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POSSIBILIDADES E LIMITES DA CRIATIVIDADE JUDICIAL: A


RELAÇÃO ENTRE ESTADO DE DIREITO E ARGUMENTAÇÃO JU-
RÍDICA RAZOÁVEL (E O PROBLEMA DO DESCONHECIMENTO
DOS DIREITOS HUMANOS)
Possibilities and limits of judicial creativity: the rela-
����������������������������������������������������������
tionship between State of Law and reasonable judicial debate
(and the unfamiliarity problem of Human Rights)

José Ricardo Cunha et alii*

Recebido para publicação em outubro de 2005

Resumo: O presente artigo pretende, inicialmente, delimitar o conceito de “criatividade” judicial e


discuti-lo à luz dos ideais inscritos no princípio do Estado de Direito e dos argumentos da incom-
petência técnica, da legitimidade democrática e a da imprevisibilidade. Em um segundo momento,
procurar-se-á construir uma interpretação acerca da criatividade judicial em consonância com os
conteúdos normativos do Estado de Direito e da idéia de razão pública, mas que, ao mesmo tempo,
não seja positivista, isto é, que reconheça que há direito para além das normas legais, condicionan-
do a sua validade, no entanto, ao cumprimento das exigências normativas inscritas nos ideais su-
pramencionados. Por último, com fundamento em pesquisa empírica desenvolvida junto ao TJRJ,
discutir-se-á o (des)conhecimento pelos magistrados das normativas internacionais sobre direitos
humanos e sua contribuição para a reduzida efetividade de tais direitos no âmbito da prestação ju-
risdicional, bem como para um elevado grau de “criatividade”, porém desnecessário, das decisões
judiciais sobre questões envolvendo bens jurídicos protegidos por normas de direitos humanos.
Palavras-chave: Criatividade judicial. Estado de Direito. Direitos Humanos.
Abstract: This present essay intends, firstly, to delimit the concept of judicial “creativity” and
discuss it by the conception added in the State of Law principles and the arguments of technical
incompliance, the democratic legitimacy and unexpected. In the second moment tries to build a
interpretation about the judicial creativity inside the normative matter of State of Law and the idea
of a public reason, but that, at the same time, do not be positivist, that is, recognizes that there are
rights over and above of rules of law, conditioning its value, meanwhile, to the accomplishment of
normative requirements registered in the ideas above mentioned. At last, well founded in experi-
mental research developed close to TJRJ (Superior Court of Rio de Janeiro), will discuss the know-
ledge (or not) by the judges for the international normative about human rights and the contribution
to the decreased effectiveness of such rights in the range of jurisdictional relief, as well as to a high
degree of “creativity”, even so unnecessary, of judicial decisions about questions involving judicial
property protected for rules of human rights.
Key Words: Judicial Creativity. State of Law. Human Rights.

*O presente artigo é de autoria coletiva, tendo sido escrito no âmbito das atividades do Grupo de Pesquisa que investiga e
justiciabilidade dos Direitos Humanos no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. São autores dos presentes artigo: José Ricardo
Cunha (Doutor em Direito e professor da UERJ e FGV Direito Rio); Alexandre Garrido da Silva (Mestrando em Direito Público
pela UERJ e Professor substituto na UERJ); Diego Werneck Arguelhes (Mestrando em Direito Público pela UERJ e Pesquisador
na FGV Direito Rio); Diana Neves, Tamara Vaz de Melo, Ana Claudia da Silva Frade, Andréia da Silva Frade, Bruno Gazzaneo
Belsito e Cecília Barcellos Zerbini (Graduandos em Direito pela UERJ); Priscila de Santana (Graduanda em Direito pela PUC-
Rio); Joaquim Cerqueira Neto e Ana Carolina Cerqueira Vargas (Graduandos em Direito pela UCAM.

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1. Introdução como para um elevado grau de “criativi-


dade”, porém desnecessário, das decisões
A discussão em torno da definição, judiciais sobre questões envolvendo bens
da extensão ou do grau de “criatividade” jurídicos protegidos por normas de direitos
judicial certamente constitui, ao lado da humanos.
clássica querela entre o jusnaturalismo e Neste sentido, o artigo pretende
o juspositivismo, um dos temas mais de- fundamentar, teórica e empiricamente, a
batidos no âmbito da Filosofia e da Meto- seguinte assertiva: quanto maior o desco-
dologia do Direito. Todas as perspectivas nhecimento das normas sobre direitos hu-
metodológicas e filosóficas no âmbito do manos pelos magistrados, tanto maior será
Direito – por exemplo, as diferentes mo- o grau de “criatividade” das motivações
dalidades de realismo e positivismo ju- das decisões judiciais sobre tais direitos.
rídicos, bem como as inúmeras correntes O desconhecimento conduz, neste diapa-
pós-positivistas – sem exceção, dedicaram são, à elaboração de motivações judiciais
extensas páginas contendo reflexões sobre “criativas”, porém desnecessárias, pois a
a temática. mesma decisão poderia ser mais bem fun-
O presente artigo pretende, inicial- damentada recorrendo à força imperativa e
mente, delimitar teoricamente o conceito positiva das normas internacionais de di-
de “criatividade” judicial e discuti-lo à luz reitos humanos regularmente incorporadas
dos ideais inscritos no princípio do Estado ao ordenamento jurídico pátrio.
de Direito e dos argumentos da incompe-
tência técnica, da legitimidade democrá- 2. Em torno da “criatividade judicial”
tica e a da imprevisibilidade, que dizem
respeito ao debate sobre a legitimação da 2.1. O Ponto de Partida: Conceituação e
atividade jurisdicional. Análise do Fenômeno da “Criatividade”
Em um segundo momento, procurar- segundo Mauro Cappelletti
se-á construir uma interpretação acerca da
criatividade judicial em consonância com A “criatividade” dos juízes tem sido
os conteúdos normativos do Estado de Di- objeto de polêmica entre juristas e filóso-
reito e da idéia de razão pública, mas que, fos do direito. Vasta literatura já foi pro-
ao mesmo tempo, não seja positivista. Isto duzida a respeito do papel desempenhado
é, que reconheça que há direito para além pelo magistrado no julgamento de um caso
das normas legais, condicionando a sua concreto. Para alguns, o juiz seria mero in-
validade, no entanto, ao cumprimento das térprete-aplicador do direito; para outros,
exigências normativas inscritas nos ide- participaria, lato sensu, da atividade legis-
ais supramencionados que conformam as lativa - vale dizer, da criação do direito.
nossas intuições básicas sobre o funciona- Mauro Cappelletti afirma que o problema
mento das instituições em uma sociedade da criatividade da função jurisdicional - ou
pluralista e democrática. seja, da produção do direito por obra dos
Por último, com fundamento em pes- juízes - deriva de outra discussão, referente
quisa empírica desenvolvida junto ao TJRJ, ao nexo entre processo e direito substan-
discutir-se-á o (des)conhecimento pelos cial. Quais as origens da impressionante
magistrados das normativas internacionais expansão, ao longo do século XX, do pa-
sobre direitos humanos e sua contribuição pel criativo dos juízes? Segundo o autor,
para a reduzida efetividade de tais direitos o crescimento do “direito judiciário” ou
no âmbito da prestação jurisdicional, bem “jurisprudencial” nesse período está inti-

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mamente relacionado com o aumento da contrário, o primeiro abrangeria necessa-


produção legislativa, ocorrido tanto nos riamente o segundo. Cappelleti reconhece,
países da Common Law quanto nos de porém, que o reconhecimento da inevita-
Civil Law. Assim, o engrandecimento do bilidade de algum grau de criatividade em
Judiciário representaria o necessário con- todo ato de interpretação - ou seja, de um
trapeso, num sistema democrático de che- elemento de discricionariedade e, portanto,
cks and balances, à paralela expansão dos de escolha - não deve ser confundido com
ramos políticos do Estado moderno, isto é, a afirmação de total liberdade do intérpre-
do Legislativo e do Executivo (Cappelletti, te. O juiz, embora inevitavelmente criador
1993). do direito, não estaria completamente livre
Nessa linha de raciocínio, pode-se de vínculos, devendo obedecer a limites
afirmar que inexiste qualquer antítese entre processuais e substanciais estabelecidos
a interpretação judiciária da lei e a criati- pelo sistema jurídico; a discricionariedade
vidade dos juízes. Mais do que isto, Ca- há pouco mencionada não deve ser con-
ppelletti defende a idéia de que em toda e fundida com arbitrariedade.
qualquer interpretação judiciária do direito
legislativo está ínsito certo grau de criativi- 2.2. São os Juízes Legisladores”?
dade, de modo que o cerne da questão não
se encontra na alternativa criatividade-não Os limites substanciais não podem
criatividade dos juízes. Se partirmos da constituir o elemento sine qua non da ativi-
idéia de que em toda interpretação de nor- dade jurisdicional, já que variam profunda-
ma jurídica há sempre certa dose de criati- mente de época para época e de sociedade
vidade, a verdadeira problemática está no para sociedade, e até no âmbito da mesma
grau de criatividade e nos modos, limites e época e sociedade. Como exemplos de tais
legitimidade da criatividade judicial. Nas limites, Mauro Cappelletti cita os prece-
palavras do autor: dentes judiciários, opiniões de juriscon-
“... interpretação significa penetrar os sultos, ordenanças de monarcas, decisões
pensamentos, inspirações e linguagem de de assembléias, leis de parlamentos, entre
outras pessoas com vistas a compreendê- outros. Esses elementos funcionam como
los e – no caso do juiz, não menos que no limites na medida em que o juiz tem como
do musicista, por exemplo – reproduzi-los, dever mínimo apoiar sua própria argumen-
‘aplicá-los’ e ‘realizá-los’ em novo e diver- tação no direito judiciário ou legislativo, e
so contexto, de tempo e lugar. É óbvio que não apenas em conceitos vagos. Por isso,
toda reprodução e execução varia profun- apesar de sua variabilidade ao longo do
damente, entre outras influências, segundo tempo e entre sociedades distintas, os limi-
a capacidade do intelecto e estado de alma tes substanciais não seriam completamente
do intérprete.(...) Por mais que o intérpre- privados de eficácia:
te se esforce para permanecer fiel ao seu “Criatividade jurisprudencial, mes-
‘texto’, ele será sempre, por assim dizer, mo em sua forma mais acentuada, não sig-
forçado a ser livre – porque não há texto nifica necessariamente “direito livre”, no
musical ou poético, nem tampouco legisla- sentido de direito arbitrariamente criado
tivo, que não deixe espaço para variações e pelo juiz do caso concreto. Em grau maior
nuances, para a criatividade interpretativa” ou menor, esses limites substanciais vin-
(Cappelletti, 1993: 21 e 22). culam o juiz, mesmo que nunca possam
O ato de interpretar, então, não se vinculá-lo de forma completa e absoluta”
contraporia ao ato de criar; muito pelo (Cappelletti, 1993: 26).

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Assim, os limites substanciais, diver- Nesta linha de pensamento, o ele-


samente do que Cappelletti chama de “pro- mento distintivo da atividade jurisdicional
cessuais” ou “formais”, não podem funcio- não estaria relacionado com a falta de cria-
nar como elemento distintivo da jurisdição tividade, mas sim com a sua passividade
em face da legislação ou da administração. no plano processual. Haveria, portanto,
A única diferença material entre essas duas limites processuais que determinam a na-
atividades se encontraria na freqüência ou tureza da função jurisdicional e constituem
quantidade de tais limites. O legislador se uma fonte de legitimação diversa dos po-
depara com limites substanciais usualmen- deres políticos (fazem o processo jurisdi-
te menos freqüentes e menos precisos que cional de criação do direito ser diferente do
aqueles com os quais, em regra, depara-se legislativo), quais sejam: a) a conexão da
o juiz, donde Cappelletti conclui que, do atividade decisória com as partes dos ca-
ponto de vista substancial, a criatividade sos concretos; b) a imparcialidade (o juiz
do legislador pode ser quantitativamente deve estar livre de pressões externas); c)
- mas não qualitativamente - diversa da do princípio do contraditório (oportunidade
juiz (Cappelletti: 1993: 26 e 27). Tanto o de defesa das partes, isto é, oportunidade
processo legislativo, quanto o jurisdicio- de serem ouvidas por um juiz imparcial);
d) a independência em relação às pressões
nal constituiriam processos de criação do
externas, principalmente de ordem política
direito, não havendo diferença de natureza
e e) princípio da inércia (o juiz precisa ser
entre eles, sob o prisma dos limites subs-
provocado para realizar suas atividades),
tanciais. Mas o autor destaca que a questão
ou em palavras diversas, nemo judex sine
se põe em termos totalmente diversos se
actore (Cappelletti, 1993: 76).
examinada do ponto de vista processual.
É justamente o respeito a essas ances-
trais “virtudes” – e não alguma preferência
2. 3. “Virtudes Passivas” e a Especificida- por decisões deste ou daquele teor – que
de do Papel do Juiz constitui a própria identidade funcional do
juiz. Nas palavras de Cappelletti:
Alguns autores mais radicais, como “O juiz que decidisse a controvérsia
Lord Diplock, acreditam que, em razão de sem pedido das partes, não oferecesse à
sua própria função, os tribunais estão cons- parte contrária razoável oportunidade de
trangidos a agir como legisladores. No en- defesa, ou se pronunciasse sobre o seu
tanto, outros, como o próprio Cappelletti, próprio litígio, embora vestindo a toga de
sustentam que os juízes criam sim direitos, magistrado e a si mesmo se chamando de
uma vez que têm a função de interpretar e juiz, teria na realidade deixado de sê-lo”
esclarecer o direito, mas que isto não sig- (Cappelletti, 1993: 80).
nifica que sejam legisladores, visto que há Tais características são tão próprias
diferenças entre os processos legislativo e do processo judiciário de criação do direito
jurisdicional quanto ao modo de formação que, hoje em dia, em alguns países ociden-
do direito. Para este, ambos os processos, tais, fala-se na “jurisdicionalização” dos
judiciário e legislativo, resultam em cria- processos legislativo e administrativo. Isto
ção do direito, entretanto, há diferenças porque foram adotados alguns instrumen-
quanto ao modo ou estruturas desses pro- tos e regras vinculantes aos legisladores e
cessos. Somente um juiz ruim agiria com administradores para que eles concedes-
os procedimentos típicos do legislador1 sem audiência aos grupos interessados nas
(Cappelletti, 1993: 74). matérias que por eles fossem reguladas,

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protegendo, assim, certas maiorias ou mi- de que o esforço de diferenciação entre o


norias mal representadas ou organizadas. ato de legislar e o ato de julgar é possível
Assim sendo, aquelas características e, mais do que isso, necessário.
acima mencionadas, quando trazidas para Se nenhuma dessas duas atividades
os processos legislativo e administrativo, – legislação e jurisdição – é puramente
não se apresentariam da mesma forma mecânica, não podemos fundamentar uma
como no processo jurisdicional, visto que distinção segura com base apenas no cri-
eles não precisam de “impulso” – devem tério da “criatividade”. Ao menos não le-
agir por si mesmos. Assim, a “jurisdiciona- vando em conta o conteúdo do ato criador
lização” se daria de maneira incompleta. de direito. Para retomar a argumentação de
Vale notar que existe certa relativida- Cappelletti nesse sentido, já anteriormente
de na separação funcional dos poderes, ou exposta, pode-se dizer que o que diferen-
seja, o Judiciário, em alguns poucos casos, cia o juiz do legislador é sua passividade
pratica atividades legislativas ou adminis- no plano processual, e não no plano subs-
trativas propriamente ditas. Por exemplo, tancial. Assim, legislação e jurisdição são
os tribunais, quando editam regras técnicas dois processos cujos conteúdos por vezes
do processo, com as quais vão trabalhar, parecem se sobrepor, sem que, no entanto,
realizam nada mais do que uma função suas estruturas ou procedimentos possam
legislativa; ou, quando exercem o poder ser minimamente confundidas. Segundo
de emanar “diretivas” gerais em tema de o autor, as chamadas virtudes passivas da
interpretação, vinculantes aos tribunais in- função judicial – entre as quais a inércia
feriores e emitidas sem qualquer conexão jurisdicional, o respeito ao contraditório e
com determinado caso concreto, como no a imparcialidade do julgador – a diferen-
caso das cortes supremas dos países da Eu- ciam profundamente da função legislativa.
ropa Oriental. A argumentação parece ser persu-
asiva, e relativamente próxima de nossas
3. Principais Problemas e Limites da intuições sobre os deveres inerentes ao
Criação Judicial do Direito ofício judicante: juízes atuam dentro de
trâmites processuais específicos, que sedi-
3.1. De Volta aos Juízes “Legisladores” mentam a sua posição de imparcialidade,
necessária à tomada de decisão. Mas será
Como discutimos no tópico ante- mesmo que os únicos deveres decisivos do
rior, tanto a atividade legislativa, quan- juiz são processuais? Poderíamos conside-
to a jurisdicional são em alguma medida rar completa a tese de Cappelletti acerca da
substancialmente “criativas”.2 Mas como natureza específica da função judicial sem
esse dado inevitável pode ser compatibili- uma adequada ênfase nos limites materiais
zado com nossas intuições básicas acerca às decisões dos juízes? Se o julgador ou-
de idéias como “separação de poderes” e vir as partes envolvidas, só agir mediante
“democracia”? A discussão em torno da provocação, manter uma atitude de impar-
distinção entre as diferentes funções esta- cialidade e honrar todas as virtudes pro-
tais – especialmente entre legislação e ju- cessuais, todos os problemas em torno da
risdição –, bem como das fronteiras entre “criatividade” da função judicial no plano
elas, tem sido um importante e permanente material podem ser afastados como irrele-
tópico de debate entre teóricos e operado- vantes? Como já observado, a resposta do
res do direito.3 Neste trabalho, na esteira próprio Cappelletti é negativa. Se, por um
de Mauro Cappelletti, parte-se da premissa lado, o autor reconhece e adota como pre-

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missa o caráter inevitavelmente criativo de nos e financeiros) por meio dos quais os
toda decisão judicial, por outro, identifica Poderes Legislativo e Executivo, suas co-
a questão central como sendo de níveis de missões e ministérios produzem ou solici-
criatividade, mais especificamente do es- tam a produção de pesquisa e levantamen-
tabelecimento do nível de criatividade que tos sofisticados (Cappelletti, 1993: 87).
se deve esperar dos juízes (ou até mesmo Pense-se, por exemplo, no que acon-
incentivá-los a adotar) em uma dada socie- teceria se a determinação do salário míni-
dade.4 mo em todo o território nacional ficasse a
Nesse ponto, porém, é preciso reco- cargo única e exclusivamente de um juízo
nhecer que a fixação desse grau de criati- judicial sobre qual quantia é necessária
vidade está longe de ser pacífica. Há um para cumprir o art.7º da Constituição. O
crescente movimento de crítica à divulga- impacto sobre a realidade sócio-econômica
ção da idéia de “criação judicial do direi- de cada aumento ou diminuição de centa-
to”, mesmo entre quem reconhece – como vos é impossível de ser previsto pelo juiz.
Cappelletti – que a atividade desenvolvida Em problemas sociais como esse - que Lon
pelos juízes não é mecânica, nem é imune Fuller chama de “policêntricos” - o julga-
a elementos externos (e muitas vezes con- dor tem diante de si algo como uma “teia
trários) ao direito positivo. Para os fins do de aranha”: puxar um fio em uma direção
presente trabalho, essas críticas podem ser alterará toda a dinâmica da estrutura; se o
agrupadas em três grandes categorias, que puxar com força redobrada, o resto da teia
passamos a analisar. não será duplamente tensionado, mas sim
alterado de uma forma difícil ou até mesmo
3.1.1. O Argumento da Incompetência impossível de prever (Fuller, 1958: 395).
Técnica Cappelletti procura relativizar a for-
ça desse argumento por meio da constata-
Independentemente da qualidade de ção de que os poderes eleitos também já
sua formação jurídica, os juízes em geral demonstram altos níveis de “incompetên-
não têm capacidade de desenvolver por cia institucional”.5 No próprio caso do sa-
conta própria as investigações que a “cria- lário-mínimo, acima exposto, não é difícil
ção” da melhor norma para o caso con- perceber que, no Brasil, nem mesmo o Po-
creto pode demandar. Quando estiverem der Executivo ou o Poder Legislativo têm
em jogo problemas sociais, econômicos e boas condições de tomar uma decisão bem
políticos de alta complexidade – o que é fundamentada e adequada sobre a fixação
particularmente agravado em um contex- desse valor.
to de jurisdição de massa, no qual a mes- Contudo, os críticos da “criação
ma decisão tenderá a ser reproduzida para judicial do direito” podem apresentar a
inúmeros titulares de idênticos direitos –, seguinte versão mais sofisticada do ar-
o conhecimento da doutrina e da jurispru- gumento da incompetência: não se trata
dência é largamente insuficiente para o apenas de qual poder ou órgão está mais
bom exercício da função jurisdicional. Isto qualificado tecnicamente para tomar as
é especialmente válido se entendermos que decisões, mas sim de qual poder ou órgão
o juiz deve sempre construir a melhor de- está mais legitimado a tomar essa decisão
cisão possível (isto é, a mais “justa”) para específica, ainda que errada. É nesse pon-
cada caso. Além disso, os integrantes do to que entra em cena o problema da legiti-
Poder Judiciário muitas vezes não dispõem mação democrática das decisões judiciais
sequer da estrutura e dos recursos (huma- “criativas”.

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3.1.2. O Argumento da Legitimidade De- algum ideal, é justamente o da distribuição


mocrática eqüitativa de poder político, com vistas
à preservação da liberdade dos cidadãos.
O insulamento político do Judiciá- Nessa linha de raciocínio, autores como
rio tem sido apontado por muitos autores Ronald Dworkin, argumentam que a de-
como uma razão para permitir que os juí- mocracia não apenas permite, mas exige
zes – e não os legisladores – decidam ques- que os juízes se afastem das normas postas
tões polêmicas, cuja solução se encontra pelo legislativo em prol da proteção dos
muito além da mera compreensão do sig- direitos de minorias que, de outra forma,
nificado da linguagem que o legislativo teriam o seu valor político diminuído em
escolheu para veicular suas decisões. Em face da sua pouca capacidade de organiza-
um fórum estritamente político, como o da ção ou de mobilização da opinião pública
deliberação nas casas legislativas, certas (Cappelletti, 1993: 74-75). A imparciali-
minorias ou mesmo indivíduos podem não dade dos juízes e a natureza peculiar da
encontrar a devida consideração para seus função jurisdicional instauram um “fórum
interesses. Os motivos para essa dificulda- de princípio”, afirma Dworkin, onde cada
de podem variar. indivíduo terá os seus interesses e argu-
Na melhor das hipóteses, o motivo mentos analisados em seus próprios méri-
será, sobretudo a tendência do legislativo tos, independentemente da opinião social
de olhar primordialmente para a coletivi- a seu respeito (Dworkin, 2001: 38). Esse
dade, para os problemas gerais, não sendo tipo de atuação judicial tem no exercício
sua função compatível com uma análise do controle de constitucionalidade o seu
detalhada de todos os argumentos de todos momento mais nítido.
os possíveis interessados ou afetados por Em linhas gerais, o problema do défi-
cada decisão. Além disso, mesmo que a cit de legitimidade democrática do contro-
minoria tenha representantes conscientes le de constitucionalidade se explicita sob
em meio ao grupo de legisladores, como duas perspectivas distintas: por um lado,
regra geral o critério decisivo na tomada os integrantes do Judiciário, quer sejam os
de decisões nesta esfera continua sendo juizes de instâncias inferiores, quer sejam
a regra da maioria. Se a regra da maioria os integrantes dos tribunais, não são elei-
significa algo de “democrático”, é justa- tos, e por conta disso, não encontram sua
mente porque se espera dos legisladores legitimidade diretamente fincada na esco-
que sejam em alguma medida sensíveis às lha popular. Assim, ao decidirem contra
demandas populares e à pressão da opinião decisões tomadas pelos poderes eleitos,
pública. sofrem do chamado déficit contra-majo-
Na pior das hipóteses, por outro lado, ritário.7 Se a decisão de uma corte com
afirma-se que o Poder Legislativo nada se- poderes de controle de constitucionalidade
ria além de instrumento nas mãos de lob- prolatada em última instância não for pas-
bies e grupos de interesse que se organizam sível de recurso, os juízes terão nas mãos
para pressionar a atividade legiferante na a possibilidade de afastar normas criadas
direção de seus interesses específicos. Em por agentes regularmente eleitos – mas a
ambos os casos, contudo, estamos diante sua legitimidade para tanto é questionável.
de imperfeições inevitáveis da democracia Além da falta de sujeitabilidade jurídica
que justificam uma atuação mais ativa por das decisões judiciais (em última instância,
parte do juiz.6 Se por trás da democracia e não são recorríveis por meios políticos),
da técnica da separação de poderes existe um segundo fator deve ser considerado:

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geralmente, os membros de um tribunal das por órgãos eleitos, especialmente pro-


constitucional não são politicamente res- blemas políticos e morais delicados (como
ponsáveis – não podem ser destituídos por o aborto, por exemplo, ou a eutanásia),
meios políticos.8 pelo simples fato de que o erro em uma de-
Ronald Dworkin, porém, bem como cisão política pode ser alterado pela mobi-
outros autores contemporâneos, afirma lização da opinião pública e do congresso
que, cabendo a decisão final a um grupo no sentido contrário, enquanto um erro na
de indivíduos que não recebe sua autorida- decisão judicial (de um tribunal superior,
de da vontade popular direta, o resguardo por exemplo) é em geral muito mais difícil
aos direitos das minorias estaria mais bem de ser alterado e pode gerar conseqüências
assegurado. Assim, o insulamento político nefastas.10 Em questões espinhosas, sobre
dos juízes pode ser descrito como uma das as quais a sociedade está profundamente
vantagens da atuação judicial sobre certo dividida, o insulamento político dos juízes
tipo de problemas, impedindo que a pa- é um problema na medida em que traz con-
lavra final sobre os mesmos fique com o sigo a irresponsabilidade política: por não
Legislativo (Cappelletti, 1993: 89).9 Mas temerem a opinião pública, os juízes sim-
o argumento de Dworkin pode ser volta- plesmente a ignoram em casos nos quais
do contra si mesmo. Pois, em um certo deveriam levá-la em consideração, ainda
sentido, é compreensível que os poderes que sem lhe conferir peso decisivo.
democraticamente eleitos estejam profun-
damente envolvidos nas matérias subme- 3.1.3. O Argumento da Imprevisibilidade
tidas à sua apreciação. Por mais que atu-
almente seja recomendável que o Poder Independentemente do problema da
Legislativo e o Poder Executivo, antes de legitimidade do Judiciário para a atuação
tomarem uma medida qualquer, escutem o “criativa”, argumenta-se que decisões des-
maior número possível de setores e grupos viantes das fontes formais do Direito são
sociais potencialmente afetados pela medi- não apenas prejudiciais à sociedade como
da, seria inadequado afirmar, por exemplo, um todo, como também injustas.
que o legislador desrespeitou os limites de Primeiro, a injustiça de tais decisões
sua função ao aprovar uma lei no interesse estaria vinculada à sua imprevisibilidade.
de uma eventual maioria legislativa, ou de Como afirma Canotilho, só podemos con-
um lobby atuante no processo de delibe- siderar como instituinte de um “Estado de
ração (Cappelletti, 1993: 77). Em alguma Direito” um regime que forneça segurança
medida, o legislativo precisa ser parcial às pessoas, aqui entendida não no sentido
– caso contrário, a própria idéia de “repre- físico (isto é, como garantia de integridade
sentação” ficaria comprometida. pessoal), mas sim como possibilidade de
Há um aspecto do problema que planejamento. Segundo, decisões que se
Dworkin e Cappelletti não enfatizam como afastem do direito vigente são injustas por
deveriam. Parece plausível supor que tanto que, em última instância, funcionam de
o Legislativo, quanto o Judiciário são ca- forma verdadeiramente retroativa: a nor-
pazes de tomar decisões erradas – incoe- ma utilizada para decidir o caso não existia
rentes, embasadas em interpretações equi- no momento em que o conflito surgiu. As-
vocadas de fatos, injustas etc. O problema sim, pelo menos uma das partes pode estar
é que, se qualquer tomador de decisão pode sendo prejudicada pela aplicação de uma
cometer um erro, muitas vezes é preferível norma com base na qual não teria nenhu-
deixar que certas questões sejam resolvi- ma possibilidade de se planejar; pratica-se

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um ato de boa fé, imaginando ser o mesmo uma mínima previsão de como os conflitos
conforme o direito, para então descobrir no seriam decididos.
momento da sentença que, de acordo com Vale notar que esse não é apenas um
um critério extrajurídico empregado pelo problema de eficiência do sistema como
juiz, a conduta passou a não ser permitida. um todo, mas igualmente uma questão de
Em síntese, a “criatividade” do juiz justiça: uma decisão que inove completa-
entra em conflito com os valores da cer- mente no repertório de normas jurídicas
teza e da previsibilidade e, dessa forma, vigentes é, em última instância, um co-
se afigura como “iníqua”, porque “colhe a mando com eficácia retroativa, o que se
parte de surpresa” (Cappelletti, 1993: 85). afigura intolerável em um Estado de Direi-
É impossível para os cidadãos se informa- to (Neumman, 1999: 39).
rem de antemão acerca de uma “norma ju-
dicial” se ela na prática foi criada (ou com- 3.2. Júpiter e Hércules: Duas Matrizes para
pletamente reconstruída) ad hoc pelo juiz Avaliar o Problema da “Criatividade”
para resolver o caso. Por mais justa que a
aplicação dessas regras possa ser diante de A análise dos argumentos que usa
um caso concreto, o Direito precisa cum- Cappelletti para confiar na “criatividade ju-
prir uma relevante função de fornecimento dicial”, bem como a análise dos problemas
de pautas de conduta com base nas quais o apontados, deixa transparecer que este de-
cidadão tomará as decisões em seu cotidia- bate muitas vezes parece se dar a partir de
no. (Hart, 1994) concepções distintas da atividade judicial.
A generalização de decisões impre- Para esclarecer esse ponto, utilizaremos a
visíveis prejudicará o cumprimento dessa descrição que o belga François Ost faz das
função. Nas palavras de Canotilho: matrizes a partir das quais o ato de julgar
“Das regras da experiência derivou- é enfocado, cada uma com preocupações,
se um princípio geral da segurança jurídi- finalidades e compromissos distintos. Na
ca cujo conteúdo é aproximadamente este: verdade, o autor imagina um “modelo de
as pessoas – os indivíduos e as pessoas juiz” em correspondência com cada uma
coletivas – têm o direito e poder confiar das três matrizes propostas - Júpiter, Hér-
que aos seus atos ou às decisões públicas cules e Hermes (Ost, 1993). Para os fins
incidentes sobre os seus direitos, posições deste trabalho, enfocaremos apenas os
ou relações jurídicas alicerçadas em nor- dois primeiros paradigmas, na medida em
mas jurídicas vigentes e válidas ou em atos que, por serem os mais comuns (Hermes é,
jurídicos vigentes e válidos ou em atos na verdade, o modelo que Ost julga mais
jurídicos editados pelas autoridades com adequado para os desafios que o futuro co-
base nessas normas se ligam aos efeitos meça a impor à magistratura e ao próprio
jurídicos previstos e prescritos no ordena- Direito), funcionam mais adequadamente
mento jurídico” (Canotilho, 1999: 73-74). como chave explicativa para compreender
Não se pode simplesmente ignorar o papel as preocupações por trás de críticos e de-
de estabilização de expectativas que o di- fensores da criatividade judicial.
reito cumpre nas sociedades contemporâ- Em linhas gerais, o direito Jupite-
neas; mesmo que os juízes fossem dotados riano adota a forma de lei, expressão da
de sabedoria e conhecimento infinitos, o vontade do legislador. Do foco supremo
resto da população – sem essa sabedoria de juridicidade – a norma fundamental
e esse conhecimento – não teria como se do ordenamento jurídico positivo, isto é,
planejar, por não ter os meios necessários a a Constituição – emana o resto do Direi-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº6 - Jul./Dez - 2005


532 José Ricardo Cunha et alii

to, em forma de decisões particulares. O Não se limita a uma simples justaposição


modelo de Hércules, por sua vez, faz do dos conceitos e princípios estritamente de-
homem, mais concretamente o juiz, a fonte rivados de alguns axiomas iniciais. Esse
do único direito válido; ele não reconhece modelo do código envolve quatro colorá-
outro direito que não aquele criado pela e rios: (Ost, 1993: 174-175)
na decisão, que, portanto, possui uma au- Primeiro, o Monismo jurídico: por
toridade que independe da lei. A singulari- oposição à dispersão dos focos do Direi-
dade e o concreto do caso se sobrepõem à to, o material jurídico adota a forma do-
generalidade e abstração da lei. minante da lei e esta se acopla em códi-
Podemos relacionar diversos insti- gos, reforçando ainda mais a sistemática e
tutos jurídicos contemporâneos com cada a autoridade. Segundo, Monismo político
um desses modelos – a sistematização de ou soberania estatal: a codificação supõe
normas jurídicas em Códigos e a suprema- o resultado de um processo de identifica-
cia da Constituição, por exemplo, ligados ção nacional e de centralização adminis-
ao modelo jupiteriano, e os procedimentos trativa que culmina na figura do soberano.
de urgência, que refletem uma raciona- A multiplicidade de instituições, estados e
lidade do tipo “hercúleo”, voltada para a corpos intermediários do Antigo Regime e
resolução mais adequada dos problemas os múltiplos consensos setoriais são, res-
dos indivíduos que recorrem ao Judiciário. pectivamente, substituídos pelo espaço da
(Ost, 1993:169-172) vontade nacional e pelo consenso nacional
Aprofundando a análise, Ost observa (real ou imposto), cujo código traduz as
que o modelo Júpiter de juiz se constitui principais opções. Terceiro, primazia da
simbolicamente através da representação racionalidade dedutiva e linear: as solu-
de um código ou uma pirâmide. Relacio- ções particulares são deduzidas de regras
na-se ao modelo jurídico clássico, que gerais, derivadas estas de princípios mais
traduz as exigências do Estado Liberal do gerais, seguindo interferências lineares e
século XIX, isto é, o modelo do Direito hierarquizadas. Por último, a concepção
codificado, articulado de forma hierárqui- do tempo orientado em direção a um futu-
ca e piramidal. A relação com a concepção ro controlado: trata-se da crença, eminen-
kelseniana do ordenamento jurídico como temente moderna, do progresso da história,
pirâmide é aqui evidente. O movimento da isto é, da idéia de que a lei – antecipando
construção dessas cadeias hierárquicas é um estado de coisas possível e considerado
sempre linear e unidirecional: para apre- preferível - pode fazer chegar a um porvir
ciar o fundamento de validade das normas, melhor.
ascender-se-á da norma inferior à norma Segundo Ost, no Direito Jupiteriano
superior, para chegar à norma fundamental a única e legítima fonte é lei fundamental.
que habilita a autoridade suprema a criar Dela derivam todas as outras regras, cons-
Direito válido; por outro lado, para pre- truindo um sistema jurídico hierarquizado
ver a criação de uma nova norma jurídica, e ordenado, proferido de cima para baixo.
toma-se o caminho inverso. A legalidade é condição necessária e sufi-
A racionalização última deste modelo ciente para a validade da regra, sendo então
jurídico chega às Constituições modernas. suficiente que a norma tenha sido editada
Impõe-se a idéia de reunir todo o material pela autoridade competente e segundo os
jurídico num Código unitário que apresen- procedimentos adequados. Nessa linha, de-
te as qualidades de coerência, completude, rivação e fundamentação são as operações
claridade, não redundância e simplicidade. necessárias e suficientes para efetiva vali-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 6 - Jul./Dez - 2005 (Artigos)


POSSIBILIDADES E LIMITES DA CRIATIVIDADE JUDICIAL: A RELAÇÃO ENTRE... 533

dade da regra que será aplicada na decisão legalidade da regra não é mais levada em
proferida aos casos particulares; a solução consideração. O Direito se reduz ao fato,
do caso concreto e singular se encontra de- à indiscutível materialidade da decisão.
duzida de uma regra geral e abstrata. Essa exortação da criatividade judicial tem
Assim, o direito determina o que a como resultado a proliferação de decisões
regra geral ou superior prescreve, não ha- particulares e específicas; a generalidade e
vendo, portanto, qualquer possibilidade a abstração da lei deixam lugar à singula-
de o juiz se abster de sua fiel observância, ridade dos casos concretos. A própria ra-
porquanto se revela como ato de vontade cionalidade jurídica perde espaço para os
do Estado-legislador. Resta apenas segui- saberes oriundos de campos ligados à aná-
la e aplicá-la no caso concreto. lise da realidade social, como a economia,
O modelo de Hércules, por sua vez, a contabilidade, a medicina, a psicologia
expressa uma perspectiva completamente (Ost, 1993: 178).
distinta. A figura do profissional encarre- Em última instância, o próprio juiz
gado de aplicar o direito – o juiz – ganha é a única fonte válida do Direito, cabendo
o primeiro plano, como reflexo do cresci- a ele dar consistência às simples possibili-
mento das funções judiciais ligadas às exi- dades jurídicas, ao tomar decisões particu-
gências do Estado Social do século XX. Em lares. As decisões judiciais passam, então,
contraposição ao juiz jupiteriano (“homem ao coração do sistema.
de lei”), Hércules atua como um engenhei- De que forma essas duas matrizes
ro social. Tal evolução, sobretudo no que podem nos ajudar a compreender o debate
diz respeito às jurisdições constitucionais acerca da criatividade judicial? Júpiter e
habilitadas para apreciar a constituciona- Hércules são úteis como chaves explicati-
lidade das leis, conduz à relativização do vas para decifrar os compromissos básicos
mito da supremacia do legislador. que estão por trás dos críticos e dos defen-
Nessa perspectiva, o Direito não é sores da criatividade judicial. De fato, por
um simples conjunto de regras, mas um trás dos argumentos favoráveis à criação
fenômeno fático complexo, formado pelos do direito pelos juízes, encontramos uma
comportamentos das autoridades judiciais. concepção “Hércules” da decisão judicial,
Muda-se, assim, radicalmente a perspecti- comprometida basicamente com a melhor
va do Direito, agora visto simbolicamen- solução para cada caso. O valor básico é a
te sob a forma de uma pirâmide invertida eqüidade, que se torna o critério da respon-
ou de um funil - a criação do direito se dá sabilidade social do Judiciário: os juízes
através do juiz, o qual faz imperar a singu- devem tomar para si a tarefa de resolver
laridade do caso particular face às regras os problemas da sociedade, ainda que de
gerais e abstratas. Aquelas regras apenas forma pontual. Cada decisão é uma oportu-
ganham consistência quando o juiz aprecia nidade de dar soluções adequadas e justas
o fato e formula sua decisão, não passan- para problemas sociais. Para tanto, Hércu-
do as mesmas de mera justificação a pos- les procura ser contextualista.
teriori. A regra não constitui mais do que Por sua vez, os argumentos contrários
uma justificativa da decisão (na medida em à criatividade judicial podem ser recondu-
que ela não se impõe a priori), mas apenas zidos a uma concepção “jupiteriana” da ju-
uma previsão da futura decisão. É a regra risdição. Na definição do papel do Direito,
que deriva da decisão, e não o inverso. enfatiza-se a segurança, a previsibilidade,
Aqui, a efetividade é condição ne- a estabilidade; procura-se uma resposta ge-
cessária e suficiente para a validade; a ral, não contextual, para o problema da ati-

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534 José Ricardo Cunha et alii

vidade dos juízes. Por razões de segurança, mesmo modo, seguindo a forma clássica
a justiça no caso concreto é aqui afastada, da técnica de separação de poderes, se um
pois a possível decisão mais justa não seria caso foi decidido por meio da aplicação das
necessariamente generalizável. decisões tomadas em um momento anterior
pela sociedade ou por seus representantes
4. Criatividade Judicial e Estado de Di- (e mesmo que essa aplicação não seja um
reito: A Possível Conciliação ato mecânico ou puramente cognoscitivo),
então não cabe dizer que o julgador errou
Atravessando Hércules e Júpiter, po-
por ter sido “criativo” sem que possuísse
rém, encontramos um fio condutor: a idéia
legitimidade para tanto. Os juízes estão
de vinculação ao Direito (geralmente vei-
plenamente legitimados para interpretar a
culada na expressão “Estado de Direito”).
aplicar as normas jurídicas. Pelos mesmos
Essa idéia – que, apesar de antiga, vem so-
motivos, não haveria aqui que se falar em
frendo importantes reformulações nas últi-
frustração de expectativas, imprevisibili-
mas décadas (Canotilho, 1999: 63) - con-
dade e retroatividade das decisões.
sagra, em última instância, a exigência de
Criticar a “criatividade” judicial é,
que a atividade jurisdicional seja baseada
em última instância, apontar que o juiz está
no direito, identificável a partir das fontes
se desviando de sua função – a aplicação
apropriadas em uma dada sociedade, mais
do Direito. Não basta respeitar as “virtudes
do que em considerações e critérios como a
passivas” procedimentais: é necessário fun-
própria justiça ou a “eficiência econômica”,
damentar – de forma que satisfaça os cri-
ou a “felicidade da nação” etc (Cappelletti,
térios daquele auditório específico, daquela
1993: 102). Tanto o juiz “Júpiter”, quanto
comunidade – cada decisão em decisões
o juiz “Hércules”, de quem nos fala Fran-
anteriores. Se uma decisão específica foi
çois Ost, reconheceriam algum valor nesse
fundamentada no Direito, todas as possíveis
ideal, ainda que, no modelo de Hércules,
críticas e acusações normalmente ligadas ao
o direito seja visto como uma ferramenta,
rótulo de “criatividade” perdem sua força,
um instrumento para se atingir fins sociais
deixando possivelmente exposto o seu teor
relevantes.
ideológico (isto é, critica-se a decisão como
É evidente que, se o juiz embasar sua
“criativa” pelo simples fato de que não se
decisão no direito vigente [mesmo que ele
concorda com o seu conteúdo).
não se identifique única e completamente
com o texto das normas – (Guastini, 2005:
4.1. Criatividade, Argumentação Jurídica e
22 e ss)], por mais que certos grupos e in-
Justificação do Direito
teresses possam ser prejudicados com esse
resultado, o conteúdo específico dessa de-
As teorias jurídicas contemporâneas
cisão não pode ser criticado como “criati-
trabalham com três importantes distinções
vo”.
conceituais no âmbito da teoria da argu-
De fato, nenhuma das críticas acima
mentação jurídica que são fundamentais
delineadas pode prosperar se se reconhece
para o propósito de delimitação analítica
que o juiz simplesmente aplicou o direito.11
do conceito de criatividade judicial e para
Quem se preocupa com a incompetência
a sua compatibilização com a idéia de
terá todos os motivos para levantar suas
Estado de Direito: em primeiro lugar, há
objeções, já que a atividade típica para a
a relevante distinção teórica entre a pers-
qual os juízes são selecionados envol-
pectiva do observador e a do participante
ve justamente a aplicação do Direito. Do
em uma argumentação jurídica ou entre o

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 6 - Jul./Dez - 2005 (Artigos)


POSSIBILIDADES E LIMITES DA CRIATIVIDADE JUDICIAL: A RELAÇÃO ENTRE... 535

Direito percebido a partir de um ponto de muito daquele estudante estrangeiro que


vista externo ou a partir de um ponto de apenas identifica e reporta empiricamente
vista interno (external or internal point of a vigência das leis do país que visita com
view). Em segundo lugar, aquela que ex- base em suas fontes jurídicas. A postura
trema analiticamente o “contexto de des- de um observador, isto é, a perspectiva em
cobrimento” do “contexto de justificação” “terceira pessoa”, é adotada pelos estudio-
das decisões judiciais e, por último, a dis- sos do Direito filiados ao positivismo me-
tinção teórica, intimamente relacionada à todológico.
anterior, que divide as razões em explicati- Por outro lado, a perspectiva do par-
vas e justificativas. ticipante é assumida por quem efetivamen-
A análise das três distinções con- te “participa em uma argumentação acerca
ceituais supracitadas será importante para do que neste sistema jurídico está ordena-
fundamentar a assertiva de que a justifica- do, proibido e permitido ou autorizado”
ção das decisões judiciais, ao apelar para (Alexy, 2004: 31). Ao adotar tal perspec-
a idéia de razão pública, constitui uma es- tiva, eminentemente crítica, estar-se-ia
pécie de “filtro” que retém motivos ou in- assumindo a perspectiva de um juiz inte-
teresses não passíveis de publicização em ressado em expor argumentos favoráveis
sociedades pluralistas e democráticas e, ou contrários ao conteúdo de determinadas
neste sentido, representaria uma limitação normas ou decisões jurídicas. Em síntese,
à criatividade e, sobretudo, à discriciona- a perspectiva do participante, identificada
riedade judicial. com a posição do juiz, formula necessa-
riamente uma pretensão de correção, pois,
4.2. As Perspectivas do Observador e do “os juizes intentam, [inclusive] em casos
Participante difíceis, decidir com base em motivos jurí-
dicos e dar uma fundamentação jurídica ra-
Essa distinção vem sendo debati- cional, ou ao menos devem fazê-lo assim”
da com intensidade pela doutrina jurídica (Alexy, 1995: 39). Por sua vez, a pretensão
contemporânea, porém há tempos constitui de correção implica a pretensão de justifi-
um importante recurso analítico no âmbito cação ou de fundamentação de um enun-
da sociologia, sobretudo em sua vertente ciado normativo por quem o emite. No en-
fenomenológica12, e da filosofia moral de tanto, a pretensão de correção não implica
inspiração analítica (Strawson, 1992). necessariamente a comprovação ou não de
Adota a perspectiva de um observa- uma única resposta correta para um deter-
dor, que identifica e descreve o sistema ju- minado caso (Alexy, 1993: 23-35), mas tão
rídico como um fato social, o cientista do somente uma idéia regulativa, inscrita de
Direito que “não pergunta qual é a decisão modo necessário na práxis de justificação
correta em um determinado sistema jurídi- do Direito, de que tal resposta correta pode
co, mas como se decide de fato em um de- ser alcançada com os melhores argumen-
terminado sistema jurídico” (Alexy, 2004: tos. Neste sentido, conclui:
31). Pertence ao Direito, segundo a aludi- “O ponto decisivo aqui é que os res-
da perspectiva, aquilo que os tribunais e as pectivos participantes em um discurso ju-
autoridades estabelecem com fundamento rídico, se suas afirmações e fundamenta-
em normas corretamente promulgadas de ções hão de ter um pleno sentido, devem,
acordo com os critérios de validade formal independentemente de se existe ou não uma
estipulados pelo ordenamento jurídico. O única resposta correta, elevar a pretensão de
observador do Direito não se diferencia que sua resposta é a única correta. (...) As

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536 José Ricardo Cunha et alii

respostas que se encontrem, no marco des- as causas psicológicas, o contexto social


te intento, sobre a base do nível de regras e e as convicções ideológicas que motiva-
princípios, de acordo com os critérios da ar- ram o juiz a proferi-la. A “descoberta” de
gumentação jurídica racional, que incluem uma premissa ou de uma decisão pode ser
os da argumentação prática geral, também motivada por causas de diferentes ordens,
respondem então, embora não sejam as inclusive emocionais ou irracionais: por
únicas respostas corretas, às exigências da exemplo, as opções políticas do magis-
razão prática e, neste sentido, são ao menos trado, suas crenças religiosas, as posturas
relativamente corretas”. (Alexy, 1993: 22) ideológicas, seus preconceitos injustifi-
Enquanto o observador preocupa- cáveis etc. Com relação ao descobrimen-
se principalmente com a efetividade das to de uma decisão o estudioso do Direito
normas jurídicas, a perspectiva do partici- somente pode aduzir razões explicativas
pante destaca a dimensão da legitimação que explicitem a relação causal entre os
dos direitos e dos princípios ou, consoante condicionamentos empíricos de diferentes
Joseph Isensee ao relembrar Kant, “lança ordens, acima exemplificados, e a decisão
o Estado no processo diante do Tribunal efetivamente adotada pelo magistrado.
da Razão” (Isensee, 1999: 267). A pers- Nos hard cases, onde os positivistas
pectiva do participante é importante para normativistas postulam um amplo espa-
a compreensão do contexto de justificação ço de discricionariedade do intérprete, as
e do papel assumido pelas justificativas na decisões judiciais somente poderiam ser
argumentação jurídica e motivação das de- explicadas com a elucidação dos móbi-
cisões judiciais. les empíricos que condicionaram o ato de
vontade do julgador, mas não justificadas
4.3. Os Contextos de Descobrimento e de em conformidade com o Direito, ou seja,
Justificação e a Distinção entre Razões Ex- com fundamento em suas regras ou princí-
plicativas e Justificativas pios jurídicos.
O contexto de justificação, por sua
As teorias jurídicas contemporâneas vez, refere-se “ao processo ou atividade
trabalham com outras duas importantes de validar, justificar, uma teoria ou desco-
distinções no âmbito da teoria da argumen- brimento científico” (Aguiló, 1997: 72). A
tação que são relevantes para o intento de dimensão da justificação preocupa-se prin-
delimitar analiticamente o espaço de cria- cipalmente com a correção das razões adu-
tividade judicial: em primeiro lugar, a que zidas pelo juiz na fundamentação de sua
distingue o “contexto de descobrimento” decisão, isto é, apela para a aceitabilidade
do “contexto de justificação” e, em segun- racional do conteúdo da mesma. A justifi-
do lugar, a que divide as razões em ex- cação de uma decisão pressupõe alguns re-
plicativas e justificativas (Atienza, 2003: quisitos, sistematizados por Neil MacCor-
20-23; Aguiló, 1997: 71-79). A distinção mick (MacCormick, 1996), tais como: (a)
entre os contextos de descobrimento e de o requisito de universalidade, ou seja, é ne-
justificação tem sua origem na filosofia da cessário que a partir da decisão d adotada
ciência, sendo recepcionada posteriormen- seja possível extrair um enunciado norma-
te pela teoria da argumentação jurídica. tivo geral que preceitue que, em presença
O contexto de descobrimento refe- das mesmas circunstâncias relevantes (a, b
re-se ao procedimento mediante o qual se e c), deve-se sempre tomar a mesma deci-
estabelece uma determinada premissa ou são d; (b) os requisitos de coerência e de
conclusão de uma decisão, tendo em vista consistência que dizem respeito à relação

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POSSIBILIDADES E LIMITES DA CRIATIVIDADE JUDICIAL: A RELAÇÃO ENTRE... 537

lógico-sistemática de uma decisão com o de criatividade judicial com o objetivo de


ordenamento jurídico; e, por último, (c) circunscrevê-lo aos limites institucionais
o requisito de adequação aos argumentos impostos pela tarefa do intérprete de justi-
conseqüencialistas, segundo o qual o juris- ficar suas decisões em reverência ao prin-
ta, ao justificar sua decisão, deve sopesar cípio do Estado de Direito, bem como aos
também os efeitos prejudiciais ou benéfi- ideais de imparcialidade, independência e
cos por ela produzidos no mundo (Atienza, publicidade, nele inscritos.
2003: 126 e ss).
A primeira perspectiva – a que se 4.4. A Justificação como Limite à Criativi-
refere ao contexto de descobrimento – é dade Judicial
a adotada, por exemplo, no âmbito das
análises sociológica e psicológica que No decorrer do processo de tomada
investigam as causas sociais ou psíqui- de uma decisão, em muitos casos a pas-
cas que levaram o magistrado a tomar sagem do contexto de descoberta para o
uma determinada decisão jurídica. Neste contexto de justificação dá-se com muita
sentido, identificam-se com a postura do dificuldade; em outros, porém, ela é com-
observador anteriormente estudada. A se- pletamente impossível. A necessidade de
gunda perspectiva – referente ao contexto motivar ou fundamentar as decisões ju-
de justificação – é a adotada pelas disci- diciais e os atos administrativos faz com
plinas que se preocupam em estudar as que os motivos ideológicos, psicológicos,
condições necessárias para a justificação políticos ou religiosos que presidiram em-
de um argumento em um discurso jurídico piricamente a tomada de uma decisão em
e, neste sentido, podemos citar a Teoria e muitos casos não possam ser tornados pú-
a Filosofia do Direito, bem como a Teoria blicos, pelo menos sem gerar críticas se-
da Argumentação Jurídica. Esta perspecti- veras aos mesmos pela comunidade aberta
va identifica-se, por sua vez, com a postura dos intérpretes da Constituição (Häberle,
do participante interessado em expor bons 1997).
argumentos em favor ou contra uma deter- Kant esclarece-nos sobre essa rele-
minada tese ou norma jurídica. A distinção vante questão: sua fórmula transcendental
entre os contextos de descobrimento e de do direito público estatui que “são injustas
justificação é particularmente relevante todas as ações que se referem ao direito de
para a delimitação do conceito de criativi- outros homens, cujas máximas não se har-
dade judicial, pois, consoante o esclareci- monizam com a publicidade” (Kant, 2002:
mento de Manuel Atienza: 165). Toda pretensão jurídica, quando jus-
“É possível que, de fato, as deci- ta, deve possuir a possibilidade de ser tor-
sões sejam tomadas, pelo menos em parte, nada pública e isso somente ocorre quando
como eles [o autores filiados ao realismo fundada em normas ou razões que podem
americano] sugerem, isto é, que o processo encontrar uma aprovação generalizada com
mental do juiz vá da conclusão às premis- fundamento em regras ou princípios jurídi-
sas e inclusive que a decisão seja, sobre- cos, sejam expressamente positivados ou
tudo, fruto de preconceitos; mas isso não implícitos no texto constitucional. Porém,
anula a necessidade de justificar a decisão quando a motivação de uma decisão dá-se
e tampouco converte essa tarefa em algo com fundamento exclusivo em concepções
impossível” (2003: 26). particulares de bem – crenças religiosas,
Com fundamento nas distinções pre- posições políticas ou contexto sócio-cul-
cedentes, passaremos à análise do conceito tural específico – dificilmente torna-se pú-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº6 - Jul./Dez - 2005


538 José Ricardo Cunha et alii

blica ou, quando é explicitada, provoca de refletidas, as melhores interpretações que


modo inevitável a sua crítica. Neste senti- puderem fazer da Constituição, usandoseu
do, a necessidade de justificar as decisões, conhecimento daquilo que esta e os prece-
isto é, de torná-las públicas – podemos ci- dentes constitucionais requerem. Aqui, a
tar, neste diapasão, o art. 93, IX e X, da CF melhor interpretação é aquela que melhor
– constitui um “filtro” que impede motiva- se articula com o corpo pertinente daqueles
ções que não podem ser tornadas públicas, materiais constitucionais [isto é, elementos
pois violariam valores, princípios e regras constitucionais essenciais], e que se justi-
do ordenamento jurídico. Assim, o caráter fica nos termos da concepção pública de
imprescindível, sob pena de nulidade, da justiça ou de uma de suas variantes razo-
fundamentação das decisões judiciais limi- áveis. Ao fazer isso, espera-se que os juí-
ta o grau de criatividade dos magistrados, zes possam apelar, e apelem de fato, para
que devem buscar razões – fundadas em os valores políticos da concepção pública,
princípios ou regras jurídicos – para a mo- sempre que a própria Constituição invoque
tivação de suas decisões. expressamente ou implicitamente esses va-
A dificuldade de passagem de um lores, como o faz, por exemplo, numa carta
contexto para outro ocorre, sobretudo, em de direitos que garante o livre exercício da
sociedades democráticas marcadas pelo religião ou a igual proteção das leis. O pa-
fato do pluralismo. Nestas, as decisões ju- pel do tribunal aqui é parte da publicidade
diciais devem buscar a sua fundamentação da razão, e um aspecto do papel amplo ou
na concepção política de justiça represen- educativo da razão pública” (2000: 286).
tada por um consenso sobreposto (overla- Ainda segundo John Rawls, os ma-
pping consensus) aceito por cada uma das gistrados não podem em uma sociedade
diferentes doutrinas abrangentes – morais, pluralista e democrática invocar a sua
religiosas ou filosóficas – que perduram ao própria moralidade particular, posturas
longo do tempo em tais sociedades, isto é, religiosas ou ideológicas para justificar a
devem buscar o seu fundamento na idéia tomada de uma decisão judicial (Rawls,
de razão pública (Rawls, 2000: 262 e ss.). 2000: 287). Por mais que tais elementos
O conteúdo desse consenso fundamental presidam invariavelmente a “descoberta”
deve integrar o texto constitucional de uma da decisão e possam, de fato, presidir a
determinada comunidade jurídica, cuja criatividade judicial, o processo de justi-
principal característica consiste, consoan- ficação de tais decisões exige necessaria-
te Gustavo Zagrebelsky, no pluralismo de mente a observância da publicidade, da
valores e de princípios que impedem que imparcialidade e da independência dos
uma particular concepção de bem termine juízes, requisitos inscritos no princípio
por impor-se de modo unilateral a todos estrutural do Estado de Direito. Uma vez
os cidadãos (Zagrebelsky, 1995: 16-17). A afastados tais princípios fundamentais que
atividade jurisdicional encontra-se, assim, presidem a atividade jurisdicional, ter-se-
intimamente relacionada à idéia de razão ia um Estado de não-Direito, em síntese,
pública. John Rawls, ao definir a Corte um Estado arbitrário.
Constitucional como um exemplo de razão Josep Aguiló atenta para o fato de
pública, assevera: que a posição institucional do juiz em
“Dizer que a Suprema Corte é a insti- um Estado de Direito pressupõe os ide-
tuição exemplar da razão pública significa ais de independência e de imparcialidade
também que é função dos juízes procurar na fundamentação de suas decisões, pois
desenvolver e expressar, em suas opiniões “no ideal do Estado de Direito há a idéia

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POSSIBILIDADES E LIMITES DA CRIATIVIDADE JUDICIAL: A RELAÇÃO ENTRE... 539

de submissão dos poderes públicos à ra- certas decisões criticadas e/ou louvadas
zão” (Aguiló, 1997: 75). Esta afirmação como “criativas” podem ser justificadas
é incompatível com a assertiva feita por com base no direito vigente. Para tanto, é
diversos autores de matriz kelseniana de preciso abandonar a concepção reducio-
que, nos casos difíceis, a decisão judicial, nista que entende o ordenamento jurídico
enquanto manifestação também de ato centrado nos códigos e nas grandes leis.
de vontade, somente pode ser explicada Também é preciso se lembrar de que os
a partir de seus móbiles empíricos. Com tratados e convenções internacionais são
fundamento na idéia de Estado de Direito fontes de direitos, como ocorre no Direito
há o direito dos destinatários das normas Internacional dos Direitos Humanos.
jurídicas de não serem julgados a partir de Ao se trabalhar categorias fulcrais
convicções ideológicas, crenças religiosas como Estado de Direito ou Razão Pública,
ou posicionamentos políticos estranhos ao não se pode seriamente aprofundar o deba-
Direito. Nenhum desses motivos empíri- te sem que se tenha em conta a importância
cos é passível de universalização e, por- dos direitos humanos. Na sociedade atual,
tanto, aptos a conquistar de um modo ideal estes consistem no principal instrumento
o consentimento de todos os cidadãos com de defesa, garantia e promoção das liber-
fundamento em valores, princípios ou re- dades públicas e das condições materiais
gras constitucionais. essenciais para uma vida digna. Por isso,
Com fundamento na exposição pre- os Poderes Executivo e Legislativo são
cedente, podemos concluir que a compre- sempre solicitados a atuar conforme es-
ensão ordinária que temos do conceito de tes direitos. Contudo, o último guardião e
Estado de Direito e de interpretação jurí- esperança de proteção de tais direitos é o
dica enquanto partícipes de uma argumen- Poder Judiciário. De efeito, faz-se impe-
tação jurídica realmente levada a termo, rioso lutar pela efetividade de sua tutela
pressupõe uma série de idealizações ine- jurisdicional.
vitáveis (imparcialidade, independência Mas será que os juízes conhecem (e
e publicidade) sem as quais, por exem- reconhecem) os Direitos Humanos já apli-
plo, a idéia de Estado de Direito restaria cáveis no território nacional?
absolutamente sem sentido. Nesses mol-
des, a “criatividade judicial” só pode ser 5.1. Aplicação das Normas de Direitos Hu-
compreendida como inovação justificada manos pelos Juízes do Tribunal de Justiça
a partir das fontes do direito aceitas pela do Estado do Rio de Janeiro 14
sociedade.13 Uma decisão “criativa” que
se justifique com argumentos fundados no No Tribunal de Justiça do Rio de
Direito vigente não pode ser criticada por Janeiro, na comarca da capital, ao serem
questionados sobre qual seria a natureza
ser “ilegítima” ou “imprevisível” – pois o
dos direitos humanos, 7,6% dos juízes afir-
juiz não teria feito nada além do que exa-
maram serem os direitos humanos “valores
tamente se espera dele em um regime de
sem aplicabilidade efetiva”. Para outros
Estado de Direito.
34,3% constituiriam “princípios aplicados
5. Direitos Humanos: Fonte [ainda] Des- na falta de regra específica” e, para 54,3%
conhecida do Direito? configurariam “regras plenamente aplicá-
veis”. É importante ressaltar como cerca
A partir do marco teórico desenvolvi- de 7% dos juízes concebem os direitos hu-
do até aqui, apresenta-se a hipótese de que manos apenas como valores sem nenhuma

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº6 - Jul./Dez - 2005


540 José Ricardo Cunha et alii

força jurídica, mesmo após todos os esfor- gistrado em processos cujo desate depen-
ços jurídicos e políticos de afirmação de desse de normas de tal natureza. Visou-se à
tais direitos. Com entendimento relativa- averiguação do reconhecimento, por parte
mente semelhante encontram-se os 34,3% dos magistrados entrevistados, da presen-
dos juízes que acreditam que os direitos ça, nos casos sob seu exame, de normas de
humanos são princípios que possuem ca- direitos humanos, já que estas se eviden-
ráter meramente subsidiário, podendo ser ciam de múltiplas formas no ordenamento
aplicados apenas diante da ausência de jurídico brasileiro, configurando-se como
norma específica. Para estes juízes, qual- verdadeiros desdobramentos normativos
quer ponderação com norma mais especí- da tutela jurídica da dignidade.
fica, inclusive com conteúdo antagônico, Assim, interrogados sobre a atuação
levaria à não aplicação das normas de di- em processos nos quais incidissem normas
reitos humanos. Porém, a posição majori- de direitos humanos, 24% dos juízes res-
tária revelou uma concepção forte de direi- ponderam negativamente, enquanto outros
tos humanos, pois mais de 50% dos juízes 25% revelaram haver atuado em vários
concebem os direitos humanos como re- feitos com aplicabilidade de normas desta
gras plenamente aplicáveis. natureza. Por sua vez, 30% informaram ter
Uma minoria também de magistra- atuado em alguns processos em que nor-
dos acredita que o Poder Judiciário não mas de direitos humanos eram aplicáveis,
deve interferir no sentido da promoção da enquanto 22% afirmaram ter atuado em
efetivação dos direitos de segunda geração poucos casos.
(econômicos, sociais e culturais), justifi- Observa-se, então, que 52% dos ma-
cando não caber ao Judiciário a implemen- gistrados entrevistados atuaram esporadi-
tação de políticas públicas. Outros, ainda, camente no julgamento de demandas em
acreditam que a tutela destes direitos é de que eram suscitadas normas de direitos
competência dos demais poderes da Re- humanos. Assim, totalizam-se 76% que
pública ou que tal aplicação resultaria no apenas ocasionalmente atuaram em tais
fenômeno do juiz-legislador. Porém, a am- feitos ou que nestes nunca exerceram seu
pla maioria dos magistrados (79%) defen- mister. Por outro lado, paradoxalmente, a
de a aplicação complementar dos direitos maioria dos juízes entrevistados declarou
econômicos e sociais e dos direitos civis que os direitos humanos são normas plena-
e políticos. Além disso, consideram que mente aplicáveis no ordenamento jurídico
mesmo aqueles direitos que impõem uma brasileiro, entendendo que não são apli-
atuação estatal devem ser judicialmente cadas efetivamente, no entanto, por não
tutelados. Esta ampla parcela da magistra- serem imanentes aos casos judiciais que
tura entrevistada, aproximadamente 80%, lhes foram submetidos. Destaque-se, con-
portanto, delega aos direitos humanos, tudo, como é duvidosa tal inferência, pois,
pelo menos teoricamente, a condição de como é notório, grande parte das contro-
normas plenamente aplicáveis e considera vérsias submetidas à apreciação do Poder
que, mesmo aquelas que venham interferir Judiciário versa sobre conflitos cujo cerne
no orçamento estatal devem ser garantidas é exatamente situado na seara dos direitos
por meio das decisões judiciais. humanos e, muitas vezes, envolve mais
Na pesquisa empreendida, uma das precisamente os direitos fundamentais.
questões mais expressivas foi a indagação Deste modo, aventa-se a hipótese de
acerca da justiciabilidade dos direitos hu- desconhecimento dos direitos humanos,
manos, revelada através da atuação do ma- pelo que os entrevistados, em razão da

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 6 - Jul./Dez - 2005 (Artigos)


POSSIBILIDADES E LIMITES DA CRIATIVIDADE JUDICIAL: A RELAÇÃO ENTRE... 541

pouca intimidade com o conceito geral e as sam a todos os indivíduos de forma gené-
normas de direitos humanos, teriam velada rica e abstrata, como de normas de alcance
sua percepção, o que dificultaria seu reco- especial, destinadas a sujeitos específicos
nhecimento no que tange aos casos afeitos e a violações que necessitam de resposta
à matéria em menção. diferenciada. O Brasil ratificou a maior
Por outro lado, em qualquer caso parte destes instrumentos de proteção,
concreto submetido ao Poder Judiciário, tais como: a Convenção para a Elimina-
deverá o julgador levar em consideração ção de todas as Formas de Discriminação
todo o ordenamento jurídico, promovendo Racial, em 27/03/68; a Convenção para a
uma interpretação sistemática. Isto porque Eliminação de toda Forma de Discrimina-
as normas jurídicas não são os textos nem ção contra a Mulher em 01/02/84; a Con-
o conjunto deles, mas os sentidos cons- venção sobre os Direitos da Criança, em
truídos a partir da interpretação sistemá- 24/09/90; o Pacto Internacional de Direitos
tica de textos normativos (Ávila, 2005). Civis e Políticos, em 24/01/92 e o Pacto de
Conseqüentemente, em qualquer deman- Direitos Econômicos Sociais e Culturais,
da submetida ao magistrado, deve este ter em 24/01/92. No entanto, o Brasil não re-
em conta a dignidade da pessoa humana, conhece a competência de alguns de seus
verdadeiro valor fundamental do Estado órgãos de supervisão e monitoramento no
Democrático brasileiro, consignado no in- caso de apreciação de denúncias individu-
ciso III do art. 1° da Carta Constitucional ais, como o Comitê de Direitos Humanos e
de 1988. Assim, afigura-se razoável que o Comitê contra Tortura. Juntamente com
quando uma situação subjetiva existencial o Sistema de Proteção da ONU, existe ou-
estiver em questão, a norma jurídica seja tro no plano regional, que é o Sistema de
construída em função dos direitos huma- Proteção Interamericano da OEA. O Siste-
nos, sejam estes oriundos da Constituição ma de Proteção da ONU e da OEA tutelam
ou mesmo de normas internacionais, ainda os mesmos direitos, sendo a escolha do
que possam ser considerados aí diferen- instrumento mais propício de competência
tes níveis de intensidade desta vinculação da vítima. Esses sistemas se complemen-
(Sarlet, 2002: 85). Não reconhecer tal apli- tam, visando uma garantia adicional e uma
cabilidade pode estar, portanto, relaciona- maior promoção e efetivação dos direitos
do a um conhecimento precário quanto ao fundamentais. No campo dos sistemas re-
tema, ou mesmo ao seu desconhecimento. gionais de proteção, temos, além do Siste-
Vale notar que, segundo dados obti- ma Interamericano, os Sistemas Europeu e
dos na mesma pesquisa, os juízes parecem Africano.
desconhecer não apenas os direitos em si, Indagados os juízes se possuem co-
mas também a arquitetura institucional nhecimento de como funcionam os Sis-
criada para a sua proteção e promoção. temas de Proteção da ONU e da OEA,
Com o advento da Declaração Universal obtivemos os seguintes percentuais: 59%
dos Direitos Humanos (em dezembro de conhecem superficialmente como funcio-
1948) e a Declaração Americana de Di- nam os Sistemas de Proteção Internacio-
reitos e Deveres do Homem (em abril de nal; 20% não sabem como funcionam os
1948), iniciou-se o desenvolvimento dos Sistemas de Proteção. Considerando-se os
Sistemas de Proteção Internacional dos percentuais mais altos, em que o primeiro
Direitos Humanos da ONU e da OEA. O corresponde a um conhecimento superfi-
Sistema de proteção da ONU é constituído cial e o segundo a um desconhecimento
tanto de normas de alcance geral que vi- dos Sistemas, temos que 79% dos magis-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº6 - Jul./Dez - 2005


542 José Ricardo Cunha et alii

trados não estão informados sobre os Sis- vit curia que significa que o juiz sempre
temas Internacionais de Proteção dos Di- conhece o Direito abstrato. Em lingua-
reitos Humanos. gem processual aparece na expressão da
O desconhecimento dos Sistemas mihi factum, dabo tibi ius. A mensagem
Internacionais de Proteção aos Direitos simbólica transmitida por estes brocardos
Humanos se apresenta como obstáculo à é a de que o juiz sempre conhece todo o
plena efetivação dos direitos desta nature- ordenamento jurídico e por isso suas de-
za no cotidiano do Poder Judiciário. E isso cisões estão sempre amparadas por este
porque o desconhecimento de tais sistemas ordenamento. Bem, a consolidação do Es-
de proteção se mostra intimamente ligado tado de Direito já assentou que não basta a
à não aplicação das normativas relativas presunção da juridicidade da sentença pelo
aos direitos humanos. fato dela emanar da autoridade judiciária.
Perguntados se possuíam conheci- Como anteriormente visto, é exigência
mento acerca das decisões das cortes inter- deste mesmo Estado de Direito que a sen-
nacionais de proteção dos direitos huma- tença seja pública para que sua fundamen-
nos, obtivemos o seguinte percentual: 56% tação possa ser não apenas conhecida mas,
responderam que eventualmente possuem também, submetida a uma pretensão de
tais informações; 21% responderam que correção tanto por parte do segundo grau
raramente; 13% responderam que freqüen- de jurisdição como também de outros ato-
temente e 10% que nunca obtiveram infor- res sociais na qualidade de intérpretes da
mações acerca de tais decisões. Constituição aberta.
Não há dúvida de que um percentual Com efeito, a função simbólica de
de apenas 13% para os juízes que freqüen- resguardar a intocabilidade do conheci-
temente têm acesso a tais decisões é muito mento jurídico do magistrado, presente no
reduzido para uma profusão real de uma brocardo iura novit curia cedeu espaço ao
cultura dos direitos humanos. Quando debate próprio da democracia, como é de
questionados sobre o auxílio e enriqueci- se esperar em sociedades plurais e pós-
mento que essas decisões poderiam produ- convencionais onde não é a força da tra-
zir nas suas sentenças, obteve-se o seguin- dição mas, sobretudo, da argumentação no
te resultado: 50% disseram que sim; 41% âmbito do debate público que estabelece
disseram que talvez e 9% responderam que o sentido do certo e do errado, do justo e
não. Assim, poucos conhecem o conteúdo do injusto, do aceitável e do inaceitável.
Nessa esteira, os juízes atuam como mais
dessas decisões, mas a maioria acredita
um player no jogo democrático e, como os
que seria relevante este conhecimento.
demais atores, estão submetidos às regras
Acredita-se que seria importante a institu-
do jogo e à necessidade de justificar pu-
cionalização de canais de divulgação, no
blicamente suas ações, sua judicatura. É
âmbito do Tribunal de Justiça, acerca das
claro que os juízes, por outro lado, ocupam
decisões das cortes internacionais de direi-
um lugar fundamental e estratégico, pois
tos humanos, inclusive como parte de um
lhes cabe a tarefa última de guardiões do
processo que busque uma maior efetivida-
próprio Estado de Direito, não sendo outra
de e aplicabilidade de tais direitos.
a finalidade da jurisdição senão a de ga-
6. Conclusão: Iura Novit Curia? rantir direitos dos cidadãos, sejam direitos
subjetivos, coletivos ou difusos. É nesta
Um dos mais conhecidos brocardos perspectiva que devem ser reconhecidos os
ou aforismos no meio jurídico é o iura no- limites para a exposição pública do Poder

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 6 - Jul./Dez - 2005 (Artigos)


POSSIBILIDADES E LIMITES DA CRIATIVIDADE JUDICIAL: A RELAÇÃO ENTRE... 543

Judiciário e de seus integrantes. Não por- deira vocação universal), é imprescindível


que estejam acima do debate público, mas para o “empoderamento” – empowerment
porque no âmbito da jurisdição sua ação se – das decisões judiciais comprometidas
destina à garantia dos direitos morais dos com a garantia dos direitos fundamentais
indivíduos e não ao atendimento de inte- e dos direitos morais das pessoas. Tal co-
resses específicos de grupos de pressão. nhecimento atenderia, na verdade a uma
Quando, por ventura, a garantia dos direi- dupla finalidade: 1) garantir os direitos; e 2)
tos morais coincidirem com as demandas apresentar uma justificativa mais aceitável
dos grupos de pressão, então muito bem; do que aquelas que decorrem de graus mais
estaremos num daqueles momentos lumi- elevados de criatividade judicial, possibili-
nosos e gratificantes da democracia, da or- tando que o contexto da justificação se so-
dem pública e do Direito. breponha ao contexto da descoberta.
Nesse contexto, o iura novit curia Para exemplificar a tese que susten-
não resguarda um lugar simbólico, mas tamos ao longo deste artigo e concluí-lo no
uma necessidade concreta que se impõe ao terreno da empiria seguem alguns exem-
julgador para que sua decisão atenda um plos. Os exemplos foram recortados den-
dos requisitos essenciais da justificação ra- tro da temática geral do direito à moradia.
zoável que é o da coerência e consistência Como é sabido, tal direito está inscrito no
na relação lógico-sistemática com o orde- art. 6º da Constituição Federal, in verbis:
namento jurídico, ainda que comporte cer- “Art. 6o - São direitos sociais a educação, a
to grau de “criatividade”. Portanto, não se saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a se-
deve entender o iura novit curia de forma gurança, a previdência social, a proteção à
descritiva, pois de fato nenhum juiz conhe- maternidade e à infância, a assistência aos
ce sempre todo o direito positivo, mas de desamparados, na forma desta Constitui-
forma prescritiva, isto é, como uma von- ção”. Contudo não se trata de redação ori-
tade constante e perpétua de conhecer os ginal, pois este direito somente foi acres-
direitos que tem por finalidade assegurar centado em fevereiro de 2000, por meio da
ao jurisdicionado. Desse ponto de vista, Emenda Constitucional nº 26. Antes desta
é preocupante o que nos foi revelado pela data, o direito à moradia repousava no or-
pesquisa no TJ do Rio de Janeiro (primeiro denamento jurídico pátrio apenas por meio
grau da Comarca da Capital) de que 79% das normativas internacionais de direitos
dos magistrados não estão informados so- humanos. Veja-se:
bre os Sistemas Internacionais de Proteção 1) Declaração Universal Direitos
dos Direitos Humanos. Não que os direitos Humanos - Artigo 25
humanos somente possam ser assegurados Todo o homem tem direito a um pa-
pelos Sistemas ONU e OEA, mas porque drão de vida capaz de assegurar a si e a
estes Sistemas são complementares aos sua família saúde e bem estar, inclusive
mecanismos jurídicos nacionais de efeti- alimentação, vestuário, habitação, cuida-
vação dos direitos humanos, inclusive com dos médicos e os serviços sociais indis-
as normativas que lhes são constitutivas, pensáveis, e direito à segurança em caso
como os Pactos e Convenções. de desemprego, doença, invalidez, viuvez,
O conhecimento destas normas de velhice ou outros casos de perda de meios
direitos humanos, plenamente válidas e em de subsistência em circunstâncias fora de
vigor no ordenamento jurídico pátrio (como seu controle.
nas dezenas e dezenas de países que tam- 2) Pacto Internacional dos Direitos
bém a subscreveram, revelando sua verda- Econômicos, Sociais e Culturais - Artigo 11

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544 José Ricardo Cunha et alii

Os Estados Partes no presente Pacto to Internacional dos Direitos Econômicos,


reconhecem o direito de todas as pessoas a Sociais e Culturais foi formalmente incor-
um nível de vida suficiente para si e para as porado pelo Decreto Legislativo nº 226 de
suas famílias, incluindo alimentação, ves- 1991, tendo sido promulgado pelo Decreto
tuário e alojamento suficientes, bem como Presidencial nº 592 de 1992. Quanto à Co-
a um melhoramento constante das suas missão de Direitos Humanos, trata-se de
condições de existência. Os Estados Partes órgão do Sistema de Garantia de Direitos
tomarão medidas apropriadas destinadas a Humanos da ONU reconhecido pelo Bra-
assegurar a realização deste direito reco- sil, menos quanto à sua competência para
nhecendo para este efeito a importância receber petições individuais de cidadãos
essencial de uma cooperação internacional dos Estados-membros. Portanto, estamos
livremente consentida. diante de normas jurídicas válidas e em vi-
gor que já asseguravam o direito à moradia
3) Declaração e Programa de Ação de Vie- mesmo antes da Emenda Constitucional nº
na - Artigo 31 26 de 2000. Esclarecido o marco normati-
vo, vamos aos casos concretos.
A Conferência Mundial sobre Di-
reitos Humanos apela aos Estados para CASO 01: 
que não tomem medidas unilaterais con-
Classe/Origem
trárias ao direito internacional e à Carta
AI 167363 / SP
das Nações Unidas que criem obstáculos
AGRAVO DE INSTRUMENTO
às relações comerciais entre os Estados e
impeçam a plena realização dos direitos Relator(a)
humanos enunciados na Declaração Uni- Min. CELSO DE MELLO DJ
versal dos Direitos Humanos e nos instru- DATA-20-02-95 P - 03083
mentos internacionais de direitos huma- Julgamento
nos, particularmente o direito de todas as 07/02/1995
pessoas a um nível de vida adequado à sua
saúde e bem-estar, que inclui alimentação Partes
e acesso a assistência de saúde, moradia e AGTE.: INSTITUTO NACIONAL DO
serviços sociais necessários. A Conferên- SEGURO SOCIAL - INSS
cia Mundial sobre Direitos Humanos afir- AGTO.: SILVIA MARIA BARBOSA
ma que a alimentação não deve ser usada BELLEZA
como instrumento de pressão política.  
Além disso, ainda podemos citar a DESPACHO: O ato decisório que
Resolução 1993/77 da Comissão de Direi- inadmitiu o apelo extremo interposto pela
tos Humanos da ONU que proibiu despe- parte agravante foi assim motivado (fls. 55),
jos forçados por constituírem violação ao verbis: “O Instituto Nacional do Seguro So-
direito à moradia, determinando aos go- cial interpõe Recurso Extraordinário, com
vernos a imediata eliminação da prática do fundamento no artigo 102, inciso III, letra
despejo forçado.15 ‘a’, da Constituição Federal, contra acór-
Ainda que se alegue que a Declara- dão unânime desta Corte, do seguinte teor:
ção Universal dos Direitos Humanos e o ‘PROCESSO CIVIL. Executivo fiscal. Em-
Programa de Ação de Viena não foram for- bargos de terceiro. 1. O terceiro que venha
malmente incorporados ao ordenamento a sofrer constrição incidente sobre bem de
jurídico brasileiro, vale lembrar que o Pac- que seja legítimo possuidor tem o direito de

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 6 - Jul./Dez - 2005 (Artigos)


POSSIBILIDADES E LIMITES DA CRIATIVIDADE JUDICIAL: A RELAÇÃO ENTRE... 545

valer-se de embargos de terceiro, a fim de CASO 02:


defender sua posse. 2. Se o ato constritivo
AgRg no Ag 296475 / RS ; AGRAVO RE-
recai sobre bem de família, a teor do que
GIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRU-
reza a Lei n. 8.009/90, configura-se a nu-
MENTO 2000/0027112-8
lidade absoluta, reconhecível em qualquer
fase do processo, independentemente da Relator(a)
iniciativa da parte. 3. Recurso a que se dá Ministro VICENTE LEAL (1103)
provimento.’ Alega ter a decisão afrontado Órgão Julgador
ao artigo 5º, inciso XXXVI, por ferir o ato T6 - SEXTA TURMA
jurídico perfeito. As razões do recurso não
ensejam a abertura da via extraordinária, eis Data do Julgamento
que não prequestionada a alegada contrarie- 27/11/2000
dade a dispositivo constitucional. Incidente Data da Publicação/Fonte
na espécie a hipótese da Súmula n. 282 do DJ 18.12.2000 p. 283
E. Supremo Tribunal Federal.” Mesmo que REPDJ 05.02.2001 p. 151
assim não se entendesse, melhor sorte não RJTJRS vol. 205 p. 49
assistiria ao ora agravante, eis que a deci-
são ora questionada ajusta-se à orientação Ementa:
jurisprudencial desta Suprema Corte sobre PROCESSUAL CIVIL. AGRA-
o tema, verbis: “A Lei nº 8.009/90, ao tornar VO DE INSTRUMENTO. PEÇA TIDA
impenhorável o bem pertencente à entidade COMO ESSENCIAL À FORMAÇÃO
familiar, levou à invalidação de qualquer DO INSTRUMENTO. EXISTÊNCIA.
ato executório constringente do bem. Ino- LOCAÇÃO. FIANÇA. BEM DE FAMÍ-
corrência de maltrato ao direito adquirido. LIA. PENHORA. EXCLUSÃO DA lEI n.º
Precedentes da Corte. Agravo Regimental 8.245/91.
improvido”. (Ag 159812-4 (AgRg), Rel.
Min. ILMAR GALVÃO, julg. em 09.08.94). - Existindo nos autos a peça essen-
Pelas razões expostas, nego provimento ao cial à formação do instrumento é de se re-
considerar a decisão que não conheceu do
presente agravo. Publique-se. Brasília, 07
recurso.
de fevereiro de 1995.
- A nova Lei do Inquilinato restringiu
o alcance do regime de impenhorabilidade
Ministro CELSO DE MELLO
dos bens patrimoniais residenciais consa-
Relator
grado no bojo da Lei nº 8.009/90, conside-
Resultado: Improvido. rando passível de constrição judicial o bem
Veja AGRAG-159812. familiar dado em garantia por obrigação
decorrente da fiança concedida em contra-
Deve-se registrar nesse caso simples- to locatício.
mente a ausência absoluta da referência ao - Tratando-se de norma eminentemen-
direito humano à moradia. Baseia-se a de- te de caráter processual, incide de imediato,
cisão na Lei 8009/90 que trata da proteção inobstante ter sido o contrato de fiança loca-
do Bem de Família, em que pese que a Lei tícia celebrado antes de sua vigência, exce-
8245/90 tenha restringido dramaticamente tuando, por força do comando contido em
suas hipóteses de proteção. Veja-se como seu artigo 76, os processos em curso.
de modo diverso posiciona-se o Ministro - Agravo Regimental provido. Agra-
Vicente Leal do STJ: vo de Instrumento desprovido.

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546 José Ricardo Cunha et alii

 RESUMO: CABIMENTO, PE- na Carga Magna. Recurso conhecido e im-


NHORA, IMÓVEL, BEM DE FAMÍLIA, provido. Tratando-se de imóvel residencial
FIADOR, HIPÓTESE, REALIZAÇÃO, da família e dos bens que o guarnecem, há
PENHORA, MOMENTO, VIGÊNCIA, que ser indeferida a penhora incidente so-
LEI DO INQUILINATO, IRRELEVÂN- bre ele, mesmo em se tratando de fiança
CIA, CELEBRAÇÃO, CONTRATO, LO- decorrente de Contrato de Locação. Fere o
CAÇÃO, FIANÇA, ANTERIORIDADE, direito à dignidade do ser humano e de sua
LEI FEDERAL, 1991, CARACTERIZA- família, a penhora que incide sobre bens
ÇÃO, NORMA JURÍDICA, APLICA- imprescindíveis à moradia, bem como ao
ÇÃO IMEDIATA. imóvel residencial” (fl. 36).
  Além de divergência jurisprudencial,
Nessa decisão prevalece a idéia de a insurgência está fundada na violação dos
despejo forçado por meio da constrição ju- artigos 82 da Lei nº 8.245/91 e 3º, inciso
dicial a recair sobre o bem de família por VII, da Lei nº 8.009/90, cujos termos são
força de dívida decorrente de contrato de os seguintes:
fiança. Novamente não aparece, dessa vez “Art. 82. O art. 3º da Lei 8.009, de 29
em socorro de quem está prestes a perder de março de 1990, passa a vigorar acresci-
sua moradia, nenhum sinal de normas as- do do seguinte inciso VII:
seguradoras do direito humano à moradia. VII- por obrigação decorrente de
Por fim, vejamos o voto em sentido fiança concedida em contrato de locação.”
contrário dado em outro julgamento pelo “Art. 3º A impenhorabilidade é opo-
Ministro Hamilton Carvalhido em seme- nível em qualquer processo de execução
lhante caso de dívida decorrente de contra- civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou
to de fiança: de outra natureza, salvo se movido:
VII - por obrigação decorrente de
CASO 03 fiança concedida em contrato de locação.”
E os teria violado porque, como se
RECURSO ESPECIAL Nº 532.564 - SE
recolhe nas próprias razões recursais:
(2003/0035696-7)
“(...)
Relator É perfeitamente cabível o presente
Ministro HAMILTON CARVALHIDO recurso porque se enquadra nas disposi-
DECISÃO ções contidas no artigo 105 III letras a e
  c da Constituição Federal, por ter a deci-
Recurso especial interposto por Au- são recorrida negado vigência aos artigos
rília Santos da Costa, locadora em contrato 82 da Lei 8.245/91 e 3º, inciso VII da Lei
de locação, com fundamento no artigo 105, 8.009/90, que excluíram da impenhorabili-
inciso III, alíneas “a” e “c”, da Constituição dade os bens dos fiadores que como garan-
Federal, contra acórdão do Quarto Grupo tes respondem pelos débitos locatícios de
da Câmara Cível do Tribunal de Justiça do seu afiançado.
Estado de Sergipe, assim ementado: (...)
Vê-se pois que a divergência juris-
“Agravo de Instrumento. Execução. prudencial é clara e palpável e enquanto
Decisão que reconheceu a impenhorabili- a decisão recorrida não aceita a aplicação
dade dos bens móveis do fiador e indeferiu do artigo 3º inciso VII da Lei 9.009/90,
a penhora do imóvel residencial. Suprema- todas as demais decisões mandam que se
cia do Princípio Fundamental consagrado aplique as regras contidas no artigo 82 da

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POSSIBILIDADES E LIMITES DA CRIATIVIDADE JUDICIAL: A RELAÇÃO ENTRE... 547

Lei 8.245/91 que acrescentou o pré-falado (...)


inciso VII ao artigo 3º da Lei 8.009/90. Tem-se, assim, que a impenhorabili-
(...)” (fls. 44/48). dade do bem de família do fiador, ora recor-
Recurso tempestivo (fl. 42), não res- rido, foi estabelecida, in casu, na dignida-
pondido e admitido (fls.98/102). de da pessoa humana, enquanto princípio
Tudo visto e examinado, decido. consagrado na Constituição da República,
É esta, na sua essencialidade, a moti- tratando-se de razão jurídica de decidir de
vação do acórdão recorrido: natureza constitucional, exclusiva.
“(...) É esta, contudo, a letra do artigo 105,
Entendo que em casos como este, sem inciso III, da Constituição Federal:
querer estimular o não adimplemento das “Art. 105. Compete ao Superior Tri-
obrigações assumidas pelo garantidor, ser bunal de Justiça:
de bom alvitre preservar o mínimo, que é a (...)
dignidade da pessoa humana, por ser Prin- III - julgar, em recurso especial, as
cípio Fundamental consagrado pela Carta causas decididas, em única ou última ins-
Magna de 1988. tância, pelos Tribunais Regionais Federais
A dignidade humana, nos dizeres do ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito
constitucionalista Alexandre de Morais, Federal e Territórios, quando a decisão re-
in Direito Constitucional - 4ª edição - Ed. corrida:
Atlas, ‘afasta a idéia de predomínio das a) contrariar tratado ou lei federal, ou
concepções transpessoalistas de Estado de negar-lhes vigência;
Nação em detrimento da liberdade. A digni- b) julgar válida lei ou ato de governo
dade é um valor espiritual e moral inerente local contestado em face de lei federal;
à pessoa, que se manifesta singularmente na c) der a lei federal interpretação di-
autodeterminação consciente e responsável vergente da que lhe haja atribuído outro
da própria vida e que traz consigo a preten- tribunal.”
são ao respeito por parte das demais pesso- São, pois, estranhas ao âmbito de ca-
as, constituindo-se um mínimo invulnerável bimento do recurso especial as questões de
que todo estatuto jurídico deve assegurar, de natureza constitucional.
modo que, somente excepcionalmente, pos- A propósito, os seguintes preceden-
sam ser feitas limitações ao exercício dos tes de Corte Superior de Justiça:
direitos fundamentais, mas sempre sem me- “AgRg(Ag) AGRAVO REGIMEN-
nosprezar a necessária estima que merecem TAL. ADMINISTRATIVO. REEXAME
todas as pessoas enquanto seres humanos.’ DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. MA-
Como não menosprezar então o ser TÉRIA CONSTITUCIONAL. INVIABI-
humano quando lhe é retirado seu imóvel LIDADE.
residencial e os únicos e poucos bens que 1- É inviável em sede de recurso es-
o guarnecem? pecial a apreciação de matéria envolven-
(...)Portanto, embora a Lei do Inqui- do o reexame de provas, a teor da Súmula
linato exclua a impenhorabilidade do bem 07/STJ, que assim dispõe: “A pretensão de
de família quando o débito for decorrente simples reexame de prova não enseja re-
de Contrato de Locação, em casos que tais, curso especial.”
é preferível julgar com justa benevolência, 2- É vedado em sede de recurso espe-
que acatar a excessiva rigorosidade de dis- cial o exame de matéria de índole constitu-
positivo legal que massacra a dignidade da cional, cuja a competência está adstrita ao
pessoa humana. âmbito do recurso extraordinário.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº6 - Jul./Dez - 2005


548 José Ricardo Cunha et alii

3- Agravo regimental desprovido.” também aos ocupantes de cargos em comis-


(AgRgAg 242.076/GO, Relator Ministro são da irredutibilidade de vencimentos pre-
Gilson Dipp, in DJ 20/3/2000). vista no art. 7º, VI, da CF, foi apreciada sob
“PROCESSUAL CIVIL E PREVI- o aspecto exclusivamente constitucional.
DENCIÁRIO. SERVIDORES INATIVOS. Precedentes. Recurso não conheci-
CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. do.” (REsp 232.734/PE, Relator Ministro
M.P. 1415/96, ART. 7º. RESTITUIÇÃO DE Felix Fischer, in DJ 26/3/2001).
VALORES COBRADOS ANTES DO AD- Pelo exposto, com fundamento no
VENTO DA LEI 9.630/98. CONSTITU- artigo 557 do Código de Processo Civil,
CIONALIDADE. RECURSO ESPECIAL. nego seguimento ao recurso.
1. Não comporta exame, em Recurso Publique-se.
Especial, controvérsia cujo deslinde depen- Intime-se.
de da apreciação de matéria constitucional. Brasília, 13 de abril de 2005.
2. Recurso Especial não conhecido.” Ministro Hamilton Carvalhido, Relator
(REsp 282.288/SC, Relator Ministro Ed-
son Vidigal, in DJ 18/12/2000). Apesar do desfecho processual dado
“PROCESSUAL CIVIL E ADMI- ao caso, o que chama a atenção é a constru-
NISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO ção criativa do Ministro a partir do princípio
ATIVO. QUINTOS INCORPORADOS. constitucional da dignidade humana. Em
REDUÇÃO. AFRONTA AOS PRINCÍ- que pese o meritório esforço do relator em
PIOS DO DIREITO ADQUIRIDO E DA demonstrar a supremacia do da dignidade
IRREDUTIBILIDADE DE VENCIMEN- humana sobre o contrato de fiança firmado
TOS. MATÉRIA CONSTITUCIONAL. entre as partes, não há como se olvidar que
RECURSO ESPECIAL. DISSÍDIO JU- muito mais forte estaria o contexto da jus-
RISPRUDENCIAL NÃO DEMONSTRA- tificação se houvesse invocação às normas
DO. NÃO CONHECIMENTO. jurídicas específicas que tratam do direito
1. Não se presta o Recurso Especial à moradia. Com isso, poder-se-ia pacificar
à reforma de Acórdão baseado exclusiva- com muito mais agilidade e eloqüência tan-
mente em fundamentos constitucionais. to o debate jurídico como social.
Questão que deve ser apreciada pelo STF,
no Recurso Extraordinário já interposto.
2. A teor do Regimento Interno do REFERÊNCIAS
STJ, art. 255, §2º, para a configuração do AGUILÓ, Josep. Independencia e imparcia-
dissídio é imprescindível a demonstração lidad de los jueces y argumentación jurídica.
das circunstâncias que identifiquem ou as- Isonomía, nº 6, abril 1997.
semelhem os casos confrontados. ALEXY, Robert. Derechos, razonamiento juri-
3. Recurso Especial não conhecido.” dico y discurso racional. In: ______. Derecho y
(REsp 229.650/DF, Relator Ministro Ed- Razón Práctica. Traducción de Wistano Oroz-
son Vidigal, in DJ 9/10/2000). co. México: Distribuciones Fontamara, 1993.
“PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ALEXY, Robert. El concepto y la validez del
derecho. Traducción de Jorge M. Seña. 2ª edi-
ESPECIAL. INADMISSIBILIDADE. MA-
ción. Barcelona: Editorial Gedisa, 2004.
TÉRIA CONSTITUCIONAL. SERVIDOR
ALEXY, Robert. Interpretación jurídica y dis-
PÚBLICO. CARGO EM COMISSÃO. IR- curso racional. In: ______. Teoría del discurso
REDUTIBILIDADE DE VENCIMENTOS. y derechos humanos. Traducción y introduc-
Não se conhece de recurso especial ción de Luis Villar Borda. Bogotá – Colombia:
se a matéria abordada, acerca da aplicação Universidad Externado de Colombia, 1995.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 6 - Jul./Dez - 2005 (Artigos)


POSSIBILIDADES E LIMITES DA CRIATIVIDADE JUDICIAL: A RELAÇÃO ENTRE... 549

ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito: te- RAWLS, John. O liberalismo político. Tradu-
orias da argumentação jurídica. Tradução de ção de Dinah de Abreu Azevedo. 2ª edição. São
Maria Cristina Guimarães Cupertino. 3ª edição. Paulo: Ed. Ática, 2000.
São Paulo: Landy Editora, 2003. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: Da humana e direitos fundamentais na Constitui-
definição à aplicação de princípios jurídicos. ção Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do
São Paulo: Malheiros, 2005. Advogado Editora, 2002.
BICKEL, Alexander. The Least Dangerous SCHUTZ, Alfred. El mundo social y la teoría
Branch. The Supreme Court at the Bar of Poli- de la acción social. In: ______. Estudios sobre
tics. New Haven: Yale University Press, 1986. teoría social. Buenos Aires: Amorrortu Edito-
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado res, 1974.
de Direito. Lisboa: Gradiva, 1999. STRAWSON, Peter F. Libertad y resentimien-
CAPPELLETTI, Mauro. Juizes Legisladores?, to. Traducción de Laura Lecuona. México: Uni-
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993. versidad Nacional Autônoma de México, 1992.
DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princí- SUNSTEIN, Cass. Must Formalism Be Defen-
pio. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ded Empirically? University of Chicago John
FISS, Owen. Um Novo Processo Civil: estudos M. Olin Law & Economics Working Paper,
norte-americanos sobre jurisdição, constitui- Chicago, n.70, 1999a.
ção e sociedade. �����������������������������
São Paulo: Revista dos Tribu- SUNSTEIN, Cass. One Case at a Time: Judi-
nais, 2004. cial minimalism on the Supreme Court (Cam-
FULLER, Lon L. The Forms and Limits of bridge (MA): Harvard University Press, 1999.
Adjudication, in Harvard Law Review v. 92, (especialmente o capítulo III: Decisions and
1958. Mistakes).
GUASTINI, Riccardo. Das Fontes às Normas, ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil:
São Paulo: Quartier Latin, 2005. ley, derechos y justicia. Traducción de Marina
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucio- Gascón. Valladoilid: Editorial Trotta, 1995.
nal: a sociedade aberta dos intérpretes da Cons-
tituição. Contribuição para a interpretação plu-
ralista e procedimental da Constituição. Porto NOTAS
Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1997.
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito.
1
“O bom juiz pode bem ser criativo, dinâmico e
Trad. Armindo Ribeiro Mendes.  2a ed. Lisboa: “ativista” e como tal manifestar-se; no entanto,
Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. apenas o juiz ruim agiria com as formas e as
ISENSEE, Josef . Die alte Frage nach der Re- modalidades do legislador, pois, a meu enten-
chtfertigung des Staats. Juristen Zeitung, 1999, der, se assim agisse deixaria simplesmente de
p. 267 apud TORRES, Ricardo Lobo. A legiti- ser juiz” (Cappelletti, 1993: 80).
mação dos direitos humanos e os princípios da
2
Roberto Guastini elenca nada menos do que
ponderação e da razoabilidade. In: TORRES, quatro significados diferentes para a assertiva
Ricardo Lobo (Org.). Legitimação dos Direi- de que os juízes “criam direito”. Para os fins
tos Humanos. Rio de Janeiro: Editora Renovar, deste tópico, basta enfatizar a idéia de que os
2002. juízes “criam direito”, pois a norma individual
KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. In: ______ a ser aplicada no caso é resultado da interpreta-
_. À Paz Perpétua e outros opúsculos. Tradução ção de disposições pré-existentes – um trabalho
de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2002. de “tradução” que dificilmente pode ser encara-
MACCORMICK, Neil. Raisonnement juridi- do como mecânico (2005: 221-222).
que et théorie du droit. Traduit de l’anglais par 3
Mesmo autores que negam qualquer distinção
Jérôme Gagey. Paris: Presses Universitaires de qualitativa forte entre “aplicação” e “criação”
France, 1996. do direito, como Hans Kelsen, acabam adotan-
NEUMANN, Franz. Estado Democrático e Es- do alguma espécie de critério para diferenciar
tado Autoritário. Rio de Janeiro: Zahar, 1969. essas funções. No caso da teoria pura do Direi-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº6 - Jul./Dez - 2005


550 José Ricardo Cunha et alii

to, a distinção afirmada é tão somente de grau: povo. Mas é por demais evidente que nenhuma
a atividade do juiz que põe (cria) a norma indi- democracia proporciona a igualdade genuína
vidual, a partir da moldura da norma geral posta de poder político. (...) O poder econômico dos
pelo legislador, é análoga à do legislador que grandes negócios garante poder político especial
põe normas gerais dentro da moldura constitu- a quem os gere. Grupos de interesse, como sin-
cional posta pelo Poder Constituinte. (cf Kel- dicatos e organizações profissionais, elegem fun-
sen, A Interpretação, in Teoria Pura do Direito. cionários que também têm poder especial. (...)
São Paulo: Martins Fontes, 1998). Concepções Essas imperfeições no caráter igualitário da de-
que nivelam ou identificam completamente mocracia são bem conhecidas e, talvez, parcial-
a atividade do legislador e a do juiz, se é que mente irremediáveis” (Uma Questão de Princí-
existem, parecem estar fora da área de atuação pio. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 31).
da teoria do direito, podendo ser excluídas da 7
A expressão tornou-se célebre com a obra de
presente análise. Alexander Bickel: The Least Dangerous Bran-
4
Ou, contrario sensu, o grau de “formalismo” a ch. The Supreme Court at the Bar of Politics
ser esperado dos juízes, já que posições mais ra- (New Haven: Yale University Press, 1986),
dicais sobre o papel das normas positivadas na originalmente publicada em 1962.
decisão judicial dificilmente são encontráveis 8
Para relativizar esse problema, afirma-se que,
na realidade. Nas palavras de Cass Sunstein: “It em relação às instâncias superiores, a legiti-
is hard to find anyone who believes that canons mação decorreria do fato da escolha de seus
of construction have no legitimate place in in- integrantes ser submetida ao crivo de agentes
terpretation,, or who thinks that literal language políticos. Dessa forma, haveria uma espécie de
should always be followed, no matter how legitimação indireta, como no caso dos Minis-
absurd and palpably unintended the outcome. tros do Supremo Tribunal, que, sendo escolhi-
No antiformalist thinks that judges interpreting dos pelo Presidente da República e submetidos
statutes should engage in ad hoc balancing of ao crivo do Senado, estariam indiretamente
all relevant considerations. The real division sendo escolhidos pela própria sociedade. Se-
is along a continuum. One pole is represented gundo esse argumento, esta seria uma escolha
by those who aspire to textually driven, rule- política cuja essência não é diferente de muitas
bound, rule-announcing judgments; the other outras que se processam ordinariamente por en-
is represented by those who are quite willing tes eleitos diretamente pela população.
to reject the text when it would produce an un- 9
O próprio Cappelletti, porém, afirma: “Visto
reasonable outcome, or when it is inconsistent que os juízes tratam todos os casos como en-
with the legislative history, or when it conflicts tidades isoladas, também os problemas que os
with policy judgments of certain kinds or sub- envolvem – problemas que podem ser de amplo
stantive canons of construction” (1999a: 05). interesse, como a reforma das prisões – são tra-
5
Cf. Cappelletti, ob. Cit., p. 89. Dialogando – e tados fora do mais amplo contexto de escolhas
discordando – de Lon Fuller, Owen Fiss obser- políticas, no qual deveriam se inserir” (p.87).
va que há mecanismos institucionais para dimi- 10
Cf., nesse sentido, os exemplos trazidos por
nuir a chance de erro na apreciação judicial de Cass Sunstein na obra One Case at a Time:
questões sócio-econômicas complexas, como Judicial minimalism on the Supreme Court
por exemplo, a designação de peritos e a utiliza- (Cambridge (MA): Harvard University Press,
ção de pareceres de grupos na função de amicus 1999), especialmente o capítulo III: Decisions
curiae. (cf. Um Novo Processo Civil: estudos and Mistakes.
norte-americanos sobre jurisdição, constituição 11
É importante ressaltar que a definição do que
e sociedade. São Paulo: Revista dos Tribunais, seja “o direito” a ser aplicado já é em si uma
2004, especialmente o Capítulo I). questão controversa.
6
Uma eloqüente formulação dessa posição pode 12
Por exemplo, a distinção entre a perspectiva
ser encontrada na obra de Ronald Dworkin: do observador e a perspectiva do participante é
“Sem dúvida, é verdade, como descrição geral, desenvolvida na teoria sociológica por Alfred
que numa democracia o poder está nas mãos do Schutz: Cf. SCHUTZ, Alfred. El mundo social

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POSSIBILIDADES E LIMITES DA CRIATIVIDADE JUDICIAL: A RELAÇÃO ENTRE... 551

y la teoría de la acción social. In: ______. Es- responsibility for preventing forced evictions
tudios sobre teoría social. Buenos Aires: Amor- rests with governments, Recalling that Gen-
rortu Editores, 1974. eral Comment No. 2 (1990) on international
13
Que, vale notar, não se reduzem necessaria- technical assistance measures adopted by the
mente ao direito positivo. Committee on Economic, Social and Cultural
14
Os dados a serem apresentados nesta seção Rights at its fourth session, states, inter alia,
resultam da investigação empírica acerca da that international agencies should scrupulously
justiciabilidade dos direitos humanos no Tri- avoid involvement in projects which involve,
bunal de Justiça do Rio de Janeiro, por meio among other things, large-scale evictions or
de Grupo de Pesquisa coordenado pelo Prof. displacement of persons without the provision
Dr. José Ricardo Cunha. Um relatório prelimi- of all appropriate protection and compensation
nar da Pesquisa foi publicado no nº 03 da SUR (E/1990/23, annex III, para. 6), Mindful of the
– Revista Internacional de Direitos Humanos. questions concerning forced evictions included
Cf. www.surjournal.org. in the guidelines for States’ reports submitted
15
Commission on Human Rights resolution in conformity with articles 16 and 17 of the In-
1993/77a 1993/77. FORCED EVICTIONS The ternational Covenant on Economic, Social and
Commission on Human Rights, Recalling Sub- Cultural Rights (E/1991/23, annex IV), Noting
Commission on Prevention of Discrimination with appreciation that the Committee on Eco-
and Protection of Minorities resolution 1991/12 nomic, Social and Cultural Rights, in its Gener-
of 26 August 1991, Also recalling its own reso- al Comment No. 4, considered that instances of
lution 1992/10 of 21 February 1992, in which forced evictions were, prima facie, incompat-
it took note with particular interest of General ible with the requirements of the International
Comment No. 4 (1991) on the right to adequate Covenant on Economic, Social and Cultural
housing (E/1992/23, annex III), adopted on Rights and could only be justified in the most
12
December 1991 by the Committee on Eco- exceptional circumstances, and in accordance
nomic, Social and Cultural Rights at its sixth with the relevant principles of international law
session, and the reaffirmed importance attached (E/1992/23, annex III, para. 18), Taking note
in this framework to respect for human dignity of the observations of the Committee on Eco-
and the principle of non-discrimination, nomic, Social and Cultural Rights at its fifth
Reaffirming that every woman, man and child and sixth sessions concerning forced evictions,
has the right to a secure place to live in peace Taking note also of the inclusion of forced evic-
and dignity, tions as one of the primary causes of the inter-
Concerned that, according to United Nations national housing crisis in the working paper on
statistics, in excess of one billion persons the right to adequate housing, prepared by Mr.
throughout the world are homeless or inad- Rajindar Sachar (E/CN.4/Sub.2/1992/15),
equately housed, and that this number is grow- Taking note further of Sub-Commission resolu-
ing, Recognizing that the practice of forced tion 1992/14 of 27 August 1992,
eviction involves the involuntary removal of 1. Affirms that the practice of forced evictions
persons, families and groups from their homes constitutes a gross violation of human rights, in
and communities, resulting in increased levels particular the right to adequate housing;
of homelessness and in inadequate housing 2. Urges Governments to undertake immediate
and living conditions, Disturbed that forced measures, at all levels, aimed at eliminating the
evictions and homelessness intensify social practice of forced evictions;
conflict and inequality and invariably affect 3. Also urges Governments to confer legal se-
the poorest, most socially, economically, en- curity of tenure on all persons currently threat-
vironmentally and politically disadvantaged ened with forced eviction and to adopt all nec-
and vulnerable sectors of society, Aware that essary measures giving full protection against
forced evictions can be carried out, sanctioned, forced eviction, based upon effective participa-
demanded, proposed, initiated or tolerated by a tion, consultation and negotiation with affected
range of actors, Emphasizing that ultimate legal persons or groups;

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552 José Ricardo Cunha et alii

4. Recommends that all Governments provide 6. Also requests the Secretary-General to com-
immediate restitution, compensation and/or pile an analytical report on the practice of forced
appropriate and sufficient alternative accom- evictions, based on an analysis of international
modation or land, consistent with their wishes law and jurisprudence and information submit-
or needs, to persons and communities that have ted in accordance with paragraph 5 of the pres-
been forcibly evicted, following mutually satis- ent resolution, and to submit his report to the
factory negotiations with the affected persons Commission at its fiftieth session;
or groups; 7. Decides to consider the analytical report at
its fiftieth session, under the agenda item en-
5. Requests the Secretary-General to transmit
titled “Question of the realization in all coun-
the present resolution to Governments, relevant
tries of the economic, social and cultural rights
United Nations bodies, including the United contained in the Universal Declaration of Hu-
Nations Centre on Human Settlements, the spe- man Rights and in the International Covenant
cialized agencies, regional, intergovernmental on Economic, Social and Cultural Rights, and
and non-governmental organizations and com- study of special problems which the developing
munity-based organizations, soliciting their countries face in their efforts to achieve these
views and comments; human rights”. a/ Adopted on 10 March 1993.

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