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PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

PROGRAMA DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA – EPB/Cnpq


COTA 2017-2018

Relatório Final

A VIOLÊNCIA DA DITADURA MILITAR NO ROMANCE CONTEMPORÂNEO

Grande área: Letras


Subárea: Literatura Brasileira
Orientador: José Helber Tavares de Araújo
Orientando: Ruan Igor Silva de Araújo

Campina Grande, 09 de julho de 2019


RESUMO
Sabe-se que o Brasil vem sofrendo, ao menos nos últimos cinco anos, profundas
transformações econômicas e sociais. Estas mudanças ocorrem muito em decorrência de
uma passagem das expectativas de desenvolvimento geradas com o lulismo, que tomaram
expressão máxima nas manifestações de rua de 2013, para uma guinada política de
implementação da matriz neoliberal de governança, caracterizada por intensificação da
desigualdade social e ascensão de tendências culturais conservadoras. A nossa pesquisa
é justamente identificar se houve, de imediato, romances que propuseram incorporar a
temática do contexto atual brasileiro e que tipos de recursos técnico-literário usaram para
tal constituição. Após análise de dez romances, todos publicados em 2015 e indicados à
prêmios literários, chegamos a constatação de que o material social das narrativas pouco
contempla questões políticas contemporâneas, além de carecer de personagens voltados
para a sensibilidade social ou mesmo investimento em protagonistas das camadas
populares. Levamos esta pesquisa ao entendimento de que parte significativa da
instituição literária brasileira, ou seu sistema atual até 2015, pouco evidenciou
consonância com o tempo histórico presente, procurando adentrar em outros caminhos
estéticos da plasticidade romanesca, como a vertente memorialística ou questões de
constituição de identidade subjetiva. Do panorama de análises desenvolvido, nos
deteremos mais especificamente na do romance Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens
Paiva, como romance de expressão desta temática na narrativa contemporânea.

Palavras-Chave: Literatura Brasileira; Romance Contemporâneo; Ditadura Militar


INTRODUÇÃO
Diante desta condição do romance contemporâneo, o presente projeto
levantou um diagnóstico da situação do romance brasileiro depois de 2013. Este
ano foi o marco de nossas discussões por acreditarmos que as insurgências das
manifestações que tomaram de conta do país concentram o momento de
implosão da Nova República, pois é, a partir deste momento, que o país é
tomado por uma série de instabilidade política, social e cultural, que tem como
horizonte final uma profunda crise, com culminância no golpe de 2016. Frente a
isso, a intenção do projeto foi acompanhar ano a ano os principais movimentos
que o gênero romanesco tem oferecido no âmbito estético e temático para
entender que tipo de diálogo o romance contemporâneo estabelece com as
pautas e sentido histórico do presente. Ao que podemos conferir, do ponto de
vista dos romances de 2016, há uma inclinação para a discussão em torno de
temática da ditadura militar.
Podemos dizer que este problema que se colocou como um desafio em
nossa pesquisa advêm de um ensaio: “Dez fragmentos sobre a literatura
contemporânea no Brasil e na Argentina”, de Ricardo Lísias (2010). Nele, o autor
faz a seguinte reflexão:
A literatura no Brasil simplesmente esqueceu a ditadura militar,
deixando-a relegada a poucos textos, no mais das vezes de folego
estético reduzido. Ao contrário, o que surgiu foi a recriação
ficcional da chamada violência urbana, uma espécie de
assombração das classes médias e altas e um problema real para
as classes baixas. (LÌSIAS, 2010, p.322).

Os romances ainda buscam recuperar algum significado do período para


o presente, como uma forma de revisão histórica de uma época inacabada. Esta
ditadura presente se encontra nos movimentos antidemocráticos do Brasil
contemporâneo. São sobre estes romances que queremos nos debruçar nas
análises.
Longe de serem diagnósticos precisos, os apontamentos aqui colocados
são questões sempre tratadas no âmbito do texto literário, logo a formulação do
problema, a análise e interpretação dos romances se dá no campo da crítica
literária e suas relações com as ciências humanas, havendo sempre amplo
espaço para discussões e redirecionamentos.
OBJETIVOS
 Analisar e interpretar romances que são marcados pela temática
de um problema de violência social, mas que se faz sentir nos
relatos de maneira individual; também marcados por conflitos
contemporâneos mimetizados no plano humano através da
memorialística da violência do Estado, como um passado latente
que busca redenção no presente.

 Caracterizar uma constância histórica e estilística a partir da


categoria analítica utilizada aqui – “violência e repressão nos anos
de chumbo” – como maneira de compreender uma tendência
contemporânea do romance brasileiro contemporâneo,
contrastando romances de 2015 com os romances de 2016.
MATERIAL E MÉTODOS / METODOLOGIA
Nos estudos literários, a seleção de uma fortuna crítica qualitativa é uma
maneira de fundamentar uma pesquisa a partir do momento em que a tradição
possa esclarecer termos e estilos de uma obra, explicar possibilidades de leitura
e estabelecer zonas de contato com a tradição, a história e outros campos de
conhecimentos. No entanto, o pesquisador em literatura deve estar atento para
situações em que a crítica comete exageros, arbitrariedades e concepções
confusas, sendo de extrema relevância que toda fortuna crítica exija do
pesquisador, através da comprovação textual, uma revisão rigorosa. Os estudos
de Antonio Candido (2000) sobre crítica e teoria literária evidenciam esta
rigorosidade no olhar sobre o texto e o contexto, além de oferecerem paradigmas
de crítica.
Além disso, a verificação do que seria a marca de um tempo histórico,
econômico ou político como elemento estruturante das obras exige do
pesquisador atenção quanto ao acuro conceitual. Como aponta Peter Bürger
(2008), cuja obra também é referência importante para esta pesquisa, “na ciência
da literatura, é importante saber se as categorias possuem uma natureza que
permita investigar a conexão entre as objetivações literárias e as relações
sociais”. Justamente por esta situação de racionalização literária de um conceito
sociológico é que não é indicado se apropriar inteiramente apenas dos
fundamentos originais dos termos, como se pudéssemos aplicar os conceitos
dos estudiosos Laval e Dardot, ou Boltanski e Chiapello diretamente no texto
literário, mas verificar em que medida suas conclusões podem ser identificados
na transfiguração da categoria literária. Neste sentido, são autores basilares
Rancière (2005), Galard (2012), Didi-Huberman (2010), Honneth (2008), Butler
(2015), Bourriaud (2011), Habermas (2015), Arantes (1992; 2014), Safatle
(2015) e Zizek (2016).
É importante ainda a compreensão de que esta pesquisa é de natureza
metodológica comparativa e que, sem os principais pressupostos de um estudo
de literatura comparada, corre-se o risco de criar apenas meros paralelismos,
sem se preocupar com a unidade textual, o significado estrutural do recorte e a
importância para o contexto da tradição literária. Assim, uma postura
comparatista será necessária, com o objetivo de buscar também as múltiplas
afinidades estéticas, temáticas e estilísticas dos autores em questão. Vale
ressaltar que é o texto literário quem orienta os percursos de uma crítica,
principalmente no que pode dizer respeito à sua temática. Caso, ao logo do
estudo, alguma situação histórica ou cultural aflore de maneira incisiva dentro
dos romances, pode ser necessário a complementação teórica com outros
estudos, de caráter sociológico, psicológico, econômico, filosóficos ou,
meramente literário, já que é da condição da literatura este devir de significados.
Com o uso de uma diversificada fundamentação teórica para o
desenvolvimento desta pesquisa, fica patente a preocupação em especial com
os procedimentos pragmáticos da metodologia que envolverão o ato de leitura e
de análise literárias. A primeira ação referente à pesquisa será a apreciação
minuciosa do objeto de estudo, que compreende basicamente os principais
romances publicados no ano de 2016. Para este levantamento, há de se recorrer
ao principal prêmio de literatura brasileira: o Prêmio jabuti, na categoria romance.
Para cada ano de premiação, a organização do Jabuti elege dez finalistas em
cada categoria. Utilizaremos estes romances com uma amostra inicial,
averiguando quais as possíveis narrativas dão ressonância ao universo
interpretativo do nosso enfoque, para, em seguida, aprofundá-los. Segue abaixo
os romances selecionados pelo Jabuti em 20161:
Romances indicados ao Prêmio Jabuti 2016
A Imensidão Íntima dos Carneiros, Marcelo Maluf (Reformatório)
Volto Semana Que Vem, Maria Pilla (Cosac Naify)
Rebentar, Rafael Gallo (Editora Record)
O Senhor Agora Vai Mudar de Corpo, Raimundo Carrero (Editora Record)
O Grifo de Abdera, Lourenço Mutarelli (Companhia das Letras)
Mulheres Que Mordem, Beatriz Leal (Imã Editorial)
Desesterro, Sheyla Smanioto (Editora Record)
A Resistência, Julián Fuks (Companhia das Letras)
Ainda Estou Aqui, Marcelo Rubens Paiva (Alfaguara)
Bazar Paraná, Luis S. Krausz (Benvirá)
Listas extraídas do site: www.premiojabuti.com.br
O passo seguinte foi um levantamento das principais referências críticas
sobre as obras dos autores, ato imprescindível para tornar compreensível as
peculiaridades já abordadas pela crítica, além de esclarecer a posição
contextualizada dos romances na bibliografia dos escritores. Como dito
anteriormente, identificamos que os romances A imensidão íntima dos carneiros,
de Marcelo Maluf, Volto semana que vem, de Maria Pilla, A resistência, de Julián
Fuks, Mulheres que mordem, de Beatriz Leal e Ainda estou aqui, de Marcelo
Rubens Paiva revisitam o tema da ditadura militar. Por que este fenômeno
aparece tão enfaticamente nesses romances? Como tratam a questão? Que
configuração e perspectiva são elaboradas o problema da repressão militar e
que função narrativa esta temática exerce na obra?
Para o início da pesquisa, optou-se também por uma leitura concomitante
a leitura da seleção dos romances: o aprofundamento nas categorias teóricas. O
objetivo desta pesquisa exigiu uma apreensão mais rigorosa da condição em
que os personagens e os narradores apreendem o que chamamos “o novo
tempo do mundo”. E como temos uma revisitação da história da ditadura nos
romances, é necessário pensar sobre o que foi e o que resta da ditadura na
sociedade brasileira atual. Então nossas leituras serão direcionadas pela

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Como o marco histórico adotado é as jornadas de meados de 2013, opta-se por iniciar as
pesquisas pelos romances de 2014, romances concluídos pós-manifestações.
atualidade do debate em torno do que significa o regime autoritário em tempos
de esfacelamento da democracia, seguido pelas leituras das formas de
resistência. Ao que tudo indica, temos uma hipótese: os romances estão
voltando para o passado para apontar com mais profundidade uma questão
colocada na atualidade: o estado de exceção. O obscurantismo do passado que
aparece como contraexemplo para uma sociedade sem expectativas de um
futuro vindouro.
Por conseguinte, estabelecida esta etapa, o momento posterior foi de
interpretação e análise a luz das discussões teóricas realizadas. É desta ação
que se verificará – ou não – a existência da relação entre atualidade histórica e
atualidade romanesca. Em cada obra, separadamente num primeiro momento,
e em estudo comparado, num segundo momento, a fim de perceber a existência
de similaridades na técnica adotada pelos autores e os motivos estéticos,
filosóficos e sociais deste diálogo.

RESULTADOS
A pesquisa realizada já nos dá alguns resultados importantes para o
debate. O primeiro deles se percebeu logo nos primeiros textos críticos
analisados. Ora, as questões chaves que colocamos em discussão e que foi
norteadora da pesquisa foi: diante da história do Brasil em que não há reparação
e desmonte de diversas estruturas legadas pela ditadura militar, ainda existe
obras literárias que represente as problematizações das contradições sociais do
Brasil naquele período? Que tipo de visão e discurso estes romances possuem
sobre este período da história do país? Em tempo, a chegada do regime
neoliberal trouxe, junto com seus dispositivos concorrenciais, um discurso moral
e conservador que, no Brasil, tem flertado com uma ideologia de direita,
refundadora de privilégios e autoritarismos que até então pensava-se encerrada
com o fim da ditadura militar, nos anos 80. Tem o romance brasileiro apresentado
abertura em sua estética para entender esta nova sensibilidade na qual segrega,
domina e violenta a população? Os romances que abordam os “anos de chumbo
do país” seria então uma resposta a esse novo militarismo?
Podemos dizer que este problema se coloca como um desafio que foi
evidenciado com certa preocupação em ensaios de dois escritores: “Dez
fragmentos sobre a literatura contemporânea no Brasil e na Argentina”, de
Ricardo Lísias (2010), e “A era da pós-ficção: notas sobre a insuficiência da
fabulação no romance contemporâneo” (2017), de Julian Fucks.
No primeiro texto, Lísias constata que a literatura brasileira ainda carece
de ficcionalizar traços importantes da sua história, como, por exemplo, o legado
de uma literatura sobre o golpe de 64. Aponta assim a falta de uma obra
contundente sobre o tema, já que, na maioria dos romances posteriores ao
período histórico referido, houve um deslocamento da temática da violência de
Estado para a violência urbana, esta última síndrome da classe média brasileira.
A presente proposta de pesquisa buscou em seu principal objetivo construir
uma rede panorâmica do romance brasileiro atual, agora focado no ano de 2016,
sob a perspectiva de identificar as representações de situações de acirramento
social das identidades humanas provocadas por aquilo que pesquisadores como
Luc Boltanski e Ève Chiapello (2009) denominaram de “o novo espírito do
capitalismo”, mais especificamente como essa nova ordem do neoliberalismo
autoritário adentra na estrutura sócio-política brasileira. Esta pesquisa é
continuidade da pesquisa anterior. Os principais romances publicados em 2016
apontariam para o contexto de transformação social que o Brasil tem passado
desde 2013? Sabemos hoje que o Brasil atravessa uma profunda crise
institucional, econômica e cultural, mas ainda não sabemos se a produção do
gênero romanesco brasileiro se encontra a altura destas discussões prementes.
A pesquisa encontrou uma conexão existente entre o romance brasileiro e o seu
grau de comprometimento com o tempo hodierno. Isso não significa que estamos
preestabelecendo a busca de um romance engajado em uma causa específica,
mas sim estamos procurando entender como a autonomia estética do romance
pode leva-lo a uma situação de completa anomia do material social trabalhado
na representação literária, como ocorreu na pesquisa anterior. Percebemos na
perscrutação dos romances de 2015 que existiu pouca reverberação temática
dos problemas da sociedade brasileira, tratados de maneira tangencial, quando
muito, percebidos com um certo distanciamento. Agora é o momento de
adentrarmos nos romances de 2016, para saber se esta situação do romance
contemporâneo permanece ou está suscetível às transformações.
Repetimos aqui o critério para a seleção das obras da pesquisa anterior,
pautado não só pela temática prévia, mas pelo destaque que tiveram tanto na
crítica literária especializada quanto nos concursos literários de expressão
nacional (no caso desta pesquisa, o Prêmio Jabuti). Dos dez romances finalistas
do prêmio Jabuti de 2016, identificamos uma categoria possível de análise: cinco
romances carregam a temática da violência da ditadura militar. Estes servirão
para um corpus mínimo introdutório e ilustrativo de uma questão muito longe de
se esgotar, mas que tem um valor de discussão contemporânea no momento.
Volto semana que vem, de Maria Pilla, A resistência, de Julián Fuks,
Mulheres que mordem, de Beatriz Leal e Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens
Paiva revisitam o tema da ditadura militar. Este olhar para um passado negro da
história brasileira se faz presentificado de acordo com o atual contexto, primeiro,
de uma necessidade emergencial de resposta ao discurso negacionista da
ditadura militar fomentado pela nova direita brasileira, segundo, para chamar
atenção ao novo golpe implementado na democracia brasileira através da
destituição da presidente Dilma Roussef, e por fim, com a militarização crescente
da sociedade e de como persiste a estrutura política e social de um militarismo
traumático, de ontem e de hoje. A intenção é perceber quais recursos estéticos
e estratégias narrativas estas obras recorrem para ficcionalizar este aspecto que
está inserido na nova era do capitalismo no Brasil. Com esta temática
contrastada com os romances analisados do ano de 2015, parece que temos um
bom portfólio para discutir uma sensível mudança da forma/temática da
produção romanesca brasileira contemporânea.
Segue abaixo resultados diretos das discussões de cada romance:

a) Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva


Ainda Estou Aqui, de Marcelo Rubens Paiva é o romance que alia, de um
lado, todos os eventos catastróficos da ditadura militar, como tortura,
desaparecimento, trauma, luto e direito de reparação, e do outro, ascensão e
derrocada política de uma esquerda sobrevivente ao autoritarismo da ditadura.
O narrador, Marcelo, que traz ao romance a busca de constituição de sentido da
vida de sua mãe, Eunice Paiva. É um tipo de narrador que se encaixaria muito
bem dentro da escrita de si, escrita do outro. Porém, o que nos chama atenção
é que ao descrever a velhice difícil de sua mãe, a lenta perda de sua memória,
o romance faz-nos sentir que a memória e história do país que também vão se
apagando junto com a personagem. O esquecimento da subjetividade singular é
também o processo de um país que vai definhando. A personagem mãe de
Marcelo participa da política presente, ainda que muitas vezes involuntária. É o
caso de negar o convite para participar do governo do ‘presidente ex-líder
sindical’ ou sentar ao lado de FHC e o General Alberto Cardoso para receber,
em cerimônia midiática, o direito de óbito do marido, deputado Rubens Paiva,
cassado, torturado e assassinado pela ditadura. Mas também de ser advogada
de sindicato, trabalhadores e partido. A escrita de si romanesca de Marcelo
Rubens Paiva não nega o direito da política na forma da vida social. E este tem
sido até então o que poderíamos dizer uma resposta intrigante e rica de sentidos
no meio da produção romanesca contemporânea. Paiva constrói através de
depuração dos fatos pessoais, atos políticos, de reparação e depuração do
sofrimento apontados na ditadura. O romance tem também uma função de
reparação em relação a questão documental no país, já que os documentos e
registros da ditadura nunca foram abertos a sociedade civil no país. Assim, há
no romance uma transcrição do discurso de Rubens Paiva, na rádio,
conclamando a população para lutar contra o golpe de 64, para que as pessoas
reajam, dando ao mesmo tempo, rigor e dramaticidade a narrativa quanto valor
histórico e documental. Sem dúvidas, é uma obra que melhor faz o diálogo entre
passado e presente do país e de como o legado da violência de estado produziu
a sociedade atual.

b) Mulheres que mordem, de Beatriz Leal


O romance de Beatriz Leal se passa no contexto histórico das ditaduras militares
na América Latina. De alguma forma, o romance põe em representação questões
muito comuns a todos os país que, durante os anos 60-70 viveram esta situação
vivenciaram golpes de estado e regimes ditatoriais. Mulheres que mordem é um
romance que poderíamos dizer polifônico, já que entre seus capítulos há uma
diversidade de gêneros e de discursos. Há por exemplo, uma entrevista com um
torturador. Nesta entrevista, o militar abordado chega a demonstrar sua crueza
e suas atrocidades, ou seja, sua desumanidade, com a normalidade de quem
cumpria funções burocráticas. Talvez estas sejam as passagens mais chocantes
do romance: estupros, torturas, sumiços, doação de criança para militares. Uma
destas crianças é Laura, a protagonista do romance, que é arrancada dos braços
da mãe, Clara, durante a ditadura, e entregue para criação justamente para
Elena e o militar torturador Ramiro. Ou seja, Laura, sem bem saber, é filha
legítima de uma vítima da violência de estado em seu país, e é uma das crianças
desaparecidas e procuradas do movimento que teve repercussão no mundo todo
como “As mães da praça de Maio”. A outra personagem da história se chama
Rosa, avó de Clara, que sofre com a procura então de sua filha, sem nunca saber
que existiria uma neta sua. Rosa tenta manter contato o tempo todo através de
cartas com Roberto, pai legitimo de Clara, que fugiu da perseguição para o
Brasil. Como a mãe adotiva de Laura morre nos anos 80, o pai militar, Ramiro, a
leva para morar no Brasil.
O romance de Beatriz Leal coloca em evidência alguns dos processos da
condição feminina diante da crueldade da ditadura militar. A questão da
maternidade, por exemplo, é entrecruzada por duas mulheres em suas situações
de contraponto histórico. Enquanto Rosa luta incessantemente pelo direito de
reparação, em busca de notícias, do corpo e convive com o vazio traumático do
desaparecimento de sua filha, Elena vive a realização da maternidade através
da posição de mãe adotiva, ironicamente, de uma criança que foi arrancada da
mãe pela brutalidade dos porões da ditadura argentina. Neste sentido, Mulheres
que Mordem se encontra também como um romance que ao mesmo tempo que
é de denuncia de uma condição histórica que não pode jamais ser esquecida, é
um romance de reparação no sentido que dá uma resposta, ainda que ficcional
e dramática, ao paradeiro das crianças das “Mães de Maio”.

c) A resistência, Julian Fuks


O quarto livro abordado é o de Júlian Fúks. O livro tem um tema muito
próximo com o da Mulheres que mordem, na busca de um familiar, na relação
Brasil e Argentina, e naquilo que parece se ruma marca dos romances que
abordam a questão da ditadura: os dramas particulares em sua essência revelam
os grandes dramas históricos. Trata-se também de filhos de militantes políticos.
O narrador, em primeira pessoa, Sebástian, é filho de militantes políticos que se
exilaram no Brasil fugindo da ditadura militar argentina, junto também comum um
irmão adotivo, aos poucos o narrador vai buscando se encontrar com a história
desconhecida deste irmão e com suas próprias origens: “Só queria conhecer o
apartamento onde viveram porque estou escrevendo um livro a respeito… Um
livro sobre essa criança, meu irmão, sobre dores e vivências de infância, mas
também sobre perseguição e resistência, sobre terror, tortura e
desaparecimentos”. Este é o tom e linguagem de Fuks, que vai resgatando e
reconstruindo, “reparando” historicamente não apenas seu passado familiar,
mas o passado de um país sobre o regime militar. Não deixa de ser importante
lembrar que o livro alcançou o primeiro lugar no Prêmio Jabuti. A resistência é a
militância dos pais, é a luta do irmão, solitário, em se sentir parte do lar, e a luta
do narrador para compor sua narrativa entre fragmentos e pedaços da história.
Neste sentido, o romance faz o inverso, estilisticamente, dos romances do
período da ditadura: ao invés de fragmentar a linguagem, tenta recompô-la. Seria
então uma resposta literária de reparação, não mais de contestação, nem de
mera representação.

d) Volto semana que vem, de Maria Pilla


Em Volto semana que vem, a narradora fragmenta períodos de sua vida, com
datas especificas mas em ordem não cronológica. A obra se caracteriza por ser
um processo de registro de experiências passadas associado a aspectos
estético-literários; Boa parte do romance, assim como os outros dois, se passa
entre o exílio e o período no qual a narradora esteve presa na Argentina. O
encadeamento desse romance, as escolhas linguísticas e retóricas, nos
permitem transitar entre o que ora sentimos como relato autobiográfico inserido
em determinado contexto histórico, ora como texto ficcional, marcado pela
fragmentação e intermediação de elementos literários. Ou seja, podemos
ratificar aqui que a literatura de reparação caminha sempre entre o campo
histórico e o campo das particularidades da vida pessoa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o término das leituras dos romances em destaque, podemos chegar
a algumas conclusões parciais sobre a questão da relação entre universo
romanesco contemporâneo e a representação dos eventos sócio-políticos do
período da Ditadura Militar. A primeira delas a ser apontada é que os romances
tentam dar uma resposta a questão de Lísias, pois buscam trazer em seu
material temático questões do ordenamento social a partir do campo político, de
poder ou de Estado, voltado para discussões do passado militar a partir de um
prisma muito pessoal. Em segundo lugar, parece que há, no ano de 2015, ainda
uma valorização do tema da família, do memorialístico e da centralidade do Eu
no romance. O que nos leva a crer que a tendência a autobiografia seja um traço
estilístico especifico desta literatura de reparação histórica. Terceiramente, os
romances tocam, de alguma forma não na questão meramente de nação, ou
ditadura no sentido restrito de Brasil, mas sempre estão observando a questão
de forma mais ampla, envolvendo, por exemplo, a Argentina, como metonímia
de toda a América Latina. Resta mencionar que é bastante satisfatório apreciar
o ponto de vista do narrador de Ainda estou aqui, que elabora um enredo muito
funcional entre passado militar e o presente de um Brasil contemporâneo pós-
2013.

AGRADECIMENTOS
“O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil”. Sob o edital
PIBIC/CNPq-UEPB 2018/2019
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APRECIAÇÃO DO ORIENTADOR
Para as atividades do discente bolsista, ao iniciar a pesquisa,
direcionamos um cronograma de leituras e encontros quinzenais em acordo com
o plano de trabalho do projeto. Os textos de leitura, tanto teóricos quanto
literários, eram escolhidos previamente, fichados e debatidos em encontro, que
duravam, em média, uma hora e meia. Relata-se aqui que o bolsista sempre
participou destas reuniões com assiduidade e participação. E vendo os
resultados constante neste relatório, acredito que sua participação efetiva foi
crucial para alcançar os objetivos traçados, sempre trazendo questões, dúvidas
e interpretações possíveis de cada texto debatido. Além do mais, o discente
sempre se mostrou solicito e atencioso com a pesquisa, o que fez com que ela
caminhasse bem dentro do cronograma traçado.
As principais dificuldades surgiram muito mais pela natureza da pesquisa
do que necessariamente pelos procedimentos. Por exemplo, a carga de leitura
foi intensa e extensa, o que nos fez repensar a questão bibliográfica para o futuro
desenvolvimento da pesquisa, já que ela tem que ser concentrada em um ano
de atividades e de bolsa.
Por fim, quero acrescentar a qualidade das discussões estabelecidas com
o discente, que se mostraram em um nível acadêmico surpreendente para a
condição de um graduado. Acredito que este estudante termina esta pesquisa
com a certeza da iniciação cientifica concluída, ou seja, os primeiros passos para
a vida de pesquisador foram dados na direção correta.
PRODUÇÃO CIENTÍFICA
Destacamos que a natureza desta pesquisa só permitiria a apresentação
em encontros científicos a partir de quando os resultados da amostra estivessem
analisados em sua integralidade, o que só ocorreu nos meados de junho de
2018. Sendo assim, somente a partir de agora podemos iniciar a apresentação
deste trabalho em congressos e demais eventos científicos.

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