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~ 10. 1", 12. Paulo Mendes Campos: a linguagem poética__ 48 © sentido da poesia 48 A fusio dos contrérios na comunhio poética—S0 A poesia dos elementos ausentes_—_ $1 Nostalgia do paraiso $3 ‘A fungio do jornal. E da erénica também 88 Carlos Heitor Cony: 0 lirismo como FeflexBos 2 i 2 a wnos ob aban A 9g © lirismo caracterisico 57 A ficcionalizagio das pessoas reais 59 A nostalgia da inféncia 6 Por-do-sol de um padrao estético 62. Reflexio sobre © amor ¢ a morte 63 Carlos Drummond de Andrade: © cronista do Ri 65 O cronista-pocta_ 65 © objeto preservado are gai Uma seco carioca, ae 69 Vinicius de Moraes: 0 exercicio do cotidiano__________ ag © poeta define a crénica_——————— 73; A auséncia de regionalismos, 76 ‘Além do consumo imediato__78 Leitura critica de uma erdnica______78 Um método de leitura, = ‘Uma circunstancia muito especial 81 A cronica no contexto do livro 83 Conctusteg_———— os Vocabulario (critico sg. Bibliogratia comentada. 91 Fundamentagdo tedrica (bisica)______91 Antologias de crénicas, 93 1 Uma definigao © primeiro cronista A carta de Pero Vaz de Caminha a el-rei D. Manuel assinala o momento em que, pela primeira vez, a paisagem brasileira desperta o entusiasmo de um cronista, oferecendo- “lhe a matéria para o texto que seria considerado a nossa certido de nascimento, Se a carta inaugura 0 nosso pro- cesso literdrio € bastante discutivel, mas sua importdncia histérica ¢ sua presenga constante até mesmo nos moder- nos poemas ¢ narrativas parodisticos atestam que, pelo me- nos, ela é um comepo de estruturacdo. Eo marco inicial de uma busca que, inevitavelmente, comecaria na linguagem dos “‘descobridores” que chegavam & Terra de Vera Cruz, até que um natural dos trépicos fosse capaz de pensara.rea- lidade brasileira pelo ngulo brasileiro, recriando-a atra- vés de uma linguagem livre dos padrges lusitanos. Indiscutivel, porém, & que o text® de Caminha & cria- ‘glo de um cronista no melhor sentido titerério do termo, pois ele recria com engenho ¢ atte tudo © que ele registra ‘no contato direto com os indios ¢ seus costumes, naquele instante de confronto entre a cultura européia e a cultura primitiva, Nao & gratuitamente, portanto, que ele conta a eltei detalhes aparentemente insignficantes, tais como: “.--1E doqui mandou 0 Capitia @ Nicolau Coelho e Barto- Jomeu Dias que fossem em terra e levassom aqueles dois hhamens e 0s detrassem ir com sou a700 ¢ setae, Aos quale mmandou der a cade um uma camisa nove, ume carapuce vermelka e um rosérlo de contas brancas de oss0, que eles Jevaram nos brapos, 0 cascavéls @ campainhas. € mandou com oles pare tear Id um mancebo degredado, criedo de . Joi Telo, 2 quem chamam Alonso Ribeiro, para andar 1é com oles e saber de sou viver e maneiras. £0 mim ‘mandou que fosse com Nicolau Coelho”. (Cassa, Pero Vaz de. Carta a Bl Rey Don Manuel. Apre Sentagio de Rubem Brag, Rio de Jane, ‘Revord, 1381 p 286) Seu relato é assim, fiel as circunstincias, onde todos (05 elementos se tornam'decisivos para que o texto trans- forme a pluralidade dos retalhos em uma unidade bastante significativa, Dessa forma, por mais quo cle tenha afir- mado, no inicio da “nova de achamento”, que, “para 0 bem contar € falar, 0 saiba pior que todos fazer", peret bemos que tem consciéncia da possibilidade de “aformo- sear” ou “afear” uma narrativa, sem esquecer que a expe- rigncia vivida € que a torna mais intensa. Dai cuidado fem reafirmar que ele esereve apés ter ido & terra “para andar Ki com eles ¢ saber de seu viver e manciras": a observagio direta & 6 ponto de partida para que o narra- dor possa registrar os fatos de tal maneira que mesmo os mais efémeros ganhem uma certa concretude, Essa con cretude thes assegura.a permanénela, impedindo que eaiam no esquecimento, e lembra aos leitores que a realidade — conforme a conhecemos, ou como € recriada pela arte — 6 feita de pequenos lances, Estabelecendo essa estra- ‘gia, Caminha estabeleceu também 0 principio bisico da ‘rénica: registrar © circunstaneial ‘A histéria da nossa literatura se inicia, pois, com a c ccunstincia de um descobrimento: oficialmente, a Literatu- ra Brasileira nasceu da crénica. Um narrador-repérter registra o circunstancial Desde 0 achamento da carta de Caminha na Torte do Tombo em 1773 por Seabra da Silva até os dits atuais, a literatura brasileira passou por vériss etapas, percorren: ddo os caminhos de um processo que procurava, como Ponto principal, aleangar 0 abrasileiramento. das’ nossas letras, Soja pela linguagem, pela sintexe, pela variedade de poéticas, ou principalmente pela dessacralizagao dos temas sagrados ¢ consagrados, a literatura conseguiu. en- contrar-se com a sua inimige tradicional: a vida mundana, Entretanto nao conseguiu ainda livrarse de eertos precon- csitos que fazem algumas pessous aereditarem que esere- ver um romance & bem mais dificil do que escrever um conto ou um poem ‘Além disso, muitos pensam que narrativa curta & sindnimo de conto, perdendo de vista os gEacros que, por tragigao ruim, continuam & margem da nobreza. Acontece que 0 conto tem uma densidade especitica, eentrando-se nna exemplaridade de um instante da condicao humana, em que essa exemplaridade se refira & valorago moral, 44 que uma grande mazela pode muito bem exempliicar uma das nossas faces. A erOnica nio tem essa carter tica, Pondendo a extensio da carta de Caminha, conservou ‘8 marca de registro circunstancial feito por um narrador- reporter que relata um fato nao sfhis & um 36 receptor Prvilegiado como el-rei D. Manuel, porém a muitos leito- {65 que formam um publico determinado, Mas que publico é esse? Sendo a crénica uma soma de jomalismo e literatura (daia imagem do narrador- s : -repérter), dirige-se a uma classe que tem preferéncia pelo Jornal em que ela é publicada (s6 depois 6 que iri ou nio integrar uma coletinea, geralmente organizada- pela. pr6- prio cronista), 6 que signifiea uma espécie de censura-ou, pelo menos, de limitacao: a ideologia do. veiculo corres- pponde ao interesse dos scus consumidores, direcionados pelos proprietarios do periédica e/ou pelos editores-chefes de redagao, Ocorre ainda o limite de espago, uma vez. que 2 pagina comporta vérias matérias, © que impie a cada uma delas um nimero restrto de laudas, obriganda 0 redator a explorar da maneira mais econdmica possivel 0 equeno espaco de que dispde, B dessa economia que rnasce sua riqueza estrutural. Do folhetim a crénica atual No tempo de Paulo Barreto (1881-1921), por exem- plo, era apenas uma secdo quase que informativa, um rodapé onde eram publicados pequenos contos, pequenos artigos, ensaios breves, poemas em prosa, tudo, enfim, que pudesse informar os leitores sobre os acontecimentos daguele dia ou daquela semana, recebendo o nome de folhetim. Acontece que Paulo Barreto percebeu que a modernizasao da cidade exigia uma mudanga de compor- tamento daqueles que escreviam a sua hist6ria didria. Em vez de permanecer na redacio a espera de um informe para ser transformado em reportagem, o famoso autor de As religides no Rio ia a0 local dos fatos para melhor investigar e assim dar mais vida ao seu proprio texto subindo morros, freqfentando lugares refinados e também a fina flor da malandragem carioca, Joao do Rio (seu pseud@nimo mais conhecido) construiu uma nova sintaxe, impondo a seus contempordneos uma outra mancira de vivenciar a profissio de jornalista. Mudando 0 enfoque, ° rmudaria também a finguagem ¢ a prpia esruturafolhe Com essa modiiagio, JoR0 do. Rio. consgrowse como o eronsta mundano por excelencia dando eroniea ma roupagem mais “terse, que, tempos depos sa enrigueica por Rubern Braga: em ver do simples repr iro formal /aPementri- de acanesimentos que ‘amo deriam sefdo contsimento pabico somo apenas do ima- gindrio do conta, tudo examtinado plo Angulo subjetivo Ga interpretaga, ow melhor, elo Angulo da ecriagao Go teil. Jodo do Rio chegava meano a venir persoaagsns como o Principe de Belfort, e dava a seus relatos um toque fcconsl, Com ‘sso ele também prenunciow que a "¢o-einioacabaram cm fronts muito prox tes Sun linha divsdia — ae vers, bastante tue —— é a densidade. wcabera na consirugio do_pérsonagen, do tempo, Jo EF aco e da atmosfera que dargoforga ao fato “exemplar ‘roma age de ane Was sts. Ganda a impresto de GE preende apentsficar na supeticie de ss propos omentrios, sem er sequer a preocupasio de coloear-s fa pele de"um narrador, que’ & prieipalmente, peso tagemfiecional(como”aconlece” nos contos, novels, romances). Astin que haa una ebaic €'. se stor mesmo, ercdoo que ele diz parece ter acontecido de fate, Como nbs leores,esivéssemos dante de uma repor. ‘age (corre, porém, que até as réportagens — quando escritas por um ornlista de fle — exploram a fungio Poca da ligagem, berm-come-o-aldaca- en glee CScondem as verdadetss signficagdgg daquilo que foi ver Galizado, Na (Otis, cnbors nao fnla-a-densiade 05 conto existe a berdade do Cronista, Fle pode transite 2: apuréncia de superficalidade para desenvoiver 0 sta tema, o que tambem acontece como se fosse “por aca” 10 cconstrucao de um texto literario (e a erdnica também 6 literatura), pois o artista que deseje cumprir sua fungao primordial de antena do seu povo, captando tudo aquilo ue nds outros nao estamos aparethados para depreender, terd que explorar as potencialidades da lingua, buscando luma construcao frasal que provogue significagses vérias (mas nao gratuitas ou ocasionais), descortinande para o Pablico uma paisagem até entio obscurecida ow ignocada por completo, Um género jornalistico _Aaparéncia de simplcidade, portant, nfo quer dizer esconhecimento das artimanhas anistcas. Ela decorte do fato de que a crdnica surge primeira no jornal, her- dando-a.sua-precaredade, esse seu lado efémero de quem nasee_no_comego.de.uma_leitura © morre antes que se acabe-o-dia,-no instante em que 0 leitor transforma as paginas em papel de embrulho, ou guarda os recortes que mais The interessam num arquivo pessoal. O jomnal,_por- tanto, nasce, envelhece e morse a cada 24 horas. Nesse texto, a erOniea também assume essa_transitoriedade, irgindo-seinsialmente-a leitores-apressados, que een nos pequenos intervalos da Iuta dria, no_transporie ov no raro momento de trégua_ que a televsio Ihes permite Sua elaboragio também se prende a essa urgéncia: o e10- nista dispe de pouco tempo para dailogralar.o seu texto, iando-o, mulias vezes,na sala enfumagada de uma red go. Mesmo quandg,trabalha no conforto © no siléncio de sua casa, ele 6 plemido pela correria com que se faz tum joral, © que acontece mesmo com os suplementos semanais, sempre diagramados com certa antecedéncia A pressa de escrever, juntase a de viver. Os acon- tecimentos sio extremamenie ripidas,-e-o-eranista precisa a de_um_sitmo-sgil_para-poder-aeompanhé-los. Por isso a ‘ua sintaxe lembra alguma coisa desestruturada, sola, mais proxima da conversa entre dois amigos. do que pro- Priamente do texto eserito. Dessa forma,)hé uma proxic. mmidade maior entre_as-normas da lingua_escrita-c da oralidade| sem que o narradoe eaia no equivoce de com- por frases frouxas, sem. a-magicidale da_elaboragéo, pois tle nao perde de vista o fato de que o real ado é mera- Rae a plidacmeoeerad #70, ologualann) pcan, deixa de ser astranscrigio exata Je-uima frase ouvida na ra, para ser[elaboragdo de um didlogo entre 0 cronista © 0 leitor, a partir do qual a aparéncia.simpléria_ganha dimensio exata{ 0 dialogismo, assim, equilibra 0 coloquial ¢ o tite sitio, permitindo que 0. lado. espontineo.e-sensvel_per- manega como 0 clemento provocador de outras vsbes do tema e-sublemas que estio sendo.tratados/ numa deter- minada er6nica, tal como acontecs em nossas conversas didrias e em nossas reflexdes, quando também conversi- ‘mos com um interlocutor que nada mais & do que o n0ss0 dito lado, nossa outra metade, sempre numa determinada circunstineia. Mas nio “scircunstinca” naquele sentido de um eseritor que, embora no sejajornalista, precisa sobre- viver — e ganha dinero publicando crénicas em jomais € revistas: 0 termo assume aqui o sentido especifico de Pequeno acontecimento do dia--tia, que poderia passar desperesbido ou relegado & marginalidade por ser consi- derado insignificante, Com seu togue de lirismo sefle- xivo, 0 cronista capta ese instante Brevissimo que também faz parte da condigao humana ¢ Ike confere (ou Ihe de- volve) a dignidade de um nicleo tstruturante de outros neleos, transformando a simples situayzo no didlogo sobre 4 complexidade das nossa dores e alegrias. Somente nesse Sentido critio & que nos interessa 0 lado citcunstancial da vida, E da literatura também. — Rubem Braga: 0 espido da vida A verdade da crénica 6 0 instante Essencialmente eronista, Rubem Braga conhece a im- Portincia desses pequenos momentos que também fazem parte da condicio humana. Tanto 6 assim que ele afirma: “A verdade ndo é tempo que passa, a verdade € 0 ins- tante". Brevissimo instante, onde se oculta a complexidade ddas nossas dores e alegrias, protegidas pela méscara da banalidade. Em nome dessa aparéacia amena é que mui- tas vezes nos desobrigamos de pensar a vida, Em nome dessa mesma aparéncia, 0 escrivio do cotidiano compe uum claro caminho, através do qual o leitor reencontra 0 prazer da leitura © — mesmo que nio 0 perceba aprende a ler na historia “inventada” a sua propria historia Em outras palayas: a pressa de viver desenvolve n0 cronista uma sensibflidade especial, que 0 predispoe a captar com maior intensidade os sinais da vida que diaria- mente deixamos escapar. Sua tarefa, entio, consiste em Ser 0 nosso porta-voz, 0 intérprete aparelhado para nos devolver aquilo que a realidade ndo-gratiticante sufocou: | | | | a 13 a conscifncia de que o lirismo no mundo de hoje née pode ser a simples expresso de uma dor-de-cotovelo, mas cima de tudo um repensar constante pelas vias da emogio aliada & razdo. Esse papel se resume no que chamamos de lirismo reflexive E & justamente pelo lirismo reflexive que Rubem Braga, capixaba de Cachoeiro do Ttapemirim, ocupa um lugar de destaque na hist6ria da literatura brasileira con- temporinea: corajosamente ele s6 tem publicado crénicas, ‘mesmo que em uma delas confesse ter escrito um soneto “para enfrentar o tédio dos espelhos". Certamente capaz de eserever contos, novelas e romances, nio se deixou seduzir pelo brilho dos chamados “géneros nobres”. Sua ‘opcio € ainda mais corajosa porque, vivendo num pais de frases bombésticas, ele cumpre a principal caracterfstica do eseritor: o despojamento verbal, que implica uma cons- ‘rucdo gil, direta, sem adjetivagdes. Novamente a pressa de viver confere ao narrador-repérter uma caracteristica que se transfere para a narrativa curta por ele produzida, que € a simultaneidade do ato de escrever com 0 ato de climinar os excessos. Exemplo marcante dessa caractet tica é a curtissima crdnica “O pavao”, onde 0 Braga de Ai de ti, Copacabana nos diz “Eu considers! « alérie de um pavdo ostentando 0 esplen dor de suas cores; & um luxo imperial. Mas andel lendo livros, @ descobr! que aquelas cores todas ndo existom na pena do pavdo. N3o hi plomentos. O que ha s80 minis: cules bolhas dégue em que a luz se fragmenta, come om um prisms. © pavlo & wm arcovris de plumas. Eu considere! que este ¢ 0 luxo do grande ertste, etingir © méxino de matizes com 0 minima de elementos. De Jiqua 0 luz ole faz seu esplendor: seu grande mistério 6 2 simplicidade" Para atingir © maximo de matizes com © minimo de elementos, o artista tem que ter muito talento, pois a 4 plicidade por si mesma nio 6 suficiente, correndo 0 risco de confundir-se com vulgaridade e/ou desconhecimento das técnicas narrativas. Rubem Braga explora, assim, toda a polissemia das palavras, encaixando-as na’ frase como ‘quem desenha o mapa de algum tesouro, a ser descoberto pelo leitor. E até pelo proprio cronista, que, depois de considerar que € na auséncia de pigmentos que as cores :mais bonitas se tornam presentes, faz a consideragdo, final “Considerel, por lim, que assim 6 0 amor, oh! minhe meds; de tudo que ole suscita e esplende e estremece @ eliza om mim existom spenas meus olhae recebendo @ luz de teu olhar. Ele me cobre de glrias me faz, mag rico” A crénica, pois, ¢ um arco-iris de plumas fragmen- tando a luz para torné-la mais totalizante. A linhagem dos Braga Embora Rubem Braga pertenca A linhagem do poeta Manuel Bandeira — de quem recebeu influéncia — e de Jodo do Rio — antecessor de todos os eronistas —, & outra a genealogia que ele procura recompor enquanto escreve o§ seus textos. Os valores recebidos através de sua formagio situam-no como individu num contexto social mais amplo. Nessa amplitude, o escritor nao perde de vista que a sua situagio particular $6 conta para o leitor nna medida em que funciona como metifora de situacBes universais, © que permite que fagamos da leitura uma forma de catarse e Aapatia. Nesse processo de purificagao em que se juntam 0 autor e a sua contrapartida, que € o leitor, os sentimentos pperdem o carter de expresso da alma solitiria e ganham a dimensio de lirismo reflexivo e partcipante da imensa 5 dor coletiva. Recompor a propria historia individual é um jeito de 0 eronista nos ensinar a compor a nossa his- {ria na condigdo de pessoas ligadas a tantas e tantas hera 2 cullurais, Ora, por mais que 0 narrador-reporter seja © escritor de carne e osso, nervos ¢ misculos, ¢ nunca personagem ficcional, ele representa um ser coletivo com quem nos identificamos e através de quem procuramos vencer as limitagdes do nosso olhar. Queremos ver mais Jonge — para a frente e para tris —, e s6 0 conseguimos com o auxilio de quem nasceu para narrar © mundo, Dai a importincia do instante, porque € 0 flash do momento presente que nos projeta em diferentes direcdes, todas elas basicamente voltadas para a elaboragiio da nossa idemtidade. Logo, fundamental que o cronista se defina num tempo e num espago, compondo uma cronologia ‘nunca limitadora, mas sempre esclarecedora da sua/nossa relago com os seres e com os objetos. Enfim, o elemento biogrético funciona como linha costurando 0 tecido da vida, tecendo a renovagio do imaginario, através do qual ‘© homem se reafirma como ponte para outras formas de conhecimento ¢ convivéncia, Assim, quando 0 natrador de “Sobre o inferno” se presenta como “o jomalista profissional Rubem Braga, filho de Francisco de Carvalho Braga, carteira 10.836, série 32.8, egistrado sob 0 niimero 785, Livro I fs. 193", ele esté reafirmando a importincia da figura paterna como indispensivel elemento estruturador do que somos a partir de nossas raizes, a partir de um sobrenome mais do que mero orgulho familiar — indice mesmo de que nao exis ‘mos isoladamente e de que a nossa precatiedade é com- pensada pela existéncia de outras pgssoas, de outros uni- versos. Reescrever a propria biogralfa é,'pois, um modo de amadurecer. ‘Nessa estrutura familiar, 0 homem ea mulher se interpenetram no eterno jogo de contririos, definindo a coexisténcia de papéis “opostos", ou. melhor, de papéis 16 \liferenciados © diferenciadores. Reconhecer diferencas ¢ semelhangas ndo é a condigdo bésica para um crescimento interior constante? Pois € através das imagens paterna ‘materna que iniciamos esse aprendizado: no caso especitico de Rubem Braga, 0 pai € 0 homem decidida, forte, o brago direito que nos suporta, “o ombro de amigo onde ousamos a mio” nas horas de angistia, mas de coragao fraco o bastante para capitular aos caprichos de uma mu- ther bonita. A mde & ternura, as vezes teimosa, porém acima de tudo a nutriz dos filhos. © espaco da casa No expago da casa, concentra-se significado da linhagem, fazendo com que a meméria da infincia seja, quase sempre, o suporte da estrutura narrativa de Rube Braga, Ali, o menino aprendeu “que o tempo carrega uma traigao no bojo de cada minuto” e deseobriu que “mata- mos, por distraglo, muitas ternuras”, Quando 0 garoto se transforma em adulto comeca a avaliar os hens perdidos , entdo, compreende que “casa € 0 lugar de andar nu de corpo e alma, e sitio para falar sozinho”. Mais do que isso até: “Casa deve ser a preparacio para o segredo maior do timulo”. Por isso ela se torna “um grande navio que val singrando © tempo, que vai embarcando ¢ desembar- ccando gente no porto de cada domingo”, correspondendo, mesmo ai, a0 nosso desejo de eternidade, ‘Ou seja: nesse espago feito de paredes, portas e jane- Jas, projeta-se 0 espfxo interior do homem, nele se confi- gurando 0 aprendizado de que a morte € inevitivel, visto que somos apenas transitivos num mundo transitério de- mais. O que nos resta é fazer com que a vida seja de tal forma gratificante que as ternuras antigas possam ser res- ” gatadas em algum ponto da jornada, garantindo a nossa permanéncia na lembranga de alguém. © espaco do texto ‘A construgio de um texto equivale & consteugio de ‘uma casa: cada frase, cada siléncio onde reside @ sign cagio a sor descoberta pelo Ieitor & uma espécie de quarto conde o eronisa guarda os seus segredos e a sua solidi. ‘Além disso, ao construir cada texto (considerado, aqui, como sinénimo de pega aut6noma, relato que vai do titulo a ltima linha), © Autor esté construindo a sua casa interna, procurando discriminar cada aposento ¢ estabele- endo as leis que goverario o seu universo. Essa cons- trugio condu a um texto maior — e que se faz sem pala- vras, pelo silencio do discurso —, que nada mais é do que 4 compreensao do que somos, para melhor prosseguirmos em nossa viagem-existencial.—* ‘Assim, em “Manifesto” Rubem Braga se dirige a0s operirios da construgdo civil, atirmando: *Nossos olcios so bem diversos. Ha homens que aio escritores fazam lives que si0 verdodeiras casas, @ ficam. Mas 0 cronista da Jornal é como 0 clgano que tode hoite arma sua tenda e pela mark a desmancha, 0 val” 1a, © cronisia de jornal também um escritor, © também ele, desig escreyer algo, que, fiqus para sempre. eval Sofia, ca dt ea eo cma Giéncia da nossa tranoriedade, no iano § Byam 6 bem sdlida até — quando reunida em livro, 6nd® se per- ecbe com maior nitidez a busca de eoeréncia no tracadol dia-vida, a fim de torné-a, mais gratficante , somente (° assim, mais perene. jens 18 Dos jornais ao livro Na sua analogia com a casa, rfigio onde 0 escritor busca ser ele mesmo, a exdnica funciona como una especie de passagem secreta por onde ingressamos no espago do prazer, sem que isso elimine a nossa consciéncia da reeli- Gade opressora, Tanto é assim que o t&dio urbano deter- mina a atmosfera melancolica de vérios textos em que surpreendemos Ruberh Braga recuperando o menino da yoga em contalo com a natureza. Entre a solidi do ocea- no e a solidao da cidade, ele percebe a linha divisoria “entre 0 mundo puro eiafinito de sempre e 9 mundo pre- citio e quadriculado de todo dia” Como os jomnais tim preferincia pelos fatos que si0 noticia — isto & agueles que podem causar maior impacto em seus leitores —, no publicam em destague (ou até mesmo nem publicam) matéias que falem, por exemplo, da “vida slenciosae timida das srvores" e da “pedra escura com sua pele de musgo e seu misterioso coragio mineral” “Porque os jornais noticiam tudo, tudo, menos uma coisa tio banal de que ninguém se lembra: & vida...", afirma tum personagem do Braga num texto de 1951 Hoje, 0s jornais que se destinam as classes “A” e “B” procuram eaptar a poesia da vida, mas néo podem escapar 2 escola de fatos “que tenham eontetdo jornalisico” no sentido de maior interese, credibilidade no esclarecimento do piblico etc. Assim, os proprios jornais conferem a0 cxonista a missio de eoloear a vida no exiguo espago dessa narrativa curta, que corre 0 risco de ser sufocada pelas grandes manchetes, ou confundir-se com 0 contexto da peigina em que ela &publicada, Dafa necessidade de trans- feri-la do jomal para o livro, Nessa transposigio, € claro que 0 escritor esta bus- eando fazer da tonda precitia e cigana uma casa slide ¢ dlradoura. Mas ele procura prineipalmente sel ‘ 8 hnar seus melhores textos, atribuindo-Thes uma seqiéneia ‘ronolégica e temética eapaz de mostrar a0 leitor um pai- nel que se fragmentara nas piginas jornalisticas, ou cuja uunicidade ndo fora percebida por nds. Nessa selegio, que € feita como se a prépria vida estivesse sendo. passada a limpo, Rubem Braga elimina as crénicas que envelheceram porque ficaram excessivamente ligadas a um acontecimento datado ¢ situado, hoje sem nenhuma importincia, agru- pando na coletinea aquelas que conservam o sew poder de provocar a nossa reflexio, ‘Com esse recurso, Rubem Braga se aproxima bastante dda densidade do conto — por exemplo, em “Hist6ria triste de tuim” —, Ievando-nos a questionar se as pessoas por ele citadas no seriam (a partir da sua inclusio no texto literério) personagens. © vinculo com a matriz geradora € muito mais forte do que existente em personagens romaneseas, mas o redimensionamentoré inevitivel e, pois, acaba conferindo a Severino, também para citarmos um 6 exemplo, o estatuto de personagem fiecional, tio meti- fora da condigao humana quanto 0 cronista que 0 narra em “Natal de Severino de Jesus”. ‘A magicidade da crénica esté presente mesmo nos textos em que a atmosfera politica torna © didlogo com © leitor mais referencial. Em “A traigdo das elegantes” temos 0 confronto entre os ricos ¢ a “populagio cada vez ‘ais pobre, neste pafs em que minguam o pio e o remédio, f se suprimem as liberdades”; em “Nos, imperadores sem baleias” temos a triste lembranca do Estado Novo, Hitler © Mussolini ¢ a “ladravaz ditadura", onde algumas pala- vyras podem destruir um belissimo sonho. ‘A atmosfera politica reafirma, 43sim, 0 valor sociol6- sico da erénica na constcucdo do painel de uma época. s recursos utilizados pelo cronista the atribuem © valor Iiterério: no caso de Rubem Braga, vio do simples dialo- gismo com um leitor hipotético, passam pelo narrador- srepérter, que, por ser © autor mesmo, no manipula os 20 trugues da ficelio sempre, e chegam a0. despistamento femitico: “imitando” a estrutura das conversas, 0 cronista comeca a falar de um tema (ou subtema) ¢ acaba nos ‘conduzindo a outro tema bem mais complexo, embora nem sempre imediatamente percebido por ns, Com esse poder de_nos.projetar para além_do que esti impresso, Rubem Braga reafirma sua condicio de artista recriando a vida em seus minimos detalhes, especial- mente aqueles_que podem estar camuflados em outros sgéneros..Afinal, cle € 0 espido que nos passa o segredo da existéncia numa mensagem codifieada, que 6, sem divi- dda alguma, literatura 3 Fernando Sabino: o encontro marcado com a crénica Os assuntos que merecem uma crénica ‘Também como um espido da vida, Femando Sabino se volta para a “busca do | do irisério no cotidiano de cadaum". A afirmativa é dele mesmo, em “A iltima erénica™, texto que sempre merece atencio por seu conteido metalingi ‘Teorizando sobre & narrativa eurta, Sabino utiliza a metalinguagem para mostrar que também o cronista tem 0 eu “momento de escrever”, que também ele — apesar da pressa caractristica do seu olicio — recebe o impulso da ispiragdo, mas, acima de tudo, € o escrtor que busca, que seleciona, que pesquisa, Em uma palavra: trabalha o texto em suas diferentes fases de elaboracio até que ele esteja pronto para ser publicado, sabendo.que, infelizmente, esse ato de trabalhar 0 texto-ndo-pode-prolongar-se. muito ‘Ao selecionar “os assuntos qu merecem uma cr6- nica”, ele nos mostra, ainda, que ela nio & tio despreten- siosa quanto aparenta, nem tao democratica quanto se supe. Embora nio tenha preconceitos teméticos, mio acolhe toda e qualquer matéria: dentro do seu campo de 10 Além do consumo imediato Leitura critica de uma crénica Todo texto literrio pressupée virias Ieturas, sendo que a primeira costuma ser bastante superficial. /Apenas para tomar conhecimento do que se trata num primeiro registro, assumimos a posigio de letor ingénuo — e lemos sem esperar do ato de ler nada mais do que o simples ato de ler. A partir dai, 0 proprio texto nos atingira ou nao. De acordo com a intensidade do texto repercutido em nds (ou, em outros casos, de acordo com interesses espe- cificos, tis como a obrigatoriedade de um trabalho esco- Jar) € que faremos duas ou mais leturas, tantas quantas sentirmos necessidade e sempre sabendo que as possbili- dades so maitiplas, embora nao sejam totalmente arbitré- vias, Dentro dessa iberdade de escolha dos caminhos, Substituimos ingenuidade pelo senso critico — e come- gamos a fazer a lefiura propriamente dit ssa leitura, que se liga & descoberta dos vétios regis- tros do discurso, leva o Ieitor a interpretar cada passagem até atingir uma interpretagio global, que © conduza, por fim, a uma determinada visio do mundo. A eréniea — » apesar de toda a sua aparente simplicidade — s6 pode ser valorizada quando a lemos crticamente, descobrindo a sua significagio. Ultrapassando 0 consumismo imediato, passamos & fruigio do objeto estético, dele participando como o-au- tores, pois também aqui 0 trabalho do leitor é bastante solicitado: afinal, 0 didlogo no € a base da crOnica? Pois ‘bem, tomando a crdnica “De homem para homem”, de Femando Sabino, como exemplo, veremos que a leitura ‘nicial quase nada nos oferece. 'Reconhecemos que faz parte do livro A companheira de viagem, tratando de lum fato acontecido na meninice do cronista, quando ele tinha 7 anos de idade. O enredo ¢ simples: 0 menino con- segue um bodoque, que passa a ser o seu grande troféu, ‘mas logo o perde para um colega de 14 ou 15 anos, que € escoteiro e tem a autoridade dos escoteiros. © tempo passa, mas o narrador, agora adulto, no conségue es- 4quecer a injustica de que foi vitima, ‘A partir da segunda leitura, a carga emotiva da crd- nea j@ nos atinge com maior profundidade. Agucando malicia, comecamos perceber de que forma se escreve stéria de um individuo: os fatos da inffincia apontam lum caminho, deitam marcas decisivas, que determinarao certas atitudes do adulto. A frase inicial — “Voce talvex ‘do se lembre” — estabelece 0 confronto entre o emissor © um receptor vagamente nomeado; logo depois, ficamos sabendo que tudo vai girar em torno do bodoque, “tam. ‘bém chamado de atiradeira ou estlingue”. 5 exatamente esse estiingue que vai centralizar nossa tengo. Ele foi conguistado com bravura: 0 menino {rocou uma colecio de marcas de cigarro por outra de Pedras preciosas de vidro; vende as pedras, acrescenta. um 10 a0$ quatrocentos réis obtidos na transagéo, “e mais uns selos da Tasmania” ¢ duas ou trés bolas de gude — enfim, todo um tesouro infantil tracado por algo que faria do menino um ser importante, com plena forga de tito, 2 an Desejoso de exibir a forca conquistada, ele actba encon- trando 0 colega escoteiro (cujo nome nio é revelado), que, em defesa dos passarinhos, toma-lhe a pequena pre- ciosidade. ‘A passagem do tempo ndo permite uma elaboragio completa do acontecimento, e a ferida permanece aberta fazendo com que 0 adulto de hoje ainda se sinta esma- gado pelo peso da “autoridade de escoteiro”, afirmando no final da er6nica: “(..J) Hole néo sou menino mais, voce pode ser mais ‘alto @ mais velho do que eu, pode ser muito importante, ‘ret, ministro, ou ld 0 que sje, até presidente de Repd- bce, nto me eepantara, do jato que as colsas vo — m feu sou homem também, £ ¢@ voc® quer que eu te consi dere um Nomem, antes de mais nada me devolve meu odoqua. Eu quero meu bodoque” Agora, 0 bodoque pode ser substituido por qualquer objeto, porque jé estamos na posse da imagem por ele eflagrada: 0 que o cronista quer de volta é uma parcela dda sua dignidade que 0 outro roubou, £ necessirio que 0 ‘outro admita © abuso do poder, a prepoténcia do mais velho sobre 0 mais novo, o desrespeito & palavra do me- nino, que afirmara néo pretender matar passarinhos nem ferir os colegas. Ele quer de volta um pouco da inoct cia, violentada pelo poderio sempre alerta de quem se considera o guardigo da ordem. Entao, a erdnica "De homem para homem" ultrapassa fo tom de mégoa entre Sabino e um antigo companheiro (somos velhos conhecidos"), atingindo 0 plano do pré- prio leitor, na medida em que a arbitrariedade compr mete a nossa estrftura individual. Ao longo da vida, ‘muitas vezes alguém mais velho assumiu ates de dono da verdade roubou o nosso insirumento de magia. Assim feridos, experimentamos uma certa castragio e, superada @ impoténcia, ainda sentimos na boca 0 gosto amargo do a velho jogo entre dominador e (eventualmente) dominados. Fica ainda a palavra sufocada na garganta, 0 grito parado no ar: o eronista fala por nds e por nés ele afirma que $6 podemos respeitar aqueles que nos respeitam, Um método de leitura Uma circunstancia muito especis ‘A Ieitura de uma crdnica, ja a nivel interpret pressupse sua localizagio na pagina de um jomal ou no. contexto de um livro, Quando trabathamos com o texto ainda em seu re uto jornalistico, temos que levar em conta os elementos ‘que 0 rodeiam. Em termos de exemplo, temos “Nava, saudade”, de Carlos Drummond de Andrade, publicada no Jornal do Brasil de 15 de maio de 1984: toda a primeira ppigina do Caderno B é dedicada a0 médico e escritor Pedro Nava, tragicamente morto na véspera. A partir dessa informagio, percebe-se que o homenageado tem uma relagio bastante forte com a cidade em que ele viveu desde 1933: nascido em Juiz de Fora a $ de junho de 1903, somente em 1972 Nava estrearia como escritor, publicando suas memérias. Imediatamente, Pedro Nava ‘ganha impostincia em nossa literatura, Drummond, mineiro igualmente radicado no Rio, fala por nds sobre essa perda irrepardvel: “Um amigo de vide inteire, @ de ume vide jé estrade em ‘anos: como nos comportarmos a0. perdélo de mancira ‘aibita e inesperada? Nao hé receltaHlsétlea pare a situa (fo. Ha 0 dado Irrecusivel @ 2 abrigagio de accitélo, ‘conviver com ele assimilé-lo. As palavras valom fm elrcunstinclas para sorem vivides endo analisedas ou comentedes". 2 Perdido “o companheiro de 1920 que continuow com- panheiro até 1984", 0 cronista-poeta deflagra 0 processo associativo 0 questionar a morte “sibita e inesperada” © “o dado irrecusével” inerente a ela, tormando-a indizivel por palavras. Que linguagem, pois, sera capaz de exprimir esse momento de fratura? O terceiro pardgrafo nos diz que “Nava recolhew-se mudez, que € uma outra forma de viver". Diante da consciéneia da “vida consumada”, ressurge 4 significagao plena da linguagem do siléncio: enquanto estamos vivos, ele marea as pausas do nosso discurso, 0 intervalo. entre a pergunta ea resposta, ou 0. abismo entre pergunta resposta alguma. Mas diante da morte € que percebemos a forga da mudez — esse desligamento de tudo, essa Tinguagem to absoluta que ndo constréi imagens: ela é a propria imagem, Ora, enquanto crénica entre artigos jornalisticos, é inevitével que os outros textos se interpenctrem © um sirva de suporte ao outro. Em “A luz da gléria", Mario Pontes — jomnalista e romancista — afirma: “0 que so apagou na noite de ontem, com a morte de Pedro Nava, foi muito mais do que 2 uz de um cirio, quale perfaito cirlo de que fala 0 titulo do seu ditimo livo, pu- biicado as vésperas do Natal do ono passed. Apagou-se, ‘sto sim, uma enorme e luminosa fogueira de talento e ver. bboiamar acesa justamente num momento em que 0 de inteligéncia nacional se fazla em meio treva e-em sentida contrério 408 ventos do siléncio™ A passagem jornalistica é tio bem elaborada quanto acrénica, e a carg. emocional de uma se confirma na outra, ambas alcancando, pela associagdo de imagens, uma dimensio que ultrapassa a circunstincia datada e situada: © riqufssimo siléncio de Pedro Nava se contrape aos amar- {805 siléncios impostos 20 pais, fraturando a fala nacional. Na outra matéria — esta, sem assinatura — os dados bi srificos estdo impregnados de emogio, levando 0 jorna- lista a encerrar seu artigo com arte poética: “Tuminado pelos postes da Gloria, Pedro Nava estava morto”. Como podemos observar, 0 nome do bairro carioca 6 enriquecido pela polissemia, ampliando-se 0 campo de significacao. Se dispuséssemos de espaco, fariamos a I tura completa da crénica de Drummond e das matérias jommalisticas que @ rodeiam (a crOnica esté no centro da pagina), reafirmando nossas consideragbes iniciais. Basta- nos, porém, mostrar que a interpretacio, nesse caso, fica ligada a pagina como um todo — o que Ihe confere maior ‘ou menor importincia, Quando for publicada em livro, teremos que observar 0 novo context © suas provéveis significagdes novas Antecipadamente podemos dizer que, na ultrapassa- gem do jornal para o livro, atenua-se 0 vineulo circun: tancial ¢ elimina-se a referencia as demais matérias © a propria diagramacdo, Com isso, 0 texto adquire maior Iindependéncia, ¢ 0 leitor fica estimulado a buscar, no seu proprio imaginério, todas as associagbes possiveis, A crdnica no contexto do livro Uma vez publicada em livro, a crénica assume uma certa reelaboragio na medida em que & escolhida pelo Autor (em alguns casos, é outra pessoa quem organiza a coletinea). Além disso, ela se torna mais duradoura, po que os textos que envelheceram devido & sua excessiva cir- ccunstaneialidade ndo entram na seleado. Portanto, tomando como exemplo “O desaparecido”, de Rubem Braga, verificamos que’ 1.9) trata-se de um texto inserido no livro A traipao das elegantes, onde a crénica-ttulo nos fala do desgaste “ 0 tempo, que nos atraigoa, mostrando-nos que até os mitos envelhecem: 22) hé no Tivro uma atmosfera de perplexidade diante da inevitvel corrosio do tempo, na sua cumplii- dade com a morte; 3.2) 0 titulo da crdnica “O desaparecido” sugere a ‘mesma atmosfera provocada pela constentizagéo de que somos perecivess 48) pelo processo associative, o Autor estabelece uma relagdo entre a tarde fria e 6 seu mundo interior: "= entio eu me sinto um daqueles velhos poetas de antiga mente que sentiam frio na alma quando a tarde estava fia"; 5.9) ampliando © campo de significagdo da erdnica, 6 cronista abandona o seu leitor virtual e se dirige ao seu amor distante: 0 seu lirismo 6 uma ponte para alcancar © proprio sentimento do mundo; 68) 0 seatimento do mundo leva o cronista a fazer uma reflexdo sobre a importincia do diseurso despojado de artfcios, para que a imagem libere o ser com maior autenticidade: “Ah, que vontade de escrever bobagens bem meigas, bobagens para todo mundo me acher ridiculo e talvez alguém pensar que na verdade estou aproveitando uma erdnica muito antiga num dia sem assunto, uma er6= nica de rapa: 7.9) através da metalinguagem, 0 cronista eomenta 0 ato de escrever crnicas, a obrigatoriedade de produzir um texto e a relagio com a vida: a erdnica deve refletir as diferentes faces do cotidiano, dat a existéncia de vérias vertentes. No caso ge “O desaparecido”, a vertente mais ltica, ("uma erdniea de rapaz") converge para a vertente do lirismo reflexivo, proprio do escritor maduro (*Olho- me no espelho e percebo que estou envelhecendo répida © definiivamente”); 8.) depois de nos comover com sua curta crénica de apenas trés pardgrafos, 0 cronista nos ensina que a presenga do Amor transforma o perecivel em eterno: “s6 tu sabes que em alguma distante esquina de uma nio lembrada cidade estard de pé um homem perplexo, pen- sando em ti, pensando teimosamente, docemente em ti Conclusées No momento em que a erdnica passa do jorsl para © lio, temos a sensagio de que ela superou 8 transito- fiedade e se tormou eterna. Entretanto todos os esriores demonsiram sua perplexidade diante da. inevitével_passa- gem do tempo, corroendo os sercs ¢ a5 cosas. Acteitar {ue o cronista ganha a cternidade uma simples madanga de suporte nao seria simplorio demais? Essa idéia de perenidade nao estara ferindo a propria leveza da cronica, Eliminando o sea ar de prosa fia? Pelo que vimos através dos croistas aqui estudados (apesar da austacia de tantos outros nomes de nosso inte- esse), a mudanga de suporte provoca um novo direco- ramen: 0 pblico do jornal € mais apressado © mais envolvido com as varias matgrias focalizadas pelo. peri ico; 0 piblico do livzo é mais sletivo, mais reflexivo até pela posibildade de eseother um momento mais soltrio para lero autor de sua proferéncia. Em muitos casos, 0 piblico chega a ser basicamente igual, uma vez que 0 ‘mesmo letor que feui a vida através das reportagenstam- bem a fruiré através das pinasltergras: a attude dinte do texto é que muda. * Nessa mudanca de suport, que implica a mudanga de stitude do. consumidor, a crdnica sti lucrando. As posibildades de letura eriiea se tomam mais amplas, a Fiqueza do texto, agora liberto de certs referencialidades, atua com maior liberdade sobre o leitor — que passa a ver novas possibilidades interpretativas a partir de cada releitura, ‘Assim, quando a crénica passa do jomal para o liv, amplia-se a magicidade do texto, permitindo ao leitor dia- logar com o cronista de forma bem mais intensa, ambos agora mais climplices no solitério ato de reinventar 0 ‘mundo pelas vias da literatura Aida no contexto do liv, conforme vimos a0 longo do nosso trabalho, é que 0 préprio estudo da obra se torna mais realizivel, permitindo que o estudioso descubra as caracteristicas de cada escritor. No caso especifico da leitura de uma determinada erénica, sua publicagio cm livro também facilita 0 estudo intertexto para melhor con- firmagio dos eaminhos interpretativos. ‘iilen Hidistotach ie ue? PROG. cFabileeee tA roteiro bésico (mas no tinico) de leitura critica, pelo qual estudaremos: 1.2) a possivel relagdo entre a crénica em estudo ¢ o livro em que ela esté inserida, especialmente no que se re- fere & erénica-titulo; 2.9) 0 ponto de vista do narrador-repdrter, pois a sua maneira de ver 0 mundo implica @ forma como os aconte- cimentos atuam sobre ele para, depois de narrados a partir do fngulo escolhido, atuarem sobre o leitor; 3.9) 0 dislogo entre o narrador ¢ o interlocutor vir- tal, o que dependera de 0 foco narrativo estar na primeira pessoa, na tereeira ou numa falsa terceira pessoa (quando percebemos que, embora se coloque externamente, 0 ¢ro- nista esté incluido na narrativa); 4.9) a ficcionafizagio de fatos © pessoas, 0 que per- mite um salto maior do plano individual e particular para © plano coletivo ¢ universal; 5.9) 0 processo associativo © a construgéo das ima- gens, na busca da esséncia dos seres € das coisa : j " 62) 0 lirismo reflexivo, como forma de jogo lidico entre 0 sujeito ¢ 0 objeto, igualmente na busca de uma compreensio do homem naguilo que esté fora do homem; 7.9) finalmente, a estrutura escolhida pelo autor para ‘ensinar, comover e deleitar, através de relatos simples © aparentemente soltos, porém plenos de humanidade. ‘Tudo isso, porém, s6 funcionaré se estivermos des- pidos de preconceitos © se no exigirmos da crdnica as Tungies especificas de outros géneros. No mais, € usar a sensibilidade e permitir que a narrativa reinvente 0s mo- mentos belos da nossa vida vulgar, despertando também em nés o poeta adormecido.

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