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Universidade Federal Fluminense

Estudos de Mídia
Mídia e Horror 2019.1
Dara Coema Nascimento Cruz Pereira

Análise do conto “Escárnio”

O produto é muito bem escrito, deixando a experiência de leitura agradável. De cara


por se passar no banheiro já pensei nas lendas da Loira do Banheiro, como a própria
autora explicou no final, uma referência que ressoa com o imaginário infantil brasileiro.
Os estímulos sonoros descritos inicialmente são do dia-a-dia, simples e fáceis de se
lembrar e se relacionar, uma característica interessante que torna o conto mais
universal. O foco na água - chuva, pia, descarga e a torrente final - mexem com um
medo comum, de tempestades e afogamento em geral.
O silêncio incômodo inicial no banheiro onde a personagem se encontra solitária e
confusa com a falta de água (fato que ao mesmo tempo pode ser normal mas também
estranho), é importante pois gradativamente aumenta a tensão que é passada para
o leitor, fazendo-o temer o que está por vir, assim como a calmaria antes da
tempestade. O susto da torneira e descargas disparando após estarem
aparentemente sem funcionar é ótimo e em uma produção audiovisual seria um bom
jumpscare ou uma forma de quebrar a espera tensa com um susto. A corrente de
vento, clássica do sobrenatural, e o fato de que a personagem logo se encontra presa
no ambiente sem razão também ajudam a criar o sentimento de terror.
Os sussurros vindos do vaso são um fato inesperado, que poderia ser cômico não
fosse a situação estranha que já se instala, porém o fato de que riam e gritavam
alegremente me confundiu um pouco, já que depois parecem nervosas e alertam para
que a personagem fuja, aparentemente querendo ajudar. Claro que o som inesperado
de vozes e risos infantis é muito utilizado em produções de terror, mas nesse caso
não me afetou da forma que pretendi. Porém, o frenesi posterior de gritos e choros
cada vez mais altos me trouxeram logo de volta. A explosão de água, paralela a
tempestade, é uma ótima cena. Sonora e caótica. Eu apenas esperava que durasse
um pouco mais. Estava bem escrita e se fosse um pouco maior o leitor poderia ficar
mais nervoso e ansioso com a situação. O medo do afogamento é um dos medos
mais naturais e enervantes, visto que é uma situação em que lentamente vai se
perdendo fôlego e força para nadar e lutar, ainda mais em um banheiro que vai
enchendo aos poucos.
Uma adição a questão paranormal, que também alongaria a cena, seria falar que a
água não escapava pela porta ou pelas janelas do banheiro, algo que eu naturalmente
pensei e poderia acabar sendo um furo na história. Evitar esse furo de roteiro traria
como bônus mais um fator inexplicável e anormal. Outra possibilidade para alongar a
cena seria dar uma pequena falsa esperança da personagem se salvar, só para no
final destruir e realmente matá-la.
No geral é um conto muito bem feito, conciso, sem muita enrolação desnecessária, e
que utilizou bem estímulos sonoros e medos universais, trazendo-os para o
sobrenatural e o desconhecido.

Submerso

Faltam cinco minutos e todos olham ansiosamente para o relógio. Tic-tac, tic-tac. A
energia vibrante e a excitação de meus colegas era quase palpável, todos olhavam
para a janela em direção ao campo ensolarado. O sinal do recreio toca. A explosão
de vozes e passos apressados se sobrepõe a voz da professora e todos se
movimentam rapidamente arrastando mesas e cadeiras. Com calma eu retiro meu
lanche da mochila e me encaminho pra fora da sala sem pressa. Afinal, não tenho
muito pra onde ir ou amigos para passar o intervalo. Como sempre vou em direção
ao banheiro do último andar, quase sempre vazio por sua distância e algumas lendas
bobas. Também é o único banheiro que nunca fora renovado, acusando a história de
anos de minha escola enquanto os outros banheiros carregavam modernas pias
automáticas e balcões de mármore.
Quando entro, o silêncio profundo é quebrado por meus tênis que chapinham na água
parada que sempre se acumula no chão. Abro a porta da última cabine e me sento
na privada, apoiando meu livro e lanche no parapeito baixo da janela. É isso, meia
hora aqui sozinho. O cheiro – umidade e urina velha - não é dos melhores, mas é o
que tenho. E é preferível comer num lugar horrível, mas em paz, do que apanhar das
outras crianças no pátio. Começo a comer meu sanduíche enquanto folheio o livro
avançando para a parte em que parei. Lia uma história de horror de Lovecraft, um de
meus autores preferidos. Uma das pias pingava lentamente, quando subitamente ouvi
passos e vozes animadas. "Fica tranquilo, ninguém nunca vem aqui! Não vão ver a
gente." Levanto meus pés para esconder o fato de que sim, alguém vai ali. Todos os
dias. Por baixo da cabine, conto três pares de pés. "É claro que vai funcionar! A gente
abre todas as torneiras e aí antes mesmo do fim da aula do Paschoal já vai alagar
todo o andar. Eles devem liberar os alunos e a gente vai conseguir ir pra casa jogar
vídeo game."
Ah não, eu sei quem são esses. Pedro, Felipe e Igor, os valentões do colégio e
também o motivo para que eu me esconda no banheiro todos os dias. Eles não podem
saber que estou aqui. Ouço eles rindo e indo em direção às pias com o intuito de
começar seu plano, mas não escuto nenhum barulho de água. "Ué, não tem água?
Como assim?", um deles reclamou. Eu suava frio enquanto me escondia e ouvia os
meninos girarem as torneiras com raiva e sem sucesso. "Que bosta! Esse banheiro
velho não serve nem pra isso.", Pedro, o líder do grupo, falou enquanto chutava uma
das pias. BLAM! A porta do banheiro se fecha num estrondo e todos gritam de susto.
Os meninos ficam em silêncio por alguns segundos. "Quem fechou a porta?".
Tudo escurece. "Vai abrir a porta, Igor!" Começo a ouvir trovoadas, o que era estranho
já que o tempo estava lindo mais cedo. Quando olho para a janela que dava para
minha cabine vejo que uma tempestade desabava do lado de fora. A temperatura
também havia baixado e eu me encolhi ainda mais contra a parede, sentado em cima
do vaso sanitário. Enquanto ouvia o trio puxar e empurrar porta incessantemente,
uma risada feminina começa a ecoar e reverberar pelo banheiro, primeira baixinha,
mas logo aumentando em volume cada vez mais. Meu coração batia rápido e tive
vontade de fugir, mas eu ainda tentava me esconder dos outros meninos. "Quem tá
aí? Abre essa porta!" Não houve resposta alguma, mas a risada continuava como se
zombasse da situação. Cerca de dois minutos se passaram quando tudo finalmente
se calou. Enquanto isso eu tentava estabilizar minha respiração e entender o que
estava acontecendo. "Que merda foi essa?", Felipe sussurrou.
Porém, antes que alguém pudesse responder escuto um grande estrondo e sou
jogado pro lado quando o vaso em que estava sentado explode, jorrando água para
fora. Escuto os gritos dos meninos do lado de fora e percebo que pelo barulho, todas
as descargas, assim como todas as torneiras acionaram sozinhas, esguichando água
para todo lado. "Socorro!", os meninos gritavam, batendo e chutando a porta do
banheiro. Eu havia subido no pequeno parapeito e agora conseguia espiar por cima
da porta de minha cabine. O trio ainda tentava a abrir a porta e eu observava incrédulo
e assustado enquanto o nível da água, que subia numa velocidade alarmante do lado
de fora, não acumulava nada dentro de minha cabine. Era olhar para um enorme
aquário enchendo aos poucos. "As janelas!", um deles gritou, nadando em minha
direção. Eu volto a me esconder e escuto os meninos abrindo as janelas. "Como
assim?", a voz de Pedro parecia quase como um choro, "A água não sai! Não sai!".
Ouvi eles abrindo e fechando as janelas, gritando de frustração, mas nada parecia
adiantar. Era como se algo impedisse a água, que já chegava quase no teto, de
escoar pelas janelas.
O desespero de meus colegas de sala se refletia em mim que não sabia o que poderia
fazer para ajudá-los. De repente, a água parou e nós ouvimos uma voz vindo da porta.
"Vinicius? É você aí dentro? Porque a porta está trancada, menino?" Era o zelador, a
única pessoa que sabia que eu costumava passar os recreios no banheiro. Aliviados,
os meninos responderam ao seu chamado enquanto eu continuava calado. "Seu Zé!
Seu Zé, abre a porta!”, Igor falava. Espiei novamente por cima da cabine e vi os três
meninos gritando e nadando em direção à saída, mas logo notei uma estranha
sombra que surgia embaixo d'água. Começo a gritar desesperado para avisá-los, mas
ninguém parece me ouvir e antes que pudessem chegar perto da porta, o vulto os
alcança e todos três são rapidamente puxados para debaixo d'água. Arregalo os olhos
e me escondo novamente, me encolhendo no cubículo, as lágrimas caindo e o
coração acelerado. Seu Zé continuava gritando e tentando abrir a porta e eu ouvia
movimentos violentos na água, como se alguém lutasse contra algo. Mas em questão
de segundos tudo parou e tão rápido quanto surgiu, o nível da água começa a descer
até que não houvesse nem uma poça no chão. Seu Zé finalmente abre a porta e corre
para dentro do banheiro, me encontrando encolhido no chão da cabine, tremendo e
chorando com as mãos tampando os ouvidos. Ele fala muitas coisas que não ouço e
me carrega para fora. No banheiro não há qualquer sinal da imensa quantidade de
água que havia antes ou mesmo de Pedro, Igor ou Felipe. Apenas uma única pia
aberta, a água lentamente vertendo da torneira, e no espelho logo acima a marca de
uma mão.

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