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Revista Sobre Antropologia PDF
Revista Sobre Antropologia PDF
Revista
de
Antropologia
Publicação do Departamento de Antropologia
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Universidade de São Paulo
Volume 53 nº 2
SÃO PAULO
julho-dezembro 2010
Comissão Editorial
Heloísa Buarque de Almeida; Renato Sztutman; Laura Moutinho
Conselho Editorial
†David Maybury-Lewis (Harvard University, EUA); Eduardo Viveiros de Castro
(Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ); Fernando Giobelina
Brumana (Universidad de Cádiz); Joanna Overing (The London School of Economics
and Political Science, Inglaterra); Julio Cézar Melatti (Universidade de Brasília, DF);
Klaas Woortmann (Universidade de Brasília, DF); Lourdes Gonçalves Furtado (Museu
Paraense Emílio Goeldi, PA); Marisa G. S. Peirano (Universidade de Brasília, DF);
Mariza Corrêa (Unicamp, SP); Moacir Palmeira (Museu Nacional, Universidade Federal do
Rio de Janeiro, RJ); †Roberto Cardoso de Oliveira (Unicamp, SP); Roberto Kant de Lima
(Universidade Federal Fluminense, RJ); Ruben George Oliven (Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, RS); Simone Dreyfus Gamelon (École de Hautes Études en Sciences
Sociales, França); Terence Turner (University of Chicago, EUA)
Secretário
Edinaldo Faria Lima
Equipe Técnica
Editoração eletrônica: Claudia Intatilo
Revisão: Carla Kinzo e Tereza Ruiz
Revisão do inglês: Pedro Lopes
Capa: Ettore Bottini
Os artigos serão aceitos para publicação após análise, pela Comissão Editorial, de sua adequação ao formato
e à linha editorial da Revista e avaliação do conteúdo por dois pareceristas externos.
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Periodicals Directory, pela Hispanic American Periodicals Index.
Revista
de
Antropologia
Volume 53 nº 2
SÃO PAULO
julho-dezembro 2010
Publicação semestral
ISSN 0034-7701
1. Antropologia; 2. Etnografia; 3. Teoria e Método; 4. História da Antropologia.
e-mail: revant@usp. br
Edição eletrônica: http://www.revistasusp.sibi.usp. br
Claudia Fonseca
Direito às origens: segredo e desigualdade no controle de informações
sobre a identidade pessoal 493
Alba Zaluar
A abordagem ecológica e os paradoxos da cidade 611
Resenhas
Entrevista
Claudia Fonseca
The Right to the Origins: Secrecy and Hierarchy in the Control of
Information on Personal Identity 493
Alba Zaluar
The Ecological Approach and the Paradoxes of the City 611
Reviews
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Notas
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Universidade de Brasília
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os direitos são vividos pelos atores que se envolvem nessas relações confli-
tuosas. Isto é, como os direitos são vividos e como ganham sentido para
as partes. O foco estaria na indagação sobre como os atores orientam a
ação, como diria Weber, ou na compreensão de que regras estariam se-
guindo quando interagem, como diria Wittgenstein. Em uma palavra, a
etnografia dos conflitos supõe um esforço de compreensão das interações
entre as partes, com respaldo na experiência delas, de modo a viabilizar a
atribuição de um sentido que esclareça o desenrolar do conflito e/ou da
relação. Um bom exemplo deste enfoque abrangente da antropologia ao
abordar conflitos seria a análise do drama celebrizada por Victor Turner
(1957). A dimensão simbólica, portanto, vai muito além daquilo que
está expresso em qualquer código de direito, ou mesmo nos princípios
formais que balizam os procedimentos e nas leis positivadas.
A propósito, uma área que tem sido relativamente pouco estudada
no Brasil é a do direito de família, embora haja trabalhos importantes
publicados sobre o tema (Moura, 1978; Fonseca, 2000, 2006 e 2009;
Vianna, 1999 e 2005). Refiro-me especialmente ao campo jurídico em
sentido estrito, ainda que, evidentemente, a Antropologia do Direito não
se preocupe apenas com o que acontece nos tribunais, mas com todas as
formas institucionalizadas de equacionar conflitos. Quer dizer, a Antro-
pologia do Direito se interessa por todas as formas reconhecidas pelos
atores como apropriadas para equacionar conflitos, nas várias circunstân-
cias, assim como pelos processos sociais que envolvem disputas e pelos
procedimentos adotados para fazer valer direitos e interesses. De todo
modo, gostaria de estimular colegas e alunos a fazerem mais pesquisas
sobre direito de família no âmbito do judiciário. Por exemplo, casos en-
volvendo disputas sobre herança e sucessão, ou sobre separação e divórcio
costumam ser muito interessantes, e levantam questões muito mais am-
plas do que é explicitado no objeto imediato da lide ou disputa. Na An-
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análise das três dimensões contextuais que dão sentido ao que está efetiva-
mente em jogo em cada caso concreto, tem tudo para viabilizar uma com-
preensão mais ampla e profunda dos conflitos, das demandas por direitos e
dos procedimentos. Deste modo o aspecto simbólico dos direitos seria ple-
namente incorporado à análise, e a Antropologia poderia explorar melhor o
potencial de sua contribuição no diálogo com o Direito. Isto é, trazendo à
tona aspectos significativos dos conflitos e dos direitos que tendem a ser invi-
sibilizados no judiciário. Há quase seis anos (em 12 de maio de 2004) fiz uma
palestra na Escola Superior do Ministério Público da União, cujo texto ainda
está inédito, e na qual procurava abordar causas vividas com dramaticidade
pelos litigantes, mas que não eram recebidas adequadamente no judiciário.
Com o sugestivo título de “A Invisibilidade do Insulto: ou como perder o
juízo em Juízo”, e inspirado num artigo sobre a “paranoia do litigante” na
Austrália (Lester et. al, 2004), discuti os casos australianos comparando-os
com casos similares nos Estados Unidos e no Brasil assinalando que, em todos
eles, o judiciário identifica um aspecto de insanidade nos litigantes ao não
compreender a natureza das demandas encaminhadas pelos mesmos.
A propósito, gostaria de concluir minha intervenção com um breve re-
lato sobre o caso referente ao Brasil, e que foi retirado da tese de Ciméa
Beviláqua, hoje publicada em livro (2008). Trata-se do caso de um tra-
balhador de baixa renda e pouca instrução, que compra um terreno em
empreendimento imobiliário na periferia de Curitiba, e é enganado pela
empresa que não garante as condições de ocupação e os serviços oferecidos
no momento da compra. A falta de drenagem adequada provoca a inun-
dação do terreno e a danificação do barraco construído, causando enor-
mes prejuízos ao trabalhador. As dificuldades em negociar uma reparação
com a empresa, o acesso precário ao judiciário, e o desgaste ao longo do
litígio trazem muitos transtornos à sua vida pessoal – nos planos material
e emocional –, fazendo com que ele não consiga apresentar sua causa no
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Juizado sem relatar detalhes de seu sofrimento. Como o juiz não consegue
fazer com que o trabalhador limite sua exposição aos aspetos contratuais da
causa e à avaliação dos prejuízos materiais a serem indenizados, interpreta a
exposição como um discurso sem sentido, e condiciona a continuidade do
processo em uma nova audiência ao compromisso do litigante em passar
por um teste de sanidade mental. O trabalhador aceita fazer o teste, e o lau-
do do psicólogo do Ministério Público é muito interessante e revelador das
dificuldades do judiciário em lidar com certas demandas por direitos. Pois,
segundo o psicólogo, o trabalhador não seria apenas uma pessoa na plenitu-
de de sua sanidade mental, mas que se distinguiria pelo apreço e confiança
que teria em nossas instituições judiciárias. Quando enunciei o diagnóstico
do psicólogo ao final de minha palestra, para um público majoritariamente
de procuradores, ouvi um conjunto de vozes manifestando-se em uníssono
no auditório: “Então ele é louco mesmo!”
Notas
1 Texto produzido a partir da transcrição de intervenção na mesa-redonda “Antropologia do
Direito no Brasil: campo e perspectiva”, realizada em 20 de agosto de 2009 na USP durante
o I Encontro Nacional de Antropologia do Direito. A mesa foi coordenada por Ana Lúcia
Pastore Schritzmeyer, e também contou com a participação de Claudia Lee W. Fonseca,
Guita Grin Debert e Theophilos Rifiotis.
2 Trabalhei durante cerca de dois anos no Small Claims Advisory Service (Serviço de Acon-
selhamento Para Pequenas Causas), como conselheiro leigo prestando esclarecimentos ao
telefone para prováveis litigantes, e no final de minha pesquisa no Juizado também atuei
durante um mês como mediador de disputas (Cardoso de Oliveira, 1989).
3 Refiro-me ao tipo de relativismo que não leva a sério pretensões de validade, e do qual Geertz
faz questão de se distanciar em sua famosa conferência sobre o tema (Geertz, 1988).
4 A ideia seria de estreitar ou afunilar os parâmetros de classificação e de interpretação do litígio.
5 Kant de Lima foi quem primeiro me chamou a atenção sobre estas importantes diferenças
entre os modelos acusatório e inquisitorial (1995; 2008), com seus respectivos estilos de con-
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frontação: do adversário e do contraditório. Minha compreensão deste último deve muito aos
diálogos com ele, com Maria Stella de Amorim (et alii 2005, xi-xxxviii; 2006, pp.107-108),
e com o grupo de pesquisa que eles coordenam no Programa de Pós-Graduação em Direito
da Universidade Gama Filho, com destaque para minhas discussões com Barbara Lupetti e
Regina Lúcia Teixeira Mendes.
6 Veja discussão em Moore (2005, pp. 356-358) e em Schuch (2009, pp. 43-50).
7 Moore (1978, pp. 1-31) caracteriza bem esta condição para as sociedades com Estado, e Pospisil
(1974) desenvolve um argumento similar para as sociedades tribais, ainda que não discuta ade-
quadamente os problemas de articulação entre os diferentes níveis jurídicos que ele identifica.
8 Sobre a relação entre justiça e igualdade, veja também a contribuição de Ricoeur (2005).
9 Evidentemente, todo e qualquer sistema jurídico está sujeito a cometer equívocos e arbitra-
riedades ao proferir decisões ou sancionar desfechos diversos na administração de conflitos.
Entretanto, quando falo em desrespeito sistemático a direitos refiro-me a condições estrutu-
rais que revelam padrões de arbitrariedade processual e indicam a presença de uma força ou
poder ilegítimo (Cardoso de Oliveira, 1989, pp. 239-268; 2010).
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Num artigo sobre o direito e o conhecimento local Geertz (1999, p.252) carac-
teriza a antropologia do direito como uma disciplina centauro. Em comentá-
rios por ele mesmo considerados impertinentes, alega que os debates nessa área
são estáticos e reiteram incansavelmente as mesmas questões: a jurisprudência
ocidental pode ser aplicada em contextos não-ocidentais? Como os africanos
ou os esquimós concebem a justiça? Como disputas são resolvidas na Turquia
ou no México? As regras e ordenamentos jurídicos restringem os comporta-
mentos ou servem como justificativas legitimadoras de interesses específicos?
Para Geertz, no artigo citado, definir uma área ou uma subdisciplina é ten-
tar resolver o problema do saber local de modo equivocado. A criação de uma
subdisciplina só tem sentido quando estiver em jogo um saber novo que não se
enquadra totalmente nos ramos já existentes das disciplinas. A constituição de
uma nova especialidade requer antes a definição de temas de pesquisa que se
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encontram no caminho entre duas áreas. Geertz sugere então uma abordagem
mais desagregante da antropologia e do direito, uma abordagem que vá além
do ataque que uma disciplina possa fazer a outra, posto que o interesse da an-
tropologia do direito não pode ser o de corrigir raciocínios jurídicos através
de descobertas antropológicas. Era exatamente isso, no entanto, que mais
estimulava aqueles estudos empreendidos das várias instituições do sistema de
justiça no país. A base inspiradora do meu trabalho nas delegacias da mulher,
nas delegacias de proteção do idoso e nos Juizados Especiais Criminais,1 eram
os livros de Mariza Corrêa (1981 e 1983), que mostraram, com muita precisão
e maestria, como figuras jurídicas inusitadas são criadas de modo a dissolver
a apregoada igualdade jurídica entre homens e mulheres como é o caso da
“legítima defesa da honra”. Era importante demonstrar, com rigor, aos juristas
e outros profissionais do direito como a ideia de imparcialidade era bombar-
deada, na prática, por procedimentos tidos como expressão da normalidade
e frutos de pura isenção. Não seria pretensioso dizer que tivemos um sucesso
relativo nessa direção. O estupro, depois de muitos debates encabeçados por
feministas, que muitas vezes tomaram emprestado pesquisas de cunho antro-
pológico, passou a ser tratado de outra forma no Código Penal Brasileiro2 e a
legítima defesa da honra já não é um argumento aceito juridicamente, embora
seja ainda utilizado nas teses da defesa nos tribunais. Eram esses os debates que
empolgavam porque mostravam como análises cuidadosas podiam contribuir
com um debate mais amplo, politizando questões que aparentemente eram
expressões de pura neutralidade e imparcialidade.
Geertz (1999, p.253) propunha algo mais calmo e tranquilo, “um ir e vir
hermenêutico entre os dois campos, olhando primeiramente em uma direção,
depois na outra, a fim de formular as questões morais, políticas e intelectuais
que são importantes para ambos”.
Para ele, a questão antropológica central é o lugar dos fatos nos julgamentos
e essa relação entre os atos e autos do processo marcaram o trabalho de Mariza
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que o caráter das mudanças históricas que levam à criação de dispositivos es-
pecíficos de poder deve ser integrado às análises quando o foco é no direito.
A ausência dessa dimensão histórica era, certamente, responsável pelo in-
teresse e pela opção dos pesquisadores de colocar as questões abordadas como
tributárias da área da antropologia urbana, da antropologia política ou da an-
tropologia feminista. Com isso não quero dizer que se abandona a dimensão do
debate de questões jurídicas. As teorias feministas já partem da crítica à pretensa
neutralidade do direito como um processo imparcial e universal de tomadas de
decisões do ponto de vista do sexo e daí a incapacidade do mundo da justiça
de responder adequadamente à condição feminina. Esse era também o ponto
de partida do estudo que empreendi sobre as idades. Interessava contemplar a
maneira pela qual a classificação etária dos indivíduos desfaz, na prática, a pre-
tensa igualdade e a imparcialidade dos procedimentos e das decisões tomadas.3
Vale a pena realçar que se filiar à antropologia feminista não é supor um
consenso entre as várias teorias envolvidas. Num texto, que sempre vale a
pena citar, Roger Raupp Rios (2002) mostra com muita precisão que pode-
ríamos dividir essas teorias que compõem a feminist legal theory em quatro
grandes correntes que incidem em argumentações muito distintas no campo
jurídico: feminismo liberal, feminismo culturalista, feminismo radical e femi-
nismo pós-moderno.
As feministas liberais defendem a igualdade de tratamento e tendem a ver
qualquer diferença no tratamento de homens e mulheres como uma manifes-
tação da ideologia de superioridade masculina. No campo jurídico advogam,
por exemplo, a identificação da gravidez como qualquer outra condição física
que inabilite os homens ao trabalho. Desse ponto de vista uma delegacia da
mulher ou do idoso seria uma aberração, uma forma de inferiorização da mu-
lher. A crítica a essa postura considera que nela o modelo masculino é elevado
a norma universal, em face da qual a igualdade é apregoada e a qual as mulhe-
res devem se conformar.
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cos. Para entender essas questões é preciso se debruçar sobre redes de relações,
valores e práticas que dificilmente são identificadas no papel. Exigem antes
o treino e a familiaridade com que o antropólogo trabalha com o princípio
de reciprocidade e com a dimensão cultural quando analisa práticas que não
podem ser explicadas como frutos de cálculos racionais.
A “relevância democrática” de tal programa de pesquisas, de acordo ainda
com essa autora, estaria no fato de que o povo americano, e isso é também
válido para nós, não conhece suas próprias leis e não sabe como funcionam
as organizações burocráticas que usa. Não podemos deixar que o aprendizado
de nossos direitos fique inteiramente a cargo da mídia. A antropologia está
bem equipada metodologicamente para descrever um sistema que se conhece
vagamente e que tem um peso fundamental no direcionamento da nossa vida.
Com a expressão “efeito energizador”, Nader procurava chamar a atenção
para a importância da indignação como um motivo na definição dos temas
da pesquisa antropológica. Lembrava que desde os primeiros estudos dos sis-
temas de parentesco e organização social – como em Morgan, por exemplo,
que foi o primeiro presidente da Associação Americana de Antropologia –
não esteve ausente a indignação com a forma pela qual os índios americanos
eram tratados e expulsos de seus territórios. Entretanto, os jovens estudantes
de antropologia não se voltam para pesquisas que provocam seus sentimentos
de indignação. Sabemos que existem problemas fundamentais que afetam o
futuro do Homo sapiens, mas ainda estamos presos a uma agenda de pesquisas
que depois dos anos 1950 deixou de provocar esse tipo de emoção.
No Brasil estamos preocupados em analisar o nosso próprio país e por isso
é mais fácil aceitar esse tipo de desafio à pesquisa antropológica. O que acho
mais importante e muito interessante é que esse efeito energizador, que cer-
tamente está presente na antropologia feminista, precisa ser mobilizado pela
antropologia do direito, renovando questões e abordagens capazes de revigorar
essa “disciplina centauro”, na expressão de Geertz.7
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Passo então a apresentar algumas das questões e dilemas que têm mobiliza-
do os estudos que venho empreendendo.
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Estamos, assim, muito distantes da família patriarcal tal como esse mo-
delo foi caracterizado no estudo sobre a família brasileira.9 Não se trata
de um mundo privado impenetrável às instituições estatais e ao sistema
de justiça. Estamos também muito distantes da família como o reino da
proteção e da afetividade, o refúgio num mundo sem coração. A família é
antes percebida pelos agentes das instituições analisadas como uma instân-
cia geradora de violência em que os deveres de cada um de seus membros,
ao longo do ciclo da vida, precisam ser claramente definidos, cabendo às
instituições da justiça criar mecanismos capazes de reforçar e estimular cada
um deles no desempenho de seus respectivos papéis.
Uma ótica distinta da que caracterizava o papel da família em agendas
anteriores está em jogo. No pós-guerra, Simon Biggs considerava que as
ideologias e práticas do Welfare State tinham um conteúdo paternalista que
impedia o questionamento da integridade da família como instância pri-
vilegiada para arcar com o cuidado de seus membros. Esse paternalismo é
abalado nos anos 1970 pelos movimentos de denúncia da violência contra
a criança e a mulher. Na agenda atual, os deveres e as obrigações da família
são definidos, e consta da nossa Constituição o dever de uma geração am-
parar as gerações mais velhas e as mais novas.10
O que fica evidente é que instituições criadas para garantir direitos in-
dividuais, como são as delegacias da mulher, paradoxalmente, podem, na
prática, redefinir seus objetivos como sendo apaziguar os conflitos na famí-
lia. Enfim, este contexto pós-direitos sociais e as novas formas de opressão
que a partir dele são geradas merecem uma análise mais detida.
Os antropólogos já mostraram que a noção ocidental de poder é al-
tamente restritiva quando se têm em vista outras sociedades. Contudo, é
preciso também reconhecer a fragilidade dos paradigmas que têm orienta-
do a nossa percepção das formas de poder e controle que caracterizam as
sociedades ocidentais contemporâneas. Expressões como “sociedades pós-
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Notas
1 Cf. Debert, G. G. e Gregori, M. F., 2002.
2 Lei n. 12015 de 12/08/2009.
3 Cf Debert, G. G. e Oliveira, A. M., 2007.
4 Cf. Pierucci, 2000. Ver também a resenha de Maria Filomena Gregori (2000).
5 Questões como mudança social em relações de poder e dominação eram o tema central des-
sas pesquisas. Como as leis e os procedimentos jurídicos privilegiam determinados grupos em
detrimento de outros? Em que medida os grupos mais fracos podem aumentar seus recursos por
meio da legislação? Como entender as mudanças legais? Em que medida os diferenciais de poder
explicam mudanças na legislação ou a persistência de ideias e procedimentos legais? Mais do que
entender como as sociedades resolvem pacificamente disputas, o interesse era ver como indivíduos
e grupos usam recursos legais para obter determinados fins. Nesse sentido, as pesquisas realizadas
estavam afinadas com os estudos antropológicos, em que mais do que focalizar a lei enfatizam os
processos. Para resultados da pesquisa ver Debert, G. G. & Beraldo de Oliveira, M. (2007). Os
modelos conciliatórios de solução de conflitos e a violência doméstica. Cadernos Pagu, 29, pp.
305-338 e também Debert, G. G. e Gregori, M. F. Violência e Gênero: novas propostas, velhos
dilemas, in Revista Brasileira de Ciências Sociais vol. 23, nº 66, fevereiro de 2008.
6 Sobre o impacto do artigo de Nader nos estudos de cultura e política, ver Debert, 1997.
7 Falar em efeito energizador não é politizar temas e questões e desprezar a dimensão analítica
do trabalho antropológico, é antes não perder de vista a relação da justiça com um sistema
maior, o caráter das mudanças que têm lugar, a dimensão das relações de poder e dos conflitos
envolvidos, como os mais fracos ou os mais fortes usam a lei em função dos seus interesses, e
como as mudanças legais podem redefinir relações de força.
8 Para um balanço deste debate ver Werneck Vianna et al., 1999 e sobre a judicialização dos
conflitos conjugais ver Rifiotis, 2003.
9 Sobre o tema ver Corrêa, op. cit. e Lins de Barros, 1987.
10 Ver especialmente na Constituição de 1988 os artigos 229 e 230 do Título VIII “Da Ordem
Social” em seu Capítulo VII “Da Família da Criança do Adolescente e do Idoso”.
Art. 229. “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores
têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.”
Art. 230. “A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando
sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e garantindo-lhes o direito à vida.”
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ABSTRACT: The article discusses the challenges faced by an anthropology of law that
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ding on the debates within the legal-feminist theories, the following subjects are ex-
plored: (1) the relationship between universalism and different forms of particularism,
(2) the opposition between judicialization of social relations and the politicization of
justice, (3) new forms of control that characterize contemporary societies. The author
points out the limitations and fallacies of the concept of culture in the understanding
of contemporary legal and political dilemmas.
KEYWORDS: Violence against women, violence against the elderly, legal feminist
theories, judicialization of social relations, justice system.
- 492 -
Claudia Fonseca
Art. 48. O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de
obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais
incidentes, após completar 18 (dezoito) anos.
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- 499 -
Art. 8
1. Os Estados Partes comprometem-se a respeitar o direito da criança
e a preservar a sua identidade, incluindo a nacionalidade, o nome e as
relações familiares, nos termos da lei, sem ingerência ilegal.
2. No caso de uma criança ser ilegalmente privada de todos os elementos
constitutivos da sua identidade ou de alguns deles, os Estados Partes de-
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A Inglaterra foi um dos primeiros países a abrir seus registros aos filhos
adotivos acima de 18 anos. A partir de 1975, os pais que entregavam seu
filho em adoção eram informados que este, chegando à idade adulta, teria
o direito de saber sua identidade.
Nos anos 1980, a preocupação com “o direito às origens” alastrou-se
além da iniciativa de um ou outro governo nacional, adentrando as dis-
cussões da década internacional da criança declarada pela UNICEF. Este
direito, já enunciado pelos adotados e suas associações, foi reforçado atra-
vés de dois itens de debate. Por um lado, aumentava o número de adoções
transnacionais. As crianças vinham de longe – da China, da Coreia, da
Índia, da Colômbia, da Etiópia, do Brasil – para integrar famílias euro-
peias e norte-americanas. Não tinham a mesma cor da pele que seus pais
adotivos – o que tornava praticamente inviável qualquer tentativa de “es-
conder” seu status adotivo. Não é por acaso que foi logo com essas crian-
ças que se acirraram as discussões sobre o “respeito às origens”, abrindo a
possibilidade de elas cultivarem vínculos com elementos pré-adotivos de
suas biografias (Yngvesson, 2007).
Por outro lado, vinham à tona os crimes da ditadura militar na Argen-
tina que tinha se apropriado de centenas de bebês – filhos dos desapare-
cidos presos, sequestrados ou mortos durante a ditadura. Sob a liderança
das Madres (e abuelas) de la Plaza de Mayo, os debates sublinhavam os
abusos potenciais ligados ao segredo de justiça, isto é, ao controle estatal
de informações que pudesse encobrir crimes hediondos (Villalta, 2006;
2010; Regueiro, 2010). Depois de tudo, foi sob o sigilo de justiça en-
volvido na adoção rotineira que os militares tinham conseguido apagar a
genealogia dessas crianças para entregá-las “limpas” a novos pais.
Esses debates surtiram efeito. Ao longo da formulação da Convenção
dos Direitos da Criança (1989), as preocupações sobre o abuso no campo
da adoção se estenderam do rapto durante uma ditadura à desapropriação
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Nos dois casos vistos acima (de Oregon, EUA e da Inglaterra), vemos
como uma consideração pela família de nascimento foi institucionalmen-
te incluída nos arranjos administrativos formulados para a implementa-
ção do direito do adotado à informação. No Brasil, a situação é outra.
Durante décadas, os pais de nascimento eram sumariamente eliminados
da biografia de seus filhos adotados. Agora, com a nova Lei de Adoção e
o “acesso irrestrito” do adotado à informação, as famílias voltam subita-
mente à cena – queiram ou não.
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Notas
1 Há centenas de “Grupos de Apoio à Adoção” espalhados pelo país, frequentados principalmente
por pais adotivos. Que eu saiba, Filhos Adotivos do Brasil, criada em Porto Alegre em 2007, foi
a primeira associação brasileira voltada primordialmente para as ânsias dos próprios adotados.
2 Agradeço a Luciana Pess e Ana Paula Arosi, estudantes de iniciação científica que participaram
dessa pesquisa.
3 As citações ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) fazem referência ao texto de 13 de
julho de 1990, sem as alterações incluídas pela Lei nº 12.010, de 2009.
4 A exceção estipulada nesse artigo, referente aos “impedimentos matrimoniais”, diz respeito
aos fantasmas sobre a possibilidade de incesto involuntário – sendo sem dúvida uma conces-
são feita pelos legisladores para alcançar seu objetivo: o apagamento das origens do adotado.
Contudo, desconheço qualquer episódio em que essa exceção foi acionada.
5 Cabe, contudo, observar que o caso marcou o cenário legal europeu, imprimindo o direito às
origens como direito humano fundamental, e provocando diversos ajustes legislativos.
6 Muitos de meus interlocutores vêm de cidades interioranas onde os serviços públicos
podem demorar, quiçá mais do que na metrópole, para implementar reformas administra-
tivas e legais.
7 Uma pesquisa nacional do IPEA (2003) sugere que cerca de um quarto das crianças e adolescen-
tes abrigados foram institucionalizados por “carência de recursos materiais da família”. Pesquisas
qualitativas sugerem que outros motivos de ingresso na instituição, tais como “negligência”,
“abandono” e “violência”, são frequentemente indistinguíveis de situações de falta total de recur-
sos (Fonseca & Cardarello, 1999).
8 Basta pensar nos filhos de pais divorciados e recasados.
9 O cadastro consta apenas como mais uma informação, não criando nenhum obstáculo legal
ou administrativo ao acesso do adotado a sua certidão original. Nos três primeiros anos
seguindo a proposta, 81 mães se declararam contra o contato – correspondendo a cerca de 1%
do número de adotados (7.606) que solicitaram sua certidão original (Carp, 2004, p. 216).
10 http://www.direct.gov.uk/en/Governmentcitizensandrights/Registeringlifeevents/Birthanda-
doptionrecords/Adoptionrecords/DG_175567, consultado 20 de junho, 2010.
11 A transparência dos dados civis na Inglaterra foi reafirmada em 2005 com a implementação de
uma lei que estende o “direito à informação sobre suas origens biológicas” a pessoas com 18 anos
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ou mais, nascidas de uma gravidez medicalmente assistida, através da doação de esperma ou óvulo
doados. Nesse caso, o direito não é retroativo e, portanto, as buscas só começarão em 2023.
12 Ver também sites de Bastard Nation, nos EUA (http://www.bastards.org) e Mères dans
l´Ombre na França (http://amo33.free.fr/), consultados 20 de junho, 2010.
13 Conforme depoimento de uma advogada que presenciou a cena.
14 Mesmo em pesquisas acadêmicas, encontra-se pouco sobre famílias de nascimento de crianças
adotadas. Veja Motta (2005), e Mariano (2009) como notáveis exceções.
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ABSTRACT: My aim in the article is to analyze the interaction between adult adop-
tees in search of their biological origins and the authority figures that control in-
formation about these origins. I briefly consider the history of secrecy involved in
adoption, to focus on the recently-edited Brazilian Adoption Law that guarantees the
adoptee “unrestricted access” to his judicial dossier. I also examine the narratives of
adult adoptees contacted through an association of adopted persons (in Porto Alegre,
Brazil) on their frustrated search, as well as those narratives of professionals who work
at the adoption services of the local courthouse. Working on the hypothesis that
the search for origins involves many problems encountered in discussions on other
fundamental rights, I demonstrate throughout this article that rights are politically
defined, that they involve subjects living in a relational world, and that their imple-
mentation depends, to a large extent, on the microphysics of administrative spaces.
KEYWORDS: Law and Anthropology, Rights of the Child, New Adoption Law,
Administration of Justice.
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Introdução
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- 529 -
Aspectos metodológicos
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- 536 -
Sans doute la démocratie est-elle bien le règne de la politique sans fondement trans-
cendant, ou naturel. Mais la démocratie sexuelle y joue aujourd’hui un rôle par-
ticulier: si genre et sexualité sont actuellement des enjeux privilégiés, c’est que ces
questions marquent l’ultime extension du domaine démocratique. On les croyait,
on les croit encore parfois naturelles; on les découvre politiques. Sans doute depuis
Platon la même « haine de la démocratie » se faitelle entendre, face au «bouleverse-
ment de l’ordre naturel”. Cependant, la logique s’en déplace quelque peu: alors que
le scandale de la démocratie invitait jadis ses ennemis à rappeler que les rapports
sociaux sont aussi des rapports naturels, aujourd’hui, la situation s’inverse, dès lors
que, pour les démocrates, ce sont désormais les rapports «naturels» eux-mêmes qui
apparaissent comme sociaux – le genre et la sexualité, la filiation et la reproduction,
tous, enjeux politiques brûlants. (Fassin, 2006, p. 168)6
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- 538 -
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Fonte: Sites TJSP, TJRS, TJRJ e TJMG (Oliveira, 2009) Base: 278 acórdãos
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rito não foi julgado (sem decisão). Em 2006, além da tênue diferença entre
posições mais ou menos “favoráveis”, identifiquei uma diferença peculiar
entre os Estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande
do Sul, uma vez que nos três primeiros Estados, as decisões são majoritaria-
mente “desfavoráveis” de algum modo ao reconhecimento de efeitos jurídi-
cos às conjugalidades homoeróticas, enquanto que no Rio Grande do Sul,
a valência se invertia. Hoje, observando o gráfico, fica mais evidente que a
polêmica se acentuou, e vem ganhando terreno posições mais “favoráveis”,
como se vê em SP, onde as colunas “favorável” e “desfavorável” “empatam”.
Fonte: Sites TJSP, TJRS, TJRJ e TJMG (Oliveira, 2009) Base: 278 acórdãos
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- 547 -
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- 552 -
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Considerações Finais
- 554 -
- 555 -
cias que só são feitas em função da sexualidade das mesmas, como parece
acontecer no caso das controvérsias em torno da “tese da colaboração
indireta”, pacificadas no STJ para casais de diferentes sexos, mas que con-
tinuam em debate quanto a pessoas do mesmo sexo.
Porém, como vimos, se considerarmos os efeitos gerais demandados
pelas partes na maioria dos acórdãos estudados, que em sua maioria são
patrimoniais, a conclusão que considero mais importante é que “a balança
da justiça” tem pendido mais a favor do que contra o reconhecimento de efeitos
jurídicos aos casais de pessoas do mesmo sexo. O que me interessa salientar é
uma tentativa paradoxal em reconhecer efeitos jurídicos patrimoniais em
praticamente todos os pedidos. Isso aparece de modo ambíguo, tanto nas
entrevistas, quando as/os entrevistadas/os falavam sobre a necessidade ou
não de legislação para pacificar o tema, quanto nos longos debates técnicos
travados nos acórdãos, que por sua vez revelam as interfaces entre os tribu-
nais, a partir de seus pontos de convergência e de dissenso.
Há entre estas noções variadas conexões, como aquela que, por ex.,
propugna ser a sexualidade reservada para reprodução, e que o casamento
deva assegurar normativamente (de um ponto de vista técnico – estatuto
legal) a instituição familiar, em seu conceito “tradicional”, que envolve a
conjugalidade heterossexual. Relações reprodutivas e casamento, assim,
são instituições mantidas “em equilíbrio” por essa noção de entidade fa-
miliar, composta pelo casal heterossexual e sua prole.
Assim, o conceito de ‘casamento’, convertido em sacramento pela Igreja
Católica e utilizado como um referente fundamental para a constituição da
família considerada “normal”, vem sendo ressignificado ao longo do tempo
por casais de pessoas do mesmo sexo que reivindicam a mesma possibilida-
de como uma bandeira já consagrada pelo movimento homossexual.
O que fica em aberto no contexto das relações entre indivíduos e Estado,
a partir daí? Por outros motivos reflete Lia Zanotta Machado (2001) no mes-
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Notas
1 Doutora em Ciências Humanas (UFSC, 2009); Mestre em Filosofia, Sociologia e Teoria do Direito
(UFSC 2002); Bacharel em direito (UFRGS, 1992), advogada, consultora com experiência de
ativismo em direitos humanos LGBT, HIV/AIDS, gênero e sexualidades desde 1991, associada
ao CLADEM (Comitê Latino-Americano e do Caribe para a defesa dos direitos da mulher) e
membro do conselho diretor da ONG Themis - Assessoria e Estudos de Gênero, de Porto Alegre.
Agradeço ao CNPq, bem como a Dra. Miriam Pillar Grossi e a Dra. Luzinete Simões Minella, que
orientaram a tese que originou este artigo. e-mail: rosa.mroliveira@gmail.com
2 Regulada em suas linhas gerais pelos Art. 125 e 126 da CF, a Organização Judiciária brasileira adota
o princípio do duplo grau de jurisdição, isto é, a existência de duas instâncias de decisão, inferior e
superior. A primeira instância “é determinada pelo juízo em que se iniciou a demanda, ou onde foi
proposta a ação”. (Silva, 1989, p. 484) Neste sentido, costuma-se dizer juiz de primeira instância,
decisão de primeira instância, correspondendo ao chamado juízo a quo, que prolata a sentença. A
segunda instância é aquela em que o Tribunal toma conhecimento da causa já em grau de recurso,
e corresponde ao juízo ad quem, em prosseguimento à instância a quo, responsável pelo acórdão. A
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- 558 -
9 Antônio Carlos Wolkmer (1995) relembra: “No final da década de oitenta, a expressão ‘Direito
Alternativo’ vinha designando uma disciplina ministrada na Escola da Magistratura do RGS,
coordenada pelo juiz Amilton Bueno de Carvalho. Tendo em vista esta experiência, certos setores
da imprensa associaram, polemicamente, a designação com um grupo de magistrados gaúchos
que vinham proferindo sentenças e resolvendo conflitos de forma não convencional e progressista.
Em pouco tempo, a expressão alcançou nível nacional e passou a configurar uma pluralidade de
instâncias profissionais habilitadas a articular frentes de lutas dentro da legalidade instituída (o
uso alternativo do Direito) e da legalidade insurgente a instituir (práticas de pluralismo jurídico)”.
(Wolkmer, 1995, p. 143)
10 No Tribunal do Estado do Rio de Janeiro, entrevistei 01 relator, e disponho da transcrição da
entrevista de outros três desembargadores, entre eles dois relatores de acórdãos que estudei, a
partir de contato com uma pesquisadora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ/
IMS), Dra. Luciane Moás (2006).
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ABSTRACT: Based on case study carried out in the Courts of Justice of Rio Gran-
de do Sul, Rio de Janeiro, Sao Paulo and Minas Gerais, I articulate theoretical
issues present in the field of gender studies and anthropology with legal positions
on marriage and stable family, identified by the analysis of judicial decisions and
dialogue with twenty-five judges on judicial remedies on “homoerotic conjugali-
ty”. The analysis indicates an influence of the “sex / gender” of the parties to the
judicial decision-making. There is still the devaluation of domestic work in par-
ticular of gay men, in inventories litigation for the assets of a deceased partner to
ensure their status as heirs. However, there is a trend that may be considered more
“positive” than “negative” in decisions of the Courts in the study, if the discussion
is relativized in terms of award sharing assets to some subjects.
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Apresentação
A partir de etnografias realizadas em São Paulo, nos últimos dez anos,
este artigo2 se dedica a investigar os sentidos políticos e os dilemas teóri-
co-analíticos impostos por quatro décadas de transformações profundas
na dinâmica social das periferias urbanas brasileiras. O par de categorias
“trabalhador” e “bandido”, muito acionado em diferentes perspectivas e
situações de pesquisa, nesses anos, é tomado aqui como objeto heurístico
de uma reflexão sobre as fronteiras que se desenham na compreensão
contemporânea desses territórios e populações. A partir da caracterização
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Percurso de pesquisa
Há mais de dez anos iniciei meus trabalhos de campo nas periferias de São
Paulo. A princípio pesquisei na zona Oeste da região metropolitana, muni-
cípio de Carapicuíba, onde permaneci entre 1998 e 2002; há oito anos faço
pesquisa na zona Leste da cidade, inicialmente tendo como base a Vila Pru-
dente, e nos últimos seis anos concentrando as incursões de campo no distrito
de Sapopemba. Embora o centro das preocupações de pesquisa permanecesse
o mesmo – compreender os significados políticos das mudanças intensas no
tecido social das periferias – os temas específicos com que trabalhei nesse tem-
po mudaram muito; para resumir, saí do estudo dos “trabalhadores” e dos seus
movimentos sociais para chegar até os “bandidos” e sua “vida no crime”. Num
primeiro momento, portanto, as noções de direito e de cidadania foram ope-
radoras centrais da minha análise, na medida em que me permitiam elaborar
a “questão das periferias” no espaço entre os mundos social e político, ou seja,
nos trânsitos entre indivíduos e famílias, seu trabalho e sua religião, suas asso-
ciações e movimentos, suas “lideranças” e “representantes”, suas relações com
partidos e governos etc. A tentativa de costurar analiticamente essas dimensões
traduzia-se no esforço de compreender as tensões constitutivas das relações
entre a vida cotidiana nas periferias e os discursos público-políticos sobre elas.4
Meus estudos sobre os movimentos sociais populares de São Paulo foi,
ainda, muito marcado pela literatura que identifica um nexo constitutivo entre
cultura e política, que minhas investigações tentavam captar no trabalho de
campo.5 Imerso nessa perspectiva, meus territórios de pesquisa (as periferias,
sobretudo as favelas) e os seus atores políticos mais evidentes (os movimentos
populares) foram construídos como objetos de análise a partir de pressupos-
tos normativos; essas periferias seriam espaços de privação, embora politi-
zados pelas práticas dos movimentos, em ciclo iniciado nos anos 1970, que
na década seguinte forjaria nos espaços públicos um locus de expressão dos
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Durham (1973, 1980, 2005) trata muito bem desse cenário, em textos
que se tornaram clássicos dos estudos das periferias de São Paulo: o projeto
de mobilidade ascendente era um norte de estruturação familiar que, pela
difusão da promessa de contrapartida salarial, tornava-se representação cole-
tiva dominante nas periferias de São Paulo. O eixo da dinâmica social desses
territórios era, portanto, o trabalho. Por isso cabia tão bem, na perspectiva
dessa população, o rótulo de trabalhadores. Ser trabalhador evitava que esses
recém-chegados, em busca de integração, fossem figurados como vagabundos,
marginais ou bandidos. Alba Zaluar (1985) demonstra como o “trabalhador”
sempre foi pensado em oposição ao “bandido”, o par de relações mutuamente
excludentes é constitutivo de ambas as categorias. Assim era e segue sendo,
porque “trabalhador” e “bandido” sempre foram, nas periferias das cidades,
um par de possibilidades de subjetivação em tensão latente.
A comunidade16 era composta de trabalhadores e como não havia muita
garantia pública de segurança para seus moradores, era tarefa dessa própria
comunidade trabalhadora minimizar a violência nos locais em que vivia. O
“mundo do crime” já começava a aparecer nesses mesmos territórios, e como
a figuração era de que ele era o “outro” diametral dos trabalhadores, deveria
ser expurgado por eles mesmos. A própria “comunidade” – entenda-se aqui
grupos muito minoritários de moradores dos territórios, em ação que se legi-
timava entre parcelas mais significativas deles – organizava formas de “justiça
popular” conhecidas nos anos 1970 e 1980, em diversas metrópoles brasi-
leiras: os linchamentos e o pagamento de grupos de “justiceiros” (ou “pés de
pato”, como eram conhecidos, sobretudo na zona sul da cidade), que cuida-
vam de promover a “limpeza” do nome público desses bairros, assassinando
sumariamente aqueles a quem se atribuía a categoria “bandido”. A disposição
da violência, organizada por “trabalhadores”, mantinha então a figura dos
“bandidos” como oposta à sua “comunidade”.
No interior da família trabalhadora, além disso, a sucessão geracional era
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cados de trabalho populares; Sapopemba, que foi muito marcada pela indus-
trialização do ABC e pelo sindicalismo, é cenário em que se pode notar com
detalhe como as transformações no mundo operário impactam as trajetórias
familiares. Havia pleno emprego na entrada dos anos 1970, cerca de 6% de
desemprego em 1986, na cidade de São Paulo, e mais de 20% em 2000. Na
década de 1990, portanto, a expansão do desemprego foi muito significati-
va e o mercado de trabalho muito mais exigente. Com a reestruturação das
plantas industriais, just-in-time, robôs, produção por demanda, flexibilidade,
enfim, com a “revolução toyotista”, passou-se a exigir uma qualificação muito
mais intensa do operário. As famílias operárias que estudei em Sapopemba,
nos últimos anos, traduzem com clareza essas transformações. O senhor que
mal tinha o “primeiro grau” e conseguiu ter um emprego industrial durante
duas décadas foi demitido, aos 40 anos de idade, no começo dos anos 1990;
não retornou mais às fábricas, exceto para vender espetinhos de churrasco na
saída dos turnos.17 O filho daquele operário, que como tantos estudou no SE-
NAI, tampouco encontrou emprego nas montadoras da região, sua trajetória
é toda feita no setor de serviços, terceirizados, precarizados. A reestruturação
do mundo operário, portanto, já seria fator suficiente para explicar uma série
de percalços encontrados pelas famílias, instaladas nas periferias da cidade
entre os anos 1970 e 1980, em seu projeto de mobilidade de classe sustenta-
do pela aposta no trabalho estável e em suas contrapartidas sociais. Houve,
entretanto, muitas outras esferas de transformação igualmente decisivas para
a compreensão das dinâmicas sociais desses territórios, e de seus rebatimentos
políticos mais visíveis.
A família, que os trabalhos fundadores de Eunice Durham (1973, 1980),
Alba Zaluar (1985) e Teresa Caldeira (1984) estudaram, que na representação
dominante ajudava-se mutuamente desde o processo de migração, para depois
construir a moradia em colaboração – o tio, o primo e o cunhado ajudando
a “bater a laje”, a fazer um quartinho no fundo, a cunhada ajudando a cuidar
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das crianças etc. – é obrigada, com o passar das décadas na cidade, a modifi-
car suas relações internas. Pois se antes, no campo, a unidade produtiva era
doméstica e os braços contavam-se mais que as bocas, a situação se invertia
em época de desemprego estrutural. Se já na cidade, nos anos 1970, ainda
conseguia-se emprego (ou trabalho) para todos os membros produtivos, e daí
fundamentava o auxílio mútuo numa espiral positiva, com a crise do emprego
dos anos 1980 e 1990, e a redução das contrapartidas do assalariamento a par-
tir da chamada “Reforma do Estado”, a família extensa se tornava aquela em
que duas pessoas trabalhavam e sete ou oito eram sustentadas por eles. Os que
trabalham, por isso, são obrigados a distribuir seu salário por todos da família,
o que gera conflitos dos mais diversos: a divisão sexual do trabalho deve ser
revista, a sensação de precariedade mina a confiança na mobilidade ascenden-
te, os conflitos geracionais se acirram. Essas dinâmicas são muito recorrentes
em minha pesquisa, são descritas com regularidade nas narrativas de meus
interlocutores em campo. Essas modalidades de conflito familiar, com o passar
dos anos, vão produzindo uma tendência maior a arranjos familiares mais pró-
ximos do nuclear, ou do matrifocal, e mais distantes do arranjo extenso antes
predominante nas representações da família popular. O jovem adulto desiste
de viver com os pais, tenta se sustentar alugando outro lugar para viver, a pre-
sença do agregado torna-se menos frequente etc. O processo é característico
do ambiente urbano, já a princípio marcado por maior escassez de recursos de
sobrevivência e maior pressão por manutenção de status, mas foi acelerado nas
margens da cidade por todos esses fatores. Nas famílias operárias que estudei,
a mãe teve de sair para “trabalhar fora” quando o provedor perdeu o emprego,
na entrada dos anos 1990; a filha mais velha parou de estudar para cuidar dos
irmãos, os filhos alternaram empregos instáveis e, inclusive, aproximaram-se
na juventude dos mercados ilícitos, em franca expansão nos seus territórios de
moradia. Não são raras as histórias de filhos, amigos e parentes assassinados
nos anos 1990. Outros conflitos se colocam nessas passagens, evidentemen-
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geração nascida ali a partir dos anos 1990 não a reconhece como própria; os
jovens das periferias vivem num território urbano consolidado, bastante co-
nectado a outros bairros e regiões da cidade e, sobretudo, à esfera do consumo
global. As estatísticas de crescimento do consumo das classes D e E no Brasil
são impressionantes nos últimos anos, aumentam quase 20% ao ano. Os
jovens têm celulares de último tipo, comprados a prestação; e o crédito po-
pular funciona desde as Casas Bahia até os hipermercados e shopping centers.
A internet também é acessada em lan-houses, no trabalho ou mesmo em casa.
Nesses deslocamentos, é evidente que os atores políticos nascidos nos anos
1970 com a função de representar publicamente as periferias da cidade –
os movimentos sociais populares – têm sua representatividade duramente
questionada. Nascidos para representar uma população migrante, operária e
católica, e inscritos na ação política voltada à construção democrática, esses
atores têm dificuldades para se legitimar frente a uma geração já nascida nas
periferias, em boa parte pentecostal e com trajetórias acidentadas de trabalho
e desemprego. Essa dificuldade é ainda mais forte entre os setores marcados
pela economia informal e, sobretudo, pelos mercados ilícitos – por definição
alheios à esfera do direito como alternativa de melhoria de vida. As narrati-
vas dos movimentos, fincadas no esquerdismo militante, na teologia da li-
bertação e no sindicato operário vão dizer pouco aos novos moradores das
periferias. Até porque esses atores – os então “novos movimentos sociais” – já
haviam sido muito bem sucedidos em seu trânsito ao aparato estatal e já esta-
vam mais distantes do trabalho de base nas periferias, em processo chamado
pela bibliografia específica de “inserção institucional”.21 Nesse processo, os
movimentos sociais de base, nos anos 1980, migraram tendencialmente para
administrações e governos, mas não ocuparam ali espaços decisórios centrais;
eles se constituíram como uma espécie de “burocracia de base” 22 das políticas
sociais, materializada hoje numa miríade de associações, projetos, entidades
e ONGs espalhadas pela malha urbana. Entre outros fatores, a capacitação
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propunha. Nota-se em sua difusão como a narrativa de um país que vai ser
democrático, que incluiria suas massas trabalhadoras na esfera do direito, per-
deu força nesses territórios.
A “guerra contra o crime”, que todas as instituições sociais tradicionalmen-
te legítimas vão travar nos anos 2000, nas grandes cidades, figura mais a as-
sunção da fratura social do que a integração. Essa fratura solicita também uma
cisão discursiva (e cognitiva) mais profunda. O que essa “guerra” faz notar é
que esse “mundo do crime” não pode ser extinto, contemporaneamente, por-
que goza de status suficiente para seguir resistindo na disputa de legitimidade
social. Essa disputa pela legitimidade tem conformado, mais recentemente,
novos padrões de interação entre as políticas estatais de repressão ao crime, os
policiais de base e grupos inscritos nos mercados ilícitos. Os padrões de intera-
ção que se processam nos cotidianos das periferias com certa autonomia, nos
últimos anos, dão origem também a novas instâncias de justiça nas periferias
da cidade, pela emergência de sujeitos coletivos ali legitimados, com destaque
para o Primeiro Comando da Capital. De prisões e favelas brotam os “irmãos”,
integrantes batizados do PCC, que reivindicam para si o monopólio de dis-
por e gerir a violência (legítima, em contraposição à violência policial) nesses
territórios. Passagens nada simples, difíceis de compreender: é o “crime” quem
aparece reivindicando para si o papel de instância normativa da justiça (Feltran
2010, 2010b) entre grupos sociais e territórios das periferias, e sobretudo entre
aqueles mais próximos socialmente da operação de varejo dos mercados ilícitos
(que se expandem, como se sabe, para muito além das periferias).
Esse “mundo do crime”, entretanto, não domina os territórios ou as po-
pulações tiranicamente. A posse de armas e a disposição para utilizá-las é, evi-
dentemente, a fonte última da legitimidade e autoridade do “mundo do cri-
me” e dos “irmãos” nas periferias da cidade. Entretanto, cotidianamente esses
grupos manejam componentes muito mais sutis de disputa pelas normas de
convivência, como a reivindicação de justeza dos comportamentos, ampara-
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Considerações finais
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ram-se conhecidas em São Paulo nos anos 2000: trata-se de operações em que
muitos policiais ocupam um território de favela, às vezes por meses. Chegam
de surpresa, integrando ações de polícia civil, militar, federal, com tropas da
cavalaria, descendo de rapel de helicópteros, para fazer o que se chama, infor-
malmente, de “quarentena” na favela. Nesses casos os policiais vêm de fora, o
evento de ocupação é evidentemente marcado por muita tensão para todos os
envolvidos, e os policiais de ação de base devem “tomar o controle” da favela.
Para isso, o método utilizado é invadir todas as casas, abordar quase todos os
moradores, para daí começar a triagem que delineará quem “é do crime” e
“quem não é”. Há muitas denúncias de tortura nesses primeiros momentos
de atuação, porque os policiais precisam ter acesso às informações acerca do
funcionamento do “crime” no local, e por vezes os métodos para consegui-las
não são os mais democráticos. Essas ações têm grande efeito midiático, e in-
variavelmente, nelas, os policiais de base estão ainda pressionados por seus su-
periores, e pelo poder político, a “mostrar serviço”. Uma operação como essa
em Sapopemba, em 2005, gerou forte reação da parte dos moradores e das
associações locais, ao contrário das que ocorrem cotidianamente, do primeiro
tipo. Por uma razão muito simples: não se reclama quando a repressão poli-
cial é direcionada aos “bandidos”, isso faz parte do jogo; mas recebe-se muito
mal a repressão voltada indistintamente a “trabalhadores” e “bandidos”.
Finalmente, existe um terceiro tipo de ação policial voltada às periferias,
que também pude acompanhar em pesquisa de campo, durante os eventos
de maio de 2006, que ficaram conhecidos publicamente como “Ataques do
PCC”, e ressignificados na expressão “Crimes de Maio” pelos ativistas de di-
reitos humanos. Nesses eventos, como se sabe, houve uma ofensiva do PCC
que matou mais de 40 policiais em uma noite, a maioria da Polícia Militar. A
imprensa entrou em alarde, a cidade passou dias em tensão permanente e todos
os serviços pararam de funcionar numa tarde. A palavra “guerra urbana” foi a
melhor descrição dos jornais para o que acontecia. Como retaliação, e demons-
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sua base um impulso por gerenciar o conflito social (e político) que emana
das periferias da cidade. No primeiro caso, mantém-se o conflito latente, e as
partes em negociação direta ganham com isso; no segundo, a tensão extravasa
mas lê-se publicamente que o Estado combate o “crime” das favelas, e assim o
argumento de justificação do “combate ao crime” legitima-se publicamente,
deslegitimando-se nas periferias; no terceiro, mata-se jovens favelados e mo-
radores de bairros periféricos para restabelecer os controles democráticos. A
ilegalidade constitutiva de todas as situações é mais ou menos letal a depender
da intensidade do conflito político que a presença pública das periferias pode
causar. O dispositivo de “gestão dos ilegalismos” (Foucault, 1975; White,
2005) torna plásticas as formas de utilização social do par de categorias “tra-
balhador” e “bandido” e expõe, quando enxergado na etnografia, distintos
modos de gerenciamento de um conflito político, ainda que muito distinto
daquele que os movimentos sociais dos anos 1970 e 80 tentaram produzir.
O declínio da perspectiva universalista do direito como referência normativa
para essa marcação, e da legitimidade desses atores entre suas “bases”, expõe-se
aqui numa outra perspectiva. Já não mais como um discurso alheio às periferias
da cidade, imposto de fora por idealistas (ou por analistas pouco informados),
mas como inteiramente relacionado com os demais processos sociais em ques-
tão, inclusive a análise do “crime”. Pois parece ser hoje a violência um dos modos
fundamentais de contenção daquele mesmo conflito político que a narrativa do
direito pretendia mediar. Sobretudo nas situações-limite em que esse conflito
se demonstra, contemporaneamente, a força ou a possibilidade de sua utiliza-
ção encontra-se na base de seus modos de gerenciamento. As transformações
fundamentais nas dinâmicas sociais das periferias da cidade, percorridas nesse
artigo, parecem conduzir, portanto, a problemas teóricos, analíticos e políti-
cos conectados. Essas transformações sugerem que podem estar situadas num
mesmo diagrama analítico, por exemplo, as esferas do direito, do “crime”, do
trabalho, da família, da religião, da política e do Estado. Tantas outras dimen-
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sões poderiam se somar a essa lista. A busca por um mesmo diagrama analítico
pautado por relações entre essas esferas, entretanto, supõe certamente múlti-
plas perspectivas e situações a serem descritas, que remetem a planos distintos de
análise, bem como a um debate entre distintas posições teóricas, normativas e
metodológicas em questão. Assim, a questão dos marcadores de diferença, dos
projetos normativos e das formas de interpretá-los numa etnografia parecem
conduzir a problemas teóricos e políticos conectados. Não me parece ser pro-
dutivo separá-los em caixas ou disciplinas, especialmente pela relevância destes
problemas tanto para a etnografia, quanto para a compreensão do conflito po-
lítico que as periferias urbanas ensejam no Brasil contemporâneo.
Notas
1 Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar),
pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e do Centro Brasileiro de Análise e
Planejamento (CEBRAP).
2 Este artigo teve origem na transcrição – realizada por Patrícia Polastri – de minha exposição na
mesa “Antropologia do Direito e Marcadores Sociais da Diferença”, no I Encontro Nacional
de Antropologia do Direito, na Universidade de São Paulo em 2009. Agradeço a Ana Lúcia
Pastore, pela oportunidade de elaborar essa reflexão, e a Adalton Marques, pela leitura aguda
das provas do artigo.
3 As categorias “trabalhador” e “bandido” têm me instigado há bastante tempo (Feltran, 2008,
2009). As relações entre as categorias já foram muito bem formuladas etnograficamente,
há mais de duas décadas, por Zaluar (1985). A noção de “bandido” foi também trabalhada
teoricamente por Misse (2010). Ainda que os contextos de pesquisa desses trabalhos sejam
muito distintos, há muitas ideias neles das quais me sirvo aqui.
4 Tensão constitutiva também de suas atualizações como conceitos, já que as relações fundam
os elementos em relação, e não o contrário. Para uma abordagem da distinção teórica entre
as esferas social e política, ver Arendt (2003, 2004). A distinção teórico-normativa da autora
inspira minha abordagem, embora seja subvertida aqui com o intuito de pensar não as esferas
que se distinguem, mas justamente suas relações constitutivas.
5 Ver Dagnino (1994) e a produção do Grupo de Estudos sobre a Construção Democrá-
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tica, agrupada em Dagnino (2002); Dagnino, Olvera e Panfichi (2006); Dagnino e Tatagiba
(2007); Feltran (2005).
6 Sader (1988) e Paoli (1995).
7 O que evidentemente não é em si um problema, já que desde Durkheim sabemos que toda
categoria cristaliza um ideal, nem um problema irrefletido, já que admitido e politicamente
situado pelos autores centrais dessa abordagem. Sobre a análise da reivindicação de direitos
como estratégia política, ver Dagnino (1994).
8 Os mercados, sobretudo, há muito conectam esses espaços; basta pensar nas grandes lojas de
departamentos, no crédito popular, nos telefones celulares, na dimensão transnacional do
tráfico de drogas e armas etc. Também os mercados eleitoral e de trabalho colocam em relação
intensa as periferias a outras dimensões do social.
9 Essa sobreposição de planos de marcação da diferença foi questão central no trabalho de
Kofes (1976, 2001).
10 A escolha dos estatutos, discursos e situações a investigar mais detidamente, na análise, por
isso, segue sendo um atributo do pesquisador, e a exposição dos critérios pelos quais essa
escolha se dá – em geral em diálogo com a teoria – é dimensão constitutiva da inteligibilidade
de sua análise.
11 A igualdade, em contraste com tudo o que se relaciona com a mera existência, não nos é
dada. (...) Não nascemos iguais; tornamo-nos iguais como membros de um grupo por força
da nossa decisão de garantirmos direitos reciprocamente iguais. (Arendt, 2000, p. 335, des-
taques meus).
12 Partilha significa duas coisas: a participação em um conjunto comum e, inversamente, a
separação, a divisão em quinhões (Rancière 1995, p. 7). A noção de partilha já está subjacente
à definição de política no autor em Rancière (1996a, 1996b), e a mesma chave (formular as
polaridades como relação) já era utilizada em Rancière (2002; 2005).
13 Sobre a coexistência de ordenamentos sociais legítimos nas periferias das cidades, ver
Machado da Silva (1993, 2004) e comentários de Misse (2006).
14 Por isso em Arendt a esfera política (normativa) pressupõe a igualdade e o mundo social a
diferença, o que permite a coexistência desses ordenamentos.
15 A extensa produção de Lúcio Kowarick é referência fundamental na descrição e análise dessas
dinâmicas urbanas, sobretudo em São Paulo. Os processos em questão estão em destaque, por
exemplo, em Kowarick (1993).
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26 Se Michel Foucault afirma que “lá onde há poder há resistência” (Foucault, 1988, p. 91),
a necessidade de resistir à essa expansão do “crime” denota as relações de poder que lhe são
constitutivas e, nessa chave, a questão política que se desprende delas.
27 A expressão dá título a um álbum duplo do grupo Racionais MC’s, ícone do gênero em
São Paulo. Daniel Hirata (2009) produz ensaio em que procura relacionar a representação
de “vida loka” ao conceito de “vida nua” que o filósofo Giorgio Agamben (2002) tomou
emprestado de Hannah Arendt (2000, p. 333).
28 Há toda uma bibliografia socioantropológica que pauta, recentemente, a “gestão diferencial
dos ilegalismos” proposta por Michel Foucault (1975) para analisar esse gerenciamento (Telles,
2009; Marques, 2009; Biondi, 2010). A ideia de que a lei serve para demarcar um espaço de
gestão da fronteira legal-ilegal já aparecia em Whyte (2005, cap.4). Para uma análise de fronteira
acerca dos modos dessa sujeição no Brasil, em diálogo crítico com as “teorias do sujeito” e espe-
cificamente tratando da categoria “bandido”, ver Misse (2010). O problema da subjetivação
política dos mais pobres anima a teoria democrática há tempos, e a crítica de Jacques Rancière
aos modelos deliberativos de democracia (mais centralmente à Habermas), nesse ponto, pode
ser lida em Rancière (1996a, 1996b).
29 Discuto as transformações nos modos de relação entre entidades de atendimento (que crescem muito
nos anos 1990 e 2000) e governos, via convênios em políticas sociais, em Feltran (2008; parte III).
30 Sobretudo o urbanismo securitário (exemplar nas rampas “antimendigo” do centro de São
Paulo) que concentra técnicas de segurança em algumas regiões, limitando assim os territórios
urbanos plausíveis para que o conflito social ensejado pela presença dos pobres se manifeste.
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do que caçar criminosos, é a saída para tais problemas de controle social, pois
basear o controle social em tais organizações, que vão ajudar a controlar os
jovens, libera a polícia para cuidar da ordem pública nos locais públicos, os
quais envolvem encontros entre desconhecidos, ao contrário do que acontece
na vizinhança, onde quase todos se conhecem.
Tais teorias adquiriram ainda mais importância nas últimas décadas do
século passado por conta do aumento da violência cujas interpretações cria-
ram um aceso debate. Uma delas é sobre a importância da teoria do crime
organizado no século XX para entendermos o que se passa com os jovens,
especialmente os originários das camadas mais pobres da população. Vários
sociólogos urbanos assinalam as profundas associações entre o crime profis-
sionalizado ou organizado e o capitalismo selvagem, entre os negócios ilegais
e os legais, entre o desvio e o mundo convencional, os quais se interpenetra-
riam, contagiariam e superporiam (Matza, 1969, pp. 70-71; Hannerz, 1981,
p. 54; Samuel, 1981).
Outra interpretação é a relativa à xenofobia e ao nacionalismo, usada na
década de 70 para entender as galères nas cidades francesas, particularmente
em Paris, quando as tensões e conflitos, decorrentes da imigração recente e da
recusa à nacionalidade aos “estrangeiros” imigrados, teriam exacerbado sen-
timentos étnicos e nacionais. Tanto Dubet (1987) quanto Lagrange (1995)
dão grande importância ao desmantelamento dos bairros operários e ao en-
fraquecimento do movimento operário como o pano de fundo para o apare-
cimento das galeras de jovens na periferia de Paris. O princípio explicador de
sua conduta não seria a pobreza, mas a exclusão, termo que se refere a diversos
processos simultâneos, entre os quais se inclui o desemprego, o afastamento
da escola, a estigmatização pelo uso de drogas, o enfraquecimento dos movi-
mentos sociais (novos e velhos), assim como a diluição dos laços sociais nos
bairros operários e a própria ausência do conflito social, substituídos pelo
vazio e pela raiva.
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que interagiram para formar novas configurações relacionais (Elias & Dun-
ning, 1993). Elias focaliza alguns dos que ocorreram na Inglaterra por meio do
desenvolvimento do jogo parlamentar, no qual as partes em disputa passaram
a confiar uma na outra de que não seriam mortas ou exiladas, caso perdessem
o jogo. As regras acordadas seriam seguidas pelos parceiros que dele participas-
sem no intuito de resolver conflitos verbalmente. Na sociedade assim pacifica-
da, o monopólio legítimo da violência pelo Estado foi efetivado por modifica-
ções nas características pessoais de cada cidadão: o controle das emoções e da
violência física, o fim da autoindulgência excessiva, a diminuição do prazer de
infligir dor ao alheio. Este processo civilizador não foi, entretanto, uniforme
em todas as classes sociais, cidades e países. Onde o Estado fosse fraco, um
prêmio era colocado nos papéis militares, o que resultaria na consolidação de
uma classe dominante militar (Elias & Dunning, 1993, p. 233). Onde os
laços segmentais (familiares ou locais) fossem mais fortes, o que acontece em
bairros populares e vizinhanças pobres, o orgulho e o sentimento de adesão ao
grupo diminuem a pressão social para o controle das emoções e da violência
física, resultando em baixos sentimentos de culpa no uso aberto da violência
para resolver conflitos.
De todo modo, há enormes diferenças entre localidades, vizinhanças ou
territórios em virtude da diversidade de engenharias institucionais e político-
partidárias de cada país. Em alguns, gerações sucessivas de migrantes ocuparam
partes das cidades, há um aumento impressionante nas taxas de criminalidade,
espalham-se tanto o uso de drogas ilegais quanto as práticas violentas (arma-
das) do crime organizado e da polícia que o combate, seguidos pelo enfraque-
cimento da autoridade dos líderes comunitários e das associações vicinais nas
áreas mais pobres das cidades. A atual configuração urbana é um dos obstá-
culos a se enfrentar para a reafirmação dos direitos fundamentais (tais como
o direito à vida e ao ir e vir) entre a população mais vulnerável, mais afetada
pela precariedade, desigualdade e pobreza, fatores agravados pela violência que
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ano, 50% das quais concentradas em uma das cinco áreas de planejamento
da cidade, a AP3. Nessas centenas de favelas, o crescimento populacional foi
de 2,4% de população favelada, enquanto que o da cidade foi de 0,4%, um
índice europeu. Hoje, em 2010, são 1006 favelas, segundo o Instituto Pereira
Passos, da Prefeitura do Rio de Janeiro. Portanto, embora menores, os núme-
ros da cidade continuam preocupantes quanto ao crescimento contínuo das
habitações irregulares, logo associado à informalidade e à ilegalidade, abrindo
caminho para o fascínio exercido pelo crime organizado junto aos jovens mais
vulneráveis, a partir dos anos 1970.
De fato, as favelas do Rio de Janeiro, que existem há mais de um século,
sempre tiveram um lugar marcante no imaginário político e cultural da cida-
de. Ficaram registradas oficialmente como áreas de habitações irregularmente
construídas, sem arruamentos, sem plano urbano, sem esgotos, sem água, sem
luz, a partir das quais foi sendo formada a imagem de uma cidade bipartida,
ou seja, uma imagem devedora de ordem social que se monta na clareza de
quem são os amigos e os inimigos, uma ordem pré-moderna, das sociedades
de pequena escala, dificilmente aplicável às metrópoles. Nestas, como lembra
Bauman (2003), aparecem os estranhos não convidados, os que carregam as
marcas do ambíguo e do misturado, os que partilham ao mesmo tempo da
proximidade das relações morais e da distância do que não se conhece, firman-
do um terceiro elemento entre amigos e inimigos que outros autores denomi-
nam o espaço público.
Até hoje perduram elementos desta representação sintética e econômica
da cidade segundo os eixos alto/baixo, refinamento/selvageria, avanço tecno-
lógico/atraso, centro/periferia que acabaram por influir nas políticas públicas,
especialmente na segurança. Mas tal imagem bipolar não consegue representar
a peculiar mistura da ordem e da desordem, nem a tensão entre o pessoal e
o impessoal, entre o moderno e o antigo, que sempre caracterizou o Rio de
Janeiro. Nem muito menos a sua intensa criatividade na música, com a criação
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jovem, antes dos 30 anos para quem sobreviveu até os 15 anos, visto que nesta
faixa de idade 80% das mortes são violentas (Monteiro, 2008). As diferenças
entre as RAs são significativas: na Lagoa, bairro de alta renda familiar, 3,1%
dos nascidos vivos não completa 30 anos; no Complexo do Alemão, conjunto
de favelas de renda familiar baixa, 12,9% morre antes dos 30. As outras três
RAs com maior percentual de jovens que não chegam aos 30 são favelas do-
minadas por traficantes: Jacarezinho (10%), Maré (9%), Rocinha (9%). Mas
em Cidade de Deus é bem menor: 6% (ibidem). As áreas mais violentas não
coincidem totalmente com as mais pobres.
Quando localizadas no mapa da cidade, quatro das RAs, onde o risco de
morrer jovem é maior, estão localizadas perto da baía da Guanabara e do Aero-
porto Tom Jobim, por onde chegam navios e aviões, assim como ao longo da
avenida Brasil, por onde passa o transporte rodoviário que liga o Rio de Janeiro
a São Paulo, e outros estados limítrofes com os países produtores de drogas
ilegais. Também as etnografias feitas anteriormente e as longas entrevistas re-
alizadas com ex-traficantes revelaram o porquê: as transações entre traficantes
e fornecedores são feitas nas principais vias de acesso à cidade em postos de
combustível, motéis etc. (Pereira, 2009)
Isto porque, segundo dados da pesquisa domiciliar de vitimização realizada
em 2005-2006, a Polícia Militar é mais violenta e menos presente nas favelas,
nos bairros pobres dos subúrbios, especialmente na AP 3 onde estão as quatro
favelas que apresentaram maior risco de morte antes dos 30 anos. Ela dispara
dez vezes mais tiros nas favelas do que no asfalto. O barulho de tiros, por
exemplo, é ouvido por 60% dos entrevistados na AP 3 (nos subúrbios), 65%
na AP1 (Centro), mas por 30% no resto da cidade.
A pesquisa de vitimização também revelou o paradoxo da cidade: nas áreas
mais pobres, onde a violência é maior, a muito boa convivência entre vizinhos,
marca da cultura carioca, é também maior. Esta convivência, assim considera-
da pelos entrevistados, apresenta proporções maiores nas áreas em que vivem
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a facilidade com que se deu o domínio dos traficantes armados sobre os seus
territórios a partir dos anos 1970. Mais isolados internamente e alvo de des-
confiança e medo dos seus vizinhos prósperos, os bairros pobres e as favelas,
onde moram os pobres, embora tenham historicamente contado com gran-
de capacidade organizativa que se concretizou nas escolas de samba, blocos
de carnaval, times de peladeiros, assim como associações de moradores, não
contam hoje com os serviços públicos de qualidade na saúde e na educação, e
têm de enfrentar os efeitos desastrosos da falta de policiamento, com incursões
eventuais e violentas de forças policiais que não se guiam pelas normas estabe-
lecidas na lei.
Sem contar com os controles informais que se enfraqueceram no pro-
cesso de militarização dos traficantes, nem com a mediação de conflitos
entre estes últimos – sempre disputando o controle dos pontos de venda
e de poder local –, o poder policial entra em locais já conflagrados pelo
conflito armado. Em um círculo vicioso infindável, esta situação só faz
reforçar aquelas práticas policiais baseadas no seu poder de fogo e na pers-
pectiva das práticas repressivas da “guerra contra os inimigos internos”
estabelecidas nas últimas décadas. Mas a polícia não pode fazer guerra
contra cidadãos trabalhadores, crianças, idosos, jovens estudantes e donas
de casa, nem até mesmo contra suspeitos de praticarem crimes. A ideia
da guerra contra outro poder armado “paralelo”, com alta capacidade de
corromper, dificulta enormemente a adesão às normais legais que deve-
riam orientar a ação policial.
De fato, o comércio de drogas tornou-se sinônimo de guerra em muitos
municípios do Brasil, mas com diferenças regionais entre cidades e entre bair-
ros na mesma cidade. No Rio de Janeiro, mesmo que não completamente
coordenado por uma hierarquia mafiosa, o comércio de drogas tem um ar-
ranjo horizontal eficaz pelo qual, se faltam drogas ou armas de fogo em uma
favela, esta imediatamente as obtém das favelas aliadas. As quadrilhas ou co-
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tos que mais as impressionaram: 46,3% dos bairros visitados, todos nas zo-
nas mais pobres da cidade, não contam com ronda policial. A maior parte
dos casos decorre de conflitos banais na periferia que poderiam ser evitados
com políticas públicas que criassem formas de mediação na vizinhança, nos
bares, na escola, na família. Por fim, a maior parte das vítimas teve morte
anunciada e seus familiares sabiam do destino por terem essas vítimas vin-
culações com traficantes de drogas ilegais, seja como usuários contumazes,
seja por envolvimento nas suas atividades ilegais.
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Estes jovens mencionam 19 vezes mais do que os que não portam armas
que têm colegas também portadores de armas de fogo (ibidem).
Tais estudos procuram entender porque jovens que de outra maneira
não andariam armados, passaram a fazê-lo para evitar serem vitimados pe-
los seus pares armados, para impor respeito e para gozar do prestígio ad-
quirido com a posse de armas. Pois, mais do que uma inclinação natural
dos homens jovens pobres à violência, o que explica o aumento da taxa de
homicídios nos locais onde vivem é a alta concentração de armas nestes
locais. É isso que cria o que o criminologista Jeffrey Fagan (2005) da Uni-
versidade de Columbia chamou “ecology of danger”. Depois de entrevistar
400 jovens nas vizinhanças mais perigosas de Nova Iorque, descobriu que
a violência se expandiu nessas vizinhanças entre 1985 e 1995 pelo contágio
de ideias e posturas.
Este é outro círculo vicioso encontrado também no Brasil. Nas várias pes-
quisas de campo que realizei com assistentes de pesquisa no Rio de Janeiro,
também sempre foi assinalada, desde 1980, a facilidade e a quantidade de
armas disponíveis para os jovens moradores das favelas tidas como perigosas. E
nelas jovens passam a andar armados para se proteger de outros jovens arma-
dos; juntam-se a quadrilhas por crer que assim contarão com a sua proteção
militar, jurídica, política e pessoal; preparam-se para a guerra, aprendem a ser
cruéis e a matar sem hesitação outros jovens pobres como eles que fazem parte
dos comandos, quadrilhas ou favelas “inimigas”. Acreditam que permanecerão
impunes nesse crime e acabam, eles também, como vítimas nas estatísticas
sobre os homicídios no país.
Tal ethos guerreiro, de hipermasculinidade ou de excesso na virilidade
agressiva e destrutiva, ao qual aderem os jovens atraídos pelas quadrilhas, im-
pregna o lugar onde os meninos crescem. Pois é nas ruas que eles são em
parte socializados nessa configuração analisada por Norbert Elias (Elias &
Dunning 1993, pp. 10-11). Ao adotar seus códigos ou suas práticas sociais
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tos étnicos armados. Nestes países, crianças são afastadas de suas famílias
para se incorporar a forças militares nas quais são treinadas para a guerra.
Nos conflitos étnicos, crianças não são poupadas como alvo da ativida-
de guerreira. Elas, assim como as mulheres de todas as idades, são vítimas
do morticínio, assim como seus autores. Os soldados das guerras civis não
vão à escola, não participam das atividades cotidianas nas vizinhanças em
que vivem (Wessell, 1998). São partes integrantes dos exércitos militares
ou paramilitares. As ações propostas para recuperar estas crianças apontam
para a importância de desmobilizá-los, banir qualquer possibilidade de re-
crutamento futuro e reestabelecer o contato com suas famílias, com suas
comunidades civis, reintegrando-as às atividades cotidianas culturais fora
ou dentro da escola (ibidem).
Outras conclusões de nossos estudos etnográficos afirmam que, além da
inegável importância do esporte na pacificação dos costumes (DaMatta, 1982;
Zaluar, 1994), outro processo se espalhou pelo Rio de Janeiro: a instituição de
torneios, concursos e desfiles carnavalescos envolvendo bairros e segmentos
populacionais rivais. Desde o início deste século, os conflitos ou competições
entre bairros, vizinhanças pobres ou grupos de diversas afiliações eram apre-
sentados, representados e vivenciados em locais públicos que reuniam pessoas
vindas de todas as partes da cidade, de todos os gêneros, de todas as idades,
criando sociações, ligações, encenações metafóricas e estéticas das suas possí-
veis desavenças, seguindo regras cada vez mais elaboradas. O samba reunia
também pessoas de várias gerações, constituindo uma atividade de lazer fre-
quentada por toda a família, o que quer dizer que nos ensaios, nas diversas
atividades de preparação do desfile, no barracão onde juntos trabalhavam, os
valores e regras da localidade e da classe conseguiam ser transmitidos de uma
geração para outra, mesmo que não completamente.
Apesar dos sinais de que a classe social estaria partida, as organizações
vicinais paralisadas onde traficantes e milicianos dominam o território, e
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reggae. Muitos adultos já estão mobilizados para isso, mas faltam-lhes apoio
público e reconhecimento. Como o trauma resultante das experiências de
violência é coletivo (Reichenberg & Friedman, 1996), estas iniciativas são
mais exitosas em atrair os moradores jovens e iniciar diálogo com eles do que
programas que focam no indivíduo (Wessells, op.cit.). Neles, as famílias dos
jovens podem também ser envolvidas e passar a participar do seu crescimen-
to. As formas de associação vicinal implantadas na cidade do Rio de Janeiro
ao longo do século XX têm exatamente este espírito e constituíram, portanto,
veículos importantes para se chegar aos jovens desgarrados das instituições
que deveriam prepará-los para a vida adulta.
É claro que, pelo que já foi exposto, os projetos têm que incluir o obje-
tivo de reduzir o acesso e a posse de armas de fogo pelos jovens, pois é isso
que os mata. As armas que portam vêm, pelo menos desde o final dos anos
1970, de depósitos das Forças Armadas, do contrabando, dos estoques das
Polícias Militares e também dos poucos que guardam armas em casa ou
andam armados na rua. Primeiramente, é preciso, pois, estancar o fluxo que
parte dos depósitos militares e das fronteiras do país.
Notas
1 De acordo com o General Social Survey dos EUA, 45% dos domicílios têm uma arma de fogo e
em mais da metade destes domicílios, mais de uma arma. No Brasil, dados de uma pesquisa domi-
ciliar coordenada pela Organização Pan-Americana de Saúde em 1997 indicam que, na cidade do
Rio de Janeiro, apenas 4,5% da população declara ter uma arma de fogo em casa. Em São Paulo,
dados mais recentes, de 2003, de uma pesquisa domiciliar realizada pelo Instituto Futuro Brasil,
permitem calcular que apenas 2,5% dos domicílios têm alguém com arma em casa.
2 O perfil das mães brasileiras, divulgado pelo IBGE com base no censo 2000, alerta que de
1991 a 2000 o número de jovens de 10 a 14 anos que foram mães pela primeira vez subiu
93,7%. O segundo maior aumento, 41,5%, foi no grupo de 15 a 19 anos. Segundo o IBGE
em 1991, 35% dos bebês nascidos eram filhos de mães com idades entre 10 e 19 anos; em
2000 este número subiu para 38%. Um estudo da Fundação Getúlio Vargas apontou que
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na faixa de 15 a 19 anos, a fecundidade das cariocas é 5 vezes maior nas favelas do que nos
bairros de renda mais alta. A pesquisa indicou que em cada 100 jovens desta faixa etária há
26,6 filhos; em um mesmo grupo na Zona Sul o número cai para 5,4 filhos.
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poverty to violent criminality based on new ecological theories about the con-
centration of certain crimes in urban areas. We consider how the weakening of
interpersonal, inter-generational and inter-peer bonds contributed to the dis-
ruption of the social linkages and provided a sense of impunity, because what
distinguishes the poor neighborhoods of the wealthy ones, even in those where
there are similar numbers of occurrences, is the record of those crimes, which
is lower in the poor ones. The diversity and anonymity, concomitant with the
greater freedom of the townspeople vis-à-vis the gentlemen and figures of autho-
rity on private domains, were accompanied by the decrease of informal social
control over the youth, due to weakened social bonds and the lack of confidence
between neighbors, witch would result in the increase of the criminality. This is
the core or the ecological approach, seen through the situation lived in Rio de
Janeiro and its paradoxes.
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O modelo das suas atribuições pressupõe ainda que estes guardas, en-
quanto agentes de elaboração de diagnósticos dos problemas de um mu-
nicípio, tenham a competência para formular soluções para estes proble-
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tiu observar que: 44% dos guardas encontravam-se na faixa entre 18-27;
16% entre 28-37; 16% entre 38-47; no entanto, 24% dos guardas que
participaram da pesquisa não informaram a idade.
É interessante ressaltar que a maior parte dos guardas não reside no
município de Niterói, motivo utilizado como justificativa por eles pelo
não conhecimento do espaço da cidade onde trabalham já que, ao ingres-
sarem na Guarda, não receberam nenhuma orientação sobre a história
da cidade nem sobre os bairros ou pontos de referência importantes. Isto
tem uma implicação conflitante com as diretrizes determinadas pelo go-
verno federal no sentido de que estas preveem um trabalho baseado nos
princípios de uma polícia de proximidade, que conhece e interage com
os cidadãos do município e capaz de elaborar diagnósticos e propostas de
resolução dos problemas relativos à segurança pública do município.
Quanto à experiência profissional anterior observa-se a tendência
maior daqueles que exerceram ou prestaram serviço militar nas Forças
Armadas. Cabe esclarecer que, de acordo com os relatos dos guardas, é
possível agruparmos algumas atividades em três categorias maiores: 1 -
atuação com ‘camelôs’: volante, combate ao comércio clandestino e ge-
rência operacional; 2 - policiamento preventivo: policiamento preventi-
vo, posto em próprio público, posto em parques, ronda escolar, brigada
de incêndio, guarda florestal; 3 - trabalho interno: supervisão, seção de
logística, seção de pessoal, telefonista, gerência operacional.
Este perfil parece indicar que, embora uma parte significativa dos
guardas trabalhem no policiamento preventivo, há uma representação
igualmente significativa daqueles que atuam no “combate aos camelôs”,
destacando-se que é para esta função que grande parte da orientação de
trabalho está voltada. Cabe ainda ressaltar que os guardas relataram que,
quando solicitados pelo comando, devem atuar no “combate aos came-
lôs”, ainda que suas atribuições estejam referidas a outros postos.
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seus olhos, a cidade parece estar dividida. A maioria dos guardas que
participou dos grupos focais foi unânime ao argumentar que é muito
mais fácil trabalhar na área de Icaraí – bairro de classe média da cidade
– do que no centro de Niterói – área de intensa passagem de um públi-
co heterogêneo, mas fortemente marcada pela presença de vendedores
ambulantes e comércio de população de baixa renda. Segundo eles, a
população de Icaraí é muito mais educada na relação com eles e parece
estar muito mais ciente da sua presença, ao contrário do que ocorre no
centro, onde a receptividade da sua atuação, conforme descrita acima, é
muito ambígua. Do mesmo modo, a atividade de “combate ao “camelô”
pode representar uma ameaça para os guardas quando estes circulam
pelo centro para fazer compras ou passear com a família. Eles se sentem
ameaçados de represálias.
No decorrer da realização da pesquisa de campo foi recorrente, por
parte dos guardas, o discurso de que um dos problemas para a construção
da sua identidade, bem como para o pleno exercício de suas funções, era
a ausência de uma formação institucional que, na prática cotidiana do seu
trabalho, vem sendo substituída pelo que chamaram de bom senso.
Foi possível observar que as práticas baseadas no que consideram o
bom senso refletem o suposto despreparo dos guardas e, por isso, são con-
sideradas menos legítimas. No entanto, a hierarquia institucional interna,
expressa através das categorias novos e antigos, não parece, segundo a visão
dos guardas novos, residir na transmissão de um “saber fazer” o trabalho,
dos guardas mais antigos para os guardas mais novos. Contrariamente a
esta posição, a partir de entrevista a dois subinspetores, ambos integrantes
do grupo de antigos guardas, isto não seria totalmente uma verdade uma
vez que os guardas de fato recebem orientação para atuar, em particular
através de ensinamentos de gestos corporais que, em seu conjunto, é de-
nominado Ordem Unida.
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das barracas ou porque recebem para fazê-lo. Alguns afirmaram que são
insuflados ao combate físico, o que é um risco, pois às vezes, o guarda vai
para a ronda sozinho e fica mais vulnerável às represálias.
O conflito com os “camelôs” sob a forma de enfrentamento ocorre,
segundo alguns guardas, com o objetivo de preservar a segurança dos
próprios guardas e a dos colegas. No entanto, essa visão não é consensu-
al, um dos guardas também revelou que essa rotina seria problemática,
pois colocaria um trabalhador contra outro trabalhador. É importante
destacar que alguns dos guardas já trabalharam como ambulantes antes
da realização do concurso, e outros declararam que possuem amigos e/ou
familiares que se encontram ainda nessa situação.
Um guarda relatou um caso de conflito entre os “camelôs” e os guardas
no Centro de Niterói, no qual o tenente da Polícia Militar que coman-
dava uma guarnição teria ordenado aos seus homens que aguardassem
e deixassem os guardas combaterem na frente. Um outro contou uma
situação na qual esteve envolvido, fugindo da confusão apesar da zomba-
ria dos colegas. E reafirmou que faria quantas vezes isso fosse necessário
porque não se sente preparado para o “combate” nem acha que a sua fun-
ção é esta. Foram narrados ainda vários casos onde os policiais militares
são apontados como responsáveis pela agressão aos guardas, agressão esta
interpretada pelos guardas municipais como consequência do fato de que
estes policiais estariam sendo pagos para protegerem os “camelôs”.
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renta reais (R$ 35,00 - R$ 40,00) por semana, quando localizados no Centro
de Niterói, e entre cinquenta e sessenta reais (R$ 50,00 - R$ 60,00) tratando-
se do bairro de Icaraí, o que não compunha um salário mínimo por mês.
A segunda fase constou da inscrição das pessoas que quisessem reque-
rer a licença. O total de inscritos somou quinhentos e quinze requerimen-
tos dos quais a grande maioria já trabalhava com barraca na rua, afirma
o subsecretário. Com os formulários preenchidos e os requerimentos nas
mãos, a equipe partiu para um terceiro momento do processo de reca-
dastramento que constou da visita às casas dos “camelôs”, ou seja, das
quinhentas e quinze pessoas que haviam feito a inscrição.
Após o pagamento do Documento de Arrecadação Municipal
(DARM) no valor de R$ 21,00 (vinte e um reais), os “camelôs” preenche-
ram um cadastro com dados referentes à idade, local de residência, nú-
mero de filhos, estado civil, propriedade, tamanho e tempo de residência
no município, renda, tipo de mercadoria a ser comercializada e local em
que pretendia vendê-las, incluindo justificativa do que desejavam vender
no verso do formulário. Aqueles que não sabiam escrever tinham o seu
requerimento escrito por um terceiro e a sua assinatura registrada pela
estampa do dedo polegar. Conforme o critério estabelecido pela SSPDH,
o vendedor ambulante não podia ter uma renda familiar acima de um
salário mínimo da época, condição que estabelecia um “perfil de exclusão
social”, alegado pelo Secretário de Segurança.
A prioridade foi dada àqueles que residissem em Niterói e que estives-
sem dentro do perfil socioeconômico. Um outro critério anunciado pelo
Secretário de Segurança foi o de que não seria permitido “o monopólio
familiar, ou seja, uma família com diversas barracas”. Os cadastros eram
devidamente organizados por bairros pelos membros da Subsecretaria de
Segurança e Direitos Humanos. À frente de cada cadastro foi colocada
uma folha de rosto com um questionário que, ao chegar na residência da-
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quele que havia feito o pedido, era preenchido por um destes técnicos no
momento da entrevista ao vendedor ambulante. Este questionário conti-
nha perguntas referentes ao perfil socioeconômico, tais como: se o imóvel
era de propriedade ou alugado pelo candidato à licença; quantidade de
cômodos; aquisição de objetos eletrodomésticos como televisão – se preto
e branco ou colorida -; aparelho de som; máquina de lavar roupa; forno
micro-ondas; liquidificador; quantos dependentes residiam na casa; ren-
da familiar; quem trabalhava na casa; se mais alguém da unidade domés-
tica também estava requisitando licença. Além destas, havia um espaço
reservado ao técnico da equipe no qual, chegando à sede da SSPDH, fazia
a sua própria avaliação a respeito da condição do “camelô”.
A visita às residências de cada pessoa que estivesse pedindo a licença para
vender suas mercadorias, tinha por objetivo conferir se ela havia dito a “ver-
dade”. Após a entrevista dos funcionários ao candidato e o preenchimento
do cadastro, o funcionário explicava a este último que os relatórios seriam
encaminhados ao Secretário de Segurança para que este desse o parecer final.
Questionados sobre quais procedimentos iriam adotar para descobrir
se a renda declarada era verdadeira, visto que, em sendo trabalhadores in-
formais, muitos não teriam como comprovar a sua fonte, os membros da
equipe responderam que avaliariam as condições de moradia das pessoas.
No entanto, a lógica parece revelar um sistema de classificação subjetivo
que comporta discrepâncias e, ao mesmo tempo, aponta para as exceções
que eram feitas a partir de uma análise subjetiva da pessoa que estava vi-
sitando a casa do “camelô”. A pretendida objetividade e profundidade do
recadastramento, como uma política pública de inclusão, ficava refratária
às avaliações pessoais dos membros da equipe que parecem revelar um
substrato de valores dado a priori que permitiu esta classificação, con-
siderando a “situação da casa e dos dependentes”. Outro procedimento
adotado para a verificação das informações a respeito de quem requeria a
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A gente ia, e isso não era uma coisa fechada, não era uma fórmula pré-
estabelecida, uma fórmula absoluta. Eu visitei uma casa de um senhor
que ganhava, ele e a esposa, tinham uma renda de mil e quatrocentos
reais por mês, morava num apartamento próprio, um kitnet, mas pró-
prio. Só que, só de remédio e plano de saúde, ele gastava mais de mil
reais. Então, embora ele tivesse uma renda de mil e quatrocentos reais
por mês, a renda da barraca era fundamental para complementar a renda
deles porque só de saúde eram mil reais e sobravam quatrocentos reais
para o resto... (Subsecretário de Direitos Humanos).
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Então, hoje, eu vou dizer a minha vida, para a senhora, na rua. Eu,
dos 8 anos de idade até 59, só tive dois inimigos fiscais. A fiscaliza-
ção sempre foi apaixonada por mim, a Guarda Municipal sempre foi
apaixonada por mim, e hoje entraram esses coronéis, porque a gente
não sabe se é guarda ou se é quartel da polícia. Do meu ponto de
vista eles são uns monstros, não entendem nada disso. Eu acho que
cada prefeito tem que tomar conta da sua cidade, cada prefeito tem
que dar emprego aos seus, como se diz, às pessoas que pagam impos-
to no município, vamos dizer, filhos da cidade. Se eu sempre fui de
Niterói, nunca trabalhei um dia no Rio, nunca trabalhei um dia em
São Gonçalo, nunca trabalhei um dia em Icaraí; eu só conheço essa
rua daqui, a senhora não acha que eu tenho direito a minha licença?
A senhora acha que alguém tem o direito de tirar a minha licença,
o meu direito de trabalho? Eu não aprendi a fazer mais nada a não
ser camelô. A Guarda Municipal hoje tem um gabinete que fui eu
que fiz. Antes havia um diretor que era bravo, ele tinha o nome de
campeão de luta brasileira, esse foi um deles, há uns doze anos; mas
ele se comunicava com a gente. Ele não esculachava a gente. Além
dele ser forte e bravo, ele beijava o nosso rosto e a gente nunca abu-
sou dele. Então, o que acontece? Eu fazia a festa da Guarda no final
do ano. Pode perguntar a todos os guardas antigos ou a esse diretor
porque ele ainda é vivo. Eu arrumava com os meus amigos, «came-
lôs» também; um dava uma caixa de cerveja, quem podia dar dava
duas; dava caixa de refrigerante. Então juntava aquilo tudo; um dava
uma caixa de fruta, outro dava outra caixa de fruta; a gente juntava.
De barraca em barraca eu pedi brinquedo para dar de presente aos
filhos dos guardas. Eu pagava do meu bolso um conjunto para tocar
no dia da festa, uma aparelhagem de som (Camelô há 51 anos no
Centro de Niterói).
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Um dia eu forrei o chão com uma lona em frente à Pracinha dos Chumba-
dos e coloquei um monte de lixo em cima – capa de celular rasgada, pilha
que não funcionava, pente usado, lápis quebrados e canetas sem tinta.
O guarda chegou e pediu que eu tirasse as mercadorias dali. Eu falei que
não ia tirar nada não. O guarda disse então que seria obrigado a recolher
a mercadoria e eu falei: “ah, é lixo o que você quer? Então toma aí o seu
lixo!”. Eu peguei a minha muleta por baixo da lona e levantei tudo para
cima do guarda; o lixo foi todo pra cima dele e eu continuei a falar: “toma
o seu lixo, toma o seu lixo” (X, camelô há 20 anos no Centro de Niterói).
Considerações finais
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Diz ele que “aqueles que se beneficiam da piedade têm uma boa razão
de suspeitar que eles não são respeitados na medida em que a piedade é
desencadeada pela visão da impotência e da vulnerabilidade. Se as pessoas
são mestras delas mesmas, não se tem piedade por elas, mesmo quando
elas caem na miséria. A piedade é endereçada às pessoas que perderam
importantes motivos de respeito delas mesmas e que estão ao ponto de
perderem os meios de defender a sua dignidade pessoal” (Margalit, 1999,
pp. 221-222). “Piedade”, “piété”, “pitié”, derivam do latim pietas, sendo
que em inglês, como em francês, sofreram uma modificação semântica. A
piedade expressa um sentimento religioso sustentado por uma obrigação
incondicional e sincera em relação ao outro que sofre, uma extensão da
obrigação do homem para com Deus, e não um sentimentalismo condes-
cendente em relação aos pobres.
Dessa forma, é utilizando um discurso, elaborado a partir de relatos
e de enunciações, bem como da dramatização do seu sofrimento, que os
“camelôs” parecem querer impor uma questão moral aos espectadores – a
população em geral, a mídia e as autoridades locais – no sentido de que
estes se tornem engajados na sua causa. Se esta estratégia política obterá
realmente a resposta do espectador no sentido de que este torne o seu so-
frimento público, é outra coisa. Por outro lado, na medida em que, mes-
mo que a resposta do espectador não contemple o fim do seu sofrimento,
a sua causa é tornada pública na medida em que é publicizada no espaço
público no qual o discurso é transmitido.
Notas
1 ����������������������������������������������������������������������������������������
Antropóloga, Professora do Departamento de Política Social/ESS/UFRJ. Pesquisadora Asso-
ciada ao NECVU/IFCS/UFRJ e ao InEAC/Nufep/UFF.
2 Este Fundo é regulamentado pela Lei Federal no 10.201/2001 e alterado pela Lei 10.746/2003.
3 Passarei a me referir ao Plano Nacional de Segurança Pública pela abreviação PNSP.
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4 Além de entrevistas à população que circulava nas ruas, aos representantes das Secretarias
Municipais, levantamento bibliográfico e da minha inserção como professora, coordenadora
e pesquisadora no projeto de extensão de Capacitação da Guarda Municipal de Niterói,
desenvolvido no âmbito do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas – Nufep, da UFF
entre 2002 e 2007, este trabalho contou com diagnóstico elaborado a partir da realização
de grupos focais. O grupo focal é uma técnica de pesquisa qualitativa baseada no debate
entre os participantes, que permite, em um curto espaço de tempo, o acesso ao quê os par-
ticipantes pensam e não ao como, ou porquê, eles chegaram a pensar o que pensam sobre
um determinado assunto. Aplicada aos guardas municipais, esta ferramenta indicou algumas
representações sobre a ordem social e a segurança pública presentes entre os guardas que
participaram dos grupos focais. Ao longo de duas semanas do mês de julho foram realizados
13 grupos focais com guardas municipais que ocupavam diferentes funções de trabalho de
modo que fosse possível obter uma visão mais clara de todos os aspectos das suas funções.
Destes 13 grupos, dois foram compostos por inspetores e subinspetores para evitar possíveis
constrangimentos para os guardas no momento de exporem as suas avaliações a respeito do
trabalho daqueles, bem como os problemas por eles vivenciados na sua função e interna-
mente à instituição. A seleção dos participantes foi feita pela própria Secretaria de Segurança
de acordo com os critérios solicitados pela equipe de pesquisadores do NUFEP: postos que
ocupavam e tempo na instituição. Os grupos focais foram realizados em salas de aulas da UFF
e contaram com a participação de diferentes pesquisadores na área de ciências sociais, com
diferentes formações: estudantes de graduação e de pós-graduação, bem como de professores
e pesquisadores vinculados à UFF.
5 Sobre estas categorias na organização da GM de Niterói, ver minha tese de doutorado, inti-
tulada Igualdade e hierarquia no espaço público: análise de processos de administração insti-
tucional de conflitos no município de Niterói, defendida no PPGA/UFF, 2007.
6 Uma postura municipal tem como papel definir e regular a utilização do espaço público e
do bem estar público. Os fiscais de postura são os agentes públicos municipais investidos da
autoridade de executar a regulamentação da utilização do espaço público, que não era, na
época da pesquisa, atribuição dos guardas municipais.
7 Este discurso do despreparo dos guardas é mais extensivo a outros profissionais da área de
Segurança Pública, tanto por parte dos seus integrantes, como por parte da população em
geral. No caso da Polícia Militar, ver Kant de Lima (2003).
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ABSTRACT: The objective of this article is to present a discussion about the im-
pact of the process of decentralization of a public policy for security in Niterói,
considering, on one side, the context of implementing the Municipal Guards
in Brazil, from its formalization in the sphere of norms in the Constitution of
1988, and on another, the re-registration of street vendors in the city – the so-
called camelôs. The ethnographic material on which this analysis is based refers
both to the reformulation of the Municipal Guard in Niterói and the relisting of
the camelôs in the context of the decentralization of security policies. It was ob-
served that, in the implementation of universal and equitable mechanisms of in-
stitutional management of conflicts in public space, the difficulties encountered
by the local government concerned the persistence of a habitus in the practice
of municipal guards, based on repression. Similarly, the policy of re-registration
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did not mean guaranteed access to a social right, but a process of stigmatization
of a particular social group, while it allowed a better control of the same by the
State. As a result, the camelôs expressed their dissatisfaction using discourses that
valorized suffering and disregard as strategies for building a public image that
could allow a space in the municipal security policy.
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Theophilos Rifiotis
Andresa Burigo Ventura
Gabriela Ribeiro Cardoso1
Apresentação
que possibilitam a sua crítica. Nesse duplo vínculo, entre uma perspectiva
analítica e uma perspectiva crítica, destacam-se os trabalhos seminais de
Mariza Corrêa (1983) e Edmundo C. Coelho (1986), que desenharam
as grandes linhas de um campo de estudo entre Antropologia e Direi-
to e enfocaram especialmente a produção da Justiça com ênfase no seu
acesso diferencial. Estudos mais recentes têm mostrado que se trata de
um campo promissor de pesquisa (Adorno, 1996; Costa Ribeiro, 1999;
Kant de Lima, 2000), seja pela falta de informações oficiais produzidas
pelas agências do sistema de Justiça Criminal, como pela necessidade de
um melhor conhecimento do processamento da Justiça, especialmente no
domínio criminal. Nesse sentido, cabe destaque aos trabalhos realizados
nos últimos anos que, superando tais dificuldades e limitações para a pes-
quisa (IPEA/CESEC in Cerqueira, 2000), têm produzido importantes
resultados, dentre os quais cabe uma referência especial à contribuição de
Joana Domingues Vargas na vertente dos estudos sobre o chamado fluxo
de Justiça Criminal (Vargas, 1997, 2004).
Na esteira da produção sobre o fluxo de Justiça Criminal, e tomando
como base a realização de uma pesquisa sobre homicídios na Região
Metropolitana de Florianópolis (SC),2 entre 2000 e 2004, realizada no
LEVIS (Laboratório de Estudos das Violências) da Universidade Fe-
deral de Santa Catarina,3 desenvolvemos uma reflexão crítica sobre as
estratégias metodológicas de pesquisa neste campo, que apresentamos
aqui. Para iniciar a nossa discussão, retomamos um balanço da pro-
dução nesse campo publicado em 2008, no qual se mostra a crescente
importância dos estudos sobre fluxo de Justiça Criminal, bem como
a diversidade de abordagens que eles comportam (Vargas & Ribeiro,
2008). No balanço, é analisado um amplo conjunto de publicações des-
de a década de 1980 que mostra a ênfase no recorte na morosidade/
eficiência e na seletividade do processamento no sistema de Justiça, des-
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tre esses órgãos, feita quase que exclusivamente por meio de documentos
escritos. Ela expressa práticas e valores das três categorias de operadores
que compõem o sistema: a Polícia, o Ministério Público e a Magistratura,
que produzem e reproduzem concepções hierárquicas, desiguais e que
podem ser discriminatórias.
Segundo Kant de Lima (2000), diremos que, apesar de caber a tais
instituições, em princípio, administrar litígios no espaço público pro-
movendo a justiça, os operadores guiam-se por regras que são normal-
mente muito amplas e podem cometer injustiças e consolidar desigual-
dades sociais. Assim, a determinação do tempo de processamento do
sistema de Justiça Criminal é mais do que uma questão de “morosi-
dade”, ainda que ela seja um importante critério de processamento e
efetividade do sistema. O tempo, nesse contexto, demonstra sua plena
significação como índice do tipo de tratamento dado aos crimes e aos
sujeitos processados. De tal modo, o próprio método de reconstituição
do fluxo considerado mais recorrente é o estudo longitudinal ortodo-
xo, ou seja, aquele tipo de análise que consiste fundamentalmente no
acompanhamento de um conjunto de ocorrências policiais de cada tipo
de crime ao longo de um período (Vargas & Ribeiro, 2008). Esse acom-
panhamento tem por objetivo verificar o percentual de casos que pro-
gridem para as fases subsequentes e ainda os que são arquivados antes
do previsto. Trata-se de uma abordagem que permite analisar o tempo
de processamento, a dinâmica das operações realizadas pelos operadores
do direito, as características dos casos, das vítimas e acusados, redun-
dando num rico material sobre as práticas judiciais e a produção de
justiça. Assim, pode-se estudar a entrada e saída dos casos no sistema,
bem como os resultados do processo e, por essa via, discutir o acesso
diferencial à Justiça. A dimensão temporal no estudo do fluxo de justiça
é, portanto, um elemento central.
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tos, mas como a fábula apresentada aos julgadores, ou seja, ter sempre
presente que:
Considerações finais
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Notas
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4 No período de 2000 a 2003, ocorreram 452 homicídios. De um total de 290 processos
localizados no site do tribunal de justiça, na pesquisa trabalhamos com um universo de 183
processos judiciais. Neles havia 196 vítimas e 263 acusados. Em Florianópolis foram analisa-
dos 140 processos, na cidade de São José foram 26 processos, em Biguaçu trabalhamos com
10 e na cidade de Palhoça analisamos 7 processos. Entre os processos localizados e analisados
que estavam no Arquivo do Tribunal de Justiça, 48 deles permaneceram sem solução (26%),
ou seja, foram arquivados logo depois da finalização do inquérito.
5 Trata-se de um período significativo de crescimento da taxa de homicídios conforme apon-
tam as séries históricas que estamos analisando a partir de dados coletados no Instituto Geral
de Perícias (IGP) de Florianópolis (SC) e que serão objeto de publicação específica.
6 Para além de apresentações em congressos, nos referimos concretamente às dissertações de
mestrado de Tiago Hyra (2006), Aírton Ruschel (2007) e Danielli Vieira (2008) no Programa
de Pós-graduação em Antropologia Social/UFSC, e aos trabalhos de conclusão de curso de
graduação em Ciências Sociais da UFSC de Andresa Burigo Ventura (2007) e Emília Juliana
Ferreira (2008); além do Relatório Técnico para o CNPq relativo ao Projeto “Fluxo de Justiça
Criminal nos Casos de Homicídio Doloso na Região Metropolitana de Florianópolis de 2000
a 2004” (Rifiotis & Ventura, 2007).
7 Nesta escassez de informações, cabe menção ao trabalho da SEADE (www.seade.gov.br), que
disponibiliza informações sobre o tempo de duração de Processos Penais de homicídio de São
Paulo. O mesmo pode-se dizer do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESEC) da
Universidade Cândido Mendes, que, juntamente com o IPEA (Instituto de Pesquisa Econô-
mica Aplicada do Ministério do Planejamento), publicou uma interessante discussão metodo-
lógica sobre o estudo da Justiça Criminal (2000).
8 Uma discussão detalhada pode ser consultada no relatório final da pesquisa (Rifiotis & Ven-
tura, 2007).
9 Os processos podem ser consultados de forma on-line (www.tj.sc.gov.br) por diversas entra-
das: número, nome das partes, nome dos advogados que estão acompanhando o caso etc.
10 Alguns processos foram encontrados no site do Tribunal de Justiça, mas não foram localizados
nos cartórios, por diversos motivos: estavam em posse dos advogados, voltaram para as Dele-
gacias, estavam em outras Varas, com o Ministério Público etc.
11 Devido ao grande volume físico de processos nos cartórios que visitamos, as pilhas de docu-
mentos ficavam até mesmo pelo chão, com escaninhos improvisados entre as pernas dos fun-
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cionários. Percebemos que, devido a essa falta de infraestrutura, até mesmo os cartorários
tinham uma grande dificuldade em localizar e manusear os processos penais.
12 O acompanhamento ou a localização física desses documentos é controlada por um sistema
de protocolo informatizado que identifica o último estágio ou procedimento. Porém, quando
alguém por descuido colocava o processo no escaninho errado, desestruturava toda aquela
organização (um dos cartórios visitados possuía por volta de 500 escaninhos; em cada um
deles, 40 a 50 processos, mais ou menos), levando os operadores a procurar várias horas pelo
documento.
13 Participaram da fase de coleta de dados as seguintes pesquisadoras do LEVIS/IPESP: Andresa
Burigo Ventura, Emilia Juliana Ferreira, Rosa Maria Dorneles e Gabriela Ribeiro Cardoso.
14 Esta observação também possibilitou perceber as diferentes dinâmicas de funcionamento das
Varas Criminais e de que forma isso pode se relacionar com o tratamento dado aos proces-
sos. Assim, em uma das comarcas estudadas, os processos chamavam atenção pelo volume
superior ao encontrado em outros locais. Ao realizar a coleta dentro do cartório, verificamos
que os processos chegavam ao início do dia, empilhados em um carrinho de supermercado.
Esse fato inusitado contribuía para uma intensa rotina de trabalho que estava centralizada na
figura de um jovem juiz que muitas vezes trabalhava além do seu expediente.
15 Em certa medida, entendemos que os diários de campo contribuem para o conhecimento
etnográfico das instituições judiciárias. Evidentemente, nosso foco eram os processos penais,
mas as observações em campo dos modos de arquivamento, da circulação dos processos,
as falas dos operadores locais em muito contribuíram para o estudo do fluxo de justiça.
Num plano mais amplo, situamos este trabalho como um relato etnográfico, lembrando que
estamos plenamente de acordo com R. Kant de Lima quando ele se refere ao potencial da
etnografia em dar visibilidade aos mecanismos que atuam na formação das decisões ao trazer
as circunstâncias e agentes que são admitidos no processo (Kant de Lima, 2008, 31).
16 No acompanhamento do processo é possível perceber que os advogados dativos são substitu-
ídos quando se coloca um pedido de relaxamento de prisão ou quanto ao cumprimento dos
prazos legais.
17 Essas informações estavam em depoimentos na fase de inquérito ou na fase judicial. Em
alguns casos as testemunhas residiam na mesma localidade e conheciam o acusado, o que
facilitava as ameaças.
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- 709 -
Anexo
Formulário do Projeto “Fluxo da Justiça Criminal em casos
de homicídio na Região Metropolitana de Florianópolis (2000-2004)”
Ficha______________ Pesquisadora________________________________________
Data da coleta: ____/____/____ Local da coleta: ______________________________
Município: ________________________________________ Ano: _______________
INQUÉRITO POLICIAL
Laudos e perícias
( ) L. Cadavérico ( ) Dos. alcoólica ( ) Perícia toxicológica ( ) Exame do local
( ) Balística ( ) Identificação de projétil ( ) Conjunção carnal ( ) Pesquisa de chumbo ( ) Lesão
corporal ( ) Outros ________________________________
Provas testemunhais
Acusação Defesa
(N° de testemunhas) (N° de testemunhas)
Viu
Ouviu
Ouviu comentários
Outros
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Antecedentes criminais
Vítima - sim ( ) não ( ) Obs: ______________________________
Acusado(s) - sim ( ) não ( ) Obs: _______________________________
PROCESSO PENAL
Acusação Defesa
(N° de testemunhas) (N° de testemunhas)
Viu
Ouviu
Ouviu comentários
Outros
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- 713 -
ABSTRACT: This paper discusses the methodology used in the study of the flow
of Criminal Justice in cases of homicide, based on the survey of literature and
critical review of the methodology employed in research conducted on criminal
homicide trial in the metropolitan region of Florianópolis (SC) between 2000
and 2004.
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- 720 -
Língua portuguesa como idioma oficial (Art. 13). União legisla privati-
vamente sobre populações indígenas (Art. 22, XIV). Congresso Nacional
possui competência exclusiva para autorizar, em terras indígenas, a explo-
ração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de rique-
BRASIL
zas minerais (Art. 49, XVI). Aos juízes federais compete processar e julgar
disputas sobre direitos indígenas (Art. 109, XI). Função institucional do
Ministério Público de defender judicialmente os direitos e interesses das
populações indígenas (Art. 129, V).
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- 737 -
[l]a “cultura” como categoría operativa dentro del derecho deverá resta-
belecer El marco que defina La fluidez legal necessária para garantizar
los derechos de los grupos minoritários , los pueblos originários y toda
forma de alteridad rescatada a um plano de igualdad.” (2008, p. 480)
Notas
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- 744 -
Deborah Stucchi
Procuradoria da República no Estado de São Paulo
RESUMO: As demandas inauguradas após a publicação do Art. 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal, relacionadas
ao reconhecimento dos direitos territoriais de comunidades remanescentes de
quilombos, representam oportunidade para refletir a respeito da emergência de
novas categorias de sujeito de direitos e seus efeitos socioculturais e políticos, em
várias escalas de aproximação, para os grupos em questão. Desde a sua publica-
ção, em 1988, até o momento, 21 anos depois, tem-se refletido pouco a respeito
dos impactos dos processos de reconhecimento sobre o cotidiano dos grupos
beneficiados.
O objetivo deste texto é partir do conjunto de referências obtidas no âmbito
dos estudos antropológicos realizados no Carmo – bairro negro localizado no
município de São Roque, interior de São Paulo – para discutir como as exi-
gências impostas pela regulamentação deste direito, formalizadas nas normas
internas de órgãos públicos responsáveis pela execução da política de identifi-
cação e reinterpretadas nas falas e práticas de funcionários, técnicos ou buro-
cratas, fixam determinados limites que se sobrepõem às formas de organização,
representação e decisão próprias desses grupos.
Introdução
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Notas
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dades religiosas e locais sagrados de visitação durante o final de semana, tradicionalmente seguido
pelos moradores.
8 Duas romarias saem do bairro, em outubro ao Santuário de N.Sra.Aparecida e em novembro
a Pirapora do Bom Jesus. E duas romarias chegam ao bairro, uma vinda de Canguera, que
traz N.Sra.das Graças, em 16 de julho, e outra de grande porte, organizada por descendentes
de escravos da Santa que não residem no bairro, no dia da grande festa de N.Sra.do Carmo.
Nesta última chegam Santa Edwiges, Santa Teresinha e Santa Rita.
9 Tal como no caso da novena das Almas, em novembro, onde se diz que aquele que comparecer
ao primeiro dia da reza está obrigado a comparecer a todos os demais, ou as almas o seguirão.
Ainda, na festa de São Gonçalo, aquele que dança a primeira volta ao terreiro deverá participar
até o final ou terá dores nas pernas nos dias seguintes.
10 Um ano após a conclusão do laudo antropológico, os órgãos estadual e federal responsáveis
pelo reconhecimento e titulação das terras não haviam adotado medidas previstas pela regula-
mentação normativa. A Procuradoria da República em Sorocaba, em agosto de 2010, ajuizou
a Ação Civil Pública nº 0007250-19.2010.403.6110, em que requer que o INCRA seja con-
denado à apresentação de cronograma “relacionado à identificação e eventual reconhecimento de
direitos constitucionais da comunidade quilombola do Carmo e de seu efetivo cumprimento”
11 Parte dos conflitos prevalentes no campo é explicitada na forma incisiva pela qual os atuais
proprietários da maior parte das terras da antiga Fazenda do Carmo têm revelado sua discor-
dância em relação aos procedimentos visando ao reconhecimento. Independentemente do
direito ao contraditório que, no caso, se realizaria por intermédio de antropólogo contratado
para a contraposição do laudo, os proprietários exercem intensa pressão junto à Instituição
para desqualificar a pesquisa. Requerem informações administrativas, em princípio, públi-
cas – diárias para os deslocamentos ao campo, afastamentos legais e relatórios internos de
atividades – além de acesso a dados de pesquisa, como anotações de campo, entrevistas e
identificação dos informantes. Tais acessos, se disponibilizados, violariam o código de ética do
antropólogo no que diz respeito ao dever de preservar informações confidenciais, à garantia de
intimidade dos informantes e de que a colaboração prestada não seja utilizada com o intuito
de prejudicar o grupo.
12 Segundo a Carta de Ponta das Canas (2000), “os relatórios de identificação étnica não têm
caráter de atestado, devendo ser elaborados como diagnoses das situações sociais investigadas,
que orientem e balizem as intervenções governamentais na aplicação dos direitos constitu-
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cionais”. A reflexão sobre essa premissa foi elaborada por diversos autores, destacando-
se as considerações de Ilka Boaventura Leite (2002, 2005 e 2008) e Eliane Cantarino
O’Dwyer (2002 e 2008).
13 A sensibilidade antropológica pode ser entendida como forma de compreensão para analisar
os modos de expressão de indivíduos e grupos envolvidos nos processos de reconhecimento
de direitos territoriais. A respeito ver Geertz (1978 e 1998).
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STUCCHI, Deborah
2005 Percursos em dupla jornada: o papel da perícia antropológica e dos antropólogos nas políti-
cas de reconhecimento de direitos, tese (doutorado) UNICAMP.
ABSTRACT: Demands opened after the publication of the Article 68 of the Tran-
sitional Constitutional Provisions Act related to the recognition of territorial rights
to remainders of quilombo communities, represent an opportunity to reflect on the
emergence of new categories of legal subjects and their cultural and political effects on
various scales of approach to these groups. Since its publication in 1988 until now, 21
years later, has been reflected little about the impacts of the processes of recognition
on the daily life of the groups benefit. Based on anthropological study conducted in
Carmo, black neighborhood in São Roque, interior of São Paulo, our objective is to
discuss how the requirements imposed by this law, formalized in the internal rules
of government agencies responsible for implementing the policy of identifying and
reinterpreted in the words and practices of officials, technicians and bureaucrats, set
certain boundaries that overlap with the forms of organization, representation and
decision specific to these groups.
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A invenção de Moçambique
Sandro M. de Almeida-Santos
Doutorando em Antropologia Social (DAN/UnB)
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Notas
1 Tomo emprestado o termo empregado pelos Comaroff para designar o processo de distinções
e congelamento de identidades estereotipadas em alteridades hierarquicamente classificadas,
que caracterizou o colonialismo europeu no continente africano (ver Comaroff & Comaroff,
1997, p. 26).
2 Entendendo autoridade tradicional como a liderança político-espiritual legitimada por sua
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capacidade de intermediar entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos (Florêncio, 2005,
p.15).
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“Las profecías de los Plomos parecen hechas para sugerir una alianza en-
tre el cristianismo español y el islamismo contra la Europa protestante.
Un disparate, sin duda, pero también es verdad que la historia que ocur-
re de hecho siempre trata de manera demasiado arrogante a aquella que
podría haber ocurrido. En los años 70, inicio de la reintegración política
(de España) en el continente, el aroma africano de los Plomos seducía a
algunos espíritus poco convencidos de la felicidad europea.” (p. 111).
Una parte final del libro, complemento de los desarrollos sobre San-
tiago, encara un par de asuntos vinculados al fin del paganismo. Primero,
las dos tentaciones opuestas en la construcción de la mitología sobre la
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*
“Os caminhos de Santigo” está construido con una escritura seductora e
irónica, de una densidad fluida en la que la erudición no obstaculiza la lectura.
Calavia ha tenido el buen juicio de no abrumar su texto con notas a pie de
página; las referencias bibliográficas aparecen tras cada capítulo en pequeños
apéndices que brindan un panorama histórico de la literatura con la que el au-
tor ha trabajado. Esa forma ajena a los usos académicos es uno de los signos que
da al libro un cierto aire amateurístico del que advierte el autor.
Y tal autor para tal tema; Calavia, en su calidad de figura carnal y
no de símbolo, es también polisémico, o mejor, todo-terreno: español
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Raphael Bispo
Museu Nacional - UFRJ
Desde o final dos anos 1970, Lila Abu-Lughod realiza trabalhos de cam-
po no Egito, dedicando-se a estudar os seus diferentes grupos sociais, com
um grande destaque para as mulheres do país. Suas primeiras incursões de
pesquisa na região foram feitas numa tribo de beduínos conhecida pelo
nome de Awlad ‘Ali, com quem ela conviveu durante mais de dez anos
junto a uma grande família pertencente ao grupo. Veiled Sentiments e Wri-
ting Women’s Worlds são duas influentes monografias fruto dessa investida
etnográfica inicial, que conseguem sintetizar reflexões sobre o estatuto das
emoções no campo antropológico e as críticas contemporâneas que eclo-
diram na disciplina a partir de correntes teóricas comumente conhecidas
por meio de rótulos como feminista, pós-colonialista e pós-moderna.
Dramas of Nationhood é uma contribuição etnográfica recente da auto-
ra, preocupada com os dilemas contemporâneos pelos quais passa o Egito,
que se refletem nas experiências cotidianas de seus cidadãos. Se outrora Abu-
Lughod investigou uma manifestação cultural popular e bastante tradicional
entre as mulheres de Awlad ‘Ali – as poesias de amor por elas enunciadas, cuja
lógica de expressão estaria ligada a uma ideologia de dominação aos homens
locais – em seus trabalhos mais recentes a atenção se volta para a análise da
disseminação dos meios de comunicação pelo território egípcio, logo, aquilo
que poderíamos classificar por meio de um termo recorrente como “cultu-
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Para ela, ver tevê significou durante muito tempo acreditar na mudança
de suas condições de vida, principalmente por meio de um auxílio do
estado. “But because these media forms associate moral judgments with
educated and enlightened figures of authority, they establish dependence
as the proper mode of relations between the disempowered and the state
or the educated classes” (p. 100).
Se por um momento Abu-Lughod identifica uma influência do Es-
tado na programação televisiva do país – que pode parecer de uma certa
maneira como algo um tanto autoritário e doutrinador – por outro ela
complexifica tal ingerência ao constatar as reformulações que eclodem
nas esferas subjetivas dos telespectadores. Os melodramas popularizam
uma forma de narrativa bastante distinta da qual os egípcios estão acos-
tumados, extremamente sentimentalizada e estimuladora de vivências
cotidianas mais individualistas, isto é, menos centradas nas dinâmicas
de parentesco e nas relações comunitárias dos sujeitos. Os melodramas
televisivos são tecnologias para a produção de novos selves, são estímulos
a sensibilidades que comumente associamos à modernidade da cultura
ocidental, “for staging interiorities (through heightened emotionalism)
and thus constructing and encouraging the individuality of ordinary pe-
ople” (p. 113). O capítulo 5 apresenta a maneira como os seriados televi-
sivos, repletos de personagens “donos de si” e empenhados em satisfazer
seus ideais, promovem uma “educação de sentimentos” (p. 118) entre os
segmentos populares. Eles trazem para a lógica de suas rotinas a possibi-
lidade de constituírem uma vida mais sentimentalizada, reforçando uma
sensação de personalidade rica em experiências emotivas, além de enfa-
tizar a preeminência de si sobre os demais sujeitos ao seu redor. A autora
verifica também o quanto os seriados estimulam a dramatização da vida
dos sujeitos. Isso porque muitas mulheres por ela entrevistadas constroem
narrativas de seus cotidianos em que as fórmulas clássicas do melodrama,
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Taniele Rui
Doutoranda PPGAS/Unicamp
“Um corpo tem de ocupar um lugar no espaço”, diz a famosa lei da física
que, proferida por Raimundo Sobrinho, morador de rua na avenida Pe-
droso de Moraes e alçada à epígrafe do livro da antropóloga Simone Fran-
gella, passa a ter o estatuto de nos desafiar a olhar como etnograficamente
corpo e cidade podem se relacionar. Defendida como tese de doutorado
em 2004, a instigante problemática de pesquisa investiga a construção
da corporalidade de moradores de rua – homens e mulheres – adultos
na cidade de São Paulo, e o modo como esta situação de habitar as ruas
nessa faixa etária os faz experenciar a geografia urbana de forma bastante
particular. Inspirada pelas reflexões de Michel de Certeau, a tese central
de Frangella é a de que no momento mesmo em que parecem inclinados a
permanecer reclusos em seus limites de sujeira, de marginalidade e de não
posse, os moradores de rua acabam por construir uma retórica pedestre
resistente que só pode ser entendida em relação a ideologias políticas e
econômicas oficiais de ordenação do espaço.
Interessada na origem histórica dessa categoria e nas imagens que ela
evoca, a antropóloga apreende moradores de rua como um segmento so-
cial particular no espaço urbano, “uma categoria que, em função de inúme-
ras e diversas trajetórias de desvinculação social e econômica, passa a habitar
‘cantos’ da cidade impensáveis ao planejamento urbanístico e ao imaginário
coletivo dos citadinos” (p. 16). Figura presente desde a criação do mundo
urbano ocidental – a tal ponto que não é possível pensar em uma cidade
sem moradores de rua – esse segmento se contrapõe cotidianamente às
estratégias econômicas e políticas que ideologizam as urbes contemporâ-
neas, mais notadamente as metrópoles. Por meio de seus próprios passos,
defende a autora, o morador de rua está sempre resistindo material e
simbolicamente à sua extinção na cidade.
Ao invés de adotar termos “politicamente corretos” para definir esta
condição, a autora opta por mostrar como também esses termos – sans-
abri, homeless, sem-teto, população em situação de rua – são, a partir da dé-
cada de 1970, frutos da gradual adequação da realidade desse segmento à
noção de exclusão social, representando uma espécie de categoria abstra-
ta de reagrupamento das populações que, em diversas épocas históricas,
sempre se situaram à margem do sistema de organização social, isto é, fora
do sistema de produção e de consumo padronizados. Com isto, ela mos-
tra também que, na experiência contemporânea, as categorias homeless ou
em situação de rua funcionam como um termo cuja ressonância política
é menos excludente e mais homogeneizadora. Sob essa nomeação, con-
tudo, estão configurações muito distintas: o andarilho em deslocamento
contínuo, o mendigo, os “loucos de rua” e, ainda, desempregados que
vivem temporariamente nas ruas e frequentam albergues. Embora a for-
mulação de uma categoria política promova maiores possibilidades de
sua inserção social e/ou a atenuação da condenação de sua imagem, ela
não elimina a movimentação errante como um modo de vida de parte
desse segmento. E nisto reside um dos maiores paradoxos enfrentados ao
longo da pesquisa: se, de um lado, a errância que os constitui escapa às
políticas sociais assistenciais, por outro, ela é impulsionada por políticas
urbanas excludentes e controladoras da funcionalidade do espaço. Ainda
é importante dizer que não se trata, obviamente, do único segmento que
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vive o circuito nômade na cidade, mas sim que ele possui a especificidade
de subverter, de forma radical, o sentido homogeneizador do espaço da
rua, ao condensar neste a dimensão pública e privada de sua vida.
Antes de adentrar propriamente na etnografia da corporalidade dessa
categoria, que é simultaneamente social e individual, a autora ainda nos
convida a rever imagens sobre os moradores de rua projetadas no cinema
(primeiro capítulo), onde também ali possuem um estatuto ambíguo:
os moradores de rua parecem ver aquilo que não é percebido ao mesmo
tempo em que são a representação do sujo, do poluído e do poluidor;
como se o sofrimento e o isolamento associados a esse mundo os tornasse
portadores de sabedoria sobre a vida, sobre a dor e a veracidade dos va-
lores e sentimentos, exemplos de redenção e provadores da moral social.
Pela condição em que vivem, tornam-se por excelência os contadores de
histórias nunca vistas, testemunhas dos crimes na rua, de negociações
ilícitas, de aventuras estranhas pelo espaço urbano, sendo também os ve-
ículos dessa poluição e potencial instrumento de práticas contraventoras,
onde se destaca a imagem da abjeção. Essas duas imagens conformam,
assim, um universo ambíguo, onde a possibilidade de redenção social e
moral pelo sofrimento extremo convive com um processo contínuo de
desmoralização e de desumanização.
As imagens cinematográficas têm ainda a vantagem de salientar uma
característica muito relevante dessa experiência de morar nas ruas: o tem-
po, que gradualmente entrelaça processos de perda e despojamento com
aderências contínuas às condições irregulares e escassas da rua, com a
reformulação criativa de signos do espaço urbano e de interações sociais,
e com o estigma que se torna o traço distintivo de sua condição. Ou seja,
o que revela sua particularidade é que o momento vivenciado na rua re-
vela um processo de profunda deslocalização e uma sujeição gradual, em
muitos casos permanente, à vulnerabilidade física, psicológica, material
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Janaína Damasceno
Isabela Oliveira
Natália Helou Fazzioni
Guilhermo André Aderaldo
Heitor Frúgoli Jr.1
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(risos) Não melhorei, não! (risos) Eu vi que meu tempo já tinha passado! Eu
fui um bom meio de campo, é verdade, mas...
Heitor Frúgoli Jr.: (...) mas ter sido chamado de [Michel] Platini 9 não
ajudou muito!
(Risos) Hoje não faz mais sentido! Mas quando cheguei à Bahia e disse que
me chamava Michel, todo mundo dizia “Platini”, “Platini”! Mas agora o pes-
soal não diz mais Platini, preferem o Zidane!10
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Quando você torna familiar algo que não é, quando você aproxima as pessoas
e decide quem tem um laço próximo de você, você o cria ou o reforça usando
uma terminologia, por exemplo, do parentesco simbólico ou do parentesco es-
piritual como o apadrinhamento católico ou a família de santo no candomblé.
No final das contas, havia uma complexidade de um universo social ao qual
chamei de familiarismo, uma forma familiar de viver o espaço urbano. Então,
de certa forma, o “Baba do Negão” era uma família, nesse sentido.
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de acordo, porque você pode entrar e dizer que vai entregar um trabalho de
tal maneira depois. E assim foi feito. Mas depois se esqueceu que havíamos
feito um contrato, um acordo. Esse passo foi a entrada, o reconhecimento
recíproco. Eu acho isso importante. Infelizmente até agora, por vários mo-
tivos, não foi publicado em português o livro “A antropologia do carnaval”
(Agier, 2000). Espero que não façam como com o Donald Pierson (1945) e
levem anos para traduzir! Eu entreguei o relatório da pesquisa, que se chama
O Mundo Negro, ao pessoal do Ilê Aiyê, um relatório que dá conta do material
que eu levantei. Fiz um trabalho com 350 letras de samba, um trabalho com
o arquivo do pessoal inscrito no Ilê Aiyê, inclusive fazendo estatísticas sobre
residência, emprego, essas coisas todas. Tem o resultado das entrevistas que eu
fiz, as anotações, os eventos e tal. E depois com isso fiz um trabalho mais refle-
xivo, crítico do que é a produção cultural do mundo negro dentro do espaço
do carnaval. Então por vários motivos, até agora [o livro] não existe no Brasil,
mas virou um livro importante para os estudantes franceses interessados pelo
carnaval em geral, sendo considerado um modelo de estudo de caso do car-
naval. É muito importante para mim, é óbvio, que saia esse livro agora sobre
antropologia urbana11 aqui no Brasil, mas o livro sobre o carnaval da Bahia era
para ser antes de tudo em português, para o pessoal do Brasil e da Bahia.
Guilhermo Aderaldo: Ainda sobre essa questão do Ilê Aiyê, você conta
como acabou realizando parte de seu trabalho de campo na biblioteca
da UFBA, dado que a descoberta de uma série de redes de atores distintos
no processo de formação do grupo o fez compreender o modo pelo qual a
memória é solicitada seletivamente. Esse parece ser o caso da mãe de santo
negra presente na formação do grupo junto a um engenheiro europeu,
entre outros agentes, e que anos depois teve seu papel ressaltado ao mesmo
tempo em que os demais foram esquecidos. Neste sentido, como é possível
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que se rememora ela e não também aquele europeu de quem até se esqueceu o
nome? Enquanto naquele momento, quando se falava com cada um, parecia
que ele tinha sido um cara muito importante para o grupo, engenheiro do
polo petroquímico, amigo de Apolônio e de Vovô. Foi ele que deu o livro e dis-
se: “Você vai lá no dicionário iorubá/ português, que você vai encontrar [o sig-
nificado de Ilê Aiyê].” Eu me pergunto: isso corresponde a alguma invenção de
um marco, de um símbolo, que faz com que haja mais sentido em se reconhe-
cer a mãe de santo, que é a mãe espiritual desse grupo, como marco referencial
da memória, do que dizer que uma rede de amigos, no meio dos quais havia
um engenheiro europeu do polo petroquímico e meninos que trabalhavam no
polo petroquímico da Bahia, que foram barrados na sua trajetória profissional
no polo por motivo de racismo e que essa raiva social, existente naquele mo-
mento na Bahia, junto a uma forte mobilidade social, se traduziu no espaço
do carnaval com todos esses recursos? Então, isso foi minha interpretação de
uma construção cultural. Uma joia em termos de pesquisa. Uma joia de in-
venção cultural, para desfazer, desmontar, entender como foram inventando,
criando essa inovação cultural. Obviamente que estamos no contexto urbano
do bairro da Liberdade, uma das mais antigas favelas de Salvador que se tornou
um bairro reconhecido hoje em dia, um bairro negro onde houve muita mo-
bilidade social. Mas um contexto também globalizado à medida que naquele
momento, os moradores do bairro da Liberdade estavam mais envolvidos em
contextos maiores, justamente por serem da Liberdade, que não era a favela
mais pobre das favelas. Você é mais globalizado quando mora num bairro com
forte mobilidade social, do que quando mora na favela mais pobre e desco-
nectada. O bairro da Liberdade, enquanto contexto urbano, já tinha muitas
conexões com a cultura global, mundial. Por isso, por exemplo, que as buscas
de temas de carnaval realizadas durante muitos anos, sobre os países africanos
ou sobre negros nos Estados Unidos, sempre contaram com recursos globali-
zados. É assim que eu participei no ano em que a Costa do Marfim foi o tema
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do carnaval. Eu fiz a “pesquisa tema” do Ilê Aiyê aquele ano. Enfim, quero
dizer que o desenvolvimento do grupo vai além do próprio contexto urbano.
Eu tive duas críticas. Uma foi realmente demais: era o francês que amou os ne-
gros(!), porque foi lá e não fez críticas para dizer que o Ilê Aiyê era racista, por
exemplo. Mas é que eu acho muito compreensível a atitude deles [Ilê Aiyê],
eu acho tão lógica! Então, essa foi uma crítica mais ou menos interessante...
E a outra é interessante. Inclusive eu tive mais problemas no Rio do que em
Salvador por dizer que o Ilê Aiyê é o movimento culturalmente mais mestiço
que há no Brasil. É uma mestiçagem cultural. É um movimento negro, mas é
uma mestiçagem cultural. E eu continuo dizendo que é uma fantástica riqueza
cultural! A riqueza é essa mistura toda que estamos vendo! Quem se tranca e se
fecha vai para um empobrecimento cultural. Pode não ser “politicamente cor-
reto” no sentido do movimento negro, digamos mais “duro”, mas eu acho que
isso é importante porque eu não acredito no fechamento da cultura, no fecha-
mento artificial das identidades, mesmo que seja forçado, mesmo que se diga:
“Vamos fechar nossa identidade, controlar para ter algo puro, etc.”, ela nunca
se fecha, ela está sempre aberta. O exemplo da França hoje em dia é muito
interessante, porque temos um governo que quer fechar as fronteiras, fechar
a identidade nacional, e na verdade, a sociologia da França é completamente
diferente do que o governo está dizendo. Você olha a sociedade francesa real,
ela está de fato muito mestiçada, com famílias mistas que já incluíram pes-
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Guilhermo Aderaldo: Você fala que esses novos agentes que informam os
pesquisadores muitas vezes são jovens altamente “conectados”, em muitos
casos, com boa escolaridade. E junto com esses jovens há também um cir-
cuito de mediadores entre o local e o global, de tal forma que a tendência
é que nesse espaço social de circulação, aquilo que você produz enquanto
pesquisador também seja lido e “utilizado” pelo “nativo”. Como lidar
com essa dimensão da pesquisa?
Acho que no final, talvez seja importante relatar os seus deslocamentos. Phi-
lippe Bourgois fez isso muito bem em outro domínio. Em Le crack à New
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York, Bourgois (1995) conta como ele entrou, com quem se relacionou e
como avançou cada dia na pesquisa. Acho que talvez seja uma das maneiras
de fazer. De contar o cada dia de sua pesquisa, como você vai avançando. O
que eu diria, porque eu acho isso, esse relato um pouco demorado é tentar
dar conta de todos os lugares que você percorreu durante sua pesquisa. E dar
conta dessas tentativas de objetivar sempre o objeto da pesquisa. Acho que
o objeto da pesquisa não existe. Você está sempre construindo o objeto, se
colocando na fronteira. E talvez, no final, a maior objetividade seja a maior
subjetividade. Quer dizer, você conta você mesmo sua trajetória de tentar
objetivar alguma coisa. E na questão do Ilê Aiyê, por exemplo, da cultura
negra, é muito óbvio porque você passa seu tempo a desconstruir, objetivar,
desconstruir e vai vendo pessoas que dão um reflexo, às vezes, essencialista
da identidade. Ou seja, quando você tem um reflexo essencialista, você tem
que desconstruir, objetivar e pensar em que contexto se faz isso. Aí o próprio
contexto dá outra camada de interpretação. E você tem que reobjetivar cada
vez e isso não tem fim.
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mei de cidade nua (Agier, 1999). São aglomerações, pessoas que se juntam,
mas não têm nada. O modelo, digamos, é o acampamento de deslocados,
pessoas que estão juntas sem nada. O que acontece? Acontece que tem uma
duração que começa, e relações começam, famílias se formam, constroem-
se casas. Você pode observar um processo que vai fazendo aos poucos uma
cidade. Então, para mim, você encontra esse processo em todos os lugares do
mundo, é o processo da cidade, que eu chamei do “fazer cidade”. Mesmo nas
megalópoles você encontra um lugar marginalizado. E é necessário descentrar
o olhar para os lugares onde começam os processos que vão formando algo
que a gente, depois, chama de cidade. Quando você está na extrema mate-
rialidade, você está numa situação onde parece que tudo já foi feito. É como
diz Marx, o trabalho morto. Você não vê o trabalho que já está feito. Parece
que isso é a naturalidade da cidade. Referindo-se à Escola de Chicago, por
exemplo, para Park isso é o habitat natural do homem civilizado. Parece que o
habitat natural da cidade é aquela grande coisa, grandes prédios, carros, ruas,
barulho... E você não vê o processo que fez isso. Então, partindo da África,
digamos, e daqueles pequenos bairros, como aquele bairro de estrangeiros no
Togo que eu estudei faz tempo, podemos dizer que sempre se repete o mesmo
processo: o pessoal chega negociando como comerciante estrangeiro, ambu-
lante, etc., chega de um outro lugar e as pessoas da cidade dizem para eles:
“Fiquem aí!” O espaço se torna o acampamento dos estrangeiros, chamado
“zongo” na língua haoussa. E se amplifica assim, depois de anos e décadas,
se torna um polo urbano importante. E o acampamento pode se tornar um
gueto, se torna muitas coisas. Mas você vê assim o processo. Então, para mim,
de fato, se parece muito diferente o que a gente chama de cidade na África,
na América Latina e na Europa. Mesmo assim, a cidade que a gente vê e pela
qual se interessa enquanto antropólogo e não enquanto sociólogo, arquiteto,
urbanista, o que quer que seja... Enquanto antropólogo você se pergunta:
qual é o processo de invenção desse espaço? Então, é interessante tomar essas
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situações de maneira descentrada, onde a coisa não está feita ainda, está se
fazendo, e é interessante acompanhar e recompor o processo que fez isso. Por
isso eu me interesso por espaços aparentemente marginais, acampamentos,
formação de guetos. Trata-se de entender o processo de formação de um es-
paço que depois de décadas vai se chamar de cidade.
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Heitor Frúgoli Jr.: Seu interesse pela questão dos refugiados começou com
sua pesquisa na Colômbia? Você poderia contar um pouco do que viu lá
que o ajudou a configurar essa ideia?
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biografia muito violentas e o que eles fazem com isso depois. Como eles con-
tam isso, testemunham isso. Foi assim que começou esse interesse. Voltando
depois de lá, me parecia óbvia a questão de se perguntar: será melhor ter um
acampamento ou nada? Melhor ter um lugar de proteção ou se espalhar na
cidade? Como as pessoas fazem para viver nesse contexto violento? Foi assim
que eu fiz todas essas pesquisas durante anos sobre os campos de refugiados
na África, a partir dessa pergunta, que é, ou parece ser, a mesma pergunta
das organizações internacionais, que são da proteção, mas no final das contas
termino dizendo que “no camps!” O pior é o encerramento das pessoas! Claro
que a proteção é necessária, mas os campos na África e agora na Europa e em
muitos lugares são, antes de tudo, uma maneira de se organizar uma gestão
de pessoas que você não quer integrar. É uma forma de governo indireto e
distante que garante o afastamento das pessoas indesejáveis (Agier, 2008).
Bom, primeiro, o urbano está se tornando algo, não generalizado, mas muito
importante. Então é difícil não estar num ambiente urbano. Qualquer pessoa
que a gente pesquise, todas têm a ver com o contexto urbano. E de outra
forma, eu diria, que os contextos urbanos, os processos urbanos, eles expe-
rimentam de maneira muito explícita os processos sociais, em geral. Hibri-
dação, mestiçagem, fundação de lugares, relação de identidade e alteridade,
etnicidade, todas as problemáticas que a antropologia tem são mais agudas,
fortes e explícitas em contextos urbanos. Porque o próprio contexto urbano é
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[de campos de refugiados] fechados ou não fechados. E essas pessoas não têm
escolha, a não ser sobreviver nesses espaços. E se tomamos as situações euro-
peias (talvez ali se possa comparar com algumas situações latino-americanas)
de subúrbios afastados, onde se encontram os estrangeiros ou os filhos dos
estrangeiros que foram colocados e mantidos nesses espaços à parte, ali temos
esses espaços outros, como disse Foucault, que eu retomo através da ideia das
novas heterotopias, dos novos espaços outros que se criam e que se parecem
no mundo. Como algo em que você pode observar a escala global, não só a
escala nacional. E a gente precisa tomar a escala global, mundializar o olhar
sobre um país. Então, é assim que eu vejo a questão dos estrangeiros na Eu-
ropa, um corredor de exílio,13 como eles chamam. O corredor de exílio é esse
espaço à parte, um corredor de onde as pessoas migrantes não saem, sendo ali
estigmatizadas como estrangeiras indesejáveis.
Eu acho que isso se inicia mais ou menos no período em que eu era estudan-
te. Era o período da crise da antropologia dita marxista, o período da críti-
ca ao estruturalismo e então uma releitura ou leitura de tradições chamadas
anglo-saxãs na França, no início de 1980. Eu teria que lembrar exatamente as
datas de tradução e apresentação que Isaac Joseph faz da Escola de Chicago,
acho que foi no final de 1970 e início de 1980.14 E a tradução por [Pierre]
Bourdieu, de Erving Goffman, La Mise en scène de la vie quotidienne (1973),
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lista. E só depois dessas críticas é que se voltou a ter esse interesse pela Escola
de Chicago e pela Escola de Manchester – que vêm da mesma necessidade,
da força do empirismo, da importância do empirismo. Ou, talvez, para se
entender melhor, havia uma busca sobre o sentido das relações sociais. Aque-
las pequenas relações sociais que a gente pode observar, não aquelas grandes
construções. Mas está havendo não só na França, mas na Europa em geral,
estudos sobre a história da Escola de Manchester, tem esses três livros15 que
saíram em inglês que indicam a importância da África na Escola de Manches-
ter. E, na França, depois do primeiro trabalho de tradução de Isaac Joseph,
têm sido realizados estudos sobre a história da Escola de Chicago.
Sim. Eu traduzi The Kalela Dance (Mitchell, 1956) para o francês, porque eu
acho que é um modelo da etnografia política de uma situação. Eu me inspi-
rei muito nisso para trabalhar com carnaval, primeiro porque tem todo um
trabalho de saber descrever uma situação, que não é um evento, mas algo que
você recompõe na escrita, através de várias observações, você termina fazendo
a sua descrição, a melhor possível, e de certa forma é mais fácil fazer uma
descrição sistemática quando trata-se de um ritual como é o caso da dança do
Kalela. Depois Mitchell constrói a análise dessa situação e o que os trabalhos
de Gluckman ou de Mitchell mostram é que você pode mobilizar todos os
recursos da interpretação histórica, contextual nacional, contextual interna-
cional, tudo se mobiliza dentro de uma situação dada e você pode medir os
efeitos de um elemento no outro elemento de contexto. Por exemplo, eu
acho interessante saber se outro contexto, lugar, configuração social é mais ou
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Eu teria que retomar minha biografia para ver se isso tem realmente a ver com
a Escola de Chicago ou com a Escola de Manchester! Interessar-me por espa-
ços ditos marginais, pelo desnudamento, é como uma aposta metodológica.
É porque aí você vê melhor os processos, senão você acaba repetindo o que os
outros estão fazendo. Quando eu comecei a pesquisar, briguei com geógrafos,
sociólogos etc., eu dizia: “O urbano não me interessa, tudo me interessa, não
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Heitor Frúgoli Jr.: Paris não é uma cidade que você pesquisa, já que você
elegeu outros campos. Mas eu gostaria de saber do seu olhar de antropó-
logo sobre Paris. Que ideias você tem quando você observa essa cidade?
Eu não sou parisiense, eu digo isso porque passei muito tempo da minha
vida pessoal e profissional não querendo ir para Paris. Fui para Paris porque
era o lugar mais inclusivo no mundo, quer dizer, para circular pelo mundo
como eu faço, era mais simples morar em Paris, do que em Montpellier ou
Marseille. Paris é a mais cidade-mundo que nós temos na França. Bem, eu
não faço pesquisa em Paris, mas terminei uma pesquisa agora com acam-
pamentos de “clandestinos” na Europa e o final da pesquisa terminou pra-
ticamente na porta da minha casa, porque no Canal Saint-Martin (um dos
canais que dá no Rio Sena) há imigrantes afegãos sem-teto que colocam
barracas no canal e isso fica a 100 metros do meu apartamento. O campo
está na minha casa! Esse é um trabalho que fizemos com uma fotógrafa
[Sara Prestianni], que vai sair no início de 2011. É um trabalho sobre a
ideia de refúgio chamado “ ‘Je me suis réfugié là!’ Bords de routes en exil”. Ele
foi realizado na Grécia, em Roma, em Calais no norte da França e em Paris.
Há um outro trabalho que estou coordenando, com uma ex-doutoranda
que agora é professora, uma colega e uma jornalista, que se chama “Refú-
gios em Paris” e que tenta entender dentro daquela cidade, daquela grande
cidade, a presença de espaços de interstício, onde você tem pessoas que
procuram aquele tipo de refúgio. Tem um caso conhecido pelos parisienses
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que é dos afegãos que moraram durante muitos anos no Parque Villemin
[no décimo arrondissement de Paris] e que foram tirados pela polícia no ano
passado, mas que ficaram lá durante um bom tempo, e a reação das pessoas
do bairro, uns contra e outros fazendo uma associação para dar apoio. Um
outro trabalho é sobre a vida familiar, pessoal, íntima, dos sans abris, quer
dizer de pessoas que vivem na rua, enfim há também um outro trabalho
sobre situações e lugares que existem em Paris e que talvez as pessoas não
saibam, como, por exemplo, as barracas que as pessoas constroem embaixo
das pontes (assim como em São Paulo). Isso também tem em Paris, em ter-
renos vazios, onde constroem-se cabanas e as pessoas que se instalam nelas
são geralmente imigrantes, mas também ciganos romenos ou turcos. Por
último, há um estudo dos squats, ocupações de apartamentos e imóveis por
africanos. Então o propósito desse projeto é explicar que ter esses tipos de
refúgio em Paris é também uma maneira de Paris estar no mundo, é uma
forma da mundialização urbana. A partir dali, podemos retomar o projeto
político que foi levado um tempo por Derrida (1997), aquele da cidade-
refúgio, quando explicava que hoje em dia estamos a esperar da cidade
aquilo que o Estado se recusa a dar, que é a hospitalidade. Por esse caminho
começo a me interessar sim por Paris!
Notas
1 Janaína Damasceno, Isabela Oliveira e Guilhermo André Aderaldo são Doutorandos em Antropo-
logia Social na USP, Natália Helou Fazzioni é Mestranda no mesmo programa e Heitor Frúgoli Jr.
é Professor do Departamento de Antropologia/ USP.
2 “C’est vrai qu’il y a des choses qu’on apprend dans l’enquête urbaine qu’on n’apprend peut-être pas
ailleurs, et notamment cette idée de ce qui fait la ville” (Agier, 2006, p.138).
3 Numa entrevista recente, sua cidade preferida: “Je crois pouvoir dire sans hésitation que ma ville
préférée, c’est Salvador de Bahia“. [...] “J’y ai vécu cette très belle expérience d’arriver en pleine
conscience dans une ville que je ne connaissais pas, fascinante par son chaos” [...] “Je crois que c’est
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vraiment à Salvador que j’ai commencé à aimer les villes” (Agier, jan.-fev./2010, p. 80).
4 Infelizmente ainda não traduzido para o português.
5 Para um quadro a respeito da consolidação dessa área na França, ver Gutwirth (2008).
6 Sobre o tema da etnografia urbana, ver Cordeiro (2010), Magnani (2009) e Frúgoli Jr. (2007).
7 Ainda participaram da mesa os professores Heitor Frúgoli Jr. e José Guilherme Magnani e o douto-
rando Guilhermo André Aderaldo. A Sexta do Mês é um evento realizado com apoio do Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social e do Departamento de Antropologia da USP. Os auto-
res gostariam, também, de agradecer à colaboração da professora Patricia Birman (UERJ) pela
vinda de Michel Agier à Universidade de São Paulo.
8 “O termo “baba” é utilizado na Bahia como uma referência às partidas amadoras de futebol. “Baba
do Negão” é o nome de um grupo de jogadores do bairro da Liberdade (Salvador), onde Agier
iniciou sua etnografia. A oportunidade de ingresso na “turma” lhe deu a possibilidade de observar
detidamente uma série de práticas de sociabilidade que iam desde vínculos pessoais e profissionais
até relações de fundo clientelista (Agier, 1999, pp. 101-113 e 2001).
9 Michel Platini (França, 1955) é considerado um dos maiores jogadores da história do futebol
francês; atuou na seleção ao longo dos anos 1980.
10 Zinédine Zidane (França, 1972), de origem argelina, é também visto como um dos melhores joga-
dores da história do futebol francês, tendo jogado na seleção que conquistou a Copa do Mundo,
em 1998, e o vice-campeonato, em 2006.
11 O autor refere-se à Antropologia da cidade; lugares, situações, movimentos, tradução em língua por-
tuguesa de Esquisses d’une anthropologie de la ville. Lieux, situations, mouvements (Agier, 2009), no
prelo pela Editora Terceiro Nome. O livro foi traduzido para o português por Graça Cordeiro,
professora e pesquisadora do ISCTE/Lisboa.
12 Orum pode ser entendido como o “mundo celeste” e Aiyê como “mundo material”. O Ilê Aiyê
seria, portanto, a representação material do mundo celeste.
13 É o título do último livro de Michel Agier publicado em francês, Le couloir des exilés. Être étranger
dans un monde commun (2011).
14 Joseph organizou no final dos anos 1970, junto a Grafmeyer (1979), uma coletânea com traduções
para o francês de textos clássicos de Park, Burgess, McKenzie, Wirth, entre outros.
15 Rogers e Vertovec, 1995; Schumaker, 2001; Evens e Handelman, 2006.
16 Banlieue é pensada aqui não apenas como subúrbio, mas também como “ban-lieu”, lugar de con-
finamento do banido (“lieu de confinement du banni”) (Agier, 2009, p. 13).
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2. Quanto às resenhas: