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Em memória de Alfredo Fernández Habib Sampaio, meu filho mais novo, metade de mim

devolvida à terra, que partiu antes do combinado, pois ele tomou meu lugar na fila. Que Deus
todo poderoso te acolha, meu pequeno, e que você, junto com seu avô, tenham a eternidade
para um ficar sorrindo para o outro, como sempre gostavam de fazer... Benção, pai, Deus te
abençoe, meu pequeno, até um dia...

AGONIA

“Viver é muito perigoso.”


(Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas)

A agonia mata mais que doença de coração. Agonia de ver pretume da noite que
não acaba, de ouvir filho chorando, de andar descalço em rua de pedra, de subir
ladeira que não acaba nunca. De entrar no mato e ouvir berro da pintada, de
escutar rastejo de jacaré, de ouvir chocalho de cascavel, de ouvir o vento uivando
de madrugada. Agonia de ver relâmpago rasgando o céu e o estrondo do raio
caindo perto.
Essas agonias matam muita gente. Tem outra agonia: a de ficar no meio de
multidão. Essa é a pior: sentir-se sozinho no meio de muita gente. Por isso é que
eu gosto do sertão. Lá dentro, quando se escuta o estrondo da chuva próxima, os
meninos se separam dos homens. Só fica quem sabe se mexer no meio de tanto
furdúncio. As águas caem com força e a água dos alagados sobe muito, inundando
mata e alma.
Mas o caboclo esperto vira o cano da papo-amarelo para baixo, ajeita a cinta para a
faca não cair, vira o embornal para trás e trata de fugir de descampado, lugar de
cair raio. Grota de pedra é um bom refúgio, mas no sertão elas são raras. A agonia
dá dor no peito, sufoca a gente. Pior que ela, só o nó na garganta de pai
enterrando filho, desalento da ordem natural das coisas. O natural é os filhos
enterrarem os pais, missão cumprida, amém. Mas pai enterrar filho é fazer a terra
girar ao contrário, é trocar o claro do dia pelo negrume da noite, é fazer rio subir
em vez de descer...
Agonia é ver gado morrendo de sede e nem uma gota de chuva despendurar do céu
para melhorar o estrago... É soluço de velho sentindo falta de casa. Agonia é olhar
para o papel em branco e não saber o que escrever. Agonia é sentir presente o
passado, é a falta do amigo distante, é o descompasso que a morte causa no meio
dos que ficam.
Agonia é desapertar parafuso enferrujado, é cortar com faca cega, é rasgar o mato
sem rumo e sem sentido, é correr na macega e se sentir cada vez mais longe de
casa. Agonia é ter sede e não ter o que beber, é deitar e não ter sono, é rezar para
santo que não se sabe se anda muito ocupado. É pedir socorro a ninguém, no meio
do nada, e achar que tudo vai acabar bem.
Agonia é gostar de longe, é esperar data muito distante no calendário, é rotina de
preso contando os dias para sair da cadeia. Agonia é, mais do que tudo, ficar
acoitado numa tocaia, dia e noite, noite e dia, esperando o encomendado que
nunca chega... É esperar o melhor momento para apertar o gatilho e ouvir o
estrondo do tiro, o corpo caindo do lado da montaria e a carreira desembalada,
mato a fora, para muito longe do malfeito, e esperar para diminuir o frio do
estômago e a tremedeira das pernas.
Agonia mesmo é passar horas em frente à sepultura do filho já morto, chorando,
rezando, pedindo a Deus pela metade de mim devolvida à terra...

a.c.sampaio
em 21/08/2018

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