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Cidade aberta, resenha do livro "Construir e habitar" de Richard Sennett

Article · November 2018

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Bianca Tavolari
Insper Institute of Education and Research
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Urbanismo

Cidade aberta
Richard Sennett critica modelos de urbanização icônicos
para atualizar a relação entre a maneira de morar e construir
Bianca Tavolari

Richard Sennett. Construir e habitar. atuação como planejador. Assim, re-


Tradução de Clóvis Morris. solver o enigma entre ville e cité não
Record • 410 pp • R$ 59,90
passa só pela criação de categorias
conceituais mais complexas, mas tam-
Todos guardamos fragmentos de me- bém — e principalmente — por um sa-
mória das cidades que já visitamos. ber e um fazer iminentemente práti-
Uma rua larga e agitada, cheia de pe- cos. Resolver este enigma é repensar o
destres em ritmos e direções variados, planejamento urbano de cima a baixo.
uma esquina diferente de todas as ou- O ponto de partida não poderia dei-
tras, uma arquitetura inconfundível, xar de ser a obra de Jane Jacobs, auto-
um caminho repetido inúmeras vezes, ra do livro de urbanismo mais influen-
com todas as suas pequenas variações te de todos os tempos, que, já em 1962,
cotidianas. Se fecharmos os olhos, tal- criticava todo o planejamento urba-
vez seja possível não só acessar ima- no que não tivesse por base necessi-
gens e ritmos, mas também fazer um dades e desejos sociais concretos. Sen-
recenseamento de cheiros, perfumes, nett conta uma de suas conversas com
texturas, sons, sabores e relações. a amiga de longa data, em Toronto:
Uma cidade interessante é necessa- “Certa vez, quando tentava entender a
riamente torta: são as irregularida- relação entre cité e ville, comentei com
des, as marcas distintivas, as estrutu- Jane Jacobs que ela acertava mais com
ras incompletas e a diversidade que a cité que Mumford, ao passo que ele
atraem o olhar. Padrões urbanos or- acertava mais com a ville. [...] Talvez
denados, homogêneos e fixos são per- nossas discussões servissem para ani-
cebidos como monótonos e inautênti- má-la, evocando lembranças da velha
cos, seja para o visitante, seja para o torrente verbal incontrolável que ani-
morador. Em seu novo livro, Richard mava suas incursões semanais. Mas
Sennett se propõe justamente a pen- dessa vez, lembro que ela resumiu a
sar nesses elementos tortos e abertos coisa sumariamente, perguntando-
que conformam a experiência urbana. O viaduto Riverside Drive, a oeste de Manhattan, que -me: ‘Mas o que você faria?’”
Sennett faz uma distinção entre vil- teve a área inferior, historicamente degradada, reativada O próprio Sennett também pergun-
le e cité, que ilustram as diferentes ga- ta: “O urbanismo deve representar a
mas de sentido atribuídas a “cidade”. sociedade tal como ela é ou tentar
Cidade é tanto um espaço construí- fundadores ocidentais” do urbanis- fundo de cada um fossem distintos. mudá-la?”. A questão é problemáti-
do, com prédios, ruas, parques, pon- mo. A abertura de grandes bulevares Para Sennett, revisitar essas propos- ca. Totalizar e fixar uma essência a
tes e passagens, quanto um modo de por cima de ruas tortuosas e irregula- tas mostra suas inúmeras limitações e uma sociedade ou a uma cidade é o
viver. É um lugar físico e concreto — res em Paris, habitadas pela popula- consequências inesperadas — as gran- contrário do que deveria ser o traba-
ville —, mas também uma experiência, ção mais pobre e utilizadas para mon- des avenidas de Haussmann acabaram lho de um urbanista.
uma consciência coletiva, uma cultu- tar barricadas, foi uma das principais se tornando um enorme espaço de so- “Mas o que você faria?” A questão de
ra — cité. Para evocar o título do livro, marcas do barão de Haussmann. Em ciabilidade, as tramas de Cerdà impri- Jacobs permanece. Valendo-se da ex-
construir, por um lado, e habitar, por forma de rede, a nova cidade privile- miram monotonia e não exatamente periência de Délhi, Xangai e Medellín,
outro. Cité também faz referência à ci- giava a circulação e a ordem política, igualdade social, o Central Park pas- Sennett tenta responder formulando
dadania, ao lugar da democracia e de num arranjo em que o espaço cons- sou por um período de abandono e, o que chama de uma ética para uma
uma esfera de sociabilidade, ao vivi- truído faz terra arrasada da vida asso- hoje, é um lugar predominantemente cidade aberta. Abertura que se dá em
do no cotidiano. Ville, por sua vez, as- ciada ao lugar — a ville desbanca a cité. frequentado pela elite de Manhattan. muitos planos: no combate à hostili-
socia-se à técnica e à tecnologia, aos Já a trama das ruas que Ildefons dade às diferenças, na busca por su-
modos de configurar a forma urbana. Cerdà implementou em Barcelona Boas intenções primir os efeitos embotadores da tec-
Em português, “cidade” é palavra pretendia estimular a sociabilida- Construir para destruir espaços exis- nologia, no desejo de levar o meio
polissêmica: abarca todos esses senti- de, o acolhimento e, principalmente, tentes de sociabilidade, na tentati- ambiente a sério e sobretudo aumen-
dos sem anunciar a diferenciação, de a igualdade entre classes sociais, por va de criar uma ordem social do zero, tar a densidade da experiência urbana.
maneira muito semelhante à memória, meio de quarteirões octogonais inter- decerto já não é um caminho acei- Sennett fornece pistas que todos
que já vincula, de saída, aquela esqui- valados, cujas esquinas surgiam como tável, seja na versão de Haussmann, aqueles que se preocupam com o fu-
na específica aos encontros que tive- potencial lugar de encontro. A preten- seja no modernismo de Le Corbusier. turo das cidades deveriam conhecer.
mos nela, consolidando espaço cons- são era igualar a cité igualando a ville. Mas, como mostra Sennett e a histó- Mas o pano de fundo já é conhecido
truído e modos de vida numa coisa só. O Central Park de Frederick Law ria do planejamento urbano, o urba- há muito tempo: toda tentativa de
Mas, para Sennett, marcar a diferen- Olmsted foi concebido para reunir nista bem-intencionado que preten- conciliação entre ville e cité não pode
ça não é apenas importante — é fun- classes, raças e etnias diferentes, afir- de vincular ville e cité pode alcançar vir apenas dos desejos e das vontades
Paul Lowry/Creative Commons

damental. Isso porque modos de cons- mando que a inclusão social pode ser resultados desastrosos. Essa relação é de um planejador bem-intenciona-
truir e modos de habitar nem sempre fisicamente planejada — ao integrar a um enigma que precisa ser explorado do, por melhores que sejam as inten-
caminham juntos. Exemplos dessa ville, seria possível integrar a cité. e compreendido para ser solucionado. ções. O planejador é apenas mais um,
desconexão são os projetos desenvol- Esses urbanistas tentaram moldar o Além de ser um dos principais soció- a técnica é somente um dos elemen-
vidos por Haussmann, Cerdà e Olms- espaço construído para resolver ques- logos urbanos contemporâneos, Sen- tos. Talvez Jacobs abrisse um sorriso
ted, tido por Sennett como os “três tões sociais, ainda que os valores de nett também tem uma importante ao chegar ao final deste livro. 

18  Quatro­ cinco um  outubro 2018

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