde Revista do Nipesc, 2, 41-52.
transformações em curso no capitalismo contemporâneo.
3
Merlo, A. R. C. (1998). Discursos e sintomas sociais: Uma reflexão
Embora seja possível apontar distintas tendências, seria um equí- sobre as relações de trabalho e saúde. Educação, subjetividade
voco afirmar-se que o fordismo desapareceu. Existem, sim, va- e poder, 5(7), 84-91.
riações e caminhos diversos para as empresas, dependendo das
Merlo, A. R. C. (2000). Transformações no mundo do trabalho e
características dos países, das regiões e dos setores produtivos.
saúde. In Associação Psicanalítica de Porto Alegre. O valor sim-
Lipietz (1984) argumenta a respeito da existência de um fordismo
bólico do trabalho e o sujeito contemporâneo (pp. 271-278).
periférico, onde tarefas de execução e montagem são transferidas
Porto Alegre, RS: Artes e Ofícios.
para regiões de salários mais baixos e movimento sindical menos
organizado em relação aos dos países do centro, e os produtos Sennett, R. (2001). A corrosão do caráter: Conseqüências pessoais
da periferia fordista – onde o acesso ao consumo é amplo apenas do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro, RJ: Record.
para segmentos da classe média local mais favorecidos financei- Taylor, F. W. (1995). Princípios de administração científica. São
ramente e parcial para os operários – são exportados a baixos Paulo, SP: Atlas.
preços para aqueles países. Teiger, C. (1980). Les empreintes du travail. In Sociétè Française de
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