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A Copa (não) é para todos

Durante os Jogos Olímpicos de Inverno de 2014, em Sochi, vários


torcedores homossexuais foram agredidos nas ruas. A situação na
Copa do Mundo não mostra ter evoluído.
Por Giulia Reis
gi_0297@hotmail.com

São Petersburgo, junho de 2018. Copa do Mundo. O francês O. Davrius e seu


namorado pegavam um táxi quando foram roubados e atacados brutalmente por dois
russos. Davrius sofreu lesões permanentes na cabeça e no cérebro, além de ter sua
mandíbula quebrada. Antes mesmo da primeira partida da Copa começar, um casal gay já
era hospitalizado por causa da homofobia.
Moscou, dias depois. Copa do Mundo FIFA. Uma mulher segurava a bandeira arco-
íris na Praça Vermelha. Minutos depois, dois policiais pediram para que ela guardasse a
bandeira e mostrasse seus documentos. Em seguida, foi escoltada pela polícia para fora da
praça e impedida de permanecer no local. Esses casos são exemplos da onda de
intolerância que vem acontecendo na Rússia, principalmente depois da eleição de Putin e
preocupando fãs de futebol por todo o mundo em relação a sua própria segurança no
evento.
Dias antes do início da Copa do Mundo de 2018, sediada na Rússia, o Ministério do
Esporte e o Itamaraty lançaram um Guia Consular do Torcedor Brasileiro. Dentro das
recomendações, havia um alerta para a comunidade LGBTQI+ sobre manifestações de
afeto em público. De acordo com o documento, "não são comuns na Rússia manifestações
intensas de afeto em público. Em particular, recomenda-se à comunidade LGBT evitar
demonstrações homoafetivas em ambientes públicos, que podem ser consideradas
'propagandas de relações sexuais não tradicionais feita a menores' e enquadradas em lei
(junho de 2016) que prevê deportação". O governo do Reino Unido teve atitude parecida,
aconselhando seus residentes LGBTQI+ a não demonstrarem publicamente sua
sexualidade e não carregarem bandeiras arco-íris durante as partidas. O Departamento do
Estado americano também declarou que os fãs de futebol devem ter cuidado com a lei
contra “propaganda gay” que está vigente na Rússia.

Entendendo a lei
A lei russa anti-propaganda gay é de 2013, não de 2016 como alega o governo
brasileiro. Por trás da lei, existe a história de um país atrasado em todos os aspectos que
dizem respeito aos direitos humanos, principalmente da comunidade LGBTQI+. A Rússia
considerava a homossexualidade crime até 1993, quando houve a descriminalização.
Entretanto, o preconceito da população resistiu às mudanças legislativas. Até 1999, a
homossexualidade era considerada doença mental pelas autoridades médicas e civis
russas.
No dia 11 de junho de 2013, o Parlamento da Rússia aprovou o Artigo 6.21 do
Código de Violações Legais Administrativas que proíbem a chamada “propaganda de
relações sexuais não tradicionais” a menores e impede “ofensas aos sentimentos
religiosos”. As medidas são uma violação aos direitos humanos básicos de toda a
comunidade LGBTQI+ do país. A lei foi aprovada pela Câmara por 436 votos a favor,
nenhum voto contrário e somente uma abstenção. Haverá multa em caso de manifestações
de “relações sexuais não tradicionais”. A multa é de 4.000 a 1 milhão de rublos (de R$250 a
R$ 650 mil). A punição também vale para estrangeiros, que poderão ser obrigados a pagar
100 mil rublos (R$2.500), ficarão presos por 15 dias e serão expulsos do país se forem
considerados culpados. O texto da lei vale para todo o território nacional. Empresas e
escolas também podem ser multadas se não cumprirem a lei.
A medida tem o propósito de impedir a realização de paradas gays e manifestações
de ativistas, que tem recebido forte repressão governamental, e multar jornais que tratam do
tema. Em 2012, o governo russo aprovou outra lei que também bane eventos de orgulho
gay em Moscou pelos próximos 100 anos. O Artigo 6.21 também proíbe que seja dada a
crianças ou adolescentes menores de 16 anos (idade de consentimento na Rússia)
qualquer informação sobre “orientações sexuais não tradicionais”. De acordo com o texto da
lei, a proibição serve para que exista a "proteção das crianças de informações prejudiciais a
sua saúde e desenvolvimento". Na época em que a lei foi promulgada, uma pesquisa feita
pelo instituto Vtsiom mostrou que 88% dos russos aprovavam a proibição de “propaganda
homossexual” e 54% acreditavam que a homossexualidade devia ser punida.
Em junho de 2017, a Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) determinou que a
lei russa viola as regras de tratados europeus sobre a liberdade de expressão e discrimina
toda a comunidade LGBTQI+. O governo russo foi condenado a pagar uma multa de €49
mil (R$226 mil). O Ministério da Justiça Russo informou que irá recorrer, mas o caso
permanece parado.
A publicação da lei fez com que aumentasse o número de membros da comunidade
LGBTQI+ sendo atacados e assediados em toda a Rússia. Em um relatório da Human
Rights Watch (HRW) publicado em 2014, demonstra que das 78 vítimas entrevistadas, 22
não denunciaram os ataques para a polícia por medo de assédio direto por parte dos
policiais e por não acreditar que a polícia levaria os ataques a sério. De acordo com a HRW,
a lei de “propaganda” não protege ninguém, mas dá aos homofóbicos um motivo
conveniente pra acreditar que a vida das pessoas LGBT valem menos para o governo.
Alguns governantes russos, incluindo o presidente Putin, utilizaram explicitamente de
discurso de ódio anti-LGBT.

E a FIFA?
Meses antes dos Jogos Olímpicos de Inverno, em 2014, o presidente Putin
assegurou que não haveria discriminação contra nenhum fã LGBTQI+ durante o evento. A
mesma declaração não foi feita para a Copa do Mundo FIFA.
Em 2013, a FIFA organizou uma força-tarefa para que a Rússia fosse mais branda
em relação a lei anti-propaganda gay. As diretrizes da organização são claras, com uma
política de tolerância zero com discriminações baseadas em orientação sexual. O governo
russo não respondeu aos pedidos da FIFA. Não faltam promessas por parte da Federação.
Um conselho anti-discriminação, conhecido como FARE (Football Against Racism in
Europe) fez uma parceria com FIFA para produzir um guia aconselhando fãs sobre como
manter-se seguro durante a copa e monitorar as ações da organização contra
comportamentos discriminatórios. A FARE também tem preocupações sobre como será a
recepção russa aos fãs negros e de outras minorias étnicas.
O “Guia da Diversidade para a Rússia” (tradução livre de “Diversity Guide to Russia”)
contém avisos para a comunidade LGBT+ e pessoas de algumas raças e etnias. O guia
reforça que o comitê organizador local, comandado por Alexey Soroki, e a União Russa de
Futebol, representada por Alexey Smertin, prometeram que todos os fãs estarão seguros
durante o evento. A recomendação no guia é de que todos os fãs compareçam com
precaução, e coloca em tópicos o que se deve ou não fazer.
Na página com conselhos para os fãs LGBQT+, a FARE e a FIFA garantem que os
fãs podem usar símbolos do arco-íris em roupas e acessórios e discutir o tópico da proteção
dos direitos LGBTQI+, mas que devem estar atentos às reações negativas que podem
acontecer em volta. Andar de mãos dadas fica em uma área cinzenta, na qual o guia diz
que não é um ato criminoso a não ser que a polícia veja como uma ameaça ou uma
demonstração. Prestar atenção aos arredores e ser discreto é principal conselho dado. Fica
claro no guia de que, por segurança própria, não se pode protestar em defesa dos direitos
LGBT+, mesmo se você estiver parado, sozinho, segurando uma bandeira no meio da
praça.
A FARE e a FIFA fizeram duas “Casas da Diversidade” em Moscou e em São
Petersburgo, porém nenhuma dessas informações foi divulgada dentro da grande mídia e
não se sabe se elas realmente estão funcionando. Existe também uma linha direta no
WhatsApp, mas assim como as casas, este número não foi amplamente divulgado por
nenhuma das organizações e só consta em uma parte específica do manual e do site. A
FIFA também lançou uma plataforma para que “jornalistas e defensores dos direitos
humanos” possam submeter reclamações e relatos sobre situações ou atos de risco.
Novamente, a plataforma não foi divulgada para a grande mídia ou para os fãs, não consta
no manual e só está disponível em quatro línguas (francês, inglês, alemão e espanhol).
Além disso, de acordo com a Federação, haverá um sistema de monitoração anti-
discriminação, no qual três observadores estarão procurando por comportamento suspeito
durante todos os 64 jogos do campeonato.
Grandes organizações esportivas não deveriam escolher lugares que violam
diariamente os direitos humanos como sede de nenhum de seus eventos. Países sede,
além de ganharem dinheiro de ingressos, ganham visibilidade turística e milhares de
dólares em lavagem de dinheiro com o superfaturamento das obras. A FIFA também ganha
dinheiro com isso, com escândalo após escândalo envolvendo alegações de corrupção
dentro do sistema que escolhe os países sede e lavagens de dinheiro por todas as partes. A
FIFA, ao decidir sediar um evento na Rússia, só injetou dinheiro em um país corrupto,
governado por e para homens cis, héteros e brancos, no sentido mais literal possível dessa
frase, já que são os únicos detentores de direitos os protegendo. Em 2017 Putin sancionou
uma lei que despenaliza a violência doméstica.
A próxima copa, em 2022, será sediada no Catar. País em que ser gay ainda é
considerado ilegal e é punível com prisão de até sete anos. O ministro do esporte do país,
Salah bin Ghanem bin Nasser al-Ali comparou a questão dos direitos LGBT+ com a de
vender bebidas alcoólicas, dizendo que o país “fará o que puder sem comprometer seus
princípios e morais”.
Já o presidente da FIFA, Sepp Blatter, declarou que “(os LGBT+) somente deveriam
não fazer sexo (enquanto estivessem no Catar)”. O país também não possui idade de
consentimento, nem leis empregatícias contra a discriminação, ou qualquer tipo de lei
contra discriminação. O casamento entre pessoas do mesmo sexo é ilegal, casais do
mesmo sexo não são reconhecidos, e não podem adotar crianças de nenhum jeito. Gays e
lésbicas também não podem prestar serviço militar, pessoas trans não podem mudar seu
gênero legalmente e lésbicas não podem fazer fertilização in vitro.

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