Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Porco-poeta que me sei, na cegueira, no charco Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
À espera da Tua Fome, permita-me a pergunta, Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
Senhor de porcos e homens:
Ouviste acaso, ou te foi familiar E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Um verbo que nos baixios daqui muito se ouve Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
O verbo amar? Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Porque na cegueira, no charco Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Na trama dos vocábulos Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Na decantada lâmina enterrada Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Na minha axila de pelos e de carne Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Na esteira de palha que me envolve a alma Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Do verbo apenas entrevi o contorno breve: Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
É coisa de morrer e de matar, mas tem som de sorriso Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem
Sangra, estilhaça, devora, e por isso pagar,
De entender-lhe o cerne não me foi dada a hora. Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
É verbo? Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Ou sobrenome de um Deus prenhe de humor Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Na péripla aventura da conquista?
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
II Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida...
Como se te perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Inamovível, e te respiro inteiro Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Um arco-íris de ar em águas profundas. Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro Arre, estou farto de semideuses!
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima Onde é que há gente no mundo?
No dissoluto de toda despedida.
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas Poderão as mulheres não os terem amado,
Removente ave, assim te somo a mim: Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
De redes e de anseios inundada. E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
AFINAL, A MELHOR MANEIRA DE VIAJAR É SENTIR
Álvaro de Campos