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 ISSN 0034-7701

Revista
de
Antropologia
Publicação do Departamento de Antropologia
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Universidade de São Paulo

Volume 53 nº 2

Número especial: Antropologia do Direito

SÃO PAULO
julho-dezembro 2010

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Revista de Antropologia

Fundada por Egon Schaden em 1953


Editora Responsável: Heloísa Buarque de Almeida

Comissão Editorial
Heloísa Buarque de Almeida; Renato Sztutman; Laura Moutinho

Conselho Editorial
†David Maybury-Lewis (Harvard University, EUA); Eduardo Viveiros de Castro
(Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ); Fernando Giobelina
Brumana (Universidad de Cádiz); Joanna Overing (The London School of Economics
and Political Science, Inglaterra); Julio Cézar Melatti (Universidade de Brasília, DF);
Klaas Woortmann (Universidade de Brasília, DF); Lourdes Gonçalves Furtado (Museu
Paraense Emílio Goeldi, PA); Marisa G. S. Peirano (Universidade de Brasília, DF);
Mariza Corrêa (Unicamp, SP); Moacir Palmeira (Museu Nacional, Universidade Federal do
Rio de Janeiro, RJ); †Roberto Cardoso de Oliveira (Unicamp, SP); Roberto Kant de Lima
(Universidade Federal Fluminense, RJ); Ruben George Oliven (Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, RS); Simone Dreyfus Gamelon (École de Hautes Études en Sciences
Sociales, França); Terence Turner (University of Chicago, EUA)

Secretário
Edinaldo Faria Lima

Equipe Técnica
Editoração eletrônica: Claudia Intatilo
Revisão: Carla Kinzo e Tereza Ruiz
Revisão do inglês: Pedro Lopes
Capa: Ettore Bottini

Os artigos serão aceitos para publicação após análise, pela Comissão Editorial, de sua adequação ao formato
e à linha editorial da Revista e avaliação do conteúdo por dois pareceristas externos.

Esta revista é indexada pelo Índice de Ciências Sociais – IUPERJ/RJ –, pela Ulrich’s International
Periodicals Directory, pela Hispanic American Periodicals Index.

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 ISSN 0034-7701

Revista
de
Antropologia
Volume 53 nº 2

SÃO PAULO
julho-dezembro 2010

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Periódico – Revista de Antropologia da USP, Departamento de Antropologia
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo – vol. 53(2), julho-dezembro 2010, São Paulo, SP.

Publicação semestral

ISSN 0034-7701
1. Antropologia; 2. Etnografia; 3. Teoria e Método; 4. História da Antropologia.

Tiragem: 500 exemplares

A Revista de Antropologia tem como objetivo a divulgação e discussão de


temas, resultados de pesquisas e modelos teórico-metodológicos próprios
da Antropologia, em suas diversas áreas e interfaces com disciplinas afins, a
partir de textos inéditos, resenhas e traduções, de forma a proporcionar aos
leitores um panorama sempre atualizado das questões mais relevantes de seu
campo de pesquisa e reflexão no país e no exterior.

Endereço para correspondência /Address for correspondence:


Revista de Antropologia – Departamento de Antropologia – FFLCH/USP
Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 – 05508-900 – São Paulo – SP – Brasil

e-mail: revant@usp. br
Edição eletrônica: http://www.revistasusp.sibi.usp. br

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Sumário
Número Especial: Antropologia do Direito

Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer


Apresentação 441
Artigos
Luís Roberto Cardoso de Oliveira
A dimensão simbólica dos direitos e a análise de conflitos 451

Guita Grin Debert


Desafios da politização da justiça e a antropologia do direito 475

Claudia Fonseca
Direito às origens: segredo e desigualdade no controle de informações
sobre a identidade pessoal 493

Rosa Maria Rodrigues de Oliveira


(In) visíveis casais: conjugalidades homoeróticas e discursos de
magistrados brasileiros sobre seu reconhecimento jurídico 527

Gabriel de Santis Feltran


Periferias, direito e diferença: notas de uma etnografia urbana 565

Alba Zaluar
A abordagem ecológica e os paradoxos da cidade 611

Kátia Sento Sé Mello


Sofrimento e ressentimento: dimensões da descentralização de
políticas públicas de segurança no município de Niterói 645

Theophilos Rifiotis; Andresa Burigo Ventura & Gabriela Ribeiro Cardoso


Reflexões críticas sobre a metodologia do estudo do fluxo de justiça
criminal em caso de homicídios dolosos 689

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Jane Felipe Beltrão & Assis da Costa Oliveira
Povos indígenas e cidadania: inscrições constitucionais como marcadores
sociais da diferença na América Latina 715

Deborah Stucchi & Rebeca Campos Ferreira


Os Pretos do Carmo diante do possível, porém improvável: uma análise sobre
o processo de reconhecimento de direitos territoriais 745

Resenhas

Cabaço, José Luis. Moçambique: identidade, colonialismo e libertação


Sandro M. de Almeida-Santos 779

Sáez, Oscar Calavia. Os caminhos de Santiago e outros ensaios sobre o paganismo


Fernando Giobellina Brumana 787

Abu-Lughod, Lila. Dramas of Nationhood: the Politics of Television in Egypt


Raphael Bispo 793

Frangella, Simone M. Corpos urbanos errantes: uma etnografia da


corporalidade de moradores de rua em São Paulo
Taniele Rui 801

Entrevista

As cidades da antropologia: Entrevista com Michel Agier 811


Heitor Frúgoli Jr.
Guilhermo Aderaldo
Janaína Damasceno
Isabela Oliveira
Natália Helou Fazzioni

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Contents
Special Number: Anthropology of Law

Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer


Presentation 441
Articles
Luís Roberto Cardoso de Oliveira
The Symbolic Dimension of Rights and the Analysis of Conflicts 451

Guita Grin Debert


The Challenges of Politicizing Justice and the Anthropology of Law 475

Claudia Fonseca
The Right to the Origins: Secrecy and Hierarchy in the Control of
Information on Personal Identity 493

Rosa Maria Rodrigues de Oliveira


(In) visible Couples: Homoerotic Conjugality and the Discourse of
Brazilian Magistrates on its Legal Recognition 527

Gabriel de Santis Feltran


Peripheries, Right and Difference: Notes of an Urban Ethnography 565

Alba Zaluar
The Ecological Approach and the Paradoxes of the City 611

Kátia Sento Sé Mello


Suffering and Resentment: Dimensions of the Decentralization of
Public Policies for Security in the City of Niterói 645

Theophilos Rifiotis; Andresa Burigo Ventura & Gabriela Ribeiro Cardoso


Critical Reflections on the Methodology Used in the Study of the Flow of Criminal
Justice in Intentional Homicide Cases 689

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Jane Felipe Beltrão & Assis da Costa Oliveira
Indigenous People and Citizenship: Constitutional Registrations as Social Markers
of Difference in Latin America 715

Deborah Stucchi & Rebeca Campos Ferreira


The Blacks from Carmo Facing the Possible, but Unlikely:
An Analysis of the Process of Territorial Rights Recognition 745

Reviews

Cabaço, José Luis. Moçambique: identidade, colonialismo e libertação


Sandro M. de Almeida-Santos 779

Sáez, Oscar Calavia. Os caminhos de Santiago e outros ensaios sobre o paganismo


Fernando Giobellina Brumana 787

Abu-Lughod, Lila. Dramas of Nationhood: the Politics of Television in Egypt


Raphael Bispo 793

Frangella, Simone M. Corpos urbanos errantes: uma etnografia da


corporalidade de moradores de rua em São Paulo
Taniele Rui 801

Interview

The Cities of Anthropology: Interview with Michel Agier 811


Heitor Frúgoli Jr.
Guilhermo Aderaldo
Janaína Damasceno
Isabela Oliveira
Natália Helou Fazzioni

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Por que um dossiê voltado para a
antropologia do direito?
Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer1

Este é o primeiro dossiê brasileiro, publicado por um dos mais respeitados


periódicos antropológicos, voltado para a antropologia do direito.
Ao menos duas questões imediatamente me ocorrem a partir desta cons-
tatação: por que tardou tanto para que tal tipo de publicação viesse à luz?
E o que os artigos, aqui reunidos, sinalizam em relação à antropologia do
direito no Brasil?
Foram reflexões semelhantes a estas que ensejaram a realização do I
ENADIR – Encontro Nacional de Antropologia do Direito – ocorrido nos
dias 20 e 21 de agosto de 2009, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên-
cias Humanas da Universidade de São Paulo – FFLCH-USP.2 Por que, até
aquele ano, não ocorrera, no Brasil, um encontro de antropólogos do direi-
to? E o que sinalizariam, sobre o estado da arte dessa área, os palestrantes
das várias universidades e centros de pesquisa nacionais, componentes das
mesas redondas, bem como os participantes dos grupos de trabalhos (GTs)
e os graduandos e pós-graduandos que acompanharam o Encontro?3
A principal hipótese por mim aventada sobre essa clássica área da antro-
pologia mundial não ensejar uma articulação específica entre pesquisadores
e docentes brasileiros foi a de que não se tratava de escassez de reflexões e de
produções acadêmicas relativas às problemáticas do direito, da lei, da ordem,
dos mecanismos de controle e de resolução de conflitos, mas a de que, por
tais problemáticas estarem presentes em várias outras subáreas da antropologia
brasileira, como as voltadas para questões de gênero, urbanização, raça e etnia,
ciclos de vida, instituições e política, elas criaram certos nichos no interior
dessas linhas de pesquisa e nelas se acomodaram. Mas por que, mesmo assim,

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Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer. Por que um dossiê voltado para...

tais nichos não suscitariam convergências e especificidades em nome de uma


antropologia do direito a ponto de fomentar articulações específicas e fortes
entre pesquisadores?
Segundo Norbert Rouland, a atual produção mundial da antropologia
do direito continua alicerçada em países ocidentais de língua inglesa,4 prati-
camente inexistindo associações que a agrupem fora deles. Tal fato, em sua
opinião, decorre de razões de ordem ideológica, pois concepções jurídicas
unitárias, legadas por ex-colonizadores a suas colônias, ainda estariam nelas
presentes, obstaculizando o desenvolvimento de reflexões e práticas condizen-
tes com o pluralismo jurídico, as quais constituem, por excelência, a maioria
das considerações teóricas e das consequências políticas de trabalhos de antro-
pólogos do direito. Desenvolvendo tal raciocínio, poderíamos concluir que,
no Brasil, graças, portanto, a uma tradicional correlação entre direito, Estado
e leis oficiais, a identificação de um pesquisador com a antropologia do di-
reito poderia significar a assunção de que seu objeto primordial de estudo é o
Estado, são suas leis, suas instâncias produtoras e aplicadoras de normas, seus
agentes e suas dinâmicas. Tais estudos, de fato, desde os anos 1980, foram
os que mais se identificaram, no Brasil, com uma antropologia do direito,
registrando-se, sob outras rubricas, vários trabalhos focados em demandas
por direitos e justiças advindas de diversos grupos da sociedade civil organiza-
da, ainda que em relação com o Estado, em tensão com as leis vigentes e em
conflito com os agentes da ordem.
Especialmente com a abertura política com a Constituição Federal de
1988 e com o surgimento de novos protagonistas no cenário jurídico-polí-
tico, inclusive dos próprios antropólogos como militantes de causas ligadas
a direitos de “minorias” e direitos humanos, multiplicaram-se etnografias
voltadas para atores de sistemas de justiça não estatais, embora não necessa-
riamente sob o rótulo de antropologia do direito.
Será que, por todo um contexto de lutas contra um Estado tradicional-

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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.

mente conservador e ditatorial, revelar-se-ia mais atraente a identificação de


antropólogos e de seus trabalhos com grupos opositores ao Estado e, con-
sequentemente, com linhas de pesquisa que enfatizassem os protagonistas
dessas oposições, em detrimento de uma linha de pesquisa mais voltada para
os protagonistas do próprio Estado, das leis e de suas instâncias, ainda que de
uma perspectiva crítica?
Passados mais de 20 anos da abertura política e levando-se em conta o
muito que se produziu, desde então, nas mais diversas frentes da antropo-
logia mundial e brasileira, especialmente no que tange a questionamentos
teórico-metodológicos das relações entre antropólogos e seus interlocutores e
à natureza do fazer e dos textos etnográficos, parece-me que muitas novidades
surgiram, no Brasil, em estudos voltados para o direito, até porque o Estado
brasileiro atual passou a protagonizar muitas das demandas dos que a ele se
opunham há algumas décadas. A clássica cisão “nós, demandantes” X “eles,
representantes do Estado e da ordem”, multiplicou-se em inúmeros “nós” e
“eles”, tanto no que se refere aos movimentos sociais, que internamente se
fragmentaram e passaram a disputar legitimidades, quanto ao que diz respei-
to aos agentes do Estado, dentre os quais houve e há inclusive antropólogos.
Estaríamos, portanto, em função de toda uma conjuntura político-acadêmi-
ca, específica desta primeira década do século XXI, vislumbrando a conso-
lidação de uma antropologia do direito no Brasil, agora, sim, mais definida
enquanto tal, porque mais plural, menos ligada a heranças coloniais e menos
confortavelmente acomodada em outras rubricas acadêmicas?
Justamente a partir do lançamento destas reflexões e questionamentos, a
mesa inaugural do I ENADIR foi proposta5 e, neste dossiê, os quatro exposi-
tores convidados a compô-la fizeram-se presentes com contribuições funda-
mentais para o incremento do debate.
O texto de Luís Roberto Cardoso de Oliveira abre o dossiê porque, a
partir de uma série de considerações abrangentes sobre as distintas atitudes

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Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer. Por que um dossiê voltado para...

interpretativas da antropologia e do direito no Brasil, especialmente frente a


articulações entre o geral e o particular, ele atesta o crescimento da área e o
quão inesgotável é a possibilidade de novos estudos. A partir de menções a
alguns trabalhos de campo, tanto seus quanto de colegas, justifica a impor-
tância da dimensão simbólica da antropologia para a compreensão dos con-
flitos, dos direitos e de concepções de justiça dificilmente apreensíveis sem os
recursos da observação antropológica. Neste sentido, faz uma crítica a Geertz,
pois considera faltar em suas análises do direito maior atenção à dimensão
contextual de casos específicos.
Com outras palavras, Guita Debert elabora crítica semelhante às análises
geertzianas do direito, uma vez que nelas percebe certa “tranquilidade refle-
xiva”, muito distinta do tom dos debates travados por antropólogos e antro-
pólogas brasileiros envolvidos em estudos referentes a demandas por direitos.
Valendo-se de considerações teóricas e empíricas referentes ao campo da antro-
pologia feminista, ela aponta que etnografias, em que os grupos analisados são
os de pertencimento dos próprios antropólogos, tornam-se textos produtores
de efeitos energizadores, algo, a seu ver, potencializador para uma antropologia
do direito no Brasil. Este campo, segundo Guita, envolve exercícios de poder
e de responsabilidade pertinentes à vida de todos, uma vez que as sociedades
contemporâneas estão cada vez mais enredadas na semântica dos direitos e em
seus procedimentos institucionais.
Assim como os exemplos etnográficos de Guita endossam colocações de
Luís Roberto sobre as sutilezas que os recursos da observação antropológica
permitem alcançar frente a dilemas da justiça e da cidadania no Brasil, o artigo
de Cláudia Fonseca o faz no que concerne às observações de Luís sobre a rele-
vância da antropologia do direito abarcar as áreas do parentesco e da família.
Ao analisar a interação entre adotados adultos, em busca de suas origens
biológicas, e as figuras de autoridade detentoras de informações sobre tais
origens, Cláudia aborda a questão do segredo e dos dilemas suscitados pela

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nova Lei de Adoção brasileira, garantidora de “acesso irrestrito” dos adota-


dos a seus dossiês. É a dimensão simbólica da antropologia que lhe permite,
através de narrativas de adotados e de funcionários de um Juizado, trabalhar
o pressuposto de que a busca de origens se relaciona a vários direitos funda-
mentais, todos eles politicamente construídos por sujeitos atuantes em um
mundo relacional e envolvidos em uma complexa microfísica presente nos
espaços administrativos.
Na sequência deste dossiê, em sintonia com as ideias desenvolvidas nos
artigos anteriores, está o texto apresentado por Rosa Oliveira em um dos GTs
do I ENADIR,6 no qual ela articula antropologia do direito, gênero e família
a partir de um estudo baseado na análise de acórdãos e na interlocução com
vinte e cinco desembargadores acerca de recursos judiciais sobre “conjugalida-
des homoeróticas”. Questões teórico-antropológicas advindas do campo dos
estudos de gênero iluminam suas análises sobre posições jurídicas relativas a
casamento, união estável e família.
Os três artigos seguintes se voltam para temas clássicos da antropologia
urbana – periferias, violência e segurança pública – e reúnem reflexões que, à
época do I ENADIR, ensejaram a montagem de outra mesa redonda.7
Gabriel Feltran, com base em situações etnográficas que vivenciou na ci-
dade de São Paulo em função de seu trabalho de campo de doutorado, dis-
cute algumas consequências sociais, políticas e analíticas da transformação de
periferias urbanas no Brasil contemporâneo, enfatizando a importância da
percepção de mudanças simbólicas no estatuto dos conflitos ali engendrados,
especialmente nas últimas quatro décadas. Antes pautados em lutas de traba-
lhadores assalariados pelo acesso a direitos garantidores de sua cidadania, esses
territórios urbanos passaram a espaços de gerenciamento de conflitos não mais
diretamente associados a assalariados em busca de integração urbana e social.
Alba Zaluar nos leva aos morros do Rio de Janeiro e, também a partir
de resultados de pesquisas etnográficas, aponta o enfraquecimento de laços

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interpessoais, intergeracionais e interpares como os principais favorecedores


da fragmentação e do esgarçamento do tecido social e, consequentemente,
do acirramento de ações criminosas bem menos controladas socialmente
por redes familiares e de vizinhança e bem mais envolvidas com modalida-
des variadas do crime organizado, especialmente ações ligadas aos tráficos
de drogas e de armas.
Ainda em territórios do estado do Rio de Janeiro, no município de Niterói,
temos a base empírica do trabalho etnográfico desenvolvido por Kátia Sento
Sé Mello. Ao analisar enfrentamentos entre guardas municipais e camelôs, ela
analisa paradoxos existentes entre estratégias políticas governamentais de des-
centralização da segurança pública, cadastramento de camelôs e a continui-
dade da socialização de guardas a partir de princípios e práticas militarizados.
De certo modo, “fechando” esses dois blocos de artigos e articulando-os a
partir de reflexões metodológicas, temos o texto de Theophilos Rifiotis, ��� An-
dresa Burigo Ventura e Gabriela Ribeiro Cardoso. Nele, a problemática do
fluxo da justiça criminal em casos de homicídios dolosos, julgados na região
Metropolitana de Florianópolis (SC) entre 2000 e 2003, serve de contexto
etnográfico para ponderações acerca da literatura antropológica especializada
e da revisão crítica de metodologias normalmente empregadas em pesquisas
sobre processos penais de homicídios.
Os dois últimos textos do dossiê, em diálogo com os demais, retomam
especialmente uma das questões levantadas por Luís Roberto Cardoso de Oli-
veira: o dilema das lutas por igualdade jurídica, no plano da cidadania e das
leis constitucionais, mas sem prejuízo de garantias, também jurídicas, para o
exercício de direitos à diferença.
No artigo de Jane Beltrão, escrito em coautoria com Assis da Costa Oli-
veira, estão registradas reflexões apresentadas na Mesa Redonda III do I
ENADIR.8 Eles colocam em foco o protagonismo dos povos indígenas lati-
no-americanos em demandas por reconhecimento constitucional de sua ci-

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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.

dadania e de suas diferenças, dando destaque às inovações propostas pela atu-


al constituição boliviana que, frente a outras constituições latino-americanas,
na opinião dos autores, é a que, além de reconhecer direitos à pluralidade,
mais os tem, de fato, assegurado.
Abordando o protagonismo jurídico-político de grupos remanescentes de
quilombos, as antropólogas Deborah Stucchi e Rebeca Campos Ferreira, da
Procuradoria Geral da República no Estado de São Paulo, cujo trabalho tam-
bém foi apresentado em um GT do I ENADIR,9 trazem ao debate o tema da
emergência de novas categorias de sujeitos de direito e da importância de a
antropologia se voltar, após mais de 20 anos da promulgação de Constituição
Federal de 1988, para análises dos impactos de processos de reconhecimento
no cotidiano de grupos beneficiados.
Pelo conjunto destes dez artigos e por tudo o que foi brevemente comen-
tado a seu respeito, parece-me inegável a existência de uma antropologia do
direito em plena consolidação em nosso país. Seus temas são tão múltiplos
quanto o são os interesses da antropologia brasileira, mas os articulam, toda-
via, questões recorrentes, como a tensão entre lutas pelo reconhecimento de
igualdade jurídica e, ao mesmo tempo, pela garantia do exercício da diver-
sidade. Do mesmo modo se reitera, nestes trabalhos, o recurso etnográfico
como caminho profícuo para abordar tais questões recorrentes, fazendo-as
convergir em função da ênfase que as análises antropológicas dão às dimen-
sões simbólicas dos conflitos, dos interesses e dos reconhecimentos sempre
em jogo no campo de demandas por direitos.
Os pesquisadores que contribuíram para este dossiê, assim como os que
participaram do I ENADIR, representam uma pluralidade de interesses, de
linhas de pesquisa, de universidades e de outras instituições brasileiras en-
volvidas com temas antropológico-jurídicos. Enfim, tudo indica que há não
apenas uma continuidade e um amadurecimento significativos de reflexões
que, em nome da área, se desenvolvem há pelo menos três décadas, mas que,

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Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer. Por que um dossiê voltado para...

principalmente, estamos diante de um campo cujo território teórico-meto-


dológico se encontra em franca expansão.
A expectativa, com a publicação deste dossiê, é a de que a Revista de Antropo-
logia, mais do que registrar um momento importante do estado da arte da an-
tropologia do direito no Brasil, contribua com um material de consulta que se
torne referencial para disciplinas de graduação e de pós, tanto em cursos de an-
tropologia quanto de direito, bem como com novas frentes de pesquisa e com
o incremento de trocas entre estudiosos desta inconteste área transdisciplinar.

Notas

1 Coordenadora do NADIR – Núcleo de Antropologia do Direito; Professora do Departamento


de Antropologia da USP; Presidente da ANDHEP – Associação Nacional de Direitos Humanos,
Pesquisa e Pós-Graduação; Membro da Comissão de Direitos Humanos da ABA – Associação
Brasileira de Antropologia; e Membro da Cátedra UNESCO de Educação para a Paz, Direitos
Humanos, Democracia e Tolerância do IEA-USP – Instituto de Estudos Avançados da USP.
2 Este evento foi organizado pelo NADIR e se realizou graças aos apoios financeiros da CAPES, das
Pró-Reitorias de Pesquisa, de Pós-Graduação e de Cultura e Extensão Universitária da USP. Tam-
bém contou com os apoios institucionais da FFLCH, do Departamento de Antropologia da USP,
do CCE – Centro de Comunicação Eletrônica da USP e da Revista de Antropologia.
3 A programação completa do I ENADIR, os papers e um balanço do perfil dos participantes se
encontra disponível para consulta e download em http://www.fflch.usp.br/da/arquivos/i_ena-
dir_2009/
4 Ele estima que Estados Unidos e Canadá agrupem mais da metade de todos os que se reconhecem
como antropólogos do direito (Rouland, Norbert. L’anthropologie juridique, Paris PUF, 1995, Col-
lection Que sais-je?, nº 2528, p. 43).
5 Seu título foi Antropologia do Direito no Brasil: campo e perspectivas.
6 GT.6 – Antropologia e Marcadores Sociais da Diferença.
7 Mesa Redonda II – Antropologia e Sistemas de Justiça.
8 Antropologia do Direito e Marcadores Sociais da Diferença
9 GT.6 – Antropologia e Marcadores Sociais da Diferença.

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Artigos

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A dimensão simbólica dos direitos
e a análise de conflitos

Luís Roberto Cardoso de Oliveira

Universidade de Brasília

RESUMO: O artigo procura discutir a contribuição da perspectiva antropológi-


ca para a análise de conflitos, contrastando a ênfase da Antropologia na pesquisa
empírica com a orientação predominantemente doutrinária que caracteriza o
Direito. Dialogando com textos de repercussão significativa na Antropologia do
Direito, o artigo realça a importância da dimensão simbólica dos direitos, carac-
terizada como aspecto central do universo empírico investigado, e sem a qual de-
mandas por direitos, acordos e decisões judiciais não podem ser adequadamente
compreendidos.

PALAVRAS-CHAVE: Antropologia do Direito, etnografia, conflitos, ideias de


justiça, equidade.

Desde a contribuição inicial de Kant de Lima sobre as perspectivas para


a Antropologia do Direito no Brasil (1983), a disciplina tem ampliado
sistematicamente sua participação nas atividades de ensino e pesquisa
em nossas universidades, inclusive no que concerne à interlocução com
o Direito. Neste sentido é sempre estimulante cultivar o diálogo com
pesquisadores que têm se dedicado ao tema, dirigindo seus interesses de
pesquisa e sensibilidade antropológica para o campo do direito, da jus-
tiça e da cidadania. A propósito, trata-se de um campo em que o debate

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Luís Roberto Cardoso de Oliveira. A dimensão simbólica dos direitos...

interdisciplinar é particularmente interessante, em vista da singularidade


do Direito como disciplina, de uma maneira geral, e pela distância que a
formação jurídica no Brasil mantém com relação ao mundo empírico ou
à perspectiva etnográfica, que está no coração da Antropologia.
Inicialmente, tive alguma dúvida sobre qual seria a alternativa mais
adequada para articular minha contribuição ao debate nesta ocasião, e
acabei optando por enfocar um tema bem expresso no título do artigo:
“A dimensão simbólica dos direitos e a análise de conflitos”. 1 A proposta
seria proporcionar uma breve discussão sobre o que me parece ser o cerne
da contribuição específica da perspectiva antropológica para a compreen-
são dos conflitos, dos direitos, e das concepções de justiça. Como tenho
procurado argumentar, o foco nas evidências simbólicas teria um papel
especial nesta contribuição (Cardoso de Oliveira, 2008a). Também devo
dizer alguma coisa sobre o campo da Antropologia do Direito, mas vou
começar abordando alguns aspectos interessantes da relação entre as pers-
pectivas da Antropologia e do Direito enquanto disciplinas.
Neste sentido, tenho uma visão um pouco diferente da de Geertz, cujo
texto sobre o tema tem tido grande repercussão no Brasil (Geertz, 1998).
Além de caracterizar o direito como um saber local, contextualizado, ain-
da que (pelo menos no Ocidente) tenha fortes pretensões universalistas,
Geertz desenvolve sua reflexão comparativa a partir da articulação entre
fato e lei, ou direito, em diferentes tradições jurídicas (a anglo-americana,
a islâmica, a indiana, e a malaia). Partindo da tradição anglo-americana,
da Common Law, o autor identifica na prática dos juristas ocidentais uma
forte preocupação com a elucidação dos fatos, o que não seria bem o caso
no contexto do Direito brasileiro. A formação dos advogados no Brasil não
oferece nenhum treinamento em pesquisa empírica, ou na investigação dos
fatos que dão substância às causas julgadas em nossos tribunais. A rigor, a
retórica do contraditório, estruturado como uma competição onde persua-

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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.

são e elucidação (empírica) estão totalmente dissociadas, sugere que os fatos


têm um peso muito pequeno no desfecho dos julgamentos.
De todo modo, meu interesse no direito começou quando da realiza-
ção de minha pesquisa para a tese de doutorado, no Juizado de Pequenas
Causas de Cambridge, Massachusetts. Portanto, sob a vigência da tradi-
ção da Common Law. Não tenho formação jurídica, e meu interesse no
Juizado foi motivado por três preocupações que não posso desenvolver
aqui, mas que ajudam a contextualizar minha aproximação ao Direito
como objeto de pesquisa: (1) a possibilidade de realizar algum trabalho
voluntário vinculado ao Juizado, e poder combinar a inserção tradicio-
nal do antropólogo no campo, como um pesquisador que produzirá um
trabalho acadêmico sobre o universo investigado – como quer que isto
venha ser compreendido por seus interlocutores –, com a inserção a partir
de uma posição institucional nativa;2 (2) o objetivo de realizar a pesquisa
utilizando uma língua que eu dominasse bem, mas que não fosse minha
língua nativa, enfatizando a atitude de descentramento do pesquisador
também no plano linguístico-comunicacional; e, (3) relacionar estas duas
preocupações com uma reflexão sobre o caráter da interpretação antro-
pológica e com meus interesses em questões de legitimidade, a partir de
conflitos interpretativos enfrentados pelos próprios sujeitos da pesquisa.
Assim, eu poderia desenvolver meu interesse mais amplo sobre questões
de validade nos planos cognitivo e normativo, sob forte influência das
contribuições de Habermas (1975; 1984; 1986), as quais, a meu ver,
permitiam uma abordagem que fosse simultaneamente impermeável ao
relativismo-niilista3 e ao etnocentrismo.
No plano mais geral, enquanto Geertz (1998) enfoca o potencial de
diálogo entre Antropologia e Direito no Ocidente a partir da preocupa-
ção em articular o geral e o particular que ambas as disciplinas comparti-
lhariam, embora assinale que esta identidade de propósitos é frequente-

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mente apenas aparente, eu prefiro enfatizar as implicações das diferenças


de perspectiva entre as duas disciplinas ao procurar equacionar estas duas
dimensões do real para as quais ambas dirigem seus esforços interpreta-
tivos. Se no Direito tal articulação se pauta pela necessidade de situar o
caso particular no plano de regras ou padrões gerais, externos ao caso, que
permitam equacioná-lo de acordo com princípios de imparcialidade, na
Antropologia o objetivo seria desvendar o sentido das práticas locais, à luz
do ponto de vista nativo, para apreender em que medida a singularidade
do caso em tela teria algo a nos dizer sobre o universal. Como argumentei
em outro lugar (Cardoso de Oliveira; Grossi & Ribeiro, no prelo), o que
as duas perspectivas disciplinares têm em comum é a critica às interpreta-
ções arbitrárias, ainda que em muitas oportunidades as distinções na ma-
neira de fazê-lo provoquem choques interpretativos de difícil superação:
a recusa em aceitar a arbitrariedade de uma decisão parcial, no campo
do Direito, e a rejeição à arbitrariedade das interpretações etnocêntricas,
no campo da Antropologia, nem sempre facilitam o diálogo e viabilizam
acordos interpretativos entre as duas disciplinas.
Outro aspecto importante destas diferenças entre as disciplinas se re-
fere às respectivas atitudes interpretativas que cada uma delas assume ao
articular o geral e o particular. Enquanto o Direito Positivo aciona fortes
mecanismos de filtragem interpretativa para dar sentido normativo ao
caso em tela, a Antropologia explora todas as alternativas interpretati-
vas disponíveis no horizonte do pesquisador, porosamente exposto às de-
mandas e afirmações de sentido dos “nativos”, para captar o significado
singular do caso analisado. Embora o mecanismo não seja exatamente
o mesmo no Brasil e nos EUA, tanto a prática do “reduzir a termo” no
Brasil como o procedimento de “to narrow down a case”4 nos EUA ex-
cluem da avaliação judicial aspectos importantes da disputa na ótica dos
litigantes, afetando a compreensão do contexto mais amplo onde se situa

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o conflito, o qual se apresenta como uma referência imprescindível para o


antropólogo. Esta diferença de perspectiva, que orienta os pesquisadores
em direções opostas, não deixa de estar associada a objetivos diversos das
disciplinas no quadro institucional: enquanto a Antropologia privilegia
a elucidação do caso ou situação pesquisada para ampliar o horizonte
compreensivo do intérprete (e da disciplina), procurando levar em conta
todas as visões e opiniões enunciadas no processo, o Direito dá precedên-
cia à resolução dos conflitos examinados ou à produção de um desfecho
institucionalmente balizado para os mesmos. O foco na compreensão
num caso é substituído pelo foco na decisão no outro. Evidentemente,
uma função não deve substituir a outra e, se as duas disciplinas poderiam
beneficiar-se de maior diálogo entre as respectivas perspectivas, a eventual
eliminação das diferenças poderia ter consequências desastrosas: como,
por exemplo, o antropólogo decidindo disputas judiciais baseando-se em
sua visão etnográfica, às vezes voltada para a compreensão de apenas uma
das partes e sem treinamento adequado para equacionar conflitos; ou, o
jurista avaliando o sentido normativo e o significado de práticas sociais
diversas a partir de parâmetros jurídicos locais.
De certo modo, a distância entre as disciplinas talvez seja maior no
caso brasileiro, visto que o princípio do contraditório, igualmente presen-
te nas duas grandes tradições vigentes no Ocidente, tem implicações di-
versas em cada uma delas ao incutir nos operadores do Direito lógicas ou
estilos de confrontação distintos. Enquanto na tradição anglo-americana
o estilo de confrontação entre as partes, chamado de adversário, exige a
produção de um consenso sobre os fatos válidos ao longo do processo (a
eventual impossibilidade de produção deste consenso impõe a liberação
do acusado), na versão brasileira da tradição civilista o princípio do con-
traditório se traduz numa lógica ou retórica do contraditório que é imune a
consensos. Isto é, nesta versão da tradição civilista prevalece uma lógica do

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contraditório na qual se exige a confrontação de teses opostas, entre defesa


e acusação, sem que se realize um cotejamento sistemático do substrato
empírico de referência acionado pelas partes de modo a viabilizar uma
interpretação argumentada sobre a veracidade dos fatos. Neste contexto a
chamada verdade real é definida unilateralmente pelo juiz, com base em
sua autoridade institucional, e seu livre convencimento (motivado) não é
produto de um processo de esclarecimento argumentado. A ausência de
critérios de validação discursiva do referencial empírico, o embate retóri-
co que não distingue adequadamente entre argumento (fundamentado)
e opinião, e o processo decisório que prioriza o argumento da autoridade
em oposição à autoridade do argumento, tornam o estilo de contraditó-
rio vigente na apropriação brasileira da tradição civilista mais distante da
perspectiva das ciências sociais.5
No que concerne ao campo da Antropologia do Direito, o universo
de pesquisa me parece de fato inesgotável. Pois, se supusermos que toda
interação social tem uma dimensão normativa e que toda relação está su-
jeita a conflitos, disputas sobre direitos seriam constitutivas da vida social,
como, aliás, Simmel (1983) já chamara a atenção. Costumo dizer a meus
alunos que o aparecimento de conflitos em qualquer relação é sempre
uma questão de tempo. Se pensarmos numa relação padrão que envolva
interações frequentes, com um mínimo de intensidade, e que seja impor-
tante para as partes, ela deverá suscitar conflitos em algum momento. É
neste sentido que o objeto da Antropologia do Direito seria absolutamen-
te inesgotável, e tais conflitos e demandas por direitos seriam examinados
pela Antropologia com ênfase na dimensão simbólica. Sem me preocupar
muito em elaborar teoricamente sobre a constituição da dimensão sim-
bólica na antropologia, mas optando por uma comunicação mais direta,
no estilo “pão-pão, queijo-queijo”, eu diria que o simbólico para o qual
gostaria de voltar minha atenção no momento se traduz na maneira como

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os direitos são vividos pelos atores que se envolvem nessas relações confli-
tuosas. Isto é, como os direitos são vividos e como ganham sentido para
as partes. O foco estaria na indagação sobre como os atores orientam a
ação, como diria Weber, ou na compreensão de que regras estariam se-
guindo quando interagem, como diria Wittgenstein. Em uma palavra, a
etnografia dos conflitos supõe um esforço de compreensão das interações
entre as partes, com respaldo na experiência delas, de modo a viabilizar a
atribuição de um sentido que esclareça o desenrolar do conflito e/ou da
relação. Um bom exemplo deste enfoque abrangente da antropologia ao
abordar conflitos seria a análise do drama celebrizada por Victor Turner
(1957). A dimensão simbólica, portanto, vai muito além daquilo que
está expresso em qualquer código de direito, ou mesmo nos princípios
formais que balizam os procedimentos e nas leis positivadas.
A propósito, uma área que tem sido relativamente pouco estudada
no Brasil é a do direito de família, embora haja trabalhos importantes
publicados sobre o tema (Moura, 1978; Fonseca, 2000, 2006 e 2009;
Vianna, 1999 e 2005). Refiro-me especialmente ao campo jurídico em
sentido estrito, ainda que, evidentemente, a Antropologia do Direito não
se preocupe apenas com o que acontece nos tribunais, mas com todas as
formas institucionalizadas de equacionar conflitos. Quer dizer, a Antro-
pologia do Direito se interessa por todas as formas reconhecidas pelos
atores como apropriadas para equacionar conflitos, nas várias circunstân-
cias, assim como pelos processos sociais que envolvem disputas e pelos
procedimentos adotados para fazer valer direitos e interesses. De todo
modo, gostaria de estimular colegas e alunos a fazerem mais pesquisas
sobre direito de família no âmbito do judiciário. Por exemplo, casos en-
volvendo disputas sobre herança e sucessão, ou sobre separação e divórcio
costumam ser muito interessantes, e levantam questões muito mais am-
plas do que é explicitado no objeto imediato da lide ou disputa. Na An-

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tropologia, há uma sabedoria consolidada no que concerne ao estudo das


sociedades ditas “simples”, onde o parentesco e a família são vistos como
objeto de pesquisa privilegiado para a compreensão dessas sociedades,
mas eu diria que estas instituições têm o mesmo potencial de elucidação
ou de ampliação de nossa compreensão das sociedades ditas “complexas”,
urbanas e ocidentais.
Se o parentesco tem sido uma chave importante para a compreensão
antropológica da vida social de uma maneira geral, a Antropologia do Di-
reito tem procurado realçar a dimensão política dos conflitos. Aliás, como
demonstra abundantemente a literatura na área, o Direito e a Política têm
sido estudados de forma articulada na antropologia. Na tradição anglo-
americana, por exemplo, onde o foco na análise do aspecto jurídico-legal
dos conflitos teve maior desenvolvimento, o campo tem sido comparti-
lhado com a Antropologia Política, e não deixa de ser significativo que
a principal revista na área traga a marca desta relação no título: Political
and Legal Anthropology Review – POLAR. Entretanto, prefiro referir-me
à Antropologia Jurídica e à Antropologia Política como, respectivamen-
te, Antropologia do Direito e Antropologia da Política, para marcar a
especificidade do olhar antropológico sobre estes temas, contrastando-o
com as perspectivas vigentes no Direito e na Ciência Política. Diferente-
mente destes últimos, a antropologia olha para o direito ou para a polí-
tica como campos abertos, sujeitos a redefinições múltiplas, conforme o
desenvolvimento da pesquisa e a interlocução com os atores no campo.
Esta articulação entre direito e política se expressa nitidamente também
nas pesquisas sobre direitos de cidadania, ou sobre processos que envol-
vem demandas por direitos de todo tipo, frequentemente associadas a
movimentos sociais.
Recentemente, um tema que tem suscitado muito interesse na inter-
face entre antropologia e direito é o do pluralismo jurídico. Trata-se de

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tema bastante amplo e diverso, variando entre, de um lado, análises de


situações nas quais pelo menos dois sistemas jurídicos coexistem e são
reconhecidos pelo Estado (Kuper & Smith, 1969) e, de outro, análises
que procuram articular o sistema jurídico do Estado com a produção
jurídica não-estatal.6 O primeiro tipo de análise tem como referência a
situação colonial, e aparece com força na literatura sobre sociedades afri-
canas, onde o sistema estatal exportado pela metrópole convive com sis-
temas jurídicos tribais igualmente reconhecidos pelo Estado, ainda que
com status e abrangência diferenciada. Mesmo as etnografias na área que
não estão preocupadas com o pluralismo indicam a sua presença, como
na monografia clássica de Bohannan (1968) sobre os Tiv, na qual as cortes
tribais são situadas no contexto jurídico mais amplo, colonial. Já o outro
tipo de análise tem como foco sociedades industrializadas onde as leis do
Estado competem ou se articulam com outras fontes de normatização
com poder de sanção, ainda que as diferenças de poder entre as fontes e
suas respectivas implicações não sejam adequadamente tratadas na litera-
tura (Moore, 2005; Schuch, 2009, p.48).
Do meu ponto de vista a segunda acepção de pluralismo jurídico tem
implicações diferentes da primeira, as quais precisam ser explicitadas, e sua
fecundidade interpretativa dependeria da identificação das diversas fontes
de direito em tela, com seus respectivos diferenciais de poder e abran-
gência, onde o Estado ocupa uma posição muito especial, sem deixar de
abordar questões de equidade e perspectivas de legitimação (Cardoso de
Oliveira, 1989 e 1996). Além disso, esta segunda acepção descreve uma
condição universal do processo de produção de direitos, pois nenhuma
sociedade conhecida teria apenas uma fonte de criação e sancionamento
de direitos,7 tornando a noção de pluralismo jurídico pouco elucidadora.
Uma alternativa que me parece mais fecunda para lidar com os proble-
mas abordados na segunda acepção de pluralismo seria a discussão sobre

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diferentes fontes de regulamentação das relações sociais, assim como pro-


posta por Moore (1978, pp. 13-30). Esta autora fala em reglementary pro-
cesses para salientar não apenas a multiplicidade de fontes de direito, mas
o caráter processual e dinâmico da criação de direitos e obrigações, assim
como de sua implementação em diferentes contextos institucionais. Além
de diferenciar adequadamente as fontes de regulamentação não estatal
das leis criadas pelo Estado e sancionadas pelo sistema jurídico oficial, em
termos do respectivo poder de implementação das mesmas, a formulação
de Moore é suficientemente flexível para permitir a análise das diferentes
formas e contextos de controle social existentes em qualquer sociedade.
Meu único reparo às suas proposições nesta área se refere à pouca im-
portância atribuída por ela às questões de equidade e legitimidade que
permeiam quaisquer processos de regulamentação (Cardoso de Oliveira,
1989, pp. 210-239).
A preocupação com questões de equidade me permite retomar a discus-
são de meu próprio trabalho na área, marcado pela ênfase nestas questões,
caracterizadas como constitutivas do objeto da Antropologia do Direito
(Cardoso de Oliveira, 1989, pp. 96-268). Isto é, tendo como referência as
justificativas acionadas pelas partes para dar sentido ou para justificar suas
demandas, dentro de uma perspectiva aberta à expansão dos parâmetros
interpretativos para definir o cerne do conflito (em oposição à filtragem
judicial mencionada acima), acabei dirigindo minhas investigações para a
dimensão moral dos direitos (Cardoso de Oliveira, 2002). Tal dimensão
traz à tona aspectos dos direitos de difícil positivação, e se expressa de ma-
neira mais evidente em atos de agressão aos respectivos direitos, que se-
riam frequentemente invisibilizados no judiciário. Trata-se, por um lado,
de ofensas que não podem ser adequadamente traduzidas em evidências
materiais e que, por outro, envolvem sempre uma desvalorização ou mes-
mo a negação da identidade do interlocutor. Se, portanto, referimo-nos

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a direitos cuja positivação encontra sérias dificuldades de legitimação, a


etnografia das situações nas quais os mesmos são afrontados daria plena
sustentação à sua proteção e/ou à necessidade de repressão do agressor.
Este quadro levou-me a distinguir três dimensões temáticas constitu-
tivas das causas ou conflitos judiciais, ainda que nem sempre elas tenham
a mesma importância e significado: (a) a dimensão dos direitos; (b) a di-
mensão dos interesses; e, (c) a dimensão do reconhecimento. Enquanto
as duas primeiras dimensões são diretamente enfrentadas pelo judiciário
(por exemplo, desrespeito a direitos positivos e prejuízos causados como
consequência), a última remete a um direito de cidadania, associado a
concepções de dignidade e de igualdade no mundo cívico, e não encontra
respaldo específico em nossos tribunais. O reconhecimento, ou o direito
de ser tratado com respeito e consideração, é o aspecto que melhor ex-
pressaria a dimensão moral dos direitos, e as demandas a ele associadas
traduzem (grande) insatisfação com a qualidade do elo ou relação entre
as partes, vivida como uma imposição do agressor e sofrida como um ato
de desonra ou de humilhação (Cardoso de Oliveira, 2004 e 2008b) . Nos
casos em que a reparação a este tipo de ofensa é suficientemente embu-
tida nas deliberações judiciais sobre as outras duas dimensões temáticas
dos conflitos (direitos e interesses), os tribunais promovem um desfecho
satisfatório para as respectivas causas. Entretanto, nas causas em que este
tipo de ofensa ‑ que tenho caracterizado como insulto moral ‑ ganha pre-
cedência ou certa autonomia nos processos não há reparação adequada e
o desfecho judicial é frequentemente insatisfatório do ponto de vista das
partes (Cardoso de Oliveira, 2002, 2004, 2008b).
Um desdobramento de minhas preocupações com a equidade de
decisões, de acordos, e das diversas formas de equacionamento de con-
flitos é o meu interesse recente em pesquisar concepções de igualdade
(Cardoso de Oliveira, 2010). Tais concepções, ou ideias-valor, ganharam

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uma abrangência quase universal no século XX, passando a constituir


um componente central do princípio de justiça, ainda que o sentido ou
significado das respectivas concepções seja incrivelmente diverso, e sua
variação talvez seja proporcional à extensão de sua abrangência. Dumont
já havia chamado a atenção para esta diversidade, ao dirigir o foco de suas
investigações para o que definiu como diferentes configurações da ideo-
logia individualista no Ocidente (Dumont, 1977, 1986, 1994). Mesmo
na Índia, matriz conceitual da noção de hierarquia que Dumont contras-
ta com o valor da igualdade no Ocidente, este último não deixa de ter
vigência na esfera pública contemporaneamente, ainda que, certamente,
seu significado não seja exatamente o mesmo difundido no Ocidente.
Aparentemente, ficou muito difícil defender princípios de justiça que não
estejam em sintonia com os ideais de igualdade.8
A propósito, a meu ver um dos maiores problemas para a cidadania no
Brasil seria a existência de uma tensão entre duas concepções de igualda-
de, que faz com que as ações do Estado sejam frequentemente percebidas
pelos cidadãos como atos arbitrários. Por um lado, nossa constituição en-
fatiza uma concepção de igualdade definida como tratamento uniforme,
seguindo o padrão dominante nas democracias ocidentais bem expresso
na Constituição de 1988 por meio da ideia de isonomia jurídica. Por ou-
tro lado, tal concepção compete com outra que define a igualdade como
tratamento diferenciado, a qual parece-me dominante em nossas institui-
ções públicas e no espaço público, tomado como o universo de interação
social por excelência nas relações fora do círculo da intimidade dos atores.
O maior símbolo dessa visão seria uma frase de Rui Barbosa, acionada
reiteradamente por políticos de esquerda e de direita, ou por autoridades
dos três poderes, ainda que a matriz seja o judiciário, e segundo a qual
a igualdade seria tratar desigualmente os desiguais na medida em que se
desigualam. O instituto da prisão especial (para quem tem curso superior,

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entre outros) e o fórum privilegiado dos políticos seriam bons exemplos


desta concepção, e apenas a ponta do iceberg de um amplo conjunto de
práticas e situações nas quais a implementação da concepção de igualdade
como tratamento diferenciado no âmbito da justiça implica desigualdade
no plano dos direitos.
Olhando para o Brasil em perspectiva comparada, tendo como refe-
rência minhas pesquisas sobre o mesmo tema nos EUA, Canadá, e mais
recentemente na França, dois aspectos chamam a atenção: (1) a segunda
concepção de igualdade, que Rui Barbosa (1999, p. 26) define como uma
regra relativizadora de direitos, é incompatível tanto com o igualitarismo
vigente no liberalismo anglo-saxão, como naquele presente no republi-
canismo francês, muito diferentes entre si, mas idênticos na radicalidade
com que concebem a igualdade de direitos entre indivíduos-cidadãos; (2)
a tensão permanente com a visão que concebe a igualdade como trata-
mento uniforme não oferece parâmetros de referência confiáveis para o
cidadão, que lhe permitam saber que direitos são válidos em que circuns-
tâncias e em que tipo de interações. Pois nem sempre os cidadãos devem
ser tratados da mesma maneira, ou ter os mesmos direitos observados, e
quem define que parâmetros são válidos em cada caso é uma autoridade
com autonomia interpretativa. Além da sensação de arbitrariedade que
este quadro sugere, a ausência de parâmetros socialmente consensuados
com validade universal faz com que no espaço público brasileiro não te-
nha vigência a ideia foucaultiana da disciplina, como instrumento de au-
torrepressão do cidadão.
Devo dizer ainda, que a concepção de igualdade como tratamento uni-
forme não está imune a provocar situações de desrespeito sistemático a di-
reitos tanto no plano jurídico como no plano das interações públicas e nos
processos sociais, como os movimentos associados a demandas multicul-
turalistas sugerem.9 Neste sentido, minha pesquisa no Canadá sobre as de-

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mandas de reconhecimento do Quebec indicam que o não reconhecimento


da singularidade quebequense é vivido pelos atores como uma negação de
direitos dos cidadãos quebequenses, e que tal percepção não deixa de ter
fundamento (Cardoso de Oliveira, 2002). Em outras palavras, a compa-
ração entre processos de administração de conflitos e de demandas por di-
reitos em diferentes sociedades sugere maior complexidade na avaliação da
inteligibilidade dos direitos, assim como das ideias de justiça.
Retomando a discussão acima sobre o olhar etnográfico e a ênfase da
perspectiva antropológica na dimensão simbólica dos direitos, os dile-
mas da justiça, da cidadania, e dos direitos são de muito difícil apreensão
quando o intérprete não enfoca adequadamente a maneira como as res-
pectivas questões são vividas pelos atores, ou como elas ganham sentido
nas suas práticas, e motivam determinados padrões de orientação para a
ação. A observação do antropólogo – qualquer que seja seu objeto e não
apenas no caso da Antropologia do Direito – tem que estar situada num
universo simbolicamente pré-estruturado, e seu acesso a este demanda
a assunção da perspectiva de um participante virtual, para retomar aqui
uma formulação de Habermas (1984, pp. 1-141). O participante virtual
é aquele que não pode ser neutro, e que precisa acionar as suas pré-supo-
sições para ter acesso ao mundo social, ainda que necessite relativizá-las
para encontrar um ângulo a partir do qual consiga fazer conexões de sen-
tido com o universo pesquisado, as quais, por sua vez, devem encontrar
algum respaldo ou sintonia no ponto de vista nativo.
Segundo Habermas, a virtualidade da participação estaria marcada
pelo fato de o intérprete não ter interesses da mesma ordem daqueles
partilhados pelos atores no que concerne ao desenrolar da ação na si-
tuação pesquisada. Vale lembrar ainda que a ausência de neutralidade
não implica parcialidade, e que o intérprete deve assumir uma atitude de
imparcialidade, que não exclua de sua atenção ou consideração nenhu-

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ma das visões ou ponderações propostas por seus interlocutores. É neste


sentido que o pesquisador precisa levar o ponto de vista dos atores a sé-
rio, combinando a disponibilidade intelectual para apreender o inusitado
com a cobrança de sentido ao que lhe é transmitido, fazendo com que a
compreensão alcançada possa ser explicada a outros por meio das próprias
palavras e (re)interpretações do pesquisador.
Mas, como tal perspectiva se traduziria na prática da Antropologia do
Direito? Qualquer que seja o foco da pesquisa o antropólogo não pode se
abster de examinar as pretensões de validade dos atores no que concerne
aos direitos e obrigações proclamados ou pretendidos, aos desfechos insti-
tucionalmente sancionados para os conflitos administrados, ou às críticas
e divergências apresentadas pelos atores ao longo do processo. Todas estas
pretensões são baseadas em ideais de correção normativa que supõe sem-
pre a equanimidade dos encaminhamentos em tela.
A propósito, algo que me aproxima muito de Geertz e de Gluckman é
a preocupação que ambos cultivam em relação às pretensões de validade
normativa que permeiam todo processo de administração de conflitos.
No caso de Gluckman (1955), tal preocupação se expressa na discussão
sobre a convicção dos Barotse quanto ao caráter equânime das decisões
tomadas pelas Kutas (suas cortes), sempre orientadas por ideais de fairness
ou equidade. Já Geertz (1998), insiste na importância do antropólogo
procurar captar os sensos de justiça embutidos nos procedimentos de ad-
ministração de conflitos e em suas respectivas sensibilidades jurídicas, sem
deixar de chamar atenção que, embora distintos e comparáveis – com o
objetivo de elucidação recíproca –, não há critérios que permitam estrati-
ficá-los em ordem crescente ou decrescente de superioridade relativa. Ou
seja, não seria adequado avaliar o senso de justiça ou sensibilidade jurídica
vigente em uma determinada sociedade a partir da perspectiva dominante
em outra. Os insights de Gluckman – com ênfase na perspectiva interna

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– e de Geertz – com ênfase no diálogo entre perspectivas – quanto às pre-


tensões de validade normativa são retomados de forma talvez um pouco
mais obsessiva no meu trabalho, dada a ênfase mencionada acima em
levar a sério o ponto de vista dos atores, com suas respectivas implicações.
Isto significa que para apreender a sensibilidade jurídica ou senso de
justiça em tela o pesquisador deve levar a sério as pretensões de validade dos
“nativos” quanto ao caráter equânime do procedimento adotado e dos res-
pectivos encaminhamentos. Tal esforço deve desembocar no convencimen-
to do pesquisador quanto à razoabilidade destas pretensões ou em questio-
namentos razoáveis quanto às mesmas, sempre com o cuidado de evitar,
num só tempo, o etnocentrismo (autoritário e excludente por definição) e
o relativismo-niilista, que não consegue aceitar a capacidade argumentativa
do interlocutor e as possibilidades de fundamentação de suas justificativas.
Neste empreendimento, propus uma maneira de viabilizar melhor
compreensão dos processos de administração de conflitos através do foco,
de forma articulada, em três dimensões contextuais que contribuiriam
para a elucidação destes processos: (1) a dimensão do contexto cultural
abrangente, que se refere ao universo simbólico mais amplo onde o con-
flito tem lugar; (2) a dimensão situacional do contexto, que se refere aos
padrões de aplicação normativa associados a situações típico-ideais (por
exemplo, definição de um certo tipo de furto e que pena se aplicaria a
ele); e, (3) a dimensão contextual do caso específico, que analisa até que
ponto o processo em tela pode ser adequadamente compreendido como
um bom exemplo da situação típico-ideal a partir da qual ele estaria sen-
do enquadrado (Cardoso de Oliveira, 1989, pp. 185-186). A falta de
atenção a esta dimensão foi o principal foco de minha crítica à análise de
Geertz no famoso ensaio já mencionado aqui (1998, pp. 239-268).
Finalmente, uma abordagem que leve em conta as três dimensões temá-
ticas dos conflitos (direitos, interesses e reconhecimento), e que incorpore a

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análise das três dimensões contextuais que dão sentido ao que está efetiva-
mente em jogo em cada caso concreto, tem tudo para viabilizar uma com-
preensão mais ampla e profunda dos conflitos, das demandas por direitos e
dos procedimentos. Deste modo o aspecto simbólico dos direitos seria ple-
namente incorporado à análise, e a Antropologia poderia explorar melhor o
potencial de sua contribuição no diálogo com o Direito. Isto é, trazendo à
tona aspectos significativos dos conflitos e dos direitos que tendem a ser invi-
sibilizados no judiciário. Há quase seis anos (em 12 de maio de 2004) fiz uma
palestra na Escola Superior do Ministério Público da União, cujo texto ainda
está inédito, e na qual procurava abordar causas vividas com dramaticidade
pelos litigantes, mas que não eram recebidas adequadamente no judiciário.
Com o sugestivo título de “A Invisibilidade do Insulto: ou como perder o
juízo em Juízo”, e inspirado num artigo sobre a “paranoia do litigante” na
Austrália (Lester et. al, 2004), discuti os casos australianos comparando-os
com casos similares nos Estados Unidos e no Brasil assinalando que, em todos
eles, o judiciário identifica um aspecto de insanidade nos litigantes ao não
compreender a natureza das demandas encaminhadas pelos mesmos.
A propósito, gostaria de concluir minha intervenção com um breve re-
lato sobre o caso referente ao Brasil, e que foi retirado da tese de Ciméa
Beviláqua, hoje publicada em livro (2008). Trata-se do caso de um tra-
balhador de baixa renda e pouca instrução, que compra um terreno em
empreendimento imobiliário na periferia de Curitiba, e é enganado pela
empresa que não garante as condições de ocupação e os serviços oferecidos
no momento da compra. A falta de drenagem adequada provoca a inun-
dação do terreno e a danificação do barraco construído, causando enor-
mes prejuízos ao trabalhador. As dificuldades em negociar uma reparação
com a empresa, o acesso precário ao judiciário, e o desgaste ao longo do
litígio trazem muitos transtornos à sua vida pessoal – nos planos material
e emocional –, fazendo com que ele não consiga apresentar sua causa no

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Luís Roberto Cardoso de Oliveira. A dimensão simbólica dos direitos...

Juizado sem relatar detalhes de seu sofrimento. Como o juiz não consegue
fazer com que o trabalhador limite sua exposição aos aspetos contratuais da
causa e à avaliação dos prejuízos materiais a serem indenizados, interpreta a
exposição como um discurso sem sentido, e condiciona a continuidade do
processo em uma nova audiência ao compromisso do litigante em passar
por um teste de sanidade mental. O trabalhador aceita fazer o teste, e o lau-
do do psicólogo do Ministério Público é muito interessante e revelador das
dificuldades do judiciário em lidar com certas demandas por direitos. Pois,
segundo o psicólogo, o trabalhador não seria apenas uma pessoa na plenitu-
de de sua sanidade mental, mas que se distinguiria pelo apreço e confiança
que teria em nossas instituições judiciárias. Quando enunciei o diagnóstico
do psicólogo ao final de minha palestra, para um público majoritariamente
de procuradores, ouvi um conjunto de vozes manifestando-se em uníssono
no auditório: “Então ele é louco mesmo!”

Notas
1 Texto produzido a partir da transcrição de intervenção na mesa-redonda “Antropologia do
Direito no Brasil: campo e perspectiva”, realizada em 20 de agosto de 2009 na USP durante
o I Encontro Nacional de Antropologia do Direito. A mesa foi coordenada por Ana Lúcia
Pastore Schritzmeyer, e também contou com a participação de Claudia Lee W. Fonseca,
Guita Grin Debert e Theophilos Rifiotis.
2 Trabalhei durante cerca de dois anos no Small Claims Advisory Service (Serviço de Acon-
selhamento Para Pequenas Causas), como conselheiro leigo prestando esclarecimentos ao
telefone para prováveis litigantes, e no final de minha pesquisa no Juizado também atuei
durante um mês como mediador de disputas (Cardoso de Oliveira, 1989).
3 Refiro-me ao tipo de relativismo que não leva a sério pretensões de validade, e do qual Geertz
faz questão de se distanciar em sua famosa conferência sobre o tema (Geertz, 1988).
4 A ideia seria de estreitar ou afunilar os parâmetros de classificação e de interpretação do litígio.
5 Kant de Lima foi quem primeiro me chamou a atenção sobre estas importantes diferenças
entre os modelos acusatório e inquisitorial (1995; 2008), com seus respectivos estilos de con-

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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.

frontação: do adversário e do contraditório. Minha compreensão deste último deve muito aos
diálogos com ele, com Maria Stella de Amorim (et alii 2005, xi-xxxviii; 2006, pp.107-108),
e com o grupo de pesquisa que eles coordenam no Programa de Pós-Graduação em Direito
da Universidade Gama Filho, com destaque para minhas discussões com Barbara Lupetti e
Regina Lúcia Teixeira Mendes.
6 Veja discussão em Moore (2005, pp. 356-358) e em Schuch (2009, pp. 43-50).
7 Moore (1978, pp. 1-31) caracteriza bem esta condição para as sociedades com Estado, e Pospisil
(1974) desenvolve um argumento similar para as sociedades tribais, ainda que não discuta ade-
quadamente os problemas de articulação entre os diferentes níveis jurídicos que ele identifica.
8 Sobre a relação entre justiça e igualdade, veja também a contribuição de Ricoeur (2005).
9 Evidentemente, todo e qualquer sistema jurídico está sujeito a cometer equívocos e arbitra-
riedades ao proferir decisões ou sancionar desfechos diversos na administração de conflitos.
Entretanto, quando falo em desrespeito sistemático a direitos refiro-me a condições estrutu-
rais que revelam padrões de arbitrariedade processual e indicam a presença de uma força ou
poder ilegítimo (Cardoso de Oliveira, 1989, pp. 239-268; 2010).

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ABSTRACT: The article makes a brief assessment of the contribution of


Anthropology’s perspective to the analysis of conflicts, contrasting Anthropology’s
emphasis in empirical research with the doctrinarian approach that predomina-
tes in Law. Drawing on significant texts in the Anthropology of Law, the article
highlights the symbolic dimension of rights, characterized as a core aspect of
empirical data, and without which demands for rights, judicial agreements and
decisions cannot be adequately understood.

KEYWORDS: Anthropology of Law, Ethnography, Conflicts; Ideas of Justice;


Fairness.

Recebido em abril de 2010. Aceito em dezembro de 2010.

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Desafios da politização da Justiça
e a Antropologia do Direito

Guita Grin Debert

Universidade Estadual de Campinas

RESUMO: O artigo discute os desafios de uma antropologia do direito que tem


como foco a sociedade do pesquisador e está voltada para a análise do sistema de
justiça em sua relação com temas como a violência contra a mulher e contra o idoso.
A partir da apresentação dos debates no interior das teorias jurídico-feministas, as
seguintes questões são exploradas: (1) a relação entre universalismo e os diferentes
particularismos; (2) a oposição entre judicialização das relações sociais e politização
da justiça; (3) o caráter das formas de controle que marcam as sociedades ocidentais
contemporâneas. Trata-se de apontar os limites e as falácias do conceito de cultura na
compreensão de dilemas jurídico-políticos contemporâneos.

PALAVRAS-CHAVE: violência contra a mulher, violência contra o idoso, teorias


jurídico-feministas, judicialização de relações sociais, sistema de justiça.

Num artigo sobre o direito e o conhecimento local Geertz (1999, p.252) carac-
teriza a antropologia do direito como uma disciplina centauro. Em comentá-
rios por ele mesmo considerados impertinentes, alega que os debates nessa área
são estáticos e reiteram incansavelmente as mesmas questões: a jurisprudência
ocidental pode ser aplicada em contextos não-ocidentais? Como os africanos
ou os esquimós concebem a justiça? Como disputas são resolvidas na Turquia
ou no México? As regras e ordenamentos jurídicos restringem os comporta-
mentos ou servem como justificativas legitimadoras de interesses específicos?

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No Brasil, diferentes dimensões do sistema de justiça como a polícia e suas


delegacias, as prisões, o Tribunal do Júri têm atraído um número cada vez maior
de pesquisas em antropologia. Contudo, pode-se dizer, há certa resistência por
parte dos pesquisadores na inclusão e identificação destes trabalhos com a área
da antropologia do direito. Da mesma forma, os estudos clássicos, que consa-
graram essa área como um campo específico da reflexão antropológica, nem
sempre servem de inspiração às pesquisas realizadas. A tendência dos pesquisa-
dores, particularmente quando seus trabalhos têm também um foco nas mino-
rias discriminadas, é filiá-los em rubricas tidas como mais abrangentes como a
antropologia política, estudos de gênero, raça e relações interétnicas.
O interesse deste artigo é refletir sobre os desafios envolvidos no tratamento
do direito e do sistema de justiça quando os temas abordados envolvem a nos-
sa própria sociedade. Procuro sugerir que a indignação possa ser um motivo
central do entusiasmo que pesquisas sobre as diferentes instâncias do judiciário
têm despertado entre nós e do interesse renovado pela antropologia do direito.
Tomando como base as diferenças e os debates no interior do que tem sido
chamado de a teoria feminista do direito, busco dissolver a suposta homoge-
neidade das posições que têm recebido essa rubrica e, por fim, apresento um
leque de questões que deveriam ser incorporadas na antropologia do direito,
de forma a evitar identificações apressadas ou estranhamentos fáceis nos estu-
dos que têm como palco a sociedade brasileira.

Antropologia do Direito e Indignação

Para Geertz, no artigo citado, definir uma área ou uma subdisciplina é ten-
tar resolver o problema do saber local de modo equivocado. A criação de uma
subdisciplina só tem sentido quando estiver em jogo um saber novo que não se
enquadra totalmente nos ramos já existentes das disciplinas. A constituição de
uma nova especialidade requer antes a definição de temas de pesquisa que se

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encontram no caminho entre duas áreas. Geertz sugere então uma abordagem
mais desagregante da antropologia e do direito, uma abordagem que vá além
do ataque que uma disciplina possa fazer a outra, posto que o interesse da an-
tropologia do direito não pode ser o de corrigir raciocínios jurídicos através
de descobertas antropológicas. Era exatamente isso, no entanto, que mais
estimulava aqueles estudos empreendidos das várias instituições do sistema de
justiça no país. A base inspiradora do meu trabalho nas delegacias da mulher,
nas delegacias de proteção do idoso e nos Juizados Especiais Criminais,1 eram
os livros de Mariza Corrêa (1981 e 1983), que mostraram, com muita precisão
e maestria, como figuras jurídicas inusitadas são criadas de modo a dissolver
a apregoada igualdade jurídica entre homens e mulheres como é o caso da
“legítima defesa da honra”. Era importante demonstrar, com rigor, aos juristas
e outros profissionais do direito como a ideia de imparcialidade era bombar-
deada, na prática, por procedimentos tidos como expressão da normalidade
e frutos de pura isenção. Não seria pretensioso dizer que tivemos um sucesso
relativo nessa direção. O estupro, depois de muitos debates encabeçados por
feministas, que muitas vezes tomaram emprestado pesquisas de cunho antro-
pológico, passou a ser tratado de outra forma no Código Penal Brasileiro2 e a
legítima defesa da honra já não é um argumento aceito juridicamente, embora
seja ainda utilizado nas teses da defesa nos tribunais. Eram esses os debates que
empolgavam porque mostravam como análises cuidadosas podiam contribuir
com um debate mais amplo, politizando questões que aparentemente eram
expressões de pura neutralidade e imparcialidade.
Geertz (1999, p.253) propunha algo mais calmo e tranquilo, “um ir e vir
hermenêutico entre os dois campos, olhando primeiramente em uma direção,
depois na outra, a fim de formular as questões morais, políticas e intelectuais
que são importantes para ambos”.
Para ele, a questão antropológica central é o lugar dos fatos nos julgamentos
e essa relação entre os atos e autos do processo marcaram o trabalho de Mariza

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Corrêa. Contudo, Geertz tende a relativizar de maneira excessiva as questões:


“a simplificação dos fatos, a sua redução às capacidades genéricas dos guardiões
da lei, é, por si mesmo (...) um processo inevitável e necessário” (1999, p. 257).
Como antropólogos, conhecemos muito bem a força das construções sociais,
mas não se pode dizer que todas elas são equivalentes. Sabemos que a “base
da cultura é a representação” e se tudo é representação isso não quer dizer que
todas as representações se equivalem. Geertz obviamente não diz isso, não pro-
põe essa equivalência. Mas falta no seu texto indignação, sentimento esse que
me parece central para explicar o crescente interesse entre nós, por questões
relacionadas com a antropologia do direito.
A “tranquilidade reflexiva” que para Geertz deveria orientar as pesquisas
só é possível quando examinamos um mundo que nos diz respeito de modo
distante, quando o antropólogo pesquisa lugares longínquos e exóticos e quer
manter a todo custo esse exotismo.
Mostrar que há sensibilidades jurídicas distintas e que elas têm eficácia na
resolução dos conflitos é sem dúvida uma contribuição fundamental da antro-
pologia do direito. O que já não se sustenta é a visão da cultura, do saber local
como totalidade homogeneizadora, coesa, fechada, determinística e sistemáti-
ca, ideia que marcou o estudo das sociedades ditas primitivas, pensadas como
igualitárias, nas quais não há lugar para poder e dominação. Como disse Sally
Falk Moore (1989) no estudo sobre Kilimanjaro, na África evocar a tradição
pode ser tanto uma forma de resistir ao governo como um modo de enganar
o próprio irmão.

Antropologia Feminista, Poder e Imparcialidade

A percepção de que a lei é parte de um conjunto maior de instituições vol-


tadas para o controle, a disciplina, a normatização, não pode ser desconhecida
ou minimizada. Principalmente com os trabalhos de Foucault, ficou evidente

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que o caráter das mudanças históricas que levam à criação de dispositivos es-
pecíficos de poder deve ser integrado às análises quando o foco é no direito.
A ausência dessa dimensão histórica era, certamente, responsável pelo in-
teresse e pela opção dos pesquisadores de colocar as questões abordadas como
tributárias da área da antropologia urbana, da antropologia política ou da an-
tropologia feminista. Com isso não quero dizer que se abandona a dimensão do
debate de questões jurídicas. As teorias feministas já partem da crítica à pretensa
neutralidade do direito como um processo imparcial e universal de tomadas de
decisões do ponto de vista do sexo e daí a incapacidade do mundo da justiça
de responder adequadamente à condição feminina. Esse era também o ponto
de partida do estudo que empreendi sobre as idades. Interessava contemplar a
maneira pela qual a classificação etária dos indivíduos desfaz, na prática, a pre-
tensa igualdade e a imparcialidade dos procedimentos e das decisões tomadas.3
Vale a pena realçar que se filiar à antropologia feminista não é supor um
consenso entre as várias teorias envolvidas. Num texto, que sempre vale a
pena citar, Roger Raupp Rios (2002) mostra com muita precisão que pode-
ríamos dividir essas teorias que compõem a feminist legal theory em quatro
grandes correntes que incidem em argumentações muito distintas no campo
jurídico: feminismo liberal, feminismo culturalista, feminismo radical e femi-
nismo pós-moderno.
As feministas liberais defendem a igualdade de tratamento e tendem a ver
qualquer diferença no tratamento de homens e mulheres como uma manifes-
tação da ideologia de superioridade masculina. No campo jurídico advogam,
por exemplo, a identificação da gravidez como qualquer outra condição física
que inabilite os homens ao trabalho. Desse ponto de vista uma delegacia da
mulher ou do idoso seria uma aberração, uma forma de inferiorização da mu-
lher. A crítica a essa postura considera que nela o modelo masculino é elevado
a norma universal, em face da qual a igualdade é apregoada e a qual as mulhe-
res devem se conformar.

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O feminismo culturalista teria como referência especialmente a obra de


Carol Gilligan (1982), que estabelece diferenças fundamentais entre homens e
mulheres, daí a ideia de uma voz diferente, título do livro que ficou famoso,
no que também é conhecido como o feminismo relacional. O pressuposto
desta concepção é que o processo de desenvolvimento moral é distinto para
homens e mulheres. Os homens ao se depararem com conflitos morais fazem
referência às ideias de justiça e formulam raciocínios lógicos, baseados em di-
reitos individuais abstratos; as mulheres, no entanto, são mais inclinadas a uma
ética do cuidado, estão preocupadas com a preservação dos relacionamentos
e preferem soluções contextuais e personalizadas. Dado esse processo de de-
senvolvimento diferencial, as mulheres teriam maior capacidade de solucionar
problema, posto que a ênfase é por elas colocada no cuidado do outro. A
abertura, a simpatia, a paciência e o amor marcariam sua atitude na tomada de
decisões. Trata-se assim da afirmação e defesa de uma espécie de contracultura
centrada na realidade das mulheres. Do ponto de vista jurídico a igualdade de
tratamento dessas duas realidades diversas só seria possível por meio de medi-
das diferenciadas, por isso propõe-se uma aplicação assimétrica do princípio
de igualdade, centrada na condição feminina, diferenciada da masculina. O
famoso caso da loja Sears e as veleidades do processo contra ela desencadeado
por uma associação feminista é muito bem tratado no livro de Antônio Flávio
Pierucci, que tem o título sugestivo de “As Ciladas da Diferença”.4
O feminismo radical considera que tanto o feminismo liberal como o
culturalista acabam por aceitar de modo acrítico a supremacia masculina na
medida em que reafirmam o status quo jurídico e se limitam a propor medidas
de combate à discriminação, resultante da dominação masculina. O feminis-
mo radical para combater juridicamente o machismo volta a sua atenção para
manifestações concretas dessa dominação como o estupro, o aborto, os direi-
tos de gays e lésbicas, o tráfico de mulheres e o assédio sexual e salientam as
inconsistências da neutralidade associada às estratégias antidiferenciadoras e a

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situação de desvantagens das mulheres decorrentes dessa dominação masculi-


na. Propõe então a revisão de diversos institutos jurídicos como a centralidade
das provas e testemunhos.
Por fim, o feminismo pós-moderno faz a crítica radical às posturas essen-
cialistas e universalistas presentes nos demais feminismos. Do ponto de vista
pós-moderno, não há uma experiência feminina monolítica. É preciso salientar
a diversidade social, econômica, racial, étnica, religiosa e etária. A utilização do
direito seria pragmática, sem se comprometer com a formulação de uma teoria
jurídica sistematizadora dos diversos institutos jurídicos. A preocupação é antes
com a construção de respostas à discriminação sexual a partir das desvantagens
estruturais experimentadas pelas mulheres em situações e posições distintas.
Essas quatro vertentes, que poderiam ser desdobradas em outros modelos,
são suficientes para mostrar que as teorias feministas constituem um campo de
debates acirrados por questões candentes, em que a discussão teórica é acom-
panhada de propostas de práticas sociais que podem ter eficácia promovendo
mudanças que impõem novas caracterizações das próprias instituições e agên-
cias do sistema de justiça estudadas.
O meu primeiro trabalho com as delegacias da mulher foi em 1986. Em
1999, quando fui novamente pesquisar essas delegacias a situação já era ou-
tra em consequência da lei 9.099, que levou à criação dos Juizados Especiais
Criminais, mudando o quadro da atuação e da dinâmica das delegacias nos
atendimentos. Agora com a Lei Maria da Penha a situação já é diferente.5 Essas
mudanças foram resultados de reivindicações dos movimentos feministas que
estavam afinados com as conclusões das etnografias feitas nas diferentes ins-
tâncias do sistema: nas delegacias de polícia, no Tribunal do Júri, nos Juizados
Especiais Criminais.
É preciso enfatizar essa retroalimentação energizante entre pesquisa, mo-
vimento social e reivindicações políticas específicas que dá novos formatos
à pesquisa etnográfica. A velocidade das mudanças exige que se reveja não

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apenas a noção de cultura e de saber local, mas também o próprio caráter do


trabalho de campo, a centralidade do presente etnográfico e o fazer antro-
pológico como a interpretação do ponto de vista nativo, pois se trata de um
mundo em ebulição.
A necessidade de energizar a antropologia foi um dos temas abordados por
Laura Nader, no artigo Up the Anthropologist - Perspectives Gained from Stu-
dying Up, publicado em 1969, numa coletânea organizada por Dell Hymes,
intitulada Reinventing Anthropology, portanto, muito antes do conjunto de
propostas de revisão do fazer antropológico caracterizado como o pós-moder-
nismo na antropologia. Nesse artigo, a autora faz um apelo aos antropólogos
norte-americanos para que eles se voltem ao estudo de sua própria socieda-
de, especialmente para a compreensão de como o poder e a responsabilidade
são exercidos nos EUA.6 Três razões são alegadas pela autora para justificar a
importância desse novo programa de pesquisas: a antropologia estaria “cien-
tificamente adequada” para tal empreendimento; tratar-se-ia de um empre-
endimento que tem “relevância democrática”; e, o programa teria um “efeito
energizador” da disciplina.
A antropologia, de acordo com Nader, estaria especialmente qualificada
para refletir sobre a forma como poder e responsabilidade são exercidos. Suas
pesquisas sempre tiveram que ser ecléticas nos métodos utilizados, e sua abor-
dagem do que está envolvido na compreensão da humanidade é ampla, posto
que os antropólogos se especializaram na compreensão de culturas em contex-
tos transculturais. Os antropólogos aprenderam, ainda, a encontrar e analisar
redes de poder, descrever costumes, valores e práticas sociais que não estão
registrados em linguagem escrita. A leitura da quantidade avassaladora de ma-
terial escrito que instituições poderosas produzem ajuda pouco na compreen-
são de como decisões são tomadas nos Tribunais, no Congresso ou em uma
empresa, de como determinadas políticas são implementadas ou temas para
pesquisa são definidos como prioritários e recebem financiamentos específi-

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cos. Para entender essas questões é preciso se debruçar sobre redes de relações,
valores e práticas que dificilmente são identificadas no papel. Exigem antes
o treino e a familiaridade com que o antropólogo trabalha com o princípio
de reciprocidade e com a dimensão cultural quando analisa práticas que não
podem ser explicadas como frutos de cálculos racionais.
A “relevância democrática” de tal programa de pesquisas, de acordo ainda
com essa autora, estaria no fato de que o povo americano, e isso é também
válido para nós, não conhece suas próprias leis e não sabe como funcionam
as organizações burocráticas que usa. Não podemos deixar que o aprendizado
de nossos direitos fique inteiramente a cargo da mídia. A antropologia está
bem equipada metodologicamente para descrever um sistema que se conhece
vagamente e que tem um peso fundamental no direcionamento da nossa vida.
Com a expressão “efeito energizador”, Nader procurava chamar a atenção
para a importância da indignação como um motivo na definição dos temas
da pesquisa antropológica. Lembrava que desde os primeiros estudos dos sis-
temas de parentesco e organização social – como em Morgan, por exemplo,
que foi o primeiro presidente da Associação Americana de Antropologia –
não esteve ausente a indignação com a forma pela qual os índios americanos
eram tratados e expulsos de seus territórios. Entretanto, os jovens estudantes
de antropologia não se voltam para pesquisas que provocam seus sentimentos
de indignação. Sabemos que existem problemas fundamentais que afetam o
futuro do Homo sapiens, mas ainda estamos presos a uma agenda de pesquisas
que depois dos anos 1950 deixou de provocar esse tipo de emoção.
No Brasil estamos preocupados em analisar o nosso próprio país e por isso
é mais fácil aceitar esse tipo de desafio à pesquisa antropológica. O que acho
mais importante e muito interessante é que esse efeito energizador, que cer-
tamente está presente na antropologia feminista, precisa ser mobilizado pela
antropologia do direito, renovando questões e abordagens capazes de revigorar
essa “disciplina centauro”, na expressão de Geertz.7

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Passo então a apresentar algumas das questões e dilemas que têm mobiliza-
do os estudos que venho empreendendo.

Universalidade, Particularidade e Judicialização das Relações Sociais

Falar em sistema de justiça é tratar de conjuntos muito distintos de insti-


tuições e agências como a polícia, o ministério público, os tribunais. Os signi-
ficados e os usos de cada uma delas pelos diferentes segmentos populacionais
são muito variados. A polícia, por exemplo, é certamente a instância exposta
com maior frequência pela mídia, e suas delegacias, os distritos policiais, são
equipamentos amplamente utilizados pela população mais pobre para co-
nhecer a lei e encontrar um respaldo legal para a resolução de conflitos. Essa
visibilidade da polícia contrasta, por um lado, com a visão de que seus agentes
agem de maneira arbitrária, são ineficazes no combate à violência e afeitos à
corrupção e, por outro, com a posição de subalternidade que a instituição
ocupa no sistema de justiça criminal, na medida em que a autonomia das prá-
ticas policiais é limitada não apenas pelo judiciário e pelo ministério público,
mas também pelas próprias autoridades policiais por meio de suas corregedo-
rias. É nesse contexto, dos dilemas enfrentados pela instituição policial, que
as práticas nela desenvolvidas, seus significados e usos devem ser entendidos.
Da mesma forma, seria apressado identificar os avanços na justiça do trabalho
com os procedimentos próprios da justiça cível ou criminal. Em suma, há
uma diversidade muito grande dentro disso que tratamos como um sistema e
áreas muito mais abertas à mudança do que outras em que as coisas parecem
ter um caráter imutável. De todo modo, vale a pena lembrar a centralidade da
crítica a esse sistema empreendida pelo feminismo brasileiro, essa crítica não
ganhou tal proeminência em outros contextos nacionais.
As delegacias especiais de polícia colocam de imediato a questão da uni-
versalidade e da particularidade em relação à imparcialidade. Para alguns

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autores há uma contradição insolúvel entre as reivindicações de universali-


dade e a luta pelos direitos das minorias. Contudo, é importante reconhecer
que essas reivindicações são partes de um conjunto de ações levadas a cabo
por organizações governamentais e da sociedade civil empenhadas no com-
bate à forma específica pelas qual a violência incide em grupos discrimina-
dos. Tendo suas práticas voltadas para segmentos populacionais específicos,
o pressuposto que orienta a ação dessas organizações é que a universalidade
dos direitos só pode ser conquistada se a luta pela democratização da socie-
dade contemplar a particularidade das formas de opressão que caracterizam
as experiências de cada um dos diferentes grupos desprivilegiados. Esse mo-
vimento leva à criação de tipos diversos de delegacias de polícia que terão
impactos distintos, a exemplo das delegacias da criança e do adolescente,
do idoso e as de crimes de racismo. O dilema dos agentes em cada uma
dessas instâncias é combinar a ética policial com a defesa dos interesses das
minorias atendidas. Esse desafio cria arenas de conflitos éticos, que dificil-
mente poderiam ser solucionados com a defesa de uma perspectiva típica
do feminismo liberal.
Além disso, o modo como se dão esses embates traz novas dimensões para
a ideia de saber local, num mundo em que organizações internacionais são
ativas na garantia de direitos das minorias por elas contempladas e exigem
que os governos nacionais cumpram esses direitos claramente expressos em
planos de ação. Em julho de 2009, no Congresso da Associação Internacional
de Gerontologia e Geriatria – que reúne médicos, paramédicos e cientistas so-
ciais que trabalham e pesquisam questões relacionadas ao envelhecimento – a
violência contra o idoso foi um dos temas centrais abordados nas pesquisas
apresentadas. O interesse pelo tema era claramente um resultado da Assem-
bleia das Nações Unidas realizada em Madrid em 2002, que transformou
a violência contra o idoso em uma questão de direitos humanos. Planos de
ação a serem adotados em diferentes países foram aprovados, bem como re-

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cursos foram alocados para pesquisas, cujos resultados são apresentados em


eventos nacionais e internacionais.
As convenções e organismos internacionais contam com antropólogos em
seus quadros de profissionais e os textos produzidos, depois de todas as reco-
mendações aos governos, reiteram a afirmação de que as especificidades da
cultura local devem ser respeitadas. O protagonismo dos movimentos sociais e
das organizações internacionais exige a transformação da violência em crime,
posto que é só a partir da criminalização e da tipificação das agressões contra
idosos que a justiça pode entrar em ação e os acordos e os planos de ação inter-
nacionais podem ser implementados e avaliados.
É um movimento muito semelhante ao que levou a transformação da
violência contra a mulher em direitos humanos. No caso da velhice, a vio-
lência – tanto nos projetos de pesquisa como nas propostas de ação – passou
a compreender cinco tipos de crimes: negligência, abuso financeiro, físico,
psicológico, sexual.
Os conflitos entre particularidade e universalidade oferecem também um
caráter específico ao que tem sido chamado de “judicialização das relações so-
ciais”. Essa expressão busca contemplar a crescente invasão do direito na orga-
nização da vida social. Nas sociedades ocidentais contemporâneas, essa invasão
do direito não se limita à esfera propriamente política, mas tem alcançado a re-
gulação da sociabilidade e das práticas sociais em esferas tidas, tradicionalmente,
como de natureza estritamente privada, como são os casos das relações de gê-
nero e o tratamento dado às crianças pelos pais ou aos pais pelos filhos adultos.
Os novos objetos sobre os quais se debruça o Poder Judiciário compõem
uma imagem das sociedades ocidentais contemporâneas como cada vez mais
enredadas com a semântica jurídica, com seus procedimentos e com suas
instituições.
Alguns analistas consideram essa expansão do direito e de suas instituições
ameaçadora da cidadania e dissolvente da cultura cívica, na medida em que

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tende a substituir o ideal de uma democracia de cidadãos ativos por um or-


denamento de juristas que, arrogando-se à condição de depositários da ideia
do justo, acabam por usurpar a soberania popular.8 As delegacias especiais de
polícia voltadas para a defesa de minorias são, no entanto, fruto de reivindica-
ções de movimentos sociais e, por isso, poderiam ser vistas como expressão de
um movimento inverso de politização da justiça. Indicariam antes um avanço
da agenda igualitária, porque expressam uma intervenção da esfera política
capaz de traduzir em direitos os interesses de grupos sujeitos ao estatuto da de-
pendência pessoal. Por isso mesmo, a criação das delegacias especiais cria uma
expectativa de que essas instituições, para além da sua atividade estritamente
policial, abririam também um espaço pedagógico para o exercício do que são
consideradas virtudes cívicas.
Dizer que as delegacias especiais são formas de politizar a justiça não quer
dizer que elas não correm o risco de se transformar em instrumento de judicia-
lização de relações sociais.
O funcionamento dessas instituições e os dilemas vividos por seus fun-
cionários no desempenho de suas funções têm um papel ativo na construção
de uma nova categoria de crimes – a “violência doméstica” –, que dá novos
conteúdos à maneira como os dados sobre a violência urbana são tratados
no contexto brasileiro. Essa nova categoria transforma concepções da crimi-
nologia, na medida em que vítimas e acusados passam a ser tratados como
uma espécie de cidadãos falhos, porque são incapazes de exercer direitos civis
que já foram conquistados. As causas envolvidas na produção dos crimes são
vistas como de caráter moral ou resultados da incapacidade dos membros da
família em assumir os diferentes papéis que devem ser desempenhados em
cada uma das etapas do ciclo da vida familiar. A família passa a ser vista como
um aliado fundamental das políticas voltadas para um segmento populacio-
nal que se considera formado por cidadãos malogrados ou potencialmente
passíveis de malogro.

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Estamos, assim, muito distantes da família patriarcal tal como esse mo-
delo foi caracterizado no estudo sobre a família brasileira.9 Não se trata
de um mundo privado impenetrável às instituições estatais e ao sistema
de justiça. Estamos também muito distantes da família como o reino da
proteção e da afetividade, o refúgio num mundo sem coração. A família é
antes percebida pelos agentes das instituições analisadas como uma instân-
cia geradora de violência em que os deveres de cada um de seus membros,
ao longo do ciclo da vida, precisam ser claramente definidos, cabendo às
instituições da justiça criar mecanismos capazes de reforçar e estimular cada
um deles no desempenho de seus respectivos papéis.
Uma ótica distinta da que caracterizava o papel da família em agendas
anteriores está em jogo. No pós-guerra, Simon Biggs considerava que as
ideologias e práticas do Welfare State tinham um conteúdo paternalista que
impedia o questionamento da integridade da família como instância pri-
vilegiada para arcar com o cuidado de seus membros. Esse paternalismo é
abalado nos anos 1970 pelos movimentos de denúncia da violência contra
a criança e a mulher. Na agenda atual, os deveres e as obrigações da família
são definidos, e consta da nossa Constituição o dever de uma geração am-
parar as gerações mais velhas e as mais novas.10
O que fica evidente é que instituições criadas para garantir direitos in-
dividuais, como são as delegacias da mulher, paradoxalmente, podem, na
prática, redefinir seus objetivos como sendo apaziguar os conflitos na famí-
lia. Enfim, este contexto pós-direitos sociais e as novas formas de opressão
que a partir dele são geradas merecem uma análise mais detida.
Os antropólogos já mostraram que a noção ocidental de poder é al-
tamente restritiva quando se têm em vista outras sociedades. Contudo, é
preciso também reconhecer a fragilidade dos paradigmas que têm orienta-
do a nossa percepção das formas de poder e controle que caracterizam as
sociedades ocidentais contemporâneas. Expressões como “sociedades pós-

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disciplinares”, “panóptico eletrônico”, “sociedade de risco” ou “justiça atua-


rial” são usadas para dar conta das mudanças que caracterizam as sociedades
em que vivemos, em oposição aos autores que consideram que a mudança
não foi assim tão radical, embora tenha havido uma complexificação das
formas de controle.
O que certamente merece ser avaliado com cuidado, como sugere Nikolas
Rose (2000), é o modo como o discurso contemporâneo sobre o controle do
crime combina formas aparentemente incompatíveis na caracterização dos
problemas abordados e nas formas de solucioná-los. Propostas enfatizando
a necessidade dos indivíduos e das comunidades se tornarem mais respon-
sáveis pela sua própria segurança coexistem com argumentos a respeito da
tolerância zero. Reivindicações de pena de morte convivem com propostas
que focalizam a relação entre agressor e vítima. O prisioneiro deve ser incapa-
citado ou deve ser ensinado de modo a aprender as habilidades necessárias à
convivência social? O interesse pelas formas comunitárias de controle ganha
cada vez mais importância com a proposta de multas e serviços comunitários
e, ao mesmo tempo, há um crescimento da população encarcerada.
O aumento das formas de controle parece vir acompanhado do interesse
dos Estados de abrirem mão de certas áreas que caracterizam o biopoder
num convite ao cidadão, às organizações não governamentais e à família
para assumir uma parceria e redistribuir obrigações.
Oferecer elementos capazes de dar conta do caráter dessas mudanças e
de como elas afetam as formas do exercício do poder e a vida de cada um de
nós é fazer um convite irrecusável para uma antropologia do direito. Uma
antropologia sintonizada com aquela que nós aprendemos fazer analisando
a nossa própria sociedade; uma antropologia que jamais dispensou a inter-
locução intensa com a Sociologia e a Ciência Política; uma antropologia
que, certamente, não pode se fechar aos debates nas outras antropologias,
como a antropologia política ou a antropologia feminista.

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Notas
1 Cf. Debert, G. G. e Gregori, M. F., 2002.
2 Lei n. 12015 de 12/08/2009.
3 Cf Debert, G. G. e Oliveira, A. M., 2007.
4 Cf. Pierucci, 2000. Ver também a resenha de Maria Filomena Gregori (2000).
5 Questões como mudança social em relações de poder e dominação eram o tema central des-
sas pesquisas. Como as leis e os procedimentos jurídicos privilegiam determinados grupos em
detrimento de outros? Em que medida os grupos mais fracos podem aumentar seus recursos por
meio da legislação? Como entender as mudanças legais? Em que medida os diferenciais de poder
explicam mudanças na legislação ou a persistência de ideias e procedimentos legais? Mais do que
entender como as sociedades resolvem pacificamente disputas, o interesse era ver como indivíduos
e grupos usam recursos legais para obter determinados fins. Nesse sentido, as pesquisas realizadas
estavam afinadas com os estudos antropológicos, em que mais do que focalizar a lei enfatizam os
processos. Para resultados da pesquisa ver Debert, G. G. & Beraldo de Oliveira, M. (2007). Os
modelos conciliatórios de solução de conflitos e a violência doméstica. Cadernos Pagu, 29, pp.
305-338 e também Debert, G. G. e Gregori, M. F. Violência e Gênero: novas propostas, velhos
dilemas, in Revista Brasileira de Ciências Sociais vol. 23, nº 66, fevereiro de 2008.
6 Sobre o impacto do artigo de Nader nos estudos de cultura e política, ver Debert, 1997.
7 Falar em efeito energizador não é politizar temas e questões e desprezar a dimensão analítica
do trabalho antropológico, é antes não perder de vista a relação da justiça com um sistema
maior, o caráter das mudanças que têm lugar, a dimensão das relações de poder e dos conflitos
envolvidos, como os mais fracos ou os mais fortes usam a lei em função dos seus interesses, e
como as mudanças legais podem redefinir relações de força.
8 Para um balanço deste debate ver Werneck Vianna et al., 1999 e sobre a judicialização dos
conflitos conjugais ver Rifiotis, 2003.
9 Sobre o tema ver Corrêa, op. cit. e Lins de Barros, 1987.
10 Ver especialmente na Constituição de 1988 os artigos 229 e 230 do Título VIII “Da Ordem
Social” em seu Capítulo VII “Da Família da Criança do Adolescente e do Idoso”.
Art. 229. “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores
têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.”
Art. 230. “A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando
sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e garantindo-lhes o direito à vida.”

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ABSTRACT: The article discusses the challenges faced by an anthropology of law that
focuses on western modern societies and on the analysis of the justice system in its
relation to issues such as violence against women and violence against the elderly. Buil-
ding on the debates within the legal-feminist theories, the following subjects are ex-
plored: (1) the relationship between universalism and different forms of particularism,
(2) the opposition between judicialization of social relations and the politicization of
justice, (3) new forms of control that characterize contemporary societies. The author
points out the limitations and fallacies of the concept of culture in the understanding
of contemporary legal and political dilemmas.

KEYWORDS: Violence against women, violence against the elderly, legal feminist
theories, judicialization of social relations, justice system.

Recebido em fevereiro de 2010. Aceito em abril de 2010.

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Direito às origens: segredo e desigualdade no
controle de informações sobre a identidade pessoal

Claudia Fonseca

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

RESUMO: Neste artigo, analiso a interação entre adotados adultos em busca de


suas origens biológicas e as figuras de autoridade que detêm informações sobre
essas origens. Retomo brevemente a história do segredo envolvido na adoção,
para desembocar na nova Lei de Adoção brasileira, que garante aos adotados
“acesso irrestrito” aos seus dossiês. Trago a narrativa de adotados contatados por
meio de uma associação (em Porto Alegre, Brasil) sobre suas experiências frustra-
das de busca, assim como de funcionários do Juizado local. Partindo do pressu-
posto de que a busca das origens encerra muitos dos problemas encontrados nas
discussões sobre outros direitos fundamentais, demonstro ao longo do artigo que
os direitos são politicamente construídos, que envolvem sujeitos vivendo num
mundo relacional, e que sua implementação passa pela microfísica dos espaços
administrativos.

PALAVRAS-CHAVE: Antropologia do Direito, direitos da criança, Lei de Ado-


ção, administração da justiça.

Nesse artigo, lançamos mão de uma análise antropológica para examinar


a interação entre pessoas adotadas em busca de suas origens de nascimen-
to e figuras de autoridade ou instituições que possuam informações sobre
essas origens. Partimos do pressuposto de que essa “busca de origens”
encerra muitos dos problemas encontrados na implementação de outros

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direitos fundamentais. Em primeiro lugar, consideramos que transformar


alguém (nesse caso, a pessoa adotada) em “sujeito de direitos”, longe de
ser um processo simples, depende de uma negociação entre atores de sta-
tus desigual, interagindo em um campo de forças cambiantes. A análise de
oscilações ao longo das últimas décadas nos discursos científicos e técni-
cos sobre a adoção reforça esta convicção. Em segundo lugar, ao analisar a
justiça “administrada” a determinados adotados quando iniciam sua bus-
ca, observamos que as consequências dos dispositivos legais dependem
menos da lei formal do que dos mecanismos procedimentais que regem
o aparato judicial no seu dia a dia. Finalmente, veremos como a busca de
origens realça o aspecto relacional dos direitos, revelando uma situação
em que é impossível “garantir os direitos” a uma determinada categoria
de ator sem afetar os direitos de outras.
Para tratar desse tema, tomo como ponto de partida a nova Lei Nacio-
nal de Adoção sancionada pelo Presidente Lula em 3 de agosto de 2009.
É o exemplo de uma lei estatal que regula elementos íntimos da vida
familiar. Entre suas várias cláusulas que dispõem sobre a colocação de
crianças (em famílias substitutas etc.), esclarece quais as relações permiti-
das entre uma criança adotada, a família que a engendrou e a família que
a criou. Consideremos em particular a cláusula sobre o direito do adotado
a ter “acesso irrestrito” à informação sobre suas origens:

Art. 48. O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de
obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais
incidentes, após completar 18 (dezoito) anos.

Parágrafo único. O acesso ao processo de adoção poderá ser também deferido


ao adotado menor de 18 (dezoito) anos, a seu pedido, assegurada orientação e
assistência jurídica e psicológica.

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Coerente com a linha de pesquisa que privilegia “práticas de justiça”


(Moore, 1978; Ewick e Silbey, 1998; Schuch, 2009), viso compreender
a experiência de pessoas na sua convivência cotidiana com a lei. Cheguei
a me interessar especificamente pela “busca de origens” no decorrer de
uma pesquisa com porto-alegrenses que frequentavam a Associação Fi-
lhos Adotivos do Brasil durante o primeiro ano de sua existência.1 As
reuniões, anunciadas pela mídia local, assim como pelo site na internet,
atraíam, antes de tudo, pessoas que queriam informação e eventualmente
contato com suas famílias de nascimento (ver Fonseca, 2009). Desde a
primeira reunião à qual eu e outros membros da equipe assistimos,2 fiquei
comovida pela dramaticidade dos relatos, quase sempre formulados em
torno da seguinte narrativa. Os pais adotivos “esconderam” do filho (ou
deixaram de mencionar) o fato de que ele era adotado. Já adolescente ou
jovem adulto, esse filho recebeu um choque enorme quando alguém lhe
lançou em forma de ofensa que ele era “apenas” um filho adotado. Os pais
adotivos, mesmo confrontados com a verdade, se furtavam a qualquer
discussão e muitos negavam (literalmente até a morte) o próprio fato
da adoção. Não é por acaso que a maioria das pessoas que frequentavam
a associação nessa época tinha mais de 40 anos. Podemos supor que de
tanto temer alienar seus pais adotivos, esperaram até estes morrerem para
começar a busca por informações sobre suas famílias de origem.
Espelhando o sucesso de organizações semelhantes nos EUA (Carp,
2004; Volkman, 2009), o site da Associação recebeu, nos primeiros meses
depois de sua criação, centenas de cartas de adotados que, na esperança de
localizar parentes, relatavam dados de seu “abandono”. Como explicar um
retorno tão entusiasta? Há algo no contexto atual que atiça o desejo do
adotado de conhecer “suas origens”? Sem dúvida, as inquietações da era
genômica constam como relevantes. A biomedicina enfatiza a importância
dos genes, sublinhando a ameaça de doenças hereditárias e a “utilidade”

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de parentes consanguíneos para transplantes e outros procedimentos vi-


tais para a saúde do indivíduo. É praticamente impossível escapar dessa
“biologização” da vida social que permeia o cenário contemporâneo (Luna,
2005). As projeções (muitas vezes exageradas pela imprensa) de descobertas
na área da biotecnologia têm alimentado uma antiga noção de que, no
que diz respeito ao comportamento humano, a cultura e a vida social são
mera “cobertura” no bolo da biologia (Gibson, 2008). Nesse clima, temos
a impressão de que o que realmente importa é de onde viemos em termos
genéticos. Não é, portanto, nada surpreendente que o número de adotados
em busca de suas “verdadeiras” origens esteja aumentando.
Entretanto, apesar de importante, a ênfase na influência da biotecno-
logia arrisca deixar na sombra outros aspectos igualmente importantes da
“busca de origens” – por exemplo, o papel da lei (entre outros instrumen-
tos da ordem pública) na construção e no direcionamento dos sentimen-
tos pertinentes à esfera familiar. Para chegar a esses cantos mal-ilumina-
dos do tema analisado, aciono uma variedade de técnicas de investigação.
Desde os anos 1980, realizo pesquisas etnográficas entre famílias urbanas
de baixa renda. Envolvida há tempo na questão dos direitos da criança,
procuro entender como o Estado – na forma de leis, políticas públicas e
instituições – intervém para promover o bem-estar social em situações
de grande adversidade (Fonseca, 1995, 2006a). Nos últimos anos, tenho
realizado pesquisas também em instâncias institucionais – em abrigos,
Juizados, ONGs, entre profissionais de direito, psicologia e serviço social
– para aprofundar minha compreensão da lógica embutida nas orienta-
ções normativas formuladas por legisladores e administradores em nome
dos direitos da criança (Fonseca & Schuch, 2009).
Entre 2007 e 2009, ao focar enfim a “busca de origens”, realizei entre-
vistas primeiro entre membros da Associação Filhos Adotivos do Brasil e,
depois, entre profissionais do Juizado de Infância e Juventude em Porto

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Alegre. Coerente com a estratégia da etnografia “multissituada” (Marcus,


1998, p. 85), ao me deslocar da Associação para o Juizado, não estava
simplesmente acrescentando uma nova perspectiva (dos operadores de
justiça) para “completar” a dos adotados. Com cada nova etapa da pes-
quisa, impunha-se uma reconfiguração do próprio objeto de pesquisa, a
progressiva diluição de oposições binárias (“nós” versus “eles”, “usuários”
versus “profissionais”) e certo questionamento das “narrativas de resistên-
cia” que ouvíramos. Em outras palavras, enquanto conversas com os ado-
tados me tinham “preparado” para as observações que iria fazer no juiza-
do, o contato direto com profissionais do juizado suscitou novas maneiras
de interpretar as narrativas dos adotados.
Não entrevistei, durante essa última etapa de pesquisa, o terceiro
elemento da tríade adotiva – os pais de nascimento de crianças adota-
das. Porém, minhas primeiras experiências etnográficas – que incluíram
essas vozes – deixaram sua marca, pois, como deve ficar evidente no
decorrer desse artigo, não consigo pensar a criança como ente isolado
de seu contexto comunitário e familiar. Parto da premissa de que uma
discussão dos direitos da criança é inseparável de uma reflexão sobre os
direitos das pessoas nas redes sociais que as engendraram. Coerentes
com essa linha de análise, as seguintes reflexões põem o acento nas prá-
ticas e nas relações sociais que envolvem a implementação do que hoje
é considerado um direito básico – o direito do indivíduo a “conhecer
suas origens”.

Brasil: A regulação da circulação de crianças desemboca na adoção plena

No Brasil, como na maioria de países ocidentais, é possível falar de


um primeiro momento histórico quando o “segredo das origens” do
adotado estava inteiramente nas mãos dos pais adotivos, justamente por-

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que as adoções, quase todas informais, não passavam pelas autoridades


públicas. A partir dos anos 1950, legisladores no Congresso Brasileiro
passaram a discutir a necessidade de exercer maior controle sobre a cir-
culação de crianças, e novas leis se seguiram pouco depois (Siqueira,
2004). Entretanto, as pessoas que eu encontrava nas reuniões da As-
sociação Filhos Adotivos do Brasil – nascidas nas décadas de 60 ou 70
– desconheciam essas leis. A maioria tinha sido adotada sem que seu
processo tivesse passado por qualquer supervisão estatal. Naquela antiga
tradição de “adoção à brasileira”, seus pais adotivos tinham cometido o
crime de “falsidade ideológica”, registrando a criança como se tivesse
nascido deles (ver Abreu, 2002). Não existia uma certidão de nascimen-
to original com o nome da mãe de nascimento. Qualquer rastro sobre
a existência desta mãe tinha que ser arrancado da memória dos pais
adotivos ou do círculo de seus amigos íntimos.
A partir dos anos 1980, uma série de acontecimentos transformou a
aparente indiferença estatal diante da questão da adoção. Um aparato bu-
rocrático mais abrangente e a especialização de serviços de atendimento à
criança e ao adolescente foram elementos importantes. A adoção interna-
cional também teve certa influência. Estava em crescimento ao longo dos
anos 1980, colocando o Brasil como um dos maiores exportadores mun-
diais de adotados. E, como em outros países exportadores (a Índia passava
pela mesma fase), a “hemorragia” desses pequenos cidadãos passou a ser
vista como um “atentado à honra nacional”. A opinião pública conclama-
va os legisladores a tomar medidas para estancar “a sangria” (Abreu, 2002;
Fonseca, 2006b). Não é por acaso que, ao final dessa década, o Estatuto
da Criança e do Adolescente (1990) tenha dedicado considerável espaço
à regulamentação da adoção internacional. Mas, no processo, também
emergiu uma nova normatização da adoção nacional. A adoção simples
(em que a criança adiciona sua filiação adotiva à biológica anterior) foi

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abolida e a adoção plena, calcada na ruptura total do adotado com sua


família de origem, foi estabelecida como única possibilidade. No Art. 41
do ECA3 lê-se:

A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos


e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com
pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais.4 (negrito nosso)

Para nos distanciar de análises que tendem a naturalizar a evolução le-


gislativa que desemboca numa forma particular de adoção (neste caso, a
adoção plena), cabe lembrar que, em outros lugares, houve considerável
controvérsia sobre este tema. Pensemos, por exemplo, nos debates que
acompanharam a Convenção de Haia sobre a Proteção de Crianças e a
Cooperação para a Adoção Internacional (1993) – um documento que
previne contra qualquer comunicação entre as famílias (de nascimento e
adotiva), tendendo a endossar o princípio da “ruptura limpa” da adoção
plena. Em 2000, um relatório comissionado para avaliar o andamento da
Convenção chamou atenção para o fato de que certos países (em geral os
países “fornecedores”) praticam apenas a adoção simples enquanto a maio-
ria de países do Norte exige uma adoção plena para as crianças adotadas
internacionalmente que entram no país. Muitos dos delegados de países
“fornecedores” contestaram a cláusula da Convenção que recomenda a con-
versão automática de adoção simples em plena. Insistiam que: “Às vezes, a
adoção simples é realizada não porque não há outras alternativas, e, sim,
porque os pais de nascimento não querem cortar todos os laços legais com
seu filho” (Report, 2000, Art. 78). Haveria a necessidade de proceder com
muita cautela pois, em certos casos, a adoção plena representaria uma espé-
cie de desapropriação dos pais de nascimento, dando à adoção efeitos que
não foram previstos no termo de consentimento original.

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Alguns analistas comentaram a ironia dos países do Norte defenderem


a “ruptura limpa” na arena internacional enquanto, em casa, praticam
outra política. Referem-se ao fato de que – no hemisfério norte – alguns
países modificaram suas políticas de adoção nacional para admitir mais
contato entre as famílias (de nascimento e adotiva) e acesso facilitado às
informações sobre o processo adotivo. Conforme uma antropóloga bri-
tânica, F. Bowie: “Enquanto, no Ocidente, a adoção está se afastando
progressivamente da noção de arquivos fechados e uma ruptura total com
o passado, no mercado internacional a tendência continua sendo a de [...]
cortar todos os laços entre a criança e sua família (e país) natal.” (Bowie
2004, p. 140, tradução da autora).
No Brasil, ao que tudo indica, não houve reverberação desses debates.
E, ao estabelecer a adoção plena – conforme a qual elimina-se a possibi-
lidade de “qualquer vínculo” entre a criança e seu universo pré-adotivo
– como única fórmula adotiva, o ECA bateu o martelo sobre esse assunto.

Encontros frustrantes com as burocracias institucionais

A Convenção dos Direitos da Criança das Nações Unidas (1989) –


outro documento de referência internacional (anterior à Convenção de
Haia) – estabelece claramente a responsabilidade do Estado em preservar
a identidade da criança, adotada ou não:

Art. 8
1. Os Estados Partes comprometem-se a respeitar o direito da criança
e a preservar a sua identidade, incluindo a nacionalidade, o nome e as
relações familiares, nos termos da lei, sem ingerência ilegal.
2. No caso de uma criança ser ilegalmente privada de todos os elementos
constitutivos da sua identidade ou de alguns deles, os Estados Partes de-

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vem assegurar-lhe assistência e proteção adequadas, de forma que a sua


identidade seja restabelecida o mais rapidamente possível.

Cabe, entretanto, perguntar como essas orientações são implementadas


pois, como nos ensinou Geertz (1983), entre a linguagem da “imagina-
ção” e a política da decisão, há muito espaço para negociação. Rejeitan-
do o mito de “jurisprudência automaticamente transferível”, analistas da
área jurídica sublinham a necessidade de levar em consideração o escopo
enorme de possibilidades para a implementação efetiva das normas de
direitos humanos em diferentes países (Alston, 1994). Sugerem que a
própria “indeterminação” das Convenções internacionais permite que os
seus princípios básicos passem por “convenções com ‘c’ minúsculo”, lo-
calmente forjadas e baseadas em circunstâncias históricas específicas (Pa-
rker, 1994). Entretanto, deve-se reconhecer que há lugar, nesses filtros
locais, para resultados controvertidos.
Citemos como exemplo o caso de Pascale Odièvre, nascida na França
em 1965 num processo conhecido como accouchement sous X – um tipo
de parto anônimo em que a lei garante total anonimato à parturiente.
Já com mais de 30 anos, Odièvre processou o Estado francês, exigindo
a divulgação das informações que possuía sobre suas origens biológicas.
Os tribunais franceses tentaram satisfazer a mulher com informações ge-
rais – quantos irmãos ela tinha, se seus pais viviam juntos quando nasceu
etc. – mas ela queria nomes. Quando os tribunais nacionais lhe nega-
ram essa informação, Mme. Odièvre invocou a Convenção dos Direitos
da Criança, levando seu pleito à Corte Europeia de Direitos Humanos.
Passaram-se cinco anos de debate. Disputavam-se pontos como a auto-
nomia da mãe de nascimento, seu direito à privacidade, e a eficácia do
procedimento sous x na prevenção do aborto e infanticídio (Lefaucheur,
2004). Finalmente, em 2003, a Corte deliberou contra a demanda de

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Odiévre. Entre outros motivos, julgou que a Convenção dos Direitos da


Criança não se aplicava nesse caso, pois a litigante não era mais criança
(Lefaucheur, 2004).5
As narrativas dos filhos adotivos que entrevistei em Porto Alegre apon-
tam ainda para outro exemplo de como as orientações quanto à preservação
da identidade da criança “incluindo, como reza o Art. 8 da CDC, as rela-
ções familiares” têm sido traduzidas num contexto local – dessa vez, no Bra-
sil. Conforme o ECA, as informações arquivadas sobre a vida pré-adotiva
da criança podem ser reveladas “a critério da autoridade judiciária... [para] a
salvaguarda de direitos” (Art. 47, § 4º). Mas, ao escutar o relato de adotados
que partiram em busca desses documentos e que bateram contra a parede
da recusa dos poderes judiciários de sua comarca,6 temos a impressão de que
muitos não tiveram mais sorte do que Mme. Odièvre.
Uma primeira queixa (já mencionada) é que a família adotiva escon-
deu deles a “verdade” de seu status adotivo. Mas existe um segundo tipo
de queixa, igualmente carregado de mágoa, que diz respeito à resistência
das burocracias – do hospital, do cartório e do tribunal – em colaborar
na busca por informações. Cabe lembrar que muitas pessoas não foram
legalmente adotadas. Nesse caso, não é no Juizado que vão encontrar os
documentos relevantes. É nos hospitais, entre registros que coincidem
com sua suposta data de nascimento. A não ser que o adotado tenha
conexões poderosas que lhe abram portas (e gavetas), exige-se um man-
dato judicial para ter acesso a esses registros. E, mesmo com o mandato
em mãos, os adotados encontram novos obstáculos. Dizem-lhes que os
arquivos do ano em que nasceram foram perdidos ou queimados, ou que
os registros não foram arquivados por dia, e sim por mês ou por ano, am-
pliando de tal modo o leque de possíveis mães que é impossível efetivar
uma busca. Se o adotado chegou a ser registrado em cartório pela mãe de
nascimento, pode seguir essa pista. Porém, nesse caso, enfrenta um obs-

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táculo financeiro. Por cada registro entregue no balcão, o cartório cobra


uma pequena quantia de dinheiro. Considerando que quatro ou cinco
décadas atrás, os bebês não eram registrados logo após o nascimento, e
sim meses, senão anos depois, é difícil imaginar como o adotado pagaria
o preço de uma pesquisa de centenas ou milhares de registros, espalhados
em diversos cartórios.
Quando se trata de uma adoção legal, o adotado pode solicitar infor-
mações sobre sua identidade original ao juizado local. Entretanto, mais
uma vez a narrativa dos adotados fala de prevaricações, da sensação de
estar sendo “enrolado”, ou da recusa explícita. Uma adotada insiste que
o juiz da sua cidade recusou terminantemente qualquer informação, sen-
tenciando que enquanto ele fosse responsável pelos arquivos, nenhum
adotado receberia informação sobre sua família de origem.
Qual seria o motivo de tanta resistência? Conforme Weber, esse tipo
de segredo teria a ver com o interesse da administração burocrática em
manter o monopólio de poder:

Toda burocracia busca aumentar a superioridade dos que são profissio-


nalmente informados, mantendo secretos seu conhecimento e intenções.
[...] O conceito de ‘segredo oficial’ é invenção específica da burocracia,
e nada é tão fanaticamente definido pela burocracia quanto essa atitude
que não pode ser substancialmente defendida além dessas áreas especifi-
camente qualificadas. (Weber, 1974, pp. 269-270)

Mas meus interlocutores têm suas próprias hipóteses. Com razão ou


não, creem que os hospitais têm medo de ser processados pela família de
nascimento por quebra de confidencialidade. A doutrina jurídica reforça
a ideia de que as famílias de nascimento se opõem à abertura dos regis-
tros. Refere-se às palavras de um deputado federal que, em 1955, susci-

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tou o “complexo de infidelidade” (subentendido, o nascimento de filhos


adulterinos) para frisar a necessidade de sigilo nos processos de adoção: “A
não-publicidade de processo e do registro [...] visa a impedir as explora-
ções do pai natural” (Deputado Jaeder Albergaria, no Projeto nº 562/55
apud Siqueira, 1993, p. 27, grifo nosso).
Contudo, pesquisas atuais sugerem que hoje, as circunstâncias são
outras. A maioria de crianças adotáveis são fruto não dos “amores es-
púrios” de homens casados, e sim da simples miséria.7 É possível que a
desigualdade e o medo de exploração ainda ditem a necessidade de sigilo,
mas, nas circunstâncias atuais, o sigilo seria invocado para proteger os
pais adotivos contra qualquer tipo de chantagem. Certos depoimentos
dos entrevistados apoiam essa hipótese, por exemplo: “O juiz diz que em
trinta anos só revelou uma vez essa informação porque a filha adotada
precisava de um tratamento médico. Mas tomou cuidado para não revelar
nenhuma informação à família de origem, porque eram muito pobres e
podiam querer tirar proveito”.
Seja qual for o motivo dos administradores, meus interlocutores enfa-
tizam o que consideram como a indiferença e até hostilidade dos vários
“porteiros” (autoridades nos hospitais, nos cartórios e nos juizados) que
controlam o acesso aos arquivos. Dizem ter ouvido frases insinuando:
“O quê? Cinquenta anos nas costas, e ainda não resolveu seus problemas
adolescentes de identidade?”, ou comentários deixando entender que é só
o filho ingrato que busca suas origens, quando sua “verdadeira” família é
quem o salvou do abandono. É irônico que tudo isso ocorra justamente
num momento quando, em debates públicos, há certa insistência na im-
portância da “voz da criança” nas decisões que lhe diz respeito (Leifsen,
2009; Lugones, 2009). Nossos entrevistados consideram que seus direitos
foram violentados durante sua infância. Entretanto, tal como no caso de
Mme. Odièvre, têm dificuldade em encontrar uma escuta de suas “vozes”.

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Do ponto de vista dos adotados, o ECA – ao deixar a divulgação de in-


formação à discrição de autoridades jurídicas – simplesmente trouxe para
dentro das instituições públicas o “segredo de origens” que tinha sido tão
ferozmente defendido por seus pais adotivos.

Europa e América do Norte: A adoção plena perde seu encanto

A partir de seus estudos sobre a “circulação de crianças” em diferentes


partes do globo, antropólogos realizaram uma desnaturalização das premis-
sas da adoção plena (Ouellette, 1996; Bowie, 2004; Briggs e Marre, 2009).
Questionaram, em primeiro lugar, a alegação de certos juristas, de que esse
modelo adotivo é o que melhor “imita a natureza” – como se fosse “natu-
ral” a criança ter um só par de cuidadores responsáveis. Lembraram que há
farto exemplo – tanto entre povos “tribais” quanto entre populações em
sociedades complexas – de pluriparentalidade, em que as crianças crescem
normalmente com apoio de uma série de cuidadores reconhecidos como
“pais”8 (Cadoret, 1995; Lallemand, 1993; Isabelle Leblic, 2004; Le Gall e
Bettahar, 2001; Motta-Mauès, 2004). Críticos também levantaram dúvidas
quanto às implicações políticas dessa orientação legal no seio da sociedade
de classe. Sugerindo que a adoção plena é baseada num modelo de família
nuclear típica das camadas médias, perguntaram se não destoa de práti-
cas costumeiras entre grupos minoritários e desfavorecidos – exatamente
aqueles grupos que produzem crianças adotáveis (Modell, 1997; Carda-
rello, 2007; Briggs e Marre, 2009). Alguns desses antropólogos chegaram a
afirmar que, implícita na adoção plena, existe uma lógica da “propriedade
privada”, isto é, a ideia de que a criança, quando muda de uma família para
outra (quando “sai da fábrica de montagem”), perde qualquer identificação
com as relações sociais que a produziram. Tal como uma mercadoria, a
criança só pode ter um único dono (Strathern, 1992; Fonseca, 2006a).

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Historiadores também trouxeram dados para relativizar certos elemen-


tos da adoção plena. Mostraram que a ideia de uma “ruptura limpa” entre
a criança adotada e sua família de origem veio a se consolidar em diferen-
tes países do mundo ocidental durante a segunda metade do século XX
(Samuels, 2001; Carp, 2004; Solinger, 2002). Nessa época, o controle
cada vez mais acirrado de informações foi produto e produtor dos signifi-
cados negativos associados à procura de origens. Durante os anos 1950 e
1960, os poucos adotados que ousavam procurar dados sobre suas famí-
lias consanguíneas eram rotulados de neuróticos – o resultado de adoções
malsucedidas (Samuels, 2001). Reações contra a eugenia da Alemanha
nazista tinham reforçado a convicção de que a “cultura” pesava infini-
tamente mais no desenvolvimento infantil do que a “natureza”, abrindo
o caminho para a autossuficiência da família adotiva. E interpretações
simplistas da teoria de apego insistiam que a criança precisava de um
vínculo intenso com um cuidador principal. Na ausência dessa exclusivi-
dade, previam-se consequências desastrosas para a criança: na melhor das
hipóteses, uma personalidade superficial, na pior das hipóteses, compor-
tamentos antissociais ou mesmo delinquentes (Bowlby apud Eyer, 1999).
Depois da Segunda Guerra, uma nova orientação terapêutica frisava a
necessidade de comunicar para o jovem o fato de seu status adotivo, mas
não era visto como necessário, nem sequer desejável, revelar qualquer
informação sobre sua família de origem. Foi apenas vinte ou trinta anos
mais tarde, quando essas crianças adotadas chegaram à maioridade, que
os ventos começaram a mudar. Na Europa e na América do Norte, os
adultos que tinham sido adotados na infância passaram a se organizar em
associações coletivas reivindicando acesso aberto aos dados de sua bio-
grafia. Não somente combatiam o monopólio de controle dos tribunais
sobre essas informações, em muitos casos conclamavam a ajuda ativa do
Estado nessa sua “procura de origens” (Modell, 1994; Solinger, 2002).

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A Inglaterra foi um dos primeiros países a abrir seus registros aos filhos
adotivos acima de 18 anos. A partir de 1975, os pais que entregavam seu
filho em adoção eram informados que este, chegando à idade adulta, teria
o direito de saber sua identidade.
Nos anos 1980, a preocupação com “o direito às origens” alastrou-se
além da iniciativa de um ou outro governo nacional, adentrando as dis-
cussões da década internacional da criança declarada pela UNICEF. Este
direito, já enunciado pelos adotados e suas associações, foi reforçado atra-
vés de dois itens de debate. Por um lado, aumentava o número de adoções
transnacionais. As crianças vinham de longe – da China, da Coreia, da
Índia, da Colômbia, da Etiópia, do Brasil – para integrar famílias euro-
peias e norte-americanas. Não tinham a mesma cor da pele que seus pais
adotivos – o que tornava praticamente inviável qualquer tentativa de “es-
conder” seu status adotivo. Não é por acaso que foi logo com essas crian-
ças que se acirraram as discussões sobre o “respeito às origens”, abrindo a
possibilidade de elas cultivarem vínculos com elementos pré-adotivos de
suas biografias (Yngvesson, 2007).
Por outro lado, vinham à tona os crimes da ditadura militar na Argen-
tina que tinha se apropriado de centenas de bebês – filhos dos desapare-
cidos presos, sequestrados ou mortos durante a ditadura. Sob a liderança
das Madres (e abuelas) de la Plaza de Mayo, os debates sublinhavam os
abusos potenciais ligados ao segredo de justiça, isto é, ao controle estatal
de informações que pudesse encobrir crimes hediondos (Villalta, 2006;
2010; Regueiro, 2010). Depois de tudo, foi sob o sigilo de justiça en-
volvido na adoção rotineira que os militares tinham conseguido apagar a
genealogia dessas crianças para entregá-las “limpas” a novos pais.
Esses debates surtiram efeito. Ao longo da formulação da Convenção
dos Direitos da Criança (1989), as preocupações sobre o abuso no campo
da adoção se estenderam do rapto durante uma ditadura à desapropriação

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indevida de crianças em qualquer população política ou economicamente


oprimida. Foi no bojo dessa discussão que entraram as cláusulas na Con-
venção sobre a preservação da identidade das crianças.
O saldo desse processo tem sido certa abertura quanto à busca de ori-
gens de pessoas que foram adotadas na infância, especialmente quando
vieram de longe. Nos últimos anos, na Europa e na América do Norte,
o desejo de adotados de “conhecer suas origens” veio a ser um tema cor-
riqueiro não somente legítimo, mas apoiado com certo entusiasmo, pela
maioria de pessoas ligadas ao campo de adoção. Num primeiro momen-
to, houve tentativas de dirigir essa “busca” para o exótico, interpretan-
do a “origem” em termos da cultura nacional. Por exemplo, para ajudar
seus filhos a se sentirem “conectados” a suas origens, pais adotivos de
crianças brasileiras se juntavam para festejar o carnaval. Providenciavam
aulas de língua portuguesa. E, eventualmente, a família adotiva fazia uma
viagem “de retorno” para a criança conhecer a cidade ou o abrigo onde
tinha ficado antes da adoção (Nabinger, 1997; Howell, 2006; Yngvesson,
2007). Mas, aos poucos se tornou evidente que, para boa parte dos que
“buscam”, os adornos culturais não substituem informação sobre relações
concretas. Procuram dados concretos e pessoas que possam responder às
perguntas: Quem são meus parentes consanguíneos? Vivem ainda? Posso
escutar deles o porquê do meu “abandono”? Tenho irmãos?
Ironicamente, no lugar da antiga censura, surgem agora novas teorias
psicológicas para justificar essa busca, apresentando-a como algo “natu-
ral” e até necessário para a saúde emocional do adotado. Conforme o
novo dogma, conhecer as origens seria uma necessidade universal que
permite aos adotados sanar “sua perplexidade genealógica” e remendar a
“narrativa quebrada de si” (Volkman, 2009). Entretanto, pesquisas com
adotados que cresceram na Europa e na América do Norte têm dado
visibilidade a um grande repertório de narrativas sobre o “reencontro”

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entre o adotado e sua família de origem – o que põe em dúvida qualquer


“solução” única (Yngvesson, 2007). Em algumas narrativas, o reencontro
consta apenas como uma experiência passageira, depois da qual o adotado
resume sua vida sem mais contato. Em outras, é o início de uma nova
relação a ser elaborada através dos anos. Nesse caso, os adotados – sendo
que a maioria veio de situações de grande pobreza e foi adotada em famí-
lias de renda média ou alta – têm que lidar com a ideia de possuir “pri-
mos pobres”, muito pobres. Conscientes desse risco, há adotados que não
procuram contato com suas famílias de origem. E, finalmente, existem
adotados que dizem não sentir nenhum interesse particular em “conhecer
suas origens”, que desconhecem os problemas da “identidade fragmen-
tada”, supostamente inerente no seu estado adotivo (ver Howell, 2006).
Nesse debate, fica patente a distância que analistas assumem em relação
a vieses essencialistas que sacralizam “o apelo do sangue”. Pelo contrário,
a variedade de narrativas sugere a importância de conjunturas específicas
e trajetórias particulares na produção de noções sobre família, identidade
pessoal e a necessidade (ou não) da busca.

Famílias de nascimento como sujeitos de direito

Voltamos agora ao contexto brasileiro, seguindo adiante nos dados da


pesquisa de campo. Além de entrevistar pessoas adotadas, contei com a
colaboração – na forma de comentários e entrevistas – de profissionais
com longa experiência no próprio Juizado da Infância e da Juventude
(JIJ). Perguntei para eles sobre sua experiência com adotados que vinham
ao Juizado em “busca das origens”. Meus interlocutores insistiram que
esse movimento começou com jovens criados no exterior – em famílias
italianas, francesas ou norte-americanas. Foram esses adotados que tive-
ram os meios financeiros e o impetus, dado por uma Europa crescente-

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mente multicultural, para firmar sua identidade pessoal através da clara


definição de sua diferença nacional e étnica (ver Nabinger, 1997; Yngves-
son, 2007). Muitos desses jovens foram adotados legalmente – o que tor-
na a busca mais simples. E recebiam certa publicidade nos jornais locais –
o que fornecia ainda outro incentivo para o Juizado atender rapidamente
ao pleito desses brasileiros/estrangeiros. Por outro lado, pessoas como as
que entrevistei – adotadas, criadas em famílias brasileiras – parecem ter
demorado a se manifestar, e a “busca de origens” delas ocupou considera-
velmente menos lugar na fala espontânea de meus interlocutores no JIJ.
Se nos relatos dos adotados, encontramos insinuações quanto à má
vontade ou mesmo à recusa aberta das autoridades judiciárias em apoiar
sua busca por informações, os profissionais do JIJ falam mais dos obs-
táculos administrativos que independem de sua vontade. Os adotados
procuram dados sobre algo que aconteceu trinta, quarenta ou cinquenta
anos atrás, época em que a organização administrativa do Estado não go-
zava de eficiência sistemática. A digitalização dos dossiês começou apenas
três ou quatro anos atrás (em torno de 2005) – os vinte anos anteriores
ainda existem no papel, guardados no JIJ. Mas, os dossiês mais antigos
estão espalhados pela cidade em grandes galpões que juntam os arquivos
mortos de diversas instâncias jurídicas. Achar um processo nessa situação
é como procurar uma agulha num palheiro.
Sobre as “adoções à brasileira” (adoção por falsa certidão de nascimen-
to), os Juizados não têm nenhum registro. Neste caso, o Juizado pode
emitir um mandato para as antigas maternidades abrirem seus arquivos,
mas não têm como garantir a plena colaboração dos administradores hos-
pitalares. Há um ou outro oficial do JIJ reconhecido pelo seu talento de
detetive em rastrear a história de adotados, mas esses oficiais trabalham
também com outros tipos de processo e a sobrecarga de trabalho rotineiro
deixa pouco tempo para se dedicarem aos casos mais difíceis.

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Confrontados a adotados em busca das origens, os profissionais do


Juizado levantaram ainda outro problema, este de fundo ético. Diz res-
peito ao direito da mãe de nascimento a ter sua identidade resguardada.
Em geral, meus entrevistados frisavam que a grande maioria das famílias
de origem aceitaria de bom grado, e até com alegria, um contato com seus
filhos. Citavam casos paradigmáticos – como o da mãe que telefona ao
Juizado todo ano, no aniversário de seu filho, para marcar de alguma ma-
neira sua lembrança desse filho dado em adoção. Trata-se de uma mulher
que, durante sua primeira gravidez, se encontrava numa situação intole-
rável de penúria. Não achando outra solução para garantir o bem-estar de
seu bebê, o entregou em adoção. Seis meses depois, encontrou um “ho-
mem trabalhador” com quem fez uma nova família, mas entendeu que já
era tarde para incluir seu primeiro filho no seu novo arranjo doméstico.
Os termos da adoção irrevogável tinham sido bem explicados e nunca lhe
passou pela cabeça pedir para reaver seu filho... Só queria informações.
Contudo – meus interlocutores me explicaram – sempre há exceções
à regra. Para algumas mães, a revelação súbita de uma criança dada em
adoção décadas atrás pode representar uma intromissão dramática na sua
vida. São mulheres que, depois de entregar o filho, foram viver a vida,
sem nunca contar sua história para ninguém. Casaram, viveram trinta,
quarenta anos sem que seu marido ou filhos soubessem do bebê dado
em adoção. Nesse tipo de caso, a intermediação do Juizado se torna vital.
Antes de atender à solicitação do adotado em busca de suas origens, antes
de lhe entregar seu processo “no balcão”, os profissionais tentam entrar
em contato com a mãe de nascimento, sondando sua disponibilidade
para um eventual reencontro. São considerações dessa ordem que podem
suscitar a apreensão de profissionais diante do dispositivo da nova Lei de
Adoção que garante ao adotado com mais de 18 anos “acesso irrestrito ao
processo no qual a medida [de adoção] foi aplicada”.

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Não por coincidência, em outros contextos nacionais, a conquista do di-


reito do adotado à informação veio acompanhada de ressalvas quanto à priva-
cidade dos pais de nascimento. Nos Estados Unidos onde, conforme algumas
estimativas, 2,5% das famílias incluem uma criança adotada, a “abertura dos
arquivos” é debatida em cada estado. Numa recente iniciativa popular no
estado de Oregon a abertura foi provocada por um tipo de plebiscito que mo-
bilizou todos os eleitores. Nesse estado, nos três anos seguindo a implementa-
ção da nova norma legal (2000-2003), mais de sete mil adotados solicitaram
e receberam sua certidão original (Carp, 2004). Porém, é fundamental notar
que, neste como em outros casos, as objeções mais sérias à proposta de “abrir
os arquivos” giraram em torno do direito da mãe de nascimento a manter o
anonimato (ver Carp, 2004). Em Oregon, os oponentes da “abertura”, lidera-
dos pelas associações de pais adotivos, conseguiram localizar e “dar voz” a um
punhado de mães de nascimento que reivindicavam seu direito à privacidade.
Não conseguiram impedir a aprovação da nova lei. Entretanto, a “abertura de
arquivos” veio condicionada ao estabelecimento de um cadastro em que as
mães de nascimento podem assinalar se querem ou não contato.9
A Inglaterra teve outra maneira de lidar com este assunto. Desde as
mudanças na lei em 1975 e 1976, todo adotado tem o direito de exi-
gir uma cópia de sua certidão original de nascimento onde constam os
nomes dos pais, e, em certos casos, o endereço destes na época do seu
nascimento. Em anos recentes, o acesso a esse documento tem sido facili-
tado pelo site na internet, aberto pelo Cartório Geral de Registro Civil.10
Hoje, todo o procedimento pode ser feito por internet e correio. O único
“senão” diz respeito a pessoas nascidas antes da lei de 1975. Neste caso,
para receber as informações almejadas, elas devem passar por uma sessão
de aconselhamento. Aí, aprenderão que, na época em que nasceram, a lei
não previa a abertura dos arquivos e que, portanto, é possível que seus
pais de nascimento não esperem ou não queiram contato.11

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Nos dois casos vistos acima (de Oregon, EUA e da Inglaterra), vemos
como uma consideração pela família de nascimento foi institucionalmen-
te incluída nos arranjos administrativos formulados para a implementa-
ção do direito do adotado à informação. No Brasil, a situação é outra.
Durante décadas, os pais de nascimento eram sumariamente eliminados
da biografia de seus filhos adotados. Agora, com a nova Lei de Adoção e
o “acesso irrestrito” do adotado à informação, as famílias voltam subita-
mente à cena – queiram ou não.

Mediações políticas e administrativas possíveis

A reflexão sobre a busca de origens de pessoas adotadas nos convenceu


que não há como entender o fenômeno em questão sem atentar para duas
considerações fundamentais. A primeira diz respeito ao peso político da
família de nascimento no processo adotivo. Antropólogos que estudam a
circulação de crianças em populações tradicionais e minoritárias – entre
famílias indígenas da América do Sul, famílias negras na América do Norte,
famílias havaianas, maoris, ou outras – têm sublinhado a conexão entre a
reprodução biológica e a reprodução social e cultural. Constataram que,
em certas situações, quando autoridades públicas tiram crianças de suas
famílias “negligentes”, põe-se em risco a própria continuidade do grupo
e seu direito de socializar futuras gerações (Roberts, 2002; Ferreira, 2000;
Modell, 1997). Na Europa e na América do Norte, houve reações contra
essa desapropriação de crianças. Surgiram associações de pais de nascimen-
to para exercer um peso político sobre os processos legislativos, reivindican-
do formas mais “abertas” de adoção. Dessa maneira, vieram à tona, entre
outras novidades, políticas que permitem aos pais maior acesso à informa-
ção ou mesmo certa participação, junto com os profissionais do campo, nas
decisões que afetam seus filhos (Grotevant & McRoy, 1998; Fine, 2000).12

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No Brasil, apesar de serem frequentemente oriundas de grupos étni-


cos discriminados, as crianças entregues em adoção são vistas em termos
de casos isolados. Suas mães não gozam tradicionalmente de um status
favorecido na hierarquia dos “sujeitos de direitos”. Até quinze ou vinte
anos atrás, os serviços de atendimento ofereciam poucas alternativas aos
pais que passavam por uma situação crítica: ou eles se “organizavam”,
ou eram destituídos do pátrio poder, seu filho sendo internado numa
instituição da FEBEM e, possivelmente, dado em adoção (Fonseca &
Cardarello, 1999). Hoje, existe uma proliferação de programas que vi-
sam garantir os subsídios básicos para a convivência familiar de toda
criança na sua família de origem. Citando o próprio ECA (Art. 23), os
profissionais insistem que “A falta ou a carência de recursos materiais não
constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do pátrio poder”.
No Juizado onde pesquisei, os profissionais realizam escrupulosamente
seu papel de assessor, ajudando os pais a mobilizar recursos e proporcio-
nando alternativas à adoção. Entretanto, as famílias pobres que escapam
pelas malhas dessa rede de atendimento, e para as quais não se encontra
outra solução senão dar o filho em adoção, continuam encontrando um
sistema rígido que lhes impõe uma ruptura total, com todas as implica-
ções de anonimato e abandono.
Conforme as orientações legais, uma vez decidida a entrega, os pais
são destituídos de seu patrio poder – não tendo direito a mais nenhum
envolvimento na vida do filho. A radicalidade dessa proposta é exem-
plificada nas palavras de um juiz que, no intuito de deixar bem claras as
condições da “entrega”, falou para a mãe em questão: “[Depois de assinar
o consentimento para adoção] você não saberá nunca mais nada do seu
filho. Será como se ele tivesse morrido”.13 Neste caso, a mãe, visivelmen-
te sacudida pela violência dessas palavras, disse que não concordava. Só
depois de aprender que não tinha nenhuma outra opção (e se conside-

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rando completamente sem condições para ficar com a criança), assinou


o documento na sua frente. Sugerimos que essa falta de opções é reflexo
da extrema desigualdade que atribui um peso político negligenciável às
famílias de nascimento.
Nos últimos anos, os Grupos de Apoio à Adoção têm se espalhado pelo
país. Essas associações que agregam antes de tudo pais adotivos, gozam
de interlocução rotineira (e, em geral, amistosa) com os juizados. Dentro
do Congresso Nacional, há pais adotivos. Por exemplo, um dos autores
do projeto de lei sobre adoção apelou para seu status de pai adotivo para
acrescentar legitimidade a sua proposta. Entretanto, nos debates dos le-
gisladores brasileiros, procura-se em vão um espaço para contemplar a
voz – junto com os anseios e as ambivalências – dos pais de nascimento.14
Considerando o silêncio que reina sobre essa categoria, é quase como se,
ao “resgatar o direito” do filho adotado, se reforçasse a subcidadania dos
pais “abandonantes”.
A segunda consideração fundamental diz respeito aos processos ad-
ministrativos propostos para garantir ao adotado o acesso à informação.
Diversos autores (Bourdieu, 1989; Moore, 2001) já discutiram o poder
discricionário do juiz que, sob a cobertura do aparente universalismo
da lei, toma decisões que se orientam antes de tudo por sensibilidades
culturais (de classe, raça, nacionalidade, geração e gênero). Autores tais
como Vianna (2005), Schuch (2009) e Lugones (2009) sofisticaram
esse tipo de análise ao mostrar como o poder discricionário se estende
ao sistema administrativo como um todo. Esse processo é especialmen-
te visível no campo de atendimento à criança e ao adolescente onde,
diante de situações de grande impacto emocional e apelo moral, as to-
madas de decisão parecem exigir, mais do que orientações técnicas, a
“humanização” da lei. Nessa perspectiva analítica, os anseios dos admi-
nistradores, longe de representarem uma anomalia que “interfere” nas

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suas práticas, seriam um elemento inerente ao sistema que acrescenta


legitimidade às decisões.
Considerando essa dinâmica administrativa, é possível que, apesar
da nova lei, os adotados continuarão a depender da boa vontade dos
administradores para realizar sua busca de origens. Em alguns tribu-
nais, essa dinâmica pode produzir os resultados desejados por adota-
dos e previstos por legisladores; contudo, em outros, pode significar a
volta à estaca zero – tornando o direito dos adotados contingente às
sensibilidades de operadores ariscos e sobrecarregados que nem sem-
pre simpatizam com sua causa. Diante de tal quadro, o desafio que se
apresenta é: como desenhar procedimentos administrativos que garan-
tem a implementação de direitos apesar das sensibilidades variáveis
dos administradores?
Não é por acaso que, em outros países, os adotados tenham formulado
sua demanda em termos de uma inovação administrativa: a “abertura de
arquivos chaveados”. Chamam atenção para o fato de que, em muitos
casos, o direito à informação existe, mas é contingente à aprovação de
diferentes perícias do tribunal, que travam o processo. No entender de
ativistas da causa, implementar o direito significa transformar o pedi-
do de informações em simples medida administrativa. Se qualquer outra
pessoa, maior de idade, consegue acesso “automático” a sua certidão de
nascimento mediante o preenchimento de formulários e pagamento de
taxas, por que haveria de ser diferente para as pessoas adotadas? (Carp,
2004; Solinger, 2002).
Entretanto, ao juntar as diferentes considerações suscitadas aqui, so-
mos levados a insistir no que certos analistas chamam de caráter rela-
cional dos direitos (Oliveira, 1996). A certidão de nascimento de uma
pessoa adotada não é igual a “qualquer outra” certidão, pois envolve
a relação mediada pelo Estado entre a criança e suas duas famílias. As

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discussões legislativas parecem ignorar esse ponto. Numa ilustração da-


quilo que certos observadores chamam um “viés individualista” na im-
plementação dos direitos, o adotado parece ser concebido como sujeito
autônomo, sem conexão com as relações sociais implicadas na garantia
de seus direitos (Reynard, Bie & Vandeveld, 2009; Wilson, 1997). Por
outro lado, a abordagem relacional frisaria a importância de reconhe-
cer as diferentes personagens envolvidas na questão, incluindo-as como
parceiras legítimas de debate. Sugerimos que os pais adotivos têm goza-
do tradicionalmente de certa influência nas políticas de adoção, ao con-
trário dos pais de nascimento. Aproveitar o momento (da “busca”) para
propor a escuta da voz dos pais de nascimento pode ser um primeiro
passo para o maior reconhecimento desse terceiro elemento da “tríade
adotiva”. Ao mesmo tempo, é bem possível que a “voz” dos pais de nas-
cimento venha ao encontro do pleito dos filhos adotados, reforçando o
direito destes últimos de conhecer suas “origens”.
A ideia não é endossar algum ideal quimérico de harmonia em que
todas as partes da contenda saiam igualmente satisfeitas (vide a crítica de
Nader ,1994). É, antes, reconhecer as redes sociais, junto com as relações
de força, que subjazem os direitos de qualquer indivíduo. É dar-se conta
de que sem olhar de perto a complexa trama de interações, a noção de
direitos corre o risco de reforçar, antes de atenuar, os atuais processos de
estratificação e de demarcação social (Oliveira, 1996; Gledhill, 1997).
Enfim, é evidente que não existe uma solução “ideal”, capaz de resolver
os paradoxos inerentes à nossa complexa realidade. Entretanto, ao manter
em mente que os direitos são politicamente construídos, envolvendo su-
jeitos que vivem num mundo relacional, e que sua implementação passa
pela microfísica dos espaços administrativos, temos melhores chances de
ver o espírito de justiça que inspirou as inovações legislativas sair do papel
para entrar na vida das pessoas.

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Notas

1 Há centenas de “Grupos de Apoio à Adoção” espalhados pelo país, frequentados principalmente
por pais adotivos. Que eu saiba, Filhos Adotivos do Brasil, criada em Porto Alegre em 2007, foi
a primeira associação brasileira voltada primordialmente para as ânsias dos próprios adotados.
2 Agradeço a Luciana Pess e Ana Paula Arosi, estudantes de iniciação científica que participaram
dessa pesquisa.
3 As citações ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) fazem referência ao texto de 13 de
julho de 1990, sem as alterações incluídas pela Lei nº 12.010, de 2009.
4 A exceção estipulada nesse artigo, referente aos “impedimentos matrimoniais”, diz respeito
aos fantasmas sobre a possibilidade de incesto involuntário – sendo sem dúvida uma conces-
são feita pelos legisladores para alcançar seu objetivo: o apagamento das origens do adotado.
Contudo, desconheço qualquer episódio em que essa exceção foi acionada.
5 Cabe, contudo, observar que o caso marcou o cenário legal europeu, imprimindo o direito às
origens como direito humano fundamental, e provocando diversos ajustes legislativos.
6 Muitos de meus interlocutores vêm de cidades interioranas onde os serviços públicos
podem demorar, quiçá mais do que na metrópole, para implementar reformas administra-
tivas e legais.
7 Uma pesquisa nacional do IPEA (2003) sugere que cerca de um quarto das crianças e adolescen-
tes abrigados foram institucionalizados por “carência de recursos materiais da família”. Pesquisas
qualitativas sugerem que outros motivos de ingresso na instituição, tais como “negligência”,
“abandono” e “violência”, são frequentemente indistinguíveis de situações de falta total de recur-
sos (Fonseca & Cardarello, 1999).
8 Basta pensar nos filhos de pais divorciados e recasados.
9 O cadastro consta apenas como mais uma informação, não criando nenhum obstáculo legal
ou administrativo ao acesso do adotado a sua certidão original. Nos três primeiros anos
seguindo a proposta, 81 mães se declararam contra o contato – correspondendo a cerca de 1%
do número de adotados (7.606) que solicitaram sua certidão original (Carp, 2004, p. 216).
10 http://www.direct.gov.uk/en/Governmentcitizensandrights/Registeringlifeevents/Birthanda-
doptionrecords/Adoptionrecords/DG_175567, consultado 20 de junho, 2010.
11 A transparência dos dados civis na Inglaterra foi reafirmada em 2005 com a implementação de
uma lei que estende o “direito à informação sobre suas origens biológicas” a pessoas com 18 anos

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ou mais, nascidas de uma gravidez medicalmente assistida, através da doação de esperma ou óvulo
doados. Nesse caso, o direito não é retroativo e, portanto, as buscas só começarão em 2023.
12 Ver também sites de Bastard Nation, nos EUA (http://www.bastards.org) e Mères dans
l´Ombre na França (http://amo33.free.fr/), consultados 20 de junho, 2010.
13 Conforme depoimento de uma advogada que presenciou a cena.
14 Mesmo em pesquisas acadêmicas, encontra-se pouco sobre famílias de nascimento de crianças
adotadas. Veja Motta (2005), e Mariano (2009) como notáveis exceções.

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ABSTRACT: My aim in the article is to analyze the interaction between adult adop-
tees in search of their biological origins and the authority figures that control in-
formation about these origins. I briefly consider the history of secrecy involved in
adoption, to focus on the recently-edited Brazilian Adoption Law that guarantees the
adoptee “unrestricted access” to his judicial dossier. I also examine the narratives of
adult adoptees contacted through an association of adopted persons (in Porto Alegre,
Brazil) on their frustrated search, as well as those narratives of professionals who work
at the adoption services of the local courthouse. Working on the hypothesis that
the search for origins involves many problems encountered in discussions on other
fundamental rights, I demonstrate throughout this article that rights are politically
defined, that they involve subjects living in a relational world, and that their imple-
mentation depends, to a large extent, on the microphysics of administrative spaces.

KEYWORDS: Law and Anthropology, Rights of the Child, New Adoption Law,
Administration of Justice.

Recebido em dezembro de 2009. Aceito em abril de 2010.

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(In) visíveis casais: conjugalidades homoeróticas e
discursos de magistrados brasileiros sobre seu
reconhecimento jurídico

Rosa Maria Rodrigues de Oliveira1

Universidade Federal de Santa Catarina

RESUMO: Partindo de estudo de caso realizado nos Tribunais de Justiça do


Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, articulo ques-
tões teóricas presentes no campo dos estudos de gênero e antropologia com as
posições jurídicas sobre casamento, união estável e família, identificadas pela
análise de decisões judiciais e interlocução com vinte e cinco desembargadores
acerca de recursos judiciais 2 sobre as “conjugalidades homoeróticas”. A análise
aponta a influência do “sexo/gênero” das partes na tomada de decisões judiciais.
Constata-se ainda a desvalorização do trabalho doméstico em particular de ho-
mens gays, que litigam em inventários pelo espólio de parceiro falecido a fim de
garantir sua condição de herdeiros. Contudo, há uma tendência que pode ser
considerada mais “positiva” que “negativa” nas decisões dos tribunais em estudo
se a discussão for relativizada do ponto de vista da concessão de partilha de bens
a alguns sujeitos.

PALAVRAS-CHAVE: homoerotismo, conjugalidades, poder judiciário.

Introdução

O tema do reconhecimento jurídico das “conjugalidades homoeróticas” 3


no Brasil remonta a década de 1980, quando o movimento homossexu-

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Rosa Maria Rodrigues de Oliveira. (In)visíveis casais: conjugalidades...

al brasileiro já incorporava sua reivindicação, conforme Regina Facchini


(2005) nos relata sobre o II Encontro Brasileiro de Homossexuais, que já
pautava o então denominado casamento gay. Os dados que apresento neste
artigo, de fato, demonstram que as primeiras decisões de recursos judiciais
publicadas nos sites dos 27 Tribunais de Justiça brasileiros sobre a questão
começaram a aparecer no cenário jurídico-político do país em 1989.
A pesquisa realizada em São Paulo no ano de 2005 durante a “9ª Pa-
rada do Orgulho GLBT” concluiu que a maioria dos cerca de 70 eventos
desta natureza que ocorreram no Brasil naquele ano “trouxeram para as
ruas o tema da parceria civil entre pessoas do mesmo sexo (...)”. (Carrara
et al., 2006, p.13), demonstrando a atualidade desta questão na agenda
política do movimento. O sociólogo Luiz Mello (2005), em estudo sobre
a tramitação desde 1995 do projeto sobre união civil entre homossexuais
no Congresso Nacional, já acentuava que “talvez não seja exagerado dizer
que, em face das resistências dos parlamentares para apreciar o Projeto de
Lei nº. 1.151/95 (...), o Poder Judiciário é a instância que, na ausência da
lei, normatizará o amparo legal às relações entre pessoas do mesmo sexo,
da mesma forma como procedeu em relação às uniões concubinárias”
(Mello, 2005, p. 22).
Interessei-me pela análise das divergências de interpretação sobre o
conceito de família pelos Tribunais de Justiça envolvendo as conjugali-
dades homoeróticas durante o curso de Mestrado em Direito da Univer-
sidade Federal de Santa Catarina, que concluí em 2002.4 Em 2005, ao
iniciar uma pesquisa nos links dos Tribunais de Justiça brasileiros, parti de
considerar que a maioria dos pontos de vista contrastaria com decisões do
final da década de 1990 que encontrei no Estado do Rio Grande do Sul.
Tais acórdãos apresentavam-se já neste período majoritariamente mais
favoráveis ao reconhecimento jurídico das conjugalidades homoeróticas,
inclusive equiparando-as em sua natureza jurídica ao conceito de “união

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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.

estável” – previsto na Constituição da República como possibilidade que


envolveria apenas o casal formado por “homem e mulher”, conforme se
lê abaixo do texto do Art. 226:

A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º. O


casamento é civil e gratuita sua celebração. § 2º. O casamento religioso
tem efeito civil, nos termos da lei. § 3º. Para efeito da proteção do Es-
tado, é reconhecida a união estável entre homem e mulher como en-
tidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

É importante destacar que na legislação brasileira a união estável as-


sume o caráter de unidade familiar – situando os litígios no campo do
direito de família, enquanto que a sociedade de fato pode ser celebrada no
âmbito do direito das obrigações. A controvérsia no caso das pessoas do
mesmo sexo consiste no fato de não ser pacífico o entendimento quanto a
seu enquadramento legal. No TJRS a maioria dos desembargadores vêm
desenvolvendo o entendimento de que há a necessidade de equiparação
entre casais de pessoas do mesmo sexo e casais de pessoas de sexo oposto
para o estabelecimento de partilha de bens e outros temas derivados do
direito de família.
Assim, o enfoque adotado na análise mostrou que a diversidade de
opiniões oculta atrás do aparente binarismo “conservadores x progressis-
tas” merecia relativização, partindo da análise dos resultados observados,
que remetem – mesmo com os obstáculos impostos pela controvérsia
acerca da ausência de fundamento legal – a uma tendência geral ao reco-
nhecimento da partilha de bens, com maior ou menor grau de aceitação
quanto à condição de casal conferida ou não às partes, a partir da adoção
de certo ponto de vista técnico-jurídico, que reconhece nestas uniões uma
“sociedade de fato” e não uma “união estável”.

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Rosa Maria Rodrigues de Oliveira. (In)visíveis casais: conjugalidades...

Neste artigo, a partir da articulação de aspectos teóricos fundados na


teoria feminista, teoria crítica do direito e antropologia, proponho uma
análise interdisciplinar sobre os dados referentes a acórdãos judiciais e
entrevistas sobre o fenômeno das conjugalidades homoeróticas desde um
ponto de vista de seus relatores no campo jurídico.

Aspectos metodológicos

Entre os anos de 2005 e 2009 realizei periodicamente levantamento pela


internet nos “links” de acesso aos vinte e sete Tribunais de Justiça do país, com
o objetivo de criar um quadro demonstrativo da situação nacional sobre as
respostas do poder judiciário a partir das demandas por reconhecimento de
conjugalidades homoeróticas. Organizei os dados documentais analisando-os
num primeiro momento de um ponto de vista quantitativo (maior quantida-
de de acórdãos), para posteriormente analisar as diferentes percepções expres-
sas pelos discursos dos acórdãos judiciais estudados em paralelo às entrevistas
realizadas com os desembargadores relatores destas decisões.
Articulei técnicas quantitativas e qualitativas de pesquisa, adotando
os procedimentos de coleta e leitura das decisões encontradas, primeiro a
partir desta busca exploratória nos sites dos tribunais de justiça brasileiros,
para posteriormente situar quais os Estados onde concentraria o foco das
entrevistas, por concentrarem cerca de noventa por cento da média de re-
cursos no país: São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais.
Utilizei os seguintes termos de busca nos Tribunais, e fui classificando os
resultados encontrados por palavras-chave, numa primeira triagem: união
homossexual, união homoafetiva, união estável + homossexuais, sociedade de
fato + homossexuais, união estável + homossexualismo, sociedade de fato +
homossexualismo, dissolução de vínculo + homossexuais, união entre pessoas
do mesmo sexo, relacionamento homossexual, casamento + homossexuais.

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Busquei ainda mais dados em duas das principais publicações juris-


prudenciais do país, a “Revista dos Tribunais” e a “Revista Forense” e
apoiada na abordagem metodológica para análise jurisprudencial criada
por Schritzmeyer (2004), construí a partir daí diferentes fichas de análise,
que me levaram a quantificar e compreender de um ponto de vista inter-
disciplinar o que observaria em campo com os/as 25 desembargadores/as
e juízes/as entrevistados/as. Adotei um questionário semiestruturado para
realizar as entrevistas, e procurei identificar, na sua aplicação, as repre-
sentações e sentidos atribuídos acerca da “formulação” e da “obediência”
à lei encarnadas no ato jurisdicional, de modo a compreender seu papel
sobre a produção de subjetividades e reconhecimento jurídico ou não.
Montei fichas de coleta destes dados divididas por subtemas de maior
recorrência, e conforme sua pertinência separei e comparei algumas falas
mais representativas de cada campo para análise, entre as quais destaco as
mais relevantes para este artigo em seguida.

Gênero, conjugalidades e família: estudos antropológicos feminis-


tas e crítica jurídica

O debate sobre conjugalidades e parentalidades homoeróticas apareceu


como pauta essencial para as ciências humanas no contexto provocado pelas
profundas alterações observadas na relação entre família e sexualidade ao longo
da história, objetos especiais de estudo da antropologia feminista no final do
século XX. Maria Luiza Heilborn (2004), analisando as novas configurações
familiares, explica que “tais mudanças resultam, por um lado, de um longo
processo que tornou a conjugalidade um domínio relativamente autônomo
da família, orientado por dinâmicas internas nas quais a sexualidade ocupa um
lugar central; e por outro, do fato de que o exercício da atividade sexual deixou
de ser circunscrito à esfera do matrimônio” (Heilborn, 2004, pp. 8-9).

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Miriam Grossi (2003) aponta, igualmente, que o final da década de


1990 foi marcante para a alteração dos “modelos ocidentais de paren-
tesco”, que a partir do reconhecimento jurídico das conjugalidades ho-
moeróticas, passam a assumir novas referências além da “díade do casal
heterossexual com sua prole” (Grossi, 2003, passim).
A pesquisa identificou pontos de vista opostos nas interpretações ju-
rídicas sobre casamento, união estável e família, que demonstram o modo
como a dicotomização sexual torna-se ou não pressuposto para concessão
de acesso ao matrimônio a sujeitos de direito plenamente capazes de con-
tratar. O Código Civil possui três artigos que descrevem bem como esta
questão é tratada na legislação brasileira:

Art. 1.514: O casamento se realiza no momento em que o homem e a


mulher manifestam, perante o juiz, sua vontade de estabelecer vínculo
conjugal, e o juiz os declara casados.
Art. 1517: O homem e a mulher com 16 (dezesseis) anos podem casar,
exigindo-se autorização de ambos os pais, ou de seus representante le-
gais, enquanto não atingida a maioridade civil.
Art. 1566: São deveres de ambos os cônjuges: I - fidelidade recíproca;
III - vida em comum, no domicílio conjugal; III – mútua assistência;
IV- sustento, guarda e educação dos filhos; V – respeito e considera-
ção mútuos.

Deste modo, as principais categorias normativas representativas da fa-


mília e do casamento identificadas nos discursos de acórdãos judiciais e
entrevistas são sustentadas em classificações mantidas em conformidade
com a “necessidade” da presença da dicotomia sexual para a consideração
de um casal, sobre a base biológica que une sexualidade e reprodução tra-
duzida em regras sociais e morais como “intenção de constituir família”

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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.

e “fidelidade recíproca” – de outro lado, exigíveis a qualquer pessoa pela


legislação do matrimônio, independentemente de sua sexualidade.
A base das noções tradicionais sobre a família e o casamento na ciência
jurídica brasileira, lidas em alguns dos principais doutrinadores estudados nas
escolas de direito nacionais, como Maria Helena Diniz (2008), Caio Mário
da Silva Pereira (2005) ou Orlando Gomes (2002), é fundada na defesa de
uma crença na constituição de um “tipo geral” de “família” que parte da con-
cepção segundo a qual aquela é composta pelos genitores e seus filhos.
Numa definição clássica, o direito de família é descrito como um
“complexo de normas que regulam a celebração do casamento, sua va-
lidade e os efeitos que dele resultam, as relações pessoais e econômicas
da sociedade conjugal, a dissolução desta, a relação entre pais e filhos, o
vínculo de parentesco e os institutos complementares, curatela, tutela e
ausência” (Bevilaqua, 1976).
Guilherme C. N. da Gama (2001) aponta que a influência para a for-
mulação do Direito Civil e de família (como um de seus ramos) brasilei-
ros foi recebida do direito português, por sua vez constituído a partir do
direito romano e canônico. As Ordenações Filipinas orientaram no Brasil
os primeiros regramentos normativos em matéria de Direito Civil “até o
advento do Código Civil de 1916”, hoje revogado pelo Código de 2002
(Nogueira da Gama, 2001, p. 38).
Nogueira da Gama (2001) define a família como “uma realidade, um
fato natural, uma criação da natureza, não sendo resultante de uma ficção
criada pelo homem”, e em sentido estrito, a família abrangeria “os cônju-
ges e seus filhos” (Nogueira da Gama, 2001, p. 40).
Caio Mário da Silva Pereira (2005) reconhece a diversificação do con-
ceito de família a partir da Constituição Federal, mas inicia sua definição
por seu “sentido genérico e biológico”, segundo o qual “considera-se família
o conjunto de pessoas que descendem de um tronco ancestral comum”,

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Rosa Maria Rodrigues de Oliveira. (In)visíveis casais: conjugalidades...

acrescida do cônjuge, e também composta eventualmente pelos “filhos do


cônjuge (enteados), os cônjuges dos filhos (genros e noras), os cônjuges dos
irmãos e os irmãos do cônjuge (cunhados)”, caracterizando-a como “a célu-
la social por excelência”. Para o autor, ainda, os “três setores em que o Di-
reito de Família atua” são as relações pessoais, patrimoniais e assistenciais,
figurando o casamento como a instituição mais importante deste ramo do
Direito Privado (Silva Pereira, 2005, pp.19-20 e 34, passim).
No que se refere à normatização sexual para a constituição da família, o
doutrinador observa que até que a Constituição Federal seja modificada,
“onde é expresso o reconhecimento da união estável ‘entre um homem e
uma mulher’, a diversidade de sexos é requisito para a sua caracterização”,
e embora reconheça que já exista em “nossos Tribunais” mais espaço para
as “uniões homoafetivas”, as mesmas “encontram na ‘sociedade de fato’
a sua caracterização, a gerar direitos para os parceiros, na medida de sua
participação” (Silva Pereira, 2005, p. 545).
Para Jane Flax (1992), contudo, é preciso desconstruir os significados
que são conferidos à biologia/sexo/gênero/natureza. Parte do problema aí
proposto é que sexo/gênero tem sido uma das poucas áreas em que a corpo-
rificação (usualmente feminina) pode ser discutida em discursos ocidentais
(não científicos). Uma das explicações encontradas relaciona-se ao fato da
reprodução. Abordando as diferenças anatômicas sexuais, Flax pensa que as
mesmas estariam “inextricavelmente ligadas à (e de algum modo [seriam]
mesmo causadoras da) sexualidade” (Flax, 1992, pp. 239-40).
Joan Scott (2002), por sua vez, ressalta que a aceitação da dicotomia
acarreta a desvantajosa qualidade de conferir “identidades fixas e análogas
a homens e mulheres”, reforçando de forma sub-reptícia “a premissa de
que pode haver uma definição oficial e autoritária de diferença sexual.
Em consequência disso, é aceito como pacífico que diferença sexual é um
fenômeno natural – reconhecível, mas imutável - quando na verdade não

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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.

passa de um daqueles fenômenos indeterminados (tais como raça e etnia),


cujo significado está sempre em discussão” (Scott, 2002, p. 18).
Sherry Ortner (1981) considera a esfera das relações de parentesco
e casamento como consequência variável, embora clara, das várias for-
mas como noções culturais de gênero e sexualidade articulam as relações
sociais em determinadas sociedades. Os diversos achados etnográficos
encaminham para uma necessária relativização das estruturas familiares,
revelando que há um investimento culturalmente hierárquico em suas
definições em nossa cultura, daí a noção de estruturas de prestígio (Ortner
& Whitehead, 1981, p. 12), noção que penso pode ser adequada para
compreender a “precedência social” das relações de conjugalidade entre
heterossexuais em oposição às unidades familiares compostas por pessoas
do mesmo sexo, principalmente por sua inscrição na ordem da natureza
em função da reprodução.
O amor conjugal, reabilitado pela higiene no Brasil colonial, foi útil
para que a “ordem médica” instalasse uma série de aconselhamentos rela-
cionados ao que é considerado como o amor romântico, em oposição ao
chamado amor higiênico. Será justamente o “modelo médico do homem-
pai”, tomado por Jurandir Freire Costa (1999) para enfatizar a insistência
na educação física, moral, sexual e intelectual, que se torna a medida para
as condenações a outros personagens desviantes na história da sexualida-
de: os libertinos, os celibatários e os homossexuais.

O homossexual era execrado porque sua existência negava diretamente a


função paterna, supostamente universal na natureza do homem. A mani-
pulação de sua vida, neste caso, servia de antinorma ao ‘viver normal’, assi-
milado ao comportamento heterossexual masculino. Contudo, além desse
valor ‘teratológico’ segundo a ótica populacionista, a homossexualidade
reforçava inúmeros outros objetivos higiênicos, todos eles ‘preventivos’ das

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Rosa Maria Rodrigues de Oliveira. (In)visíveis casais: conjugalidades...

eventuais distorções que o homem poderia sofrer em sua marcha da infân-


cia até a futura condição de pai (Costa, 1999, pp. 247-248).

Com base nestas premissas é que a sexualidade do ‘casal natural repro-


dutor’ passa a ser a medida para a legitimação do casamento entre homem
e mulher como representação da família normalizada na atualidade. O
sociólogo Michel Bozon (2004) explica que os “debates públicos con-
temporâneos sobre as questões sexuais suscitam indagações tanto sobre o
sentido das mudanças recentes na sexualidade quanto sobre as evoluções
da sociedade. A sexualidade serve como linguagem para a sociedade, da
mesma forma que as relações sociais e as normas da sociedade estruturam
a sexualidade”. Bozon procura com isso situar a sexualidade como uma
questão política, que atua como uma “norma oculta dos debates públi-
cos”, e cita o exemplo das campanhas de prevenção à AIDS para dizer que
há uma “íntima associação entre posições políticas radicalmente opostas
[...] e as orientações íntimas através das quais os indivíduos dão coerência
à sua experiência individual da sexualidade.” (Bozon, 2004, p.145).
Eric Fassin (2006) discute, finalmente, a apropriação pelo Estado da
categoria “sexo” e reflete sobre os usos deste termo em contrapartida de
certa recusa quanto ao conceito de “gênero” como aplicável às políticas
públicas na França no século XXI. Comentando o caso de duas transexu-
ais que casam, e que não se enquadram nas categorias “homem/mulher”,
pois ambas são femininas, apesar de uma delas não ter feito a cirurgia de
transgenitalização, o autor afirma que “as políticas sexuais se situam na
articulação das esferas pública e privada, das leis e costumes, do direito
e das normas. Ao invés de renovar essas oposições binárias, elas lhe tra-
zem problemas. Assim, elas remetem à questão da distinção entre Estado
e sociedade civil que organiza as políticas não governamentais” (Fassin,
2006, p. 167).

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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.

Loin d’être naturel, le sexe lui-même s’avère politique – et ce qui le ma-


nifeste, paradoxalement, c’est l’invocation du genre par l’État. On le voit,
l’action se joue ici à l’interface d’une politique des droits et de l’égalité et
d’une politique des normes et du langage, par l’État et contre l’État. [...]
Autrement dit, c’est bien l’idée de genre qui est récusée, et non pas seule-
ment le mot, au moment même où l’État recourt, sinon au mot, du moins
à l’idée. (Fassin, 2006, p. 167)5

Para Fassin, “as questões das minorias, raciais e especialmente sexuais,


desempenham um papel decisivo” junto ao Estado, “pois são indicati-
vos de democracia”. Assim, gênero, sexualidade, filiação e reprodução são
assuntos atuais que ampliam a malha democrática das relações sociais
regidas pelo Estado. É preciso que o Estado “se arme” do gênero, conclui
o pesquisador francês.

Sans doute la démocratie est-elle bien le règne de la politique sans fondement trans-
cendant, ou naturel. Mais la démocratie sexuelle y joue aujourd’hui un rôle par-
ticulier: si genre et sexualité sont actuellement des enjeux privilégiés, c’est que ces
questions marquent l’ultime extension du domaine démocratique. On les croyait,
on les croit encore parfois naturelles; on les découvre politiques. Sans doute depuis
Platon la même « haine de la démocratie » se faitelle entendre, face au «bouleverse-
ment de l’ordre naturel”. Cependant, la logique s’en déplace quelque peu: alors que
le scandale de la démocratie invitait jadis ses ennemis à rappeler que les rapports
sociaux sont aussi des rapports naturels, aujourd’hui, la situation s’inverse, dès lors
que, pour les démocrates, ce sont désormais les rapports «naturels» eux-mêmes qui
apparaissent comme sociaux – le genre et la sexualité, la filiation et la reproduction,
tous, enjeux politiques brûlants. (Fassin, 2006, p. 168)6

Michel Foucault (2005) situa a produção de verdades em torno da sexuali-


dade como elemento que compõe a lógica prescritiva dos discursos (em espe-
cial, os jurídicos), analisando a aplicação do poder pelo Estado a partir de um

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Rosa Maria Rodrigues de Oliveira. (In)visíveis casais: conjugalidades...

aparato judicial em seu favor ao longo da história. O pensador francês utilizou


como metáfora um diálogo imaginário entre o desejo e a instituição, para ar-
gumentar que “o discurso está na ordem das leis”, e que seu lugar, preparado
há muito, “a um só tempo o honra e o desarma” (Foucault, 2005, pp. 8-9).
Pierre Bourdieu (1998) caminha no mesmo sentido, ao considerar
o discurso jurídico como uma “fala criadora, que faz existir aquilo que
enuncia”. Esta é considerada “o limite para o qual aspiram todos os enun-
ciados performativos, bênçãos, maldições, ordens, desejos ou insultos:
quer dizer a palavra divina, o direito divino, que [...] dá existência àquilo
que enuncia, ao contrário de todos os enunciados derivados constatati-
vos, simples registros de um dado preexistente” (Bourdieu, 1998, p. 20).
Óscar Correas (1996), por sua vez, localiza o “direito” no campo dis-
cursivo, como um termo que serve para “designar um fenômeno que tem
conexão com outro conjunto de fenômenos sociais que se inscrevem no
contexto do exercício do poder em uma sociedade”. Sua definição de “di-
reito” é considerada então como “parte do grupo de fenômenos que per-
tencem ao âmbito da linguagem, dos discursos que circulam socialmente”
(Correas, 1996, p. 43).
As categorias jurídicas de “família” e “casamento” são sustentadas em
classificações mantidas em conformidade com um dos requisitos natura-
lizados para confirmar sua existência como institutos do direito de família
– a “dicotomia sexual”, com sua base biológica que une sexualidade e re-
produção traduzida em regras sociais e morais como “a intenção de cons-
tituir família”. Isto remete aos modos com que o Estado, através da regu-
lamentação jurídica da vida privada, discerne “quem” e “de que modo” é
composta a relação amorosa considerada apta a produzir efeitos jurídicos
de determinada ordem, a depender da classificação do casal.
De fato, Miriam Grossi, Luiz Mello e Anna Paula Uziel (2007), fazen-
do um paralelo com o processo legislativo de aprovação do casamento gay

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na Espanha, destacam como os debates em torno das propostas de legis-


lação brasileira referentes ao reconhecimento jurídico das conjugalidades
homoeróticas são capazes de provocar a discussão sobre mudanças sociais,
ao “destacar as negociações políticas que se dão em torno da elaboração e
da aprovação das leis” (Grossi, Mello & Uziel, 2007, p. 14).

No Brasil, ainda estamos às voltas com os debates em torno da aprovação


do Projeto de Lei 1151/1995, da então deputada Marta Suplicy, que insti-
tui a parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo, tramitando no
Congresso Nacional há 12 anos e sob forte oposição de grupos ligados a
fundamentalismos religiosos. Por outro lado, desde 2005 a Espanha é um
país que tem uma legislação exemplar, ao assegurar direito ao casamento
e à adoção a todos os casais, independentemente dos sexos de seus inte-
grantes. Apesar das tensões ainda existentes no cotidiano da vida civil e
na aplicação da lei, trata-se de uma mudança significativa de olhar sobre a
conjugalidade homossexual, quando comparada à realidade brasileira e da
maior parte do mundo, onde a homossexualidade ainda é definida como
crime em mais de oitenta países. (Grossi, Mello & Uziel, 2007, p. 14).

A demanda por inclusão na ordem jurídica por parte dos homossexu-


ais não descarta, por outro lado, riscos no que se refere a uma tentativa de
inscrição de determinadas modalidades de práticas homoeróticas (sociais
e sexuais) na mesma normatividade hegemônica que pretende refutar, a
partir de critérios totalizantes, fato que não necessariamente beneficia es-
tes sujeitos, na esteira da argumentação de Judith Butler (2003). A autora
faz, neste sentido, um contraponto com a necessidade expressa em relação
à equiparação de “modelos de conjugalidade”, quando comenta que para
opinião pública norte-americana o casamento é visto (e se propõe que
assim seja mantido) como instituição e vínculo heterossexuais, e o paren-

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tesco apenas será assim considerado se assumir uma forma reconhecível de


família (no sentido de sua conceituação tradicional, que remete ao víncu-
lo heterossexual) (Butler, 2003, passim).

Os acórdãos – um panorama nacional

Os dados quantitativos encontrados no Brasil registravam no mês de ou-


tubro de 2009 um número equivalente a 354 acórdãos, localizados em 23
Estados. A Região Norte (AC, PA, RO e TO) concentrava 1% do total, com
04 acórdãos, seguida do Centro-Oeste (DF, GO, MT e MS), com 4% (13
acórdãos), o Nordeste apresentando 6% do total, equivalente a 23 acórdãos,
finalizando com um número bastante concentrado ainda nas regiões Sul,
com 107 acórdãos (30% do total), e Sudeste, com 207 acórdãos, representan-
do 58% do total de recursos no país acerca das conjugalidades homoeróticas.

Brasil: Distribuição de acórdãos por Região - 2009

Fonte: Sites 23 Tribunais Justiça no Brasil (Oliveira, 2009)


Base: 354 acórdãos

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Em outubro de 2009 os quatro Estados eleitos para o campo concen-


traram 278 decisões no total. São Paulo contava 82 acórdãos, afora 30 em
segredo de justiça.
O segredo de justiça é uma prerrogativa processual que se destina
a preservar as partes mais vulneráveis (em casos de crianças e adoles-
centes e em processos de família) nos processos. Notei que há um tra-
tamento diferenciado dos acórdãos em segredo nos tribunais em que
fiz o campo. Nos Estados do RS e MG, os acórdãos em segredo são
disponibilizados suprimindo-se o nome das partes, indicando apenas
iniciais. No Estado do Rio de Janeiro, o inteiro teor de um acórdão
em segredo não é disponibilizado, mas sua ementa sim, sendo possível
identificar dados básicos como tipo de recurso e de decisão. Em São
Paulo, os acórdãos em segredo de justiça atualmente não têm sequer
o número disponibilizado no site, indicando-se apenas que “há acór-
dãos em segredo de justiça”.
No Rio de Janeiro, encontrei 85 decisões, entre estes 21 segredos.
No Rio Grande do Sul localizei 74 acórdãos, e em Minas Gerais, 37
acórdãos. O Rio de Janeiro foi o Estado onde se localizaria o primeiro
acórdão judicial no país, datado de 1989. Em 1997 vemos o primeiro
recurso em Minas Gerais, em 1999 surge o primeiro julgado no Rio
Grande do Sul, e em 2000 aparece o primeiro acórdão no Estado
de São Paulo (sempre lembrando a difícil acessibilidade dos acórdãos
neste Estado). A partir deste ano, a curva começa a incrementar rapi-
damente, e num período curto (entre 2006 e 2009), os números dis-
param. Isso pode ocorrer porque a “vida útil” de um processo judicial
tem a duração de cerca de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, sugerindo entre
outros fatores que pode haver uma influência das discussões em torno
do “casamento gay” pelo movimento homossexual nos anos 1980 na
maior incidência de propositura de ações.

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Rosa Maria Rodrigues de Oliveira. (In)visíveis casais: conjugalidades...

Brasil: Nº acórdãos (1989-2009)

Fonte: Sites TJSP, TJRS, TJRJ e TJMG (Oliveira, 2009)


Base: 278 acórdãos

Os recursos envolvendo inventários são maioria no total das deci-


sões no país. Em São Paulo as demandas por pensões por morte foram
mais frequentes, contudo o dado deve ser observado considerando-se
que há um grande número de recursos em São Paulo em segredo de
justiça – o que pode significar que há também um índice significativo
de inventários neste Estado. Encontrei ainda poucos casos explici-
tando a presença de parceiros com sorologia positiva para o HIV ou
doentes de SIDA entre as partes, mas observei, no grupo de “pedidos
de benefício”, muitos casos de inclusão em plano de saúde como pen-
são por morte e/ou inclusão em assistência à saúde em órgão público
ou privado, onde uma grave doença era referida em alguns relatórios

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sem expressar claramente a patologia, o que pode sugerir a presença de


parceiros de pessoas que viviam com SIDA entre os litigantes contra
espólios nos inventários.

Brasil: Tipos de ação na origem por Estado

Fonte: Sites TJSP, TJRS, TJRJ e TJMG (Oliveira, 2009) Base: 278 acórdãos

Identifiquei ainda, como se vê no gráfico a seguir, três tipos de


recursos: a) Apelações,7 na legenda do gráfico notada como “AC” com
60% dos casos; b) Agravos, (AI, no gráfico) correspondendo a 25%
dos acórdãos; Embargos, (ED/EI, no gráfico) contemplando 12% das
decisões; c) Exceção de incompetência do foro, ou Conflito de competên-
cia suscitado perante o tribunal, (CC, no gráfico) concentrando 3%
entre os 278 acórdãos pesquisados.

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Brasil: Modalidades de recursos nos Estados (2009)

Fonte: Sites TJSP, TJRS, TJRJ e TJMG (Oliveira, 2009)


Base: 278 acórdãos

As apelações representam a maior parte dos recursos no Estado do Rio


de Janeiro, e os agravos de instrumento são maioria no Estado de São Paulo.
Já os conflitos e exceções de competência são a minoria, mas é no Rio Grande
do Sul que aparecem com mais frequência, o que poderia denotar que neste
Tribunal sua aceitação é mais corriqueira – e de fato, na tabulação dos da-
dos, verifica-se uma grande incidência de declinação de competência para
a vara de família nestes recursos no Rio Grande do Sul. Isso pode ser re-
flexo tanto de uma discussão “mais especializada” feita neste tribunal (pois
dos quatro tribunais pesquisados este é o único que possui duas Câmaras
Cíveis específicas para discussão sobre direito de família), quanto ser uma
demonstração de um posicionamento mais favorável ao reconhecimento de
um estatuto de uniões estáveis às conjugalidades homoeróticas.
Considerando o total de 278 acórdãos entre 1989 e 2009, encontrei um
índice de 48% de decisões desfavoráveis, 40% de respostas favoráveis, e 7%
de recursos com decisões parcialmente favoráveis, e ainda 10% onde o mé-

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rito não foi julgado (sem decisão). Em 2006, além da tênue diferença entre
posições mais ou menos “favoráveis”, identifiquei uma diferença peculiar
entre os Estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande
do Sul, uma vez que nos três primeiros Estados, as decisões são majoritaria-
mente “desfavoráveis” de algum modo ao reconhecimento de efeitos jurídi-
cos às conjugalidades homoeróticas, enquanto que no Rio Grande do Sul,
a valência se invertia. Hoje, observando o gráfico, fica mais evidente que a
polêmica se acentuou, e vem ganhando terreno posições mais “favoráveis”,
como se vê em SP, onde as colunas “favorável” e “desfavorável” “empatam”.

Brasil: Tipos de decisão por Estado

Fonte: Sites TJSP, TJRS, TJRJ e TJMG (Oliveira, 2009) Base: 278 acórdãos

Os acórdãos - uma análise

Os dados acima apresentados demonstraram que os quatro Tribunais


localizados nas regiões sul e sudeste concentravam (até outubro de 2009)
89% de toda produção jurisprudencial do país sobre o tema em estudo,

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Rosa Maria Rodrigues de Oliveira. (In)visíveis casais: conjugalidades...

motivo pelo qual foram escolhidos para a realização do trabalho de cam-


po. Apresentarei, contudo, a interpretação da base de dados documentais
encontrados em sua atualização anterior, realizada no ano de 2008, pois
os acórdãos adicionais encontram-se sob análise.
Até junho de 2008 os 4 Estados eleitos para o campo concentravam
170 acórdãos em inteiro teor. Considerando as ementas do Rio de Janeiro
para análise (17 documentos em segredo de justiça), o campo documen-
tal resultou em 187 decisões, considerados neste cálculo os acórdãos em
segredo disponibilizados em seu inteiro teor no Rio Grande do Sul e
em Minas Gerais, e ainda, num acórdão em segredo encontrado em São
Paulo, que obtive a partir de seu relator que me repassou o documento
quando o entrevistei.
Um detalhe importante na seleção dos documentos para análise é
que os embargos de declaração ou infringentes, sempre referidos a uma
apelação ou a um agravo, entraram na contagem geral, pois são recur-
sos diferentes, mas foram analisados de um ponto de vista do tipo de
decisão de um modo diverso, pois seu conteúdo muitas vezes repete as
razões do apelo ou do agravo de instrumento. O mesmo acontece no
caso de um agravo de instrumento que decide, por exemplo, que a “com-
petência de julgamento do processo de reconhecimento de sociedade de
fato deve ser a do foro do domicílio do réu, que mora em outro Estado”.
Assim sucessivamente, fui aglutinando os recursos que repetiam razões
e que se referiam a questões processuais apenas, excluindo estes últimos
da análise e mantendo os primeiros para identificar os enquadramen-
tos. Isso significa que o número dos acórdãos destinados à análise de
conteúdo diminuiu em função deste refinamento, resultando em 180
decisões cujo conteúdo foi analisado até 2008.
Na Revista dos Tribunais, onde localizei cinco acórdãos, notei que ha-
via uma evidência maior na indexação para uma das duas principais ten-

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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.

dências de decisão identificadas pela leitura dos acórdãos – a tese segundo


a qual é possível enquadrar as conjugalidades homoeróticas no conceito
de sociedade de fato. Por isso, o primeiro critério que adotei para analisar
os acórdãos foi partir das decisões publicadas na Revista dos Tribunais, e
como critério suplementar, considerei o conteúdo em que identifiquei
diferenças e características comuns entre os Estados.
As decisões publicadas pela Revista dos Tribunais guardam dois as-
pectos peculiares. O primeiro pormenor é que pensando nas “gradua-
ções” entre um extremo “favorável” e outro “desfavorável” no espectro
das decisões, os cinco acórdãos publicados na RT são representativos do
conjunto das decisões que classifiquei a partir dos documentos encon-
trados, pois uma das decisões nega qualquer efeito jurídico às conjugali-
dades homoeróticas, três consideram-nas próprias de serem enquadra-
das no instituto da sociedade de fato como um requisito que permite a
partilha de bens, e na última delas é reconhecida a existência de uma
relação familiar entre as partes, embora este não fosse o objeto do litígio.
Um segundo detalhe característico é que a discussão mais “direta” sobre
a natureza jurídica das conjugalidades homoeróticas foi pautada com
mais frequência no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
do que nos outros Estados, e não obstante nenhum acórdão do Tribunal
de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul figura entre os publicados
pela Revista dos Tribunais.
A análise dos acórdãos foi referenciada na identificação sobre os pa-
drões de demandas e de decisões em torno da controvérsia sociedade de
fato “versus” união estável para o enquadramento das conjugalidades ho-
moeróticas, e desdobrada em três tópicos gerais, que mostram como as
noções sobre família e casamento, a discussão sobre competência do foro para
o julgamento das ações, e a controvérsia sobre a existência de lacuna legal são
tratadas nos discursos oficiais dos relatores em seus votos.

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Rosa Maria Rodrigues de Oliveira. (In)visíveis casais: conjugalidades...

O entendimento mais geral quanto à necessidade da presença de pes-


soas do sexo oposto para constituição de um casal é evidenciado em uma
das decisões publicadas na RT, com o caso de um recurso do TJRJ, onde
relator se referia ao estado civil do falecido, analisando as argumentações
sobre o relacionamento em questão no recurso, segundo as quais o com-
panheiro sobrevivente recorre “alegando que durante quase quinze anos,
manteve uma sociedade de fato, em união estável e permanente com o de
cujus, fruto de relação homossexual assumida, que veio a falecer no estado
civil de solteiro, sem deixar descendentes ou ascendentes” (AC/TJRJ, Recurso
B, voto do relator, 06/10/00). O modelo médico do “homem-pai” (Freira
Costa, 1999) parece influenciar o imaginário do julgador, principalmente
quando se observa que a maioria dos pleitos de inventário são propostos
por homens gays.
Mesmo num caso de outro julgado do TJRJ, favorável à tese da cola-
boração direta,8 esta representação é invocada – pois foi autorizada a par-
tilha, mas somente porque o relator considerou comprovada a sociedade de
fato. O recurso foi favorável à parte, mas seguiu a mesma lógica da decisão
anterior, apreciada no recurso anterior desfavorável, dizendo que “não
tem prevalência o aspecto da união homossexual, pura e simples como meio
de se alcançar o direito à partilha [...] de bens eventualmente amealhados
durante essa união” (AC/TJRJ, Recurso B, 06/10/00). Esta argumentação
é significativa, pois uma união entre pessoas do sexo oposto, em si, cons-
titui meio hábil “de se alcançar o direito à partilha ou à sucessão integral de
bens eventualmente amealhados durante essa união”. A diversidade de sexos
biológicos é o fator que diferencia os dois casos. A questão aparece na ava-
liação que muitas decisões fazem das provas produzidas pelas partes, onde
o “simples fato” de uma parceira ou um parceiro ter trabalhado em “lides
domésticas”, em atividades ligadas à administração dos bens ou ainda ter
assumido sozinha(o) os cuidados com a/o companheira/o até seu óbito

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não é levado em conta como prova da existência de sociedade de fato, o


que ocasiona muitas vezes o insucesso na demanda.
Deste modo, a discussão em torno da tutela jurisdicional voltada a
suprir a falta da legislação por intermédio da interpretação analógica nos
casos controversos sobre conjugalidades homoeróticas é polarizada em
duas posições básicas: os que afirmam que há uma restrição clara em nível
constitucional e legal e outra, que entende que existe um vazio legal que
deve ser suprido pela jurisprudência.
O princípio da segurança jurídica comparece também de algum modo
no discurso técnico daqueles magistrados mais ligados a uma visão que
se apega ao estrito cumprimento da lei quando se referem às decisões que
interpretam de modo mais amplo a Constituição Brasileira e as leis civis
equiparando direitos. Para estes, o enquadramento possível, a fim de pre-
servar este princípio, deveria ser no campo do direito das obrigações, cuja
figura jurídica aplicável a esta investigação é a sociedade de fato. Por outro
lado, aqueles que confirmam os pedidos de reconhecimento de união es-
tável cruzam os dispositivos constitucionais e analisam o fenômeno atra-
vés do viés da garantia da proeminência do princípio da igualdade (Art.
5º CF) como basilar para a constituição de um Estado Democrático de
Direito (Art. 3º CF).
Colocados em disputa no cenário dos litígios, os efeitos jurídicos das
conjugalidades homoeróticas são distribuídos pelo Estado na figura do
Poder Judiciário com base em princípios de justiça, que uma vez sacra-
lizados na lei, tornam mais sólido o que Mary Douglas chama de “edi-
fício social” cujas instituições devem atuar preservando. Nesse contexto,
o princípio da igualdade aparece como contrapeso na balança de “um
sistema intelectual mais ou menos satisfatório, cujo propósito é garantir a
coordenação de um determinado conjunto de instituições”, segundo sua
definição de justiça (Douglas, 2007, p. 116).

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A autora observa de que modo esta definição funciona no Ocidente,


quando afirma que “as instituições requerem que a igualdade de acesso
seja incorporada aos princípios fundamentais, legitimadores. Elas invo-
cam a falta da igualdade para deslegitimar os regimes rivais. Elas enume-
ram sociedades odiosas, estratificadas segundo camadas horizontais, que
se dispõem como uma pirâmide, com seu topo.” A conclusão é que sem o
recurso “à uma religião, ao intuitivismo ou às ideias inatas, é muito difícil
defender um princípio substantivo de justiça como algo universalmente
correto”. M. Douglas com isso quer explicar que “um sistema de justiça é
concebido expressamente para proporcionar princípios coerentes a partir
dos quais se possa organizar o comportamento social” (Douglas, 2007,
pp. 119-122, passim).
As controvérsias em torno da interpretação da lei que observei nos
acórdãos de certo modo ligam os tribunais dos quatro Estados e seus rela-
tores, aproximando-os a partir das diferenças entre as decisões e posicio-
namentos teóricos sobre um mesmo tema que expressaram nos acórdãos e
entrevistas, que aparentemente aparecem significadas em discursos acerca
da “imagem” que o tribunal gaúcho tem para os demais, em função da
atuação pretérita de alguns magistrados daquele Tribunal em relação ao
“movimento de direito alternativo”, mas que não se confirma, contudo na
“autoimagem” que os mesmos cultivam de sua atuação.9
Entretanto todos os discursos dos acórdãos que interpretei demons-
tram, não importa se para reafirmar, conjecturar ou refutar, “marcadores
subjetivos” caracterizados pela dualidade sexual do par e a capacidade
reprodutiva para a “legitimação” à constituição de um ente familiar, o
que remete a muitas das convicções sobre “natureza”, “reprodução” e in-
flexões eventualmente pautadas na biologia, na religião, no positivismo
jurídico e na teoria crítica do direito como uma parte importante dos
padrões discursivos observados. Aí reside a grande riqueza do campo com

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os sujeitos entrevistados, desembargadores relatores dos acórdãos judiciais


que estudei.

As entrevistas: aproximando mais o foco

Em dezembro de 2005, julho e novembro de 2006 e outubro de 2007


realizei vinte e cinco entrevistas nos Estados de Minas Gerais, São Paulo, Rio
Grande do Sul, e Rio de Janeiro. Destas, elegi para a análise vinte diálogos
com desembargadores relatores, dos quais aqui apresento uma amostra.10
Todos/as os/as interlocutores/as falaram sobre noções sobre família e ca-
samento, competência do foro na vara de família ou obrigações, e necessidade
de lei específica, embora alguns tenham tocado no tema das adoções por
pares homossexuais. Era frequente também a discussão sobre as decisões
tomadas pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em particular
nos outros Estados do campo. As passagens que destaco abaixo aborda-
ram o tema da família e do casamento a partir dos depoimentos dos de-
sembargadores, demonstrando que muitos elementos encontrados nestes
discursos dizem respeito à reflexão teórica sobre gênero e homoerotismo
que nortearam a pesquisa.
Baseadas em suas trajetórias de vida e convicções pessoais em torno
do tema das conjugalidades homoeróticas, paralelamente a suas posições
técnicas, as noções sobre as normas relacionadas à manutenção do casal
reprodutor como centro do conceito de família aparecem em muitas das
falas com um grau maior ou menor de relativização, ainda que obser-
vadas no mesmo contexto regional. Embora não exista uma linearidade
muito homogênea nos Estados, e nem entre eles, pois há “dissidências”
evidentes, notei um padrão de discursos no sentido de considerar as con-
jugalidades homoeróticas como um “desvio” do dispositivo de aliança
“normal” encarnado na formação do casal heterossexual.

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Vejamos, por exemplo, Barreto, que expressa a convicção em relação ao


que seria a “família”, bastante influenciado pela autoridade do catolicismo
e pela opinião do Papa a respeito do tema, cujo fundamento na natureza
é um dos argumentos a ela associados. “[...] é homem, mulher, filho é isso
mesmo. O Papa falou isso, o Papa que morreu e o Bento XVI. [...] A família é o
homem, a mulher e os filhos. É verdade, você não foge disso. Natural. Entendeu?
Natureza, não tem jeito de ser diferente.” (Barreto – TJMG, 13/07/2006).
Jacques disse algo dissonante em relação a seus colegas com relação à
noção de “casamento” e também apresenta em sua atuação jurisdicional
uma posição bem característica, mais “favorável” ao reconhecimento de
união estável. Este desembargador ressaltava a necessidade, a partir de sua
compreensão sobre o que disse Jacques Derrida (2004) em sua última
entrevista ao Jornal Le Monde antes de sua morte, sobre a necessidade de
uma “dessacralização do vocábulo mariage”, retomando a possibilidade
de que o mesmo seja considerado como contrato.
No Tribunal de Justiça de São Paulo as atribuições à doutrina católica
também apareceram em algumas falas, como a de Barcelos, também rela-
tor. “[...] casamento entre homem e mulher e para fins de procriação, isso é
uma mentalidade que a Igreja enfiou aí e até hoje perdura não é. [...] como
juiz e pessoa, cidadão, a minha ideia não varia muito, eu venho de família
assim muito rigorosa homem é homem, mulher é mulher, casar homem com
homem é um absurdo [...]” (Barcelos, TJSP, 14/09/2006). Não obstante,
ao comentar uma de suas decisões comigo, que classifiquei de desfavorá-
vel, este interlocutor observa que sua posição é mediada pela necessidade
de comprovação da sociedade de fato, visando à partilha patrimonial, o
que implica no reconhecimento de algum tipo de efeito jurídico às con-
jugalidades homoeróticas que assim sejam consideradas.
Hannah, relatora em diversos acórdãos no Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul e que equiparam as conjugalidades homoeróticas às uniões

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estáveis, acentua a necessidade de perceber o caráter “afetivo” das relações


amorosas, para que saiam da esfera obrigacional pelo que as assemelharia
ao vínculo amoroso entre parceiros de sexo oposto. Ronald, por sua vez,
relator no Rio Grande do Sul de acórdãos que reverberaram no Superior
Tribunal de Justiça, entende que os valores relativos ao casamento estão
mudando e sua atuação como magistrado deve acompanhar estas altera-
ções – que ele vê como benéficas – na organização familiar.
No Tribunal do Estado do Rio de Janeiro, efetuei uma entrevista com
Cássio, relator num dos acórdãos que classifiquei como favoráveis. Ele me
disse que compreende as “uniões homossexuais” como “uma realidade, e que
há alguns anos as pessoas estão ‘saindo do armário’”. Isso vai alargando a acei-
tação do público, mas “a lei não prevê, a Constituição é clara, o Código Civil
também, referem homem e mulher para considerar o casal.” Perguntado sobre
a eventual conversão em casamento das uniões que sejam reconhecidas via
judicial, ele afirma, contudo, que “não aceita o casamento como possibilidade
para homossexuais”, pois o “objetivo do casamento é gerar filhos”.
Em muitos relatos que obtive sobre o tema da competência do foro, os
magistrados manifestaram-se sobre a possibilidade de alteração legislativa a
partir da atividade jurisdicional, fundamentando tal compreensão nos fatos
relativos à evolução do tratamento jurídico dispensado ao concubinato e da
relação de companheirismo no Brasil (Nogueira da Gama, 2001).
De um modo geral, foi possível perceber que a variação de interpreta-
ções da Constituição Federal observada nos acórdãos estudados remete ao
problema da interpretação dos princípios da igualdade e da dignidade hu-
manas em relação às determinações normativas quanto ao conceito jurídico
de família. As controvérsias se dividem em duas vertentes “teórico-práticas”
de interpretação – uma que considerei mais “estrita”, ligada às decisões que
enquadram as conjugalidades homoeróticas no campo obrigacional, e ou-
tra mais “ampla”, que se vale da analogia e da interpretação sistemática da

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constituição federal e legislação correspondente para decidir os casos que


podem ser relacionados ao tema da existência de lacunas na legislação.

Considerações Finais

No que se refere às elaborações teóricas sobre as relações entre discurso,


poder e sujeito, penso que as entrevistas e os acórdãos que analisei revelaram
práticas discursivas e fatos de discurso (André, 1995) no campo da sexualidade
que apontam importantes relações de poder constitutivas de subjetividades.
O que fica no pano de fundo é uma disputa discursiva sobre sexualidade,
moral e direito entre os magistrados e se concretiza no caso das conjugalidades
homoeróticas, na discussão sobre seu enquadramento legal – ou, nos marcos
teóricos que revisamos acima, sua adequação (ou não) ao dispositivo de aliança
convertidos aqui na polêmica sobre casamento, união estável e sociedade de fato.
A existência das conjugalidades homoeróticas encontraria então uma
limitação para seu reconhecimento na ausência de legislação. A saída para
alguns é ressignificar seu alcance, para que dela não se perca tudo: a par-
tilha, o benefício, a inclusão no plano de saúde seriam então, ao menos,
preservados, considerados possíveis, mas não da mesma forma como no
casamento ou na união estável. As opiniões se dividem quanto a quem é
legitimado ou não a exercer o direito de firmar um contrato de casamen-
to, no caso de uma declaração de união estável ser deferida, já que essa é
sua consequência legal.
Mostrei então que a maioria das/os entrevistadas/os – tanto ao decidirem
quanto ao responderem perguntas sobre a competência do juízo para aprecia-
ção de litígios envolvendo conjugalidades homoeróticas – se posicionou pelo
“enquadramento” da natureza jurídica das conjugalidades homoeróticas no
direito das obrigações em função ora da ausência de lei específica, ora da inter-
pretação da Constituição Federal (Art. 226, § 3º), reconhecendo a sociedade

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de fato. A discussão sobre o valor do trabalho doméstico, concretizada nas dis-


cussões sobre a “teoria da colaboração indireta ou direta” a partir daí desponta,
como contenda ligada não só diretamente à questão de gênero como demons-
tra Hirata (1995) e Hirata e Kergoat (2007), mas também às posições contro-
versas sobre os requisitos para a consideração de uma “verdadeira” sociedade
de fato. Esta é uma referência que considerei para análise, principalmente ao
pensar na posição dos homens gays, a maioria dos personagens que litigam em
inventários com os demais parentes dos falecidos companheiros, por exemplo.
Procurei então relativizar o que se tem convencionado denunciar como
certa “tendência” dos tribunais assumirem posições consideradas “mais con-
servadoras”, “homofóbicas” ou “preconceituosas”, quando o assunto é o reco-
nhecimento jurídico das conjugalidades homoeróticas. Penso que esta cons-
tatação, embora em certos casos seja realmente plausível, merece ser mediada
a partir das tonalidades que estão “entre” uma decisão que pode ser conside-
rada, dependendo do ponto de vista, “favorável” e outra, “desfavorável”.
A análise das decisões demonstra que não obstante os campos do direito
de família e do direito das obrigações detenham uma definição muito cla-
ra, no caso das conjugalidades homoeróticas cria-se uma espécie de “zona
híbrida” entre estas esferas, resultado da aplicação de conceitos técnico-ju-
rídicos pertencentes a ambas. De fato, ao negar o reconhecimento de união
estável, mas aprovar a divisão de bens patrimoniais, de um lado, quer-se
impedir o enriquecimento ilícito, princípio próprio da legislação civil (Art.
884 do CC/02) e beneficiar a parte que reclama seu quinhão de alguma for-
ma. Porém fala-se também de uma relação entre dois sujeitos que é anulada
de um ponto de vista do vínculo amoroso que significa, nem que seja no
evento da morte ou da separação, como é o mais comum entre os processos
que chegaram a recurso.
Este “rearranjo das situações” acaba, em alguns casos, contemplando a
pretensão das partes, de um ponto de vista econômico – mas com exigên-

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cias que só são feitas em função da sexualidade das mesmas, como parece
acontecer no caso das controvérsias em torno da “tese da colaboração
indireta”, pacificadas no STJ para casais de diferentes sexos, mas que con-
tinuam em debate quanto a pessoas do mesmo sexo.
Porém, como vimos, se considerarmos os efeitos gerais demandados
pelas partes na maioria dos acórdãos estudados, que em sua maioria são
patrimoniais, a conclusão que considero mais importante é que “a balança
da justiça” tem pendido mais a favor do que contra o reconhecimento de efeitos
jurídicos aos casais de pessoas do mesmo sexo. O que me interessa salientar é
uma tentativa paradoxal em reconhecer efeitos jurídicos patrimoniais em
praticamente todos os pedidos. Isso aparece de modo ambíguo, tanto nas
entrevistas, quando as/os entrevistadas/os falavam sobre a necessidade ou
não de legislação para pacificar o tema, quanto nos longos debates técnicos
travados nos acórdãos, que por sua vez revelam as interfaces entre os tribu-
nais, a partir de seus pontos de convergência e de dissenso.
Há entre estas noções variadas conexões, como aquela que, por ex.,
propugna ser a sexualidade reservada para reprodução, e que o casamento
deva assegurar normativamente (de um ponto de vista técnico – estatuto
legal) a instituição familiar, em seu conceito “tradicional”, que envolve a
conjugalidade heterossexual. Relações reprodutivas e casamento, assim,
são instituições mantidas “em equilíbrio” por essa noção de entidade fa-
miliar, composta pelo casal heterossexual e sua prole.
Assim, o conceito de ‘casamento’, convertido em sacramento pela Igreja
Católica e utilizado como um referente fundamental para a constituição da
família considerada “normal”, vem sendo ressignificado ao longo do tempo
por casais de pessoas do mesmo sexo que reivindicam a mesma possibilida-
de como uma bandeira já consagrada pelo movimento homossexual.
O que fica em aberto no contexto das relações entre indivíduos e Estado,
a partir daí? Por outros motivos reflete Lia Zanotta Machado (2001) no mes-

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mo sentido, quando trabalha “com a simultaneidade da atualização” do que


vem denominando ‘códigos relacionais da honra’ e ‘códigos baseados nos va-
lores do individualismo de direitos’ presentes nos diversos modelos de família
no Brasil contemporâneo. Para esta autora, ambos estruturam as sociedades,
e não somente em se tratando dos modelos familiares. “Um e outro estão pre-
sentes e informam também a mesma esfera pública e permeiam as diferentes
configurações dos Estados nacionais. Retoma-se, assim, a questão das relações
entre Estado e famílias, Estado e cidadãos, (...)” (Machado, 2001, p. 14).
A pergunta de Butler (2003) sobre como fica o “desejo do indivíduo pe-
rante o Estado” é direcionada então ao movimento homossexual, indagando
sobre a radicalidade sexual como uma proposta ainda viável num contexto
social globalizado e ferozmente individualista, em que a categoria sexo foi
elevada à categoria de Estado, enquanto o gênero permanece isolado na esfera
do exótico e do inassimilável.

Notas

1 Doutora em Ciências Humanas (UFSC, 2009); Mestre em Filosofia, Sociologia e Teoria do Direito
(UFSC 2002); Bacharel em direito (UFRGS, 1992), advogada, consultora com experiência de
ativismo em direitos humanos LGBT, HIV/AIDS, gênero e sexualidades desde 1991, associada
ao CLADEM (Comitê Latino-Americano e do Caribe para a defesa dos direitos da mulher) e
membro do conselho diretor da ONG Themis - Assessoria e Estudos de Gênero, de Porto Alegre.
Agradeço ao CNPq, bem como a Dra. Miriam Pillar Grossi e a Dra. Luzinete Simões Minella, que
orientaram a tese que originou este artigo. e-mail: rosa.mroliveira@gmail.com
2 Regulada em suas linhas gerais pelos Art. 125 e 126 da CF, a Organização Judiciária brasileira adota
o princípio do duplo grau de jurisdição, isto é, a existência de duas instâncias de decisão, inferior e
superior. A primeira instância “é determinada pelo juízo em que se iniciou a demanda, ou onde foi
proposta a ação”. (Silva, 1989, p. 484) Neste sentido, costuma-se dizer juiz de primeira instância,
decisão de primeira instância, correspondendo ao chamado juízo a quo, que prolata a sentença. A
segunda instância é aquela em que o Tribunal toma conhecimento da causa já em grau de recurso,
e corresponde ao juízo ad quem, em prosseguimento à instância a quo, responsável pelo acórdão. A

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pesquisa aqui apresentada foi realizada na segunda instância.


3 Utilizo a expressão “conjugalidades homoeróticas” para designar as relações amorosas estáveis
mantidas por casais de gays e de lésbicas, clientela dos recursos judiciais analisados na pesquisa
que efetuei. Cf. Freira Costa (1992), Grossi (2003) e Heilborn (1993) sobre as noções de
“homoerotismo” e “conjugalidades”.
4 CAPES apoiou mediante bolsa de estudos esta pesquisa orientada pela Profa. Dra. Jeanine
N. Philippi, que resultou na dissertação intitulada “Para uma crítica da razão androcêntrica:
gênero, homoerotismo e exclusão da ciência jurídica”. (Oliveira, 2002)
5 “Longe de ser natural, o sexo em si é político – e o que manifesta, paradoxalmente, é a invocação
do gênero por parte do Estado. Como se vê, a ação se desenrola aqui pela interface de uma
política de direitos e da igualdade e de uma política das normas e da linguagem, pelo Estado e
contra o Estado. [...] Em outras palavras, é a ideia de gênero que é recusada, e não só a palavra, ao
mesmo tempo em que o Estado a utilize, se não a palavra, pelo menos a ideia.” (tradução livre)
6 “Sem dúvida a democracia é a regra da política sem fundamento transcendente, ou natural.
Mas a democracia sexual desempenha um papel particular hoje: se gênero e sexualidade são
questões privilegiadas atualmente é que essas questões representam a última extensão do campo
democrático. Nós acreditávamos que eram ainda naturais; as descobrimos políticas. Sem
dúvida desde Platão o mesmo “ódio à democracia” se faz ouvir, frente à “perturbação da ordem
natural”. No entanto, a lógica se moverá um pouco: enquanto o escândalo da democracia uma
vez provocou seus inimigos a recordar que as relações sociais são igualmente relações naturais,
agora a situação é inversa, uma vez que, para os democratas, são estas relações “naturais” que
aparecem como sociais - gênero e sexualidade, reprodução e filiação, são questões políticas
candentes.” (tradução livre)
7 Apelação é um recurso apresentado a partir de uma decisão final de primeira instância. Os
agravos são recursos de decisões tomadas no curso do processo (por ex. o deferimento de
alvará para venda de bem num inventário). Os embargos podem ser apresentados tanto em
decisões tomadas na primeira instância como nas decisões dos tribunais, e servem para escla-
recer pontos obscuros na decisão (no caso de embargos declaratórios) ou para refutar a decisão
não unânime tomada pelo Tribunal (no caso de embargos infringentes).
8 Segundo a qual, a partir do entendimento da Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal,
só se comprova a sociedade de fato para partilha a partir de comprovação de participação
econômica na formação do patrimônio.

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9 Antônio Carlos Wolkmer (1995) relembra: “No final da década de oitenta, a expressão ‘Direito
Alternativo’ vinha designando uma disciplina ministrada na Escola da Magistratura do RGS,
coordenada pelo juiz Amilton Bueno de Carvalho. Tendo em vista esta experiência, certos setores
da imprensa associaram, polemicamente, a designação com um grupo de magistrados gaúchos
que vinham proferindo sentenças e resolvendo conflitos de forma não convencional e progressista.
Em pouco tempo, a expressão alcançou nível nacional e passou a configurar uma pluralidade de
instâncias profissionais habilitadas a articular frentes de lutas dentro da legalidade instituída (o
uso alternativo do Direito) e da legalidade insurgente a instituir (práticas de pluralismo jurídico)”.
(Wolkmer, 1995, p. 143)
10 No Tribunal do Estado do Rio de Janeiro, entrevistei 01 relator, e disponho da transcrição da
entrevista de outros três desembargadores, entre eles dois relatores de acórdãos que estudei, a
partir de contato com uma pesquisadora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ/
IMS), Dra. Luciane Moás (2006).

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ABSTRACT: Based on case study carried out in the Courts of Justice of Rio Gran-
de do Sul, Rio de Janeiro, Sao Paulo and Minas Gerais, I articulate theoretical
issues present in the field of gender studies and anthropology with legal positions
on marriage and stable family, identified by the analysis of judicial decisions and
dialogue with twenty-five judges on judicial remedies on “homoerotic conjugali-
ty”. The analysis indicates an influence of the “sex / gender” of the parties to the
judicial decision-making. There is still the devaluation of domestic work in par-
ticular of gay men, in inventories litigation for the assets of a deceased partner to
ensure their status as heirs. However, there is a trend that may be considered more
“positive” than “negative” in decisions of the Courts in the study, if the discussion
is relativized in terms of award sharing assets to some subjects.

KEYWORDS: Homoeroticism, Conjugality, Judiciary.

Recebido em abril de 2010. Aceito em setembro de 2010.

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Periferias, direito e diferença: notas
de uma etnografia urbana

Gabriel de Santis Feltran1

Universidade Federal de São Carlos

RESUMO: Este artigo descreve e analisa as transformações da questão – analítica,


teórica e política – das periferias urbanas, no Brasil contemporâneo. Enfocando o
percurso de transformações no projeto de mobilidade dos “trabalhadores” que colo-
nizaram as margens da cidade de São Paulo nas últimas quatro décadas, argumento
que o conflito que se funda nesses territórios de fronteira mudou de estatuto. Se nos
anos 1980 esse conflito pôde ser pautado publicamente na perspectiva de integração
das periferias “trabalhadoras”, pela aposta na extensão dos direitos da cidadania como
contrapartida social do assalariamento, agora se trata sobretudo de gerenciar o con-
flito – não raro muito violento – que sustenta a figuração pública desses territórios
“marginais”. Com base em situações etnográficas, discuto algumas das consequências
sociais, políticas e analíticas dessa transformação.

PALAVRAS-CHAVE: periferia urbana, etnografia, direito, diferença, violência.

Apresentação
A partir de etnografias realizadas em São Paulo, nos últimos dez anos,
este artigo2 se dedica a investigar os sentidos políticos e os dilemas teóri-
co-analíticos impostos por quatro décadas de transformações profundas
na dinâmica social das periferias urbanas brasileiras. O par de categorias
“trabalhador” e “bandido”, muito acionado em diferentes perspectivas e
situações de pesquisa, nesses anos, é tomado aqui como objeto heurístico
de uma reflexão sobre as fronteiras que se desenham na compreensão
contemporânea desses territórios e populações. A partir da caracterização

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dessas fronteiras, parece-me ser possível estudar as distintas modalidades


do conflito político contemporâneo em torno das periferias urbanas bra-
sileiras, bem como alguns de seus desdobramentos teóricos e analíticos.
Ao tratar de “trabalhadores” e “bandidos” em diferentes perspectivas e
situações etnográficas, portanto, este texto trata de disputas de significado
que remetem a enfrentamentos práticos, por vezes muito violentos, que
situam a administração das periferias da cidade – muito relacionada hoje
à gestão da “segurança pública” – como uma das preocupações centrais
dos citadinos e seus governos.3
O texto que segue está organizado em quatro partes. Na primeira re-
flito acerca dos deslocamentos temáticos em meus estudos de campo que,
na última década, partiram da ênfase analítica nos movimentos sociais de
“trabalhadores” e se conduziram, mais recentemente, para uma tentativa
de compreensão dos significados políticos da emergência do “mundo do
crime” como instância normativa nas periferias da cidade. Na segunda
parte do texto, esboço algumas das relações entre teoria e método que se
inscreveram nesse deslocamento temático, e se inscreveriam necessaria-
mente, a meu ver, em qualquer tentativa de etnografar o conflito político
contemporâneo, expresso em formas renovadas de reivindicação de direi-
tos, gerenciamento social e disposição de violência (Feltran, 2010b). Na
terceira parte do artigo apresento as linhas gerais de transformação social
e política das periferias da cidade a partir do distrito de Sapopemba, na
zona leste de São Paulo; refletindo sobre essas transformações, delineia-se
o argumento da mudança de estatuto do conflito político que atualmente
emerge tematizando esses territórios. Finalmente, nas notas finais apre-
sento três situações etnográficas em que se nota tanto a plasticidade da
clivagem entre “trabalhadores” e “bandidos”, a depender dos contextos
estudados, quanto os significados radicalmente políticos contidos em sua
enunciação contemporânea.

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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.

Percurso de pesquisa

Há mais de dez anos iniciei meus trabalhos de campo nas periferias de São
Paulo. A princípio pesquisei na zona Oeste da região metropolitana, muni-
cípio de Carapicuíba, onde permaneci entre 1998 e 2002; há oito anos faço
pesquisa na zona Leste da cidade, inicialmente tendo como base a Vila Pru-
dente, e nos últimos seis anos concentrando as incursões de campo no distrito
de Sapopemba. Embora o centro das preocupações de pesquisa permanecesse
o mesmo – compreender os significados políticos das mudanças intensas no
tecido social das periferias – os temas específicos com que trabalhei nesse tem-
po mudaram muito; para resumir, saí do estudo dos “trabalhadores” e dos seus
movimentos sociais para chegar até os “bandidos” e sua “vida no crime”. Num
primeiro momento, portanto, as noções de direito e de cidadania foram ope-
radoras centrais da minha análise, na medida em que me permitiam elaborar
a “questão das periferias” no espaço entre os mundos social e político, ou seja,
nos trânsitos entre indivíduos e famílias, seu trabalho e sua religião, suas asso-
ciações e movimentos, suas “lideranças” e “representantes”, suas relações com
partidos e governos etc. A tentativa de costurar analiticamente essas dimensões
traduzia-se no esforço de compreender as tensões constitutivas das relações
entre a vida cotidiana nas periferias e os discursos público-políticos sobre elas.4
Meus estudos sobre os movimentos sociais populares de São Paulo foi,
ainda, muito marcado pela literatura que identifica um nexo constitutivo entre
cultura e política, que minhas investigações tentavam captar no trabalho de
campo.5 Imerso nessa perspectiva, meus territórios de pesquisa (as periferias,
sobretudo as favelas) e os seus atores políticos mais evidentes (os movimentos
populares) foram construídos como objetos de análise a partir de pressupos-
tos normativos; essas periferias seriam espaços de privação, embora politi-
zados pelas práticas dos movimentos, em ciclo iniciado nos anos 1970, que
na década seguinte forjaria nos espaços públicos um locus de expressão dos

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interesses dos mais pobres da cidade. A representatividade desses atores, ana-


liticamente então fora de questão, geraria maior pluralismo na cena política e
daí seu impacto democratizante: “ampliando” a atividade política para além
dos marcos do Estado e das instituições formais, os atores coletivos das peri-
ferias traduziriam a reivindicação por bens sociais (asfalto, água, luz, casa etc.)
em luta por universalização de direitos. De movimentos sociais, tornavam-se
então sujeitos de locução pública de demandas de grupos sociais tradicio-
nalmente privados de legitimidade pública, mostrando-se então como novos
personagens políticos.6
Nesse marco interpretativo, portanto, a noção de direito se colocava tanto
como categoria analítica quanto como aposta política. Daí a normatividade
democrática intrínseca à análise.7 Pressupunha-se no próprio corpo conceitu-
al, junto dos “nativos” (as “lideranças” dos movimentos, os gestores estatais de
governos “democráticos e populares”, entre outros), que com a transição de
regime político estaria aberta uma possibilidade de construção democrática em
que as classes trabalhadoras estariam integradas como atores relevantes num
projeto de nação mais democrática, portanto social e politicamente menos
desigual. O direito aparecia como categoria estratégica de todo um projeto
político, que figurava as periferias urbanas como território de emergência de
sujeitos centrais para sua consecução. Mesmo distante do campo disciplinar
da Antropologia, do qual fui me aproximar mais tarde, a ênfase na observação
e na descrição qualitativa dos encontros de investigação, que já se fazia pre-
sente, tensionava todo esse corpo conceitual. Assim, simultaneamente con-
vivia muito com esses movimentos de base, me afetando pelas suas causas, e
esforçava-me por desnaturalizar os seus pressupostos de militância, os modos
de reivindicar legitimidade a suas demandas etc.
A tematização do direito nesses termos me trazia assim, sem que me desse
conta, um ganho etnográfico relevante. A ênfase nos movimentos como gera-
dores de novos direitos impedia, de saída, que as periferias da cidade fossem

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lidas pela ótica da ausência – de civilidade, de educação, de inteligência, de


formação etc. A constatação das novidades políticas plasmadas entre aqueles
atores verificava que daqueles territórios brotara um projeto político que se
expandia para muito além dali, que chegava mesmo ao centro da cena po-
lítica nacional. As conexões eram visíveis empiricamente – fazendo pesqui-
sa começava-se nas reuniões de favela e transitava-se a espaços mais amplos
dos movimentos, dali aos partidos, eleições, governos, sindicatos e assim por
diante. O olhar analítico verificava as relações entre esses cenários. E daí ou-
tras relações apareceram – a militante não participaria da Assembleia nesse
domingo porque visitaria seu filho preso; a filha do líder comunitário havia
se convertido ao pentecostalismo; a associação recebia recursos de responsa-
bilidade social de empresas multinacionais etc. Assim o trabalho de campo
seguiu e, partindo desse cenário de estudo da política, do direito e da de-
mocracia, quase celebratório da virtude democrática das periferias urbanas,
dez anos depois eu estudava seu avesso normativo: o “mundo do crime”, a
violência e as consequências da emergência do PCC (Primeiro Comando da
Capital) nos territórios estudados. As passagens foram curiosas, porque nada
bruscas, e porque esses últimos temas escapavam absolutamente da narrativa
integradora operada pelo direito e pela política nas teorias normativas. Algo
havia se deslocado, nesse caminho, e instigava a compreensão.
Dedicando-me aos novos temas, e refletindo sobre essas mudanças, tenho
me dado conta de que conservei nesses anos uma mesma questão de fundo. Se
passei do estudo de movimentos de “trabalhadores”, na perspectiva universa-
lista do direito, para o estudo de “bandidos” e suas facções, numa perspectiva
etnográfica, mantive a perspectiva inicial de vislumbrar processos de subjetiva-
ção política – relações entre as dimensões íntima, social e pública – a partir das
periferias da cidade. Inicialmente, estudei os modos como a emergência públi-
ca de sujeitos políticos impactava a dinâmica social das periferias e influenciava
a transformação das práticas cotidianas de associações, famílias e indivíduos

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(rumo a um horizonte de democratização das relações sociais); neste segundo


momento, tratava-se de perscrutar os reflexos sociais (rumos indeterminados)
da emergência do “mundo do crime” como uma outra instância normativa
nos territórios estudados. Se o deslocamento temático não foi intencional,
portanto, tampouco foi casual. Ele se deveu, sobretudo, às dinâmicas próprias
de transformação dos territórios e dinâmicas sociais estudadas em campo.
Ao escrever minhas notas de campo, exausto ao final de cada dia de traba-
lho, dava-me conta de que o diagrama analítico que eu subscrevia – centrado
na mediação política dos direitos da cidadania – não havia sido pensado para
descrever as transformações que encarava em pesquisa; este diagrama não as
previa minimamente e, portanto, não as explicava. Foi preciso trabalhá-lo
paulatinamente e, nesse processo, a reflexão deslocou-se do plano normativo
da igualdade (fundadora da noção de direito) para a ênfase descritiva dos
pontos de tensão entre as dinâmicas privadas, sociais e políticas. A intenção
central passou a ser mapear as formas de marcação das diferenças internas às
periferias, acentuar suas diferenças internas, deslocar a perspectiva dos modos
de interação dos atores com o direito e a política, para a reconstrução de seus
modos de vida. Refletindo sobre estes conflitos e os modos de marcá-los co-
tidianamente, entretanto, a noção de “direitos” não desapareceu. Ela seguia
sendo muito utilizada nas periferias da cidade, e por isso tentei situar em
outro plano analítico sua normatividade imanente. A seguir, procuro expor
os modos dessa transição, em diálogo tanto com a teoria política quanto com
os dilemas próprios da prática etnográfica.

A diferença e o normativo numa etnografia da cidade (e da política)

Parece-me que há ao menos duas formas, muito distintas, de enxergar a


questão da diferença e dos modos como ela é marcada socialmente, quando
se estuda as periferias da cidade. De um lado é possível recuperar a própria

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significação de “periferia” no senso comum e nos debates públicos, a partir


de uma perspectiva que transforma em objeto de estudo os discursos, repre-
sentações ou figurações dominantes acerca desses territórios e seus habitantes.
De outro lado, é possível estabelecer uma perspectiva de pesquisa mais próxi-
ma dos territórios e populações circunscritos por esses discursos, ou seja, a do
etnógrafo que discorre tanto sobre discursos quanto sobre práticas observadas
em seus encontros de pesquisa de campo.
Na primeira perspectiva, centrada na dimensão discursiva e, por vezes,
acusatória, a “periferia” é invariavelmente uma categoria analítica que não se
mostra como tal: ela aparece como se fosse apenas uma categoria descritiva de
parte da “realidade” social, referida em uma existência social objetiva. Como
toda categoria de juízo, ela vincula uma população e seu território a um con-
junto de significados valorativos que reivindicam para si o estatuto de pura
constatação. As periferias seriam então o lugar dos pobres, e todos sabem o
que isso significa: trata-se de lugares subalternos socialmente, por vezes vistos
como “submundos”, em que convivem misturados “trabalhadores” e “bandi-
dos”, que despertam piedade e insegurança. Esses estereótipos, reforçados no
dia a dia das cidades, evidentemente constroem os limites cognitivos da sub-
jetivação política possível de indivíduos e grupos que vivem nesses territórios.
Mais precisamente, essas categorias produzem mais sujeição que subjetivação,
inscrevendo em corpos e territórios específicos valores externamente concebi-
dos. As periferias se conformam então, nesse plano, como um lugar social em
que se confinam algumas essências valorativas, que o dia a dia não cessa de
confirmar: dos programas televisivos aos pontos de ônibus, sabe-se bem dis-
tinguir quem é dali e quem não é à primeira vista. Os sinais diacríticos usuais
facilitam a tarefa, corporificando uma estética em que a cor da pele, os modos
de se vestir e falar, os circuitos urbanos e etc. tornam visíveis os critérios a em-
pregar cotidianamente como distinção social. Qualquer jovem negro usando
touca e roupas largas produz medo entre os pedestres de classe média.

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Pois bem, numa perspectiva etnográfica, ao contrário do que se poderia


pensar, essa visão estereotipada da “periferia” não é de modo algum dispensá-
vel; ao contrário, me parece fundamental considerá-la seriamente. Não creio
ser possível, ainda, propagar que essa figuração dominante deva ser contra-
posta a uma outra “realidade” (a “nativa”), relativamente infensa a esses este-
reótipos ou “mais verdadeira” que a primeira. Parece-me, diferentemente, que
os estereótipos que condicionam a marcação dos lugares sociais dos sujeitos
também devem ser levados a sério pelo etnógrafo, pelo simples fato de tam-
bém operarem, e fortemente, nos discursos e práticas daqueles que nasceram
e cresceram nos territórios pesquisados, com quem nos encontramos fazen-
do pesquisa. Como nas práticas sociais não há uma clivagem bipolar, mas
um conjunto de relações intensas entre periferias e outros mundos sociais e
públicos,8 ocorre que as classificações estereotipadas, acusatórias e de senso
comum também se tornam, nos cotidianos das periferias, matrizes discursivas
influentes na marcação de diferença, nas dinâmicas locais de conflito e socia-
bilidade. O que a etnografia permite fazer de modo singular, na tentativa de
equacionar analiticamente essa questão, é modificar o estatuto de cada matriz
discursiva, situando-as em seus contextos próprios de formulação e locução,
ou seja, expondo seu caráter francamente analítico e, portanto, desnaturali-
zando os critérios pelos quais estas categorias cristalizam juízos acerca daquilo
que reivindicam “apenas” descrever. Essas matrizes de discurso se tornam,
portanto, elas mesmas objeto de reflexão continuada, numa perspectiva etno-
gráfica. Mais do que isso, a etnografia procura fazê-lo nos marcos das relações
intensas que fundam essas categorias. O etnógrafo parte necessariamente,
portanto, do reconhecimento de distintos planos de enunciação discursiva
e prática social embora, simultaneamente, trabalhe com esses planos como
igualmente válidos em sua investigação. Assim, quaisquer que sejam os dis-
cursos captados na etnografia, e as práticas observadas nos contextos de sua
enunciação, elas serão em princípio igualmente relevantes para a análise.

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Numa perspectiva etnográfica, assim, a questão da alteridade (ou da di-


ferença) e os modos como ela é marcada se torna duplamente relevante. A
categoria “periferia”, por exemplo, recorta ela mesma um conjunto diferente
de uma dinâmica social empiricamente mais ampla, ou seja, produz nela um
recorte específico. A diferença que o produz é valorada pelos agentes que a
utilizam, e por isso mesmo a marcação dessa diferença interessa ao etnógrafo,
que a descreve situada em seus contextos. Nessa tradução, justamente, esse
conjunto de categorias, valores, juízos, estigmas etc. situa-se, analiticamente,
no mesmo estatuto de outros discursos situados, todos objetos da reflexão.
Assim, a categoria estudada constrói analiticamente um universo no qual co-
existem inúmeros outros marcadores de diferença, utilizados cotidianamente.
Por vezes, inclusive, esse conjunto de categorias utilizados na vida cotidiana
é claramente inspirado nos estereótipos construídos pelo senso comum (“la-
drão”, “preto” ou “menor”, por exemplo, são categorias acusatórias e deprecia-
tivas no senso comum que, no entanto, seguem sendo muito utilizadas pelos
sujeitos que lhes seriam alvo – seus significados de uso nas periferias, por isso,
frequentemente são muito distintos daqueles acusatórios: “ladrão” pode ter
significação muitíssimo positiva; entre jovens de favela dizer “preto” soa me-
lhor do que dizer “negro”; “menor” pode não denotar uma “infância carente”,
mas “resistência”).
A análise da diferença e seus modos de marcação nas periferias, por-
tanto, exige que o analista atue em diferentes planos: aquele inspirado (e
ressignificado) nas figurações que chamo aqui de “públicas”, e aquele que
responde a clivagens inscritas no próprio tecido social pesquisado. Essa dis-
tinção de planos é, evidentemente, inteiramente arbitrária, tanto quanto é
arbitrária qualquer nomeação de processos sociais, na medida em que qual-
quer nome cristaliza significados de dinâmicas bastante mais complexas. A
diferença é que aqui tenta-se objetivar o sistema classificatório do analista
– a partir de suas referências teóricas mais marcantes – fazendo-o interagir

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reflexivamente com os sistemas classificatórios estudados em campo.


Para tornar claro o argumento, parece-me ser preciso notar que, na et-
nografia, depara-se com frequência tanto com a marcação da fronteira que
desenharia espaços internos e externos às periferias (como a oposição entre as
categorias “mano” e “playboy”, por exemplo), quanto com dezenas de mar-
cadores que clivam os significados internos do conjunto dos “manos”: os “do
samba”, os “crentes”, os “do crime”, os “trabalhadores” etc.9 Fazendo pesqui-
sa de campo, essas clivagens internas, pouco notáveis a princípio, ganharam
mais e mais relevo nos meus diários de campo. Com o tempo, pude notar
que para quem vive nos bairros que eu estudo é muito relevante marcar a
distinção entre “quem mora nas casas” e “quem mora na favela”, embora a
princípio não desse nenhuma importância a isso. Da mesma forma, hoje pos-
so distinguir o que se quer dizer quando se diferencia “quem trabalha”, quem
“tá trabalhando” e quem “não arruma serviço nenhum”; quem “estudou” e
quem “não estudou”; quem “vem do norte” e quem “é de São Paulo mesmo”;
quem “tem cabeça” e quem “não tem”; quem “é bem de vida” e quem “passa
necessidade”; quem é “moreno” e quem é “branquinho”; quem “gosta de uma
cachaça”, quem “tá na droga”, quem “é viado” etc. Se todas essas categorias
não são bem compreensíveis para quem vive fora das periferias, ou têm ali
sentidos diferentes, a marcação interna dos lugares e papéis sociais de indiví-
duos, famílias, grupos e territórios das dinâmicas sociais que estudo depende
delas. As relações entre essas clivagens, contextuais, mas não desprovidas de
muitas regularidades, demonstra a complexidade dos diagramas de hierar-
quias, conflitos e associações nesses territórios, invariavelmente nomeadas –
significadas – por esses marcadores.
Frente a esse argumento, creio ser preciso tomar algumas posições teóricas.
Parece-me que para analisar a questão da diferença a partir de etnografias
das periferias da cidade – como, enfim, a partir de qualquer outro espaço
social demarcado por conceitos de uso corrente – não me basta nem uma

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sociologia das representações, nem uma antropologia imanentista. Ou seja,


embora aprenda muito com ambas, a mim não basta reconhecer e criticar as
matrizes discursivas do senso comum, amparados na crítica aos estereótipos
e preconceitos que não descrevem bem o vivido, como não basta reconstruir
analiticamente a dinâmica dos significados das categorias “nativas”, a partir da
observação intensiva de seus usos cotidianos. A oposição entre essas alterna-
tivas não me parece ser suficiente para elaborar minhas questões de interesse
pois, nelas, esses planos classificatórios devem ser distinguidos apenas para
que suas perspectivas possam ser colocadas em relação. Nessa operação de
distinguir e relacionar, inclusive, é que se delineia o duplo lugar no qual me
parece estar situado o etnógrafo, atento tanto a discursos quanto a práticas de
seus interlocutores, ao longo do período de pesquisa. As categorias marcado-
ras de diferença usadas cotidianamente nos territórios pesquisados se nutrem
dessa relação, embora as práticas cotidianas não sejam necessariamente um
reflexo imediato delas. Ou seja, as pessoas não agem o tempo todo como
alguém “do crime”, como um “viado” ou como um menino “do Elba”; não
o fazem, tampouco, em quaisquer situações, mas apenas nas situações em
que essa categorização é requisitada pela interação. Alguém conhecido por
ser “ladrão”, por isso, não rouba o supermercado cotidianamente, mas vai
até ali fazer compras, como qualquer morador do bairro, paga sua conta e
segue com sacolas plásticas para sua casa. Sendo os marcadores de diferença
contextuais, e responsivos às relações em questão, cabe ao etnógrafo colocar
em relação os discursos que marcam diferenças às situações de campo em que
elas devem ser – e são efetivamente – marcadas. Numa ação criminal, ou num
debate entre integrantes do “crime”, o mesmo rapaz deve agir como “ladrão”.
Isso não faz, entretanto, com que ele deixe de ser visto e classificado por quem
o conhece como “ladrão”, mesmo que esteja sendo visto fazendo compras no
supermercado. Há, portanto, distinções de planos de análise a considerar, e
categorias que marcam mais fortemente as diferenças que outras. Analisar

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esses marcadores requer invariavelmente, portanto, olhar para os diferentes


planos que contextualizam seus usos, que multiplicam os sentidos das cate-
gorias. Por isso, além de pensar as categorias que demarcam diferenças, ana-
lisando-as no plano discursivo, é preciso também observar quem as utiliza e
registrar as interações, situações e eventos em que elas são mobilizadas. É isso
que pode clarear, ao mesmo tempo, os estatutos – mais de um – e as perspec-
tivas – sempre igualmente válidas, embora epistemologicamente distintas –
dos discursos captados pelo etnógrafo em trabalho de campo, reflexivamente
contrapostos a seus próprios discursos. 10
Se o argumento é válido, vejamos como operam os significados que opõem
um “trabalhador” e um “bandido” tanto internamente aos cenários em que
faço pesquisa de campo, quanto externamente a eles. A diferença entre os
conceitos é, afinal, perfeitamente inteligível das elites às favelas, passando por
classes médias e outros territórios de periferia. Essa inteligibilidade, entretan-
to, não se traduz diretamente em práticas sociais, embora esses marcadores
façam parte de relações sociais efetivas. Daí a oportunidade que esse par de
categorias me dá para não apenas distinguir a polissemia da classificação “tra-
balhadores” e “bandidos”, a depender de perspectivas e situações em jogo,
mas também de discutir os nexos entre a questão da diferença e a do direito,
em sua dimensão normativa. Pois se, como argumentei, a etnografia inscreve
duplamente na análise a questão da diferença, pensar o direito é, ao contrário,
incluir na agenda de pesquisa um universal, baseado na tese normativa da
possibilidade de construção da igualdade entre os homens.11
Olhar para a clivagem valorativa entre “trabalhadores” de “bandidos” exi-
ge, portanto, trabalhar em bem mais de um plano de análise. Situar os usos
cotidianos dessa clivagem permite, justamente, acessar esse problema teórico
a partir de múltiplas perspectivas e situações empíricas, como tento fazer em
seguida. Antes disso, entretanto, é preciso considerar que a classificação entre
“trabalhador” e “bandido” opera uma partilha, no sentido de Jacques Ranciè-

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re.12 Essa partilha se mostra na medida em que, ao mesmo tempo, os conceitos


remetem a sistemas normativos distintos e coexistentes; no plano jurídico-
político, por exemplo, a lei considera essa classificação inexistente, uma fal-
sa clivagem: “trabalhadores” e “bandidos” seriam ali igualmente cidadãos; na
normatividade cotidiana verifica-se, entretanto, uma clivagem perfeitamente
inteligível, das favelas às elites: trata-se de designar pessoas essencialmente dis-
tintas. Nessa partilha produz-se o que Hannah Arendt chamaria de “mal-
entendido” (Arendt, 1987), espécie de impossibilidade comunicativa entre
os sistemas cognitivos da lei oficial e da classificação social. Dessa impossi-
bilidade comunicativa surge a relativa autonomia de cada um dos sistemas
de classificação, que produz a coexistência de ordenamentos, ou dispositivos
normativos, de conteúdos muito distintos, mas igualmente legitimados so-
cialmente: o código da diferença radical e o código da igualdade universal
entre “trabalhadores” e “bandidos”.13
No Brasil, ao contrário do que se poderia deduzir em análises mais legalis-
tas, esses ordenamentos – e outros – não necessariamente competem entre si,
mas convivem e se desenvolvem de modo simultâneo, ao longo das últimas
décadas. Consolidam-se as leis universalistas e a institucionalidade garantido-
ra de direitos humanos ao mesmo tempo em que se recrudescem as taxas de
criminalidade violenta e a reação violenta extralegal contra os que se chama
de “bandidos”. O que não se resolve na teoria normativa, portanto, se torna
uma operação corriqueira nas formas cotidianas de ação e significação. Se es-
ses dispositivos podem coexistir é porque ocupam estatutos distintos na linha
de ação e configurações em que se inscrevem os sujeitos que os utilizam.14
Cabe-nos estudar os modos de operação desses dispositivos, seguindo as dis-
tinções entre seus estatutos.
Se há igualdade no plano jurídico, e sua justificativa é normativa, nas
práticas cotidianas a separação entre “trabalhadores” e “bandidos” remete às
essências e, como tal, é vista como mera descrição do real. A construção co-

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tidiana da alteridade radical entre esses sujeitos permite compreender, por


exemplo, porque avistar um menino negro de boné e bermuda causa medo
nas senhoras de classe média e porque um “bandido” só pode regenerar, na
perspectiva de seus pares, se realizar uma conversão (ruptura essencial com
sua identidade pregressa) em ritual legitimado entre eles, como os promovi-
dos pelas igrejas pentecostais; ou porque é tão implausível ao senso comum a
ideia de direitos humanos para bandidos, que situa lado a lado planos de justi-
ficação cognitiva, e portanto dispositivos normativos, inteiramente distintos.
O etnógrafo, mais uma vez, antes de denunciar a miséria deste mundo, é
obrigado a tentar compreender essas perspectivas, colecioná-las, para verificar
que relação estabelecem entre si e como se manifestam nas práticas estudadas.
Ao assumir essa perspectiva, que implica ação metodológica específica,
senti-me estimulado a deslocar o lugar em que o discurso político-normativo
do direito, e suas premissas, ocupava em meu trabalho. A opção por radi-
calizar a observação, na minha pesquisa, mesmo quando fazia entrevistas,
se deve à necessidade de retirar o normativo dos locais de formulação das
categorias analíticas, para situá-lo como mais um objeto de análise, mais uma
representação ou discurso a compreender. A narrativa normativa do direito não
deixou de compor as categorias de análise por não ser “nativa” – ao contrário,
ela é muito presente nos discursos de atores das periferias da cidade – mas,
sobretudo, porque passou a ser vista como mais uma matriz discursiva a ser
levada a sério, no trabalho de campo, entre outras, na medida em que o di-
reito aparecia formulando discursos, identificações e práticas entre os meus
interlocutores, mas não era a única matriz que utilizavam. A noção de direito
e sua normatividade passaram, assim, a ocupar exatamente o mesmo estatuto
de outras matrizes discursivas “nativas”, igualmente normativas por trazerem
em si um “dever ser” específico e, ao mesmo tempo, fundamentalmente dife-
rentes em proposições dos conteúdos deste “dever ser”. Nessa medida é que a
etnografia me parece possibilitar essa equação compreensiva entre igualdade

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e diferença, em sua normatividade – a crença científica – imanente. Nas lei-


turas e na interlocução desses anos com a teoria etnográfica, demonstrou-se
ser preciso (um “dever ser”!), além de ouvir e discorrer sobre a coleção de
perspectivas que se acessa nos discursos obtidos em campo, observar práticas
sociais que os situam, descrever as situações em que são enunciados para, em
seguida, traduzir em texto o que se experimentou. O que segue é um esforço
a mais dessas tentativas de tradução.

As periferias a partir da clivagem entre “trabalhadores” e “bandidos”

Parece-me ser possível, agora, avançar no argumento já anunciado acima,


de que os usos e significados das categorias “trabalhador” e “bandido”, no
Brasil contemporâneo, são distintos a depender das perspectivas e das situa-
ções em que a classificação é formulada. Inicio pela demarcação de diferentes
perspectivas em jogo, para em seguida analisar como os significados usuais
dessas perspectivas se traduzem em ação social, em três situações etnográficas
distintas. Não parece ser produtivo escolher uma perspectiva dentre outras
(elas são múltiplas também na pesquisa de campo), e dissecá-la; parece-me ser
preciso, ao contrário, colecionar perspectivas do uso dessas categorias com o
máximo de rigor etnográfico para, a partir daí, organizar a reflexão sobre elas
e seus usos. A intenção central de fazê-lo, aqui, é em primeiro lugar assinalar a
força semântica crescente, nas últimas décadas, que a oposição “trabalhador”
e “bandido” passa a ter nas periferias da cidade (e fora delas); em segundo
lugar, trata-se de demonstrar empiricamente as distinções de sentido que as
categorias ganham quando utilizadas de um lado ou outro da fronteira cogni-
tiva que aparta territórios e sujeitos específicos da legitimidade necessária aos
considerados dignos de reivindicar direitos.
As categorias “trabalhador” e “bandido” tem me instigado há algum tem-
po e, para tratar delas atualmente, em São Paulo, gostaria de partir de uma

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caracterização do território de Sapopemba, que estudo nos últimos anos, e


das famílias que vivem ali. A ocupação desse território possui particularidades
que me permitem abordar o percurso de ênfases que as categorias “trabalha-
dor” e “bandido” sofreram e sofrem, ao longo das últimas quatro décadas.
Estive em Sapopemba pela primeira vez em 1999, e passei a fazer pesqui-
sa sistemática ali no início de 2005. Sapopemba é um dos 96 distritos do
município, situado num cinturão que os urbanistas costumam chamar de
“periferia consolidada” da cidade de São Paulo. O distrito está situado na
porção sul da zona Leste da cidade, fazendo divisa com a região conhecida
como ABC, composta pelos municípios de Santo André, São Bernardo e São
Caetano. Dos bairros em que faço pesquisa, avista-se, por exemplo, o polo
petroquímico de Santo André, e os moradores de Sapopemba deslocam-se ao
ABC, e não ao centro de São Paulo, quando necessitam de serviços que seus
bairros não dispõem. A região de Sapopemba foi toda urbanizada para servir
de moradia operária, sobretudo a partir dos anos 1960 e, mais intensamente,
nos anos 1970. Todos os distritos vizinhos, da zona Leste da cidade, tinham
urbanização muito reduzida até o começo dos anos 1960. Famílias passavam
férias em chácaras no território de Sapopemba, até então, algo impensável
hoje, quando a urbanização do distrito já se apresenta inteiramente conso-
lidada, com toda infraestrutura urbana fundamental instalada há décadas
(exceto nas favelas). A narrativa geral desse período fundador da urbanização
dos bairros é conhecida: “milagre econômico”, crescimento do emprego in-
dustrial, expectativa de contrapartida social para o assalariamento operário
e expansão da fronteira urbana, num cenário de intensa migração interna e
especulação imobiliária. A mancha urbana se expande de modo concêntrico,
agressivamente. São Paulo é um exemplo modelar desse cenário.
No polo melhor estabelecido economicamente, chegavam ao distrito
muitas famílias já moradoras de São Paulo, mesmo que fossem de origem
migrante, que pagavam aluguel em regiões mais centrais da cidade. Essas

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famílias, de modo geral, compravam um terreno um pouco mais distante


do centro porque conseguiam preços mais baixos, e pela proximidade
do ABC, onde muitos provedores trabalhavam. Na virada para os anos
1970, quando era simples conseguir trabalho, e relativamente simples
obter um posto na indústria, estes trabalhadores chamavam seus parentes
para também se mudarem. As fábricas estavam “ajustando” trabalhadores,
eles poderiam se ajudar na migração, no início da vida, e a família me-
lhoraria de vida. Entre aqueles que ocuparam o distrito, entretanto, havia
outros arranjos familiares de migrantes. E no polo pior situado econo-
micamente, estavam os migrantes então recém-chegados, dos estados do
nordeste, de Minas Gerais e do norte do Paraná. Alguns deles conseguiam
comprar um terreno, mas, mais comumente, suas famílias se instalavam
em ocupações irregulares e favelas. Todos levantavam suas casas com sua
própria força de trabalho, mais ou menos precariamente, em regime de
autoconstrução. Família e vizinhos se ajudavam em momentos decisivos
da construção.15
Os primeiros loteamentos começaram a receber, então, uma população
que, embora heterogênea, compartilhava algumas representações comuns
do que seria a vida em São Paulo e, mais importante, do que se poderia
esperar dela. Se nem todo mundo era operário, quase todo mundo queria
ser – a perspectiva de ter um trabalho estável era central para a realização do
projeto de mobilidade, e a indústria então oferecia essa perspectiva. Se nem
todo mundo conseguia um trabalho com “carteira assinada”, todo mundo
queria que os filhos o tivessem. Se nem todo mundo era católico pratican-
te, a teologia católica e a moral do trabalho era aceita como legítima entre
quase todos. O centro da mudança de vida estava, portanto, fincado num
plano de mobilidade ascendente da família, a longo prazo, muito adequado
a uma teologia e a uma figuração do trabalho – e do “trabalhador” como
horizonte moral de quase toda essa população.

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Durham (1973, 1980, 2005) trata muito bem desse cenário, em textos
que se tornaram clássicos dos estudos das periferias de São Paulo: o projeto
de mobilidade ascendente era um norte de estruturação familiar que, pela
difusão da promessa de contrapartida salarial, tornava-se representação cole-
tiva dominante nas periferias de São Paulo. O eixo da dinâmica social desses
territórios era, portanto, o trabalho. Por isso cabia tão bem, na perspectiva
dessa população, o rótulo de trabalhadores. Ser trabalhador evitava que esses
recém-chegados, em busca de integração, fossem figurados como vagabundos,
marginais ou bandidos. Alba Zaluar (1985) demonstra como o “trabalhador”
sempre foi pensado em oposição ao “bandido”, o par de relações mutuamente
excludentes é constitutivo de ambas as categorias. Assim era e segue sendo,
porque “trabalhador” e “bandido” sempre foram, nas periferias das cidades,
um par de possibilidades de subjetivação em tensão latente.
A comunidade16 era composta de trabalhadores e como não havia muita
garantia pública de segurança para seus moradores, era tarefa dessa própria
comunidade trabalhadora minimizar a violência nos locais em que vivia. O
“mundo do crime” já começava a aparecer nesses mesmos territórios, e como
a figuração era de que ele era o “outro” diametral dos trabalhadores, deveria
ser expurgado por eles mesmos. A própria “comunidade” – entenda-se aqui
grupos muito minoritários de moradores dos territórios, em ação que se legi-
timava entre parcelas mais significativas deles – organizava formas de “justiça
popular” conhecidas nos anos 1970 e 1980, em diversas metrópoles brasi-
leiras: os linchamentos e o pagamento de grupos de “justiceiros” (ou “pés de
pato”, como eram conhecidos, sobretudo na zona sul da cidade), que cuida-
vam de promover a “limpeza” do nome público desses bairros, assassinando
sumariamente aqueles a quem se atribuía a categoria “bandido”. A disposição
da violência, organizada por “trabalhadores”, mantinha então a figura dos
“bandidos” como oposta à sua “comunidade”.
No interior da família trabalhadora, além disso, a sucessão geracional era

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central para o projeto de mobilidade. Havia significativa expectativa dos pais


no “futuro dos filhos”, era preciso que eles estudassem e valorizassem a lida. A
primeira medida necessária da educação, portanto, era expurgar o risco deles
serem tratados, confundidos, ou mesmo de virarem “bandidos”. Crianças e
adolescentes deveriam trabalhar e estudar, dois antídotos então infalíveis ao
ócio que engendra vagabundos, ladrões e marginais. Estudar, sobretudo, era
a fórmula para conseguir um bom trabalho. Os cursos do SENAI (Serviço
Nacional de Aprendizagem Industrial), por exemplo, surgem voltados para
essa população, e não por acaso são muitíssimo valorizados naquele contexto:
realizariam a continuidade da linha ascendente do projeto familiar de “in-
tegração social” via trabalho. A carteira assinada – os “direitos” – garantia a
dignidade individual. Um adolescente que voltava para casa no fim da tarde
de macacão, protótipo do operário, era o orgulho da família. Nem a polícia,
nem os “justiceiros”, se preocupavam com ele.
Tanto pela força dessa figuração coletiva, em que é fundado, quanto pela
baixíssima expressividade dos interesses dessa população no regime autori-
tário, o projeto operário vai constituir atores políticos de representação já
na segunda metade dos anos 1970. O que são os movimentos sociais que
pipocaram nas periferias de São Paulo, naquele período, senão a manifestação
pública, depois política, desse projeto de integração social? Não foi à toa que
os sindicatos apareceram como atores centrais desses movimentos; não foi à
toa que a Teologia da Libertação se difundiu pautando o trabalho e a famí-
lia como algo que dignificava essa gente; não foi à toa que a figura pública
de Lula – nordestino migrante, operário e morador das periferias – ganhou
tamanha legitimidade popular. Lula, os sindicatos e os movimentos de base
simbolizavam a entrada dessa população no rol daqueles que poderiam par-
ticipar do “novo” Brasil, em construção. O principal ator político programá-
tico que surge desse universo, também não por acaso, se chama Partido dos
Trabalhadores.

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Em São Paulo, diferente do que ocorreu em outras metrópoles brasileiras,


o PT conseguiu uma hegemonia marcante entre os movimentos sociais de
base. Daí a força de sua expansão ao longo dos anos 1980, a eleição de Luiza
Erundina para a Prefeitura já em 1988, e a expressividade de sua conexão
com os movimentos sociais até, pelo menos, meados dos anos 1990. Em
Sapopemba, essa conexão foi forte até muito recentemente. O PT seria fun-
cionalmente, na perspectiva dessa “comunidade trabalhadora”, o ator mais
legítimo para a representação de seus interesses no espaço público. A perspec-
tiva política formulada em torno da dignidade do trabalho – e dos direitos a
ele associados – oferecia assim um diagrama de inteligibilidade ao projeto de
integração do trabalhador dessas periferias. Foi essa inteligibilidade nova que
fez com que os movimentos populares pudessem naquele contexto ser perce-
bidos como atores políticos legítimos, a despeito de toda a tradição brasileira
de deslegitimação pública dos pobres e do conflito de classes, e fundarem
arenas públicas renovadas (Costa, 1997). Dessas arenas se irradiariam, segun-
do as expectativas populares do período, as promessas de integração social e
democracia política que o Brasil acalentaria nas décadas seguintes.
É agora possível estabelecer um corte nesse cenário, para contrastá-lo com
as configurações contemporâneas da dinâmica social nas periferias da cidade.
Ao fazê-lo, percebe-se que tudo isso mudou muito. Em 2010, o cenário social
e político em questão é radicalmente diferente desse que narrei até aqui. Os
quarenta anos que nos separam de 1970 foram período de transformações
de intensidade fora do comum para quem vive nas periferias da cidade. To-
dos esses parâmetros costurados até aqui – trabalho, família, religião, projeto
de mobilidade social, gestão da violência, relações com a política e com um
projeto de nação – permaneceram válidos, mas se modificaram intensamente
em conteúdos e relações internas. No mundo do trabalho, a chamada reestru-
turação produtiva, que toda a sociologia do trabalho estuda nos últimos vinte
anos, modificou inteiramente o pátio industrial, e com ele as relações e mer-

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cados de trabalho populares; Sapopemba, que foi muito marcada pela indus-
trialização do ABC e pelo sindicalismo, é cenário em que se pode notar com
detalhe como as transformações no mundo operário impactam as trajetórias
familiares. Havia pleno emprego na entrada dos anos 1970, cerca de 6% de
desemprego em 1986, na cidade de São Paulo, e mais de 20% em 2000. Na
década de 1990, portanto, a expansão do desemprego foi muito significati-
va e o mercado de trabalho muito mais exigente. Com a reestruturação das
plantas industriais, just-in-time, robôs, produção por demanda, flexibilidade,
enfim, com a “revolução toyotista”, passou-se a exigir uma qualificação muito
mais intensa do operário. As famílias operárias que estudei em Sapopemba,
nos últimos anos, traduzem com clareza essas transformações. O senhor que
mal tinha o “primeiro grau” e conseguiu ter um emprego industrial durante
duas décadas foi demitido, aos 40 anos de idade, no começo dos anos 1990;
não retornou mais às fábricas, exceto para vender espetinhos de churrasco na
saída dos turnos.17 O filho daquele operário, que como tantos estudou no SE-
NAI, tampouco encontrou emprego nas montadoras da região, sua trajetória
é toda feita no setor de serviços, terceirizados, precarizados. A reestruturação
do mundo operário, portanto, já seria fator suficiente para explicar uma série
de percalços encontrados pelas famílias, instaladas nas periferias da cidade
entre os anos 1970 e 1980, em seu projeto de mobilidade de classe sustenta-
do pela aposta no trabalho estável e em suas contrapartidas sociais. Houve,
entretanto, muitas outras esferas de transformação igualmente decisivas para
a compreensão das dinâmicas sociais desses territórios, e de seus rebatimentos
políticos mais visíveis.
A família, que os trabalhos fundadores de Eunice Durham (1973, 1980),
Alba Zaluar (1985) e Teresa Caldeira (1984) estudaram, que na representação
dominante ajudava-se mutuamente desde o processo de migração, para depois
construir a moradia em colaboração – o tio, o primo e o cunhado ajudando
a “bater a laje”, a fazer um quartinho no fundo, a cunhada ajudando a cuidar

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das crianças etc. – é obrigada, com o passar das décadas na cidade, a modifi-
car suas relações internas. Pois se antes, no campo, a unidade produtiva era
doméstica e os braços contavam-se mais que as bocas, a situação se invertia
em época de desemprego estrutural. Se já na cidade, nos anos 1970, ainda
conseguia-se emprego (ou trabalho) para todos os membros produtivos, e daí
fundamentava o auxílio mútuo numa espiral positiva, com a crise do emprego
dos anos 1980 e 1990, e a redução das contrapartidas do assalariamento a par-
tir da chamada “Reforma do Estado”, a família extensa se tornava aquela em
que duas pessoas trabalhavam e sete ou oito eram sustentadas por eles. Os que
trabalham, por isso, são obrigados a distribuir seu salário por todos da família,
o que gera conflitos dos mais diversos: a divisão sexual do trabalho deve ser
revista, a sensação de precariedade mina a confiança na mobilidade ascenden-
te, os conflitos geracionais se acirram. Essas dinâmicas são muito recorrentes
em minha pesquisa, são descritas com regularidade nas narrativas de meus
interlocutores em campo. Essas modalidades de conflito familiar, com o passar
dos anos, vão produzindo uma tendência maior a arranjos familiares mais pró-
ximos do nuclear, ou do matrifocal, e mais distantes do arranjo extenso antes
predominante nas representações da família popular. O jovem adulto desiste
de viver com os pais, tenta se sustentar alugando outro lugar para viver, a pre-
sença do agregado torna-se menos frequente etc. O processo é característico
do ambiente urbano, já a princípio marcado por maior escassez de recursos de
sobrevivência e maior pressão por manutenção de status, mas foi acelerado nas
margens da cidade por todos esses fatores. Nas famílias operárias que estudei,
a mãe teve de sair para “trabalhar fora” quando o provedor perdeu o emprego,
na entrada dos anos 1990; a filha mais velha parou de estudar para cuidar dos
irmãos, os filhos alternaram empregos instáveis e, inclusive, aproximaram-se
na juventude dos mercados ilícitos, em franca expansão nos seus territórios de
moradia. Não são raras as histórias de filhos, amigos e parentes assassinados
nos anos 1990. Outros conflitos se colocam nessas passagens, evidentemen-

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te. As transformações em questão produzem deslocamentos, o que é preciso


ressaltar, não apenas no ambiente familiar mas nas dinâmicas sociais em seu
conjunto: desde o plano mais privado da organização das vidas até os modos
de conformação dos discursos públicos e das ações políticas.
A migração, que caracterizava a população das periferias da cidade, com-
pondo uma espécie de população de mediação entre o rural e o urbano, di-
minuiu progressivamente nos anos 1990 e estancou nos 2000. Os nascidos
nas periferias das cidades nas últimas décadas são paulistanos, mas não pau-
listanos quaisquer; são indivíduos nascidos e crescidos na periferia. Quando
iniciei uma pesquisa mais sistemática com a geração dos meninos nascidos
nos anos 1990, hoje adolescentes, o mundo do migrante que vinha trabalhar
em São Paulo já era muito distante deles, alheio a seus significados. Os me-
ninos com quem converso em pesquisa de campo são do Jardim Elba, são do
Parque Santa Madalena, do Planalto, eles são “da periferia”, têm seus territó-
rios de moradia inscritos em seus modos de se vestir, de conversar, e também
nos conteúdos que enunciam. As marcas da periferia também estão em seus
corpos: técnicas corporais, tatuagens, brincos, piercings e acessórios compõem
uma estética própria. Se o projeto de mobilidade permanece como pano de
fundo, ao qual se recorre em discursos voltados ao exterior, entre eles mais do
que nunca o lugar é aqui e o tempo é hoje.
Essas transformações rebatem, então, no complexo das moralidades em
disputa nos territórios, que organiza os parâmetros de distribuição da legi-
timidade dos sujeitos. No plano religioso, a população das periferias que se
declarava quase integralmente católica transita significativamente ao pente-
costalismo, nas últimas décadas. A expansão pentecostal sugere relação com a
crise do projeto operário, de ascensão social paulatina e ao longo de gerações.
Se agora o tempo é mais curto, a prosperidade deve ser tentada em golpes
mais precisos, mais rápidos; a teologia pentecostal é, então, muito melhor
situada: a conversão encerra uma vida e inicia outra, a prosperidade se ob-

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tém na terra, os valores e narrativas se conectam mais adequadamente a essas


transformações.18 O projeto de ascensão social familiar, nesse contexto de
transformação intensa, tende a maior individualização, quando permanece
vivo: a filha da família operária encontra opções distintas das dos pais, retarda
ao máximo o casamento para poder voltar a estudar, depois dos irmãos mais
novos terem crescido.19 O pressuposto é o de que, caso reproduzisse uma
família tal como fez sua mãe, casada aos 18 anos de idade, seu horizonte de
previsibilidade já não poderia incluir a ascensão social.
Essas transformações expressam algumas tendências, embora evidentemen-
te não sejam absolutas, nem homogeneamente distribuídas no tecido extrema-
mente heterogêneo das periferias da cidade. Em Sapopemba, uma parcela dos
operários instalados ali dos anos 1970 consegue efetivamente fazer a ascensão
social esperada, outra parcela segue remediada, e eles representam juntos, hoje,
parcela majoritária entre os fundadores dos bairros como Sapopemba. Mas
eles não são todos, nem quase todos os moradores do distrito; e mais significa-
tivo do que isso, não são mais eles que pautam a figuração dominante no senso
comum, e nos debates públicos, acerca dos territórios onde vivem.
É a franja mais pobre das periferias da cidade, aquela que adensa as favelas
e suas margens, durante as últimas décadas, a que vai aparecer publicamente
como a típica habitante desses territórios. É a partir dessa camada da sua po-
pulação que vai se construir, principalmente a partir dos anos 1990, a imagem
pública das periferias de São Paulo.20 Muitas trajetórias pessoais e familiares
que pude acompanhar, nos últimos anos, auxiliaram-me compreender esse
processo; estive em contato com diversas famílias que melhoraram de vida ou
que permaneceram como estavam, mas estudei também outras tantas que não
conseguiram patamares mínimos de estabilidade social e econômica em suas
trajetórias depois da migração, seja pela sua baixa qualificação para o mercado
de trabalho, seja pela instabilidade das crises econômicas, seja por tragédias
ou casos de violência extrema a que foram submetidos os percursos de seus

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integrantes. Frustrado o projeto de melhoria de vida na cidade, essas famílias se


distribuíram desigualmente pelos territórios das periferias, mas em todos eles
sua presença gerou desconforto, e criou clivagens reconhecidas internamente
por estigmas e estereótipos. No distrito de Sapopemba, há hoje num polo
uma elite operária bem estabelecida, que mora em sobrados com dois carros
na garagem, com os filhos na universidade ou já formados, e no polo oposto
as casinhas de madeira que desmoronam todo janeiro, na favela do Madalena.
Entre eles há o motorista de ônibus, a manicure, a senhora que trabalha numa
entidade social, a que abriu uma lojinha para consertar eletrodomésticos, gen-
te de carne e osso cujas trajetórias demonstram imensa heterogeneidade. Essa
configuração muito heterogênea do distrito é marcada internamente também
nos cotidianos, pelas categorias de nomeação: há o pessoal que se considera de
“classe média” (chamados de “playboys” por quem não se considera assim);
há os moradores das “casas”, do “bairro”, mais próximos das avenidas que das
favelas; há o pessoal que vive nos “conjuntos” habitacionais, produzidos por
políticas públicas; e finalmente há o “pessoal da favela”.
É a partir desses últimos, em minha hipótese, que se funda a conflitividade
social contemporânea, que pretendo tratar adiante. Por ora, cabe ainda ressal-
tar algumas outras linhas de transformação marcantes desses territórios. Nos
últimos trinta anos, nos interstícios dos loteamentos legalizados ou grilados
de Sapopemba, quase sempre autoconstruídos para moradia, foram brotan-
do equipamentos públicos – praças, parquinhos, escolas, postos de saúde, dois
CEUs (Centros Educacionais Unificados), os CRAS (Centros de Referência
de Assistência Social) etc. – e favelas, que já são 37 no distrito, segundo dados
oficiais. O cenário urbano do distrito, em 2010, tem muito pouco a ver com
aquele de décadas atrás. As pessoas gostam de dizer, em entrevista: “quando
eu cheguei aqui era só mato, a gente carregava água na cabeça, depois a gente
fez isso, aquilo, conseguimos asfalto, fizemos abaixo assinado e tal”. Essa nar-
rativa é recorrente e necessária, na perspectiva de quem a enuncia, porque a

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geração nascida ali a partir dos anos 1990 não a reconhece como própria; os
jovens das periferias vivem num território urbano consolidado, bastante co-
nectado a outros bairros e regiões da cidade e, sobretudo, à esfera do consumo
global. As estatísticas de crescimento do consumo das classes D e E no Brasil
são impressionantes nos últimos anos, aumentam quase 20% ao ano. Os
jovens têm celulares de último tipo, comprados a prestação; e o crédito po-
pular funciona desde as Casas Bahia até os hipermercados e shopping centers.
A internet também é acessada em lan-houses, no trabalho ou mesmo em casa.
Nesses deslocamentos, é evidente que os atores políticos nascidos nos anos
1970 com a função de representar publicamente as periferias da cidade –
os movimentos sociais populares – têm sua representatividade duramente
questionada. Nascidos para representar uma população migrante, operária e
católica, e inscritos na ação política voltada à construção democrática, esses
atores têm dificuldades para se legitimar frente a uma geração já nascida nas
periferias, em boa parte pentecostal e com trajetórias acidentadas de trabalho
e desemprego. Essa dificuldade é ainda mais forte entre os setores marcados
pela economia informal e, sobretudo, pelos mercados ilícitos – por definição
alheios à esfera do direito como alternativa de melhoria de vida. As narrati-
vas dos movimentos, fincadas no esquerdismo militante, na teologia da li-
bertação e no sindicato operário vão dizer pouco aos novos moradores das
periferias. Até porque esses atores – os então “novos movimentos sociais” – já
haviam sido muito bem sucedidos em seu trânsito ao aparato estatal e já esta-
vam mais distantes do trabalho de base nas periferias, em processo chamado
pela bibliografia específica de “inserção institucional”.21 Nesse processo, os
movimentos sociais de base, nos anos 1980, migraram tendencialmente para
administrações e governos, mas não ocuparam ali espaços decisórios centrais;
eles se constituíram como uma espécie de “burocracia de base” 22 das políticas
sociais, materializada hoje numa miríade de associações, projetos, entidades
e ONGs espalhadas pela malha urbana. Entre outros fatores, a capacitação

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técnica mais frágil do que a dos burocratas formados em escolas de elite, e a


rede de relações privadas mais ligadas à periferia do que aos centros de poder,
explicam porque essas associações e entidades, formadas por quadros dos an-
tigos movimentos sociais, ocupam quase invariavelmente espaços subalternos
nos governos e no Estado, nos três níveis da federação.
Um resultado dessa dinâmica de transformações é uma tendência, mais
notada recentemente, à inversão no vetor normativo da relação desses atores
com o Estado e os espaços públicos. Pois se, nos anos 1980, esses movimentos
de base organizavam demandas da favela e as procuravam publicizar, hoje é
mais comum que, conveniados a projetos, programas e políticas públicas, es-
ses atores utilizem boa parte do seu tempo implementando as demandas (edi-
tais, portarias etc.) oriundas de esferas centrais da decisão do Estado, quan-
do não do chamado “Terceiro Setor”. Sua atuação é, assim, funcionalizada
prioritariamente na intermediação da execução de políticas estatais junto da
“população atendida”, ou do seu “público-alvo”. 23 Simplificando muito o
argumento, é possível então notar, a essa altura, que se o conjunto de atores
duramente construídos para representar as periferias tem dificuldades para
fazê-lo atualmente, e não surgem outros atores com legitimidade política para
substituí-los, estabelecem-se uma série de fronteiras de tensão entre as peri-
ferias da cidade e os espaços ampliados de ação social e política. Essa lacuna
de representação é, definitivamente, mais radical entre a parcela mais pobre
dos jovens das periferias e, sobretudo, dos moradores de favela. A narrativa
político-partidária, ou mesmo movimentista, lhes é desinteressante.
Caracterizado esse cenário de deslocamentos do trabalho, da família, da
religião, da infraestrutura urbana, do consumo, do acesso a políticas sociais e
das dimensões de sua representação e atores políticos, parece-me ser preciso
recolocar o foco analítico na relação entre “trabalhadores” e “bandidos”. Pois
evidentemente, nesses deslocamentos, essa relação também se altera. Todas
essas esferas tradicionalmente legítimas nas periferias da cidade – a família,

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a religião, o trabalho, o consumo, a representação política etc. – passa a se


relacionar mais diretamente com essa esfera de sociabilidade conhecida como
“mundo do crime”, que expande-se em torno dos mercados ilegais e ilíci-
tos transnacionais, cujas pontas de varejo estão cravadas nesses territórios. O
argumento que apresento a seguir ampara-se na constatação de que, nessas
transformações nada triviais, abriu-se espaço para que o “mundo do crime”
disputasse legitimidade com toda essa série de instituições e atores tradicio-
nalmente legítimos nas periferias da cidade. Em 2010 já não é possível conce-
ber o “crime” como uma esfera alheia àquela comunidade trabalhadora coesa
em torno da representação operária, ou como algo passível de repressão co-
munitária, como se fazia nos anos 1980.24
Como diversos pesquisadores vêm notando,25 esse “mundo do crime”
passa progressivamente a tensionar outros sujeitos e instâncias legítimas das
periferias da cidade. Tensiona o mundo do trabalho, porque gera muita ren-
da para os jovens, e simbolicamente é muito mais atrativo para eles do que
descarregar caminhão o dia todo, ou entregar panfletos de farol em farol;
tensiona a religiosidade, porque é indutor de uma moralidade estrita, em que
códigos de conduta são prezados e regras de honra são sagradas; tensiona a
família, porque não se sabe bem o que fazer com um filho “na droga”, ou com
outro que traz R$ 500 por semana para casa, obtidos “da droga”; tensiona a
escola, porque os meninos “do crime” são mal vistos pelos professores, mas
muito bem vistos pelas alunas mais bonitas da turma; tensiona demais a justi-
ça legal, porque estabelece outras dinâmicas de punição e reparação; tensiona
o Estado em seu cerne, porque reivindica para si o monopólio do uso da vio-
lência (legítima entre a população) em alguns territórios. Ou seja, todos esses
atores: a escola, a família, a religião, o trabalho, a justiça, o Estado, esses atores
tradicionalmente “legítimos”, começam a ter de lidar com a presença e a atra-
tividade do “mundo do crime”. Passa a se estabelecer, de fato, uma disputa
pela legitimidade entre essas esferas, e os atores tradicionais dos territórios

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passam a se pensar mais radicalmente em oposição ao “crime”. Há muitíssimos


relatos de campo me contando dessa disputa, dessa “guerra contra o crime”,
travada por professores, assistentes sociais, psicólogos, educadores, militantes
e pais de família. Quando argumento, como em Feltran (2008), pela “expan-
são do mundo do crime” nas periferias da cidade, é especificamente a esse
processo de disputa de legitimidade a que me refiro (e não a um aumento das
atividades ilegais ou ações criminais). O que está em jogo nessa expansão é
que o “mundo do crime”, antes visto por todos como o oposto diametral do
“trabalhador”, paulatinamente passa a concorrer como ator e instância nor-
mativa nas periferias da cidade, ocupando terrenos mais amplos e solicitando,
inclusive, reações de demarcação mais clara de fronteiras da legitimidade.26
Essa expansão gera formas de identificação com o “crime”, especialmente
entre parcelas minoritárias das camadas mais jovens, que já não implicam
vinculação a atividades ilegais ou ilícitas, mas se fundam em modos cotidia-
nos de se relacionar com essa instância de autoridade efetivamente presente
nos territórios. A existência do “mundo do crime” nas periferias, é de difícil
compreensão; ela desarranja as categorias previamente pensadas para descre-
ver as ações morais e as organizações coletivas nesses territórios. O “crime”
é uma existência que não cabe na rubrica do “crime organizado”, porque
se espraia para muito além das atividades criminais; tampouco suas facções,
empenhadas em criar para si um discurso político, podem ser descritas pela
noção de “movimento social”, pois não se propõem a produzir um “sujeito
político” no sentido que a literatura específica conferiu ao termo (ver Sader,
1988; Paoli, 1995). A proposta de vida inscrita nessa subjetivação afasta-se
muito da proposta crítica e integradora dos movimentos sociais, sendo tra-
duzida mais criteriosamente pela expressão vida loka, fantasticamente difusa
entre adolescentes.27 Essa vida intensa em prazer e dor, adrenalina e risco,
de curto prazo, quando vista como horizonte de relação social, sugere uma
chave analítica muito distinta daquela perspectiva integradora que o direito

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propunha. Nota-se em sua difusão como a narrativa de um país que vai ser
democrático, que incluiria suas massas trabalhadoras na esfera do direito, per-
deu força nesses territórios.
A “guerra contra o crime”, que todas as instituições sociais tradicionalmen-
te legítimas vão travar nos anos 2000, nas grandes cidades, figura mais a as-
sunção da fratura social do que a integração. Essa fratura solicita também uma
cisão discursiva (e cognitiva) mais profunda. O que essa “guerra” faz notar é
que esse “mundo do crime” não pode ser extinto, contemporaneamente, por-
que goza de status suficiente para seguir resistindo na disputa de legitimidade
social. Essa disputa pela legitimidade tem conformado, mais recentemente,
novos padrões de interação entre as políticas estatais de repressão ao crime, os
policiais de base e grupos inscritos nos mercados ilícitos. Os padrões de intera-
ção que se processam nos cotidianos das periferias com certa autonomia, nos
últimos anos, dão origem também a novas instâncias de justiça nas periferias
da cidade, pela emergência de sujeitos coletivos ali legitimados, com destaque
para o Primeiro Comando da Capital. De prisões e favelas brotam os “irmãos”,
integrantes batizados do PCC, que reivindicam para si o monopólio de dis-
por e gerir a violência (legítima, em contraposição à violência policial) nesses
territórios. Passagens nada simples, difíceis de compreender: é o “crime” quem
aparece reivindicando para si o papel de instância normativa da justiça (Feltran
2010, 2010b) entre grupos sociais e territórios das periferias, e sobretudo entre
aqueles mais próximos socialmente da operação de varejo dos mercados ilícitos
(que se expandem, como se sabe, para muito além das periferias).
Esse “mundo do crime”, entretanto, não domina os territórios ou as po-
pulações tiranicamente. A posse de armas e a disposição para utilizá-las é, evi-
dentemente, a fonte última da legitimidade e autoridade do “mundo do cri-
me” e dos “irmãos” nas periferias da cidade. Entretanto, cotidianamente esses
grupos manejam componentes muito mais sutis de disputa pelas normas de
convivência, como a reivindicação de justeza dos comportamentos, ampara-

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dos na “atitude”, “disposição” e “proceder”, e na oferta de “justiça” a quem


dela necessita; a ajuda para solução de problemas de moradia; o amparo para
pagamento de advogados; subsídio para a visita de parentes presos etc. Se não
se trata de um jugo ou de uma dominação autoritária, tampouco trata-se
de um movimento democrático: a questão é que “o crime” emerge noutra
chave de compreensão, como resultante de trocas sociais complexas trava-
das entre instâncias reconhecidas e legítimas nos territórios, obtendo dessas
trocas consentimentos ativos e legitimidade para ali se estabelecer. Assim, o
“mundo do crime” aparece como uma entre outras instâncias de geração de
renda, de acesso a justiça ou proteção, de ordenamento social, de apoio em
caso de necessidade, de pertencimento e identificação. Não se afirma aqui,
portanto, que “o crime” se espraia indistintamente pelo tecido social das peri-
ferias, manchando o tecido social, nem que os jovens dali sejam ou estejam se
tornando “bandidos”; a questão é outra: trata-se de um universo de relações
em disputa pela legitimação social, pelos critérios de subjetivação social e po-
lítica, que trava relações tensas (e intensas) com uma série de outras instâncias
sociais mais tradicionais.
Se essa constatação faz sentido, é imperativo modificar os modos de abor-
dar analiticamente o conflito nas fronteiras entre, de um lado, a esfera da
democracia formal, cristalizada nos últimos anos no Brasil, e de outro as di-
nâmicas de subjetivação política nessas periferias que, em certa medida, se
fundam em dimensão alheia aos marcos do projeto de “integração social”
anterior. Se há vinte anos essas fronteiras ainda podiam ser vistas como linhas
a serem superadas pela “democratização”, pelo “crescimento”, pela “inclusão”,
pela “cidadania”, elas são figuradas hoje, nas relações efetivas entre Estado e
organizações sociais das periferias da cidade como divisão irreconciliável que
é preciso conter, gerenciar. O projeto normativo de fato – não de direito, claro
– das instâncias estatais empenhadas em lidar com essas fronteiras, nos anos
2000, parece deixar de pautar a integração, e portanto o empenho em produ-

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zir subjetivação política entre indivíduos e grupos hierarquizados subalterna-


mente, e passa a atuar no registro da administração das fronteiras do direito,
mantendo o quanto possível fora delas a população figurada como causa dos
conflitos que, por demais incivis, ameaçam a democracia.28
As políticas sociais voltadas para as periferias da cidade, que se expan-
dem já no final dos anos 1990, traduzem esse cenário. Ao mesmo tempo que
ampliam a cobertura de serviços e se fazem em marcos legais cada vez mais
progressistas, o que é inegável, são implementadas de modo bastante distinto
a depender do lado da fronteira que se esteja. Nas periferias, sua função ime-
diata é minimizar os conflitos que emergem das relações com territórios e po-
pulações marginais. Não se trata de “construção de cidadania”, mas sobretudo
de gerir as franjas da cidade, acionando um dispositivo assistencial claramente
associado a outras formas de controle. Pois entre espaços e grupos que não
podem ser administrados a contento, ou se negam a sê-lo, a política essencial
que se acopla à assistência é a repressão – muitas vezes realizada fora dos mar-
cos legais ou “democráticos”, vale dizer. Não (apenas) a burocratização das
relações entre governos e entidades sociais de atendimento,29 mas sobretudo
a alta do encarceramento em São Paulo, estado que passa de cerca de 45 mil
presos em 1996, para mais de 150 mil, em 2009, é expressiva dessa tentativa
gerencial. Não são apenas as prisões, entretanto, que contribuem para essa
política pública de contenção do conflito social ensejado pelas periferias con-
temporâneas: há também a internação na Fundação Casa (antiga FEBEM),
as clínicas de recuperação para viciados em drogas, os espaços destinados a
tratamentos de saúde mental, os albergues para moradores de rua, os abrigos
para adolescentes, e muito mais.30 Em suma, é todo um dispositivo bastante
complexo de gestão associado a uma mesma população, que quando não está
internada, está nas periferias e, principalmente, nas favelas. Em pesquisa de
campo em favelas, por isso, não é incomum encontrar trajetórias individuais
que traçam circuitos praticamente ininterruptos entre a cadeia, o “crime”, a

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clínica de internação, a situação de rua, o albergue, a clínica de desintoxicação


etc. E esses circuitos começam a ser mais frequentes (Feltran, 2007b).
Há contemporaneamente, portanto, muita tensão nas relações multiface-
tadas entre Estado e periferia, ou Estado e favela mais radicalmente – porque
a favela é um exemplo radical do universo das periferias. Políticas de acesso a
direitos, assistência e repressão associam-se de modo distinto do diagrama an-
terior. Os conflitos latentes nessas interações, quando não encontram canais de
tradução pública na chave política do direito, da cidadania, invariavelmente se
manifestam como conflito privado e, não raro, violento. O argumento é aren-
dtiano: quando a noção de direito não dá mais conta de descrever o mundo so-
cial das periferias da cidade, a equação da conflitividade social transborda para
dinâmicas violentas. Nessa perspectiva é que elaboro a reflexão, anunciada no
início deste artigo, acerca das causas dos deslocamentos temáticos aos quais a
pesquisa de campo me conduziu, ao longo dos últimos dez anos. A porta de
entrada inicial no registro dos movimentos sociais, articulados em torno das
noções de direito, cidadania e democracia, encontrava limites para descrever e
explicar as formas do conflito social que emergia nas configurações sociais com
que me deparava em campo. As transformações narradas pelos meus interlo-
cutores necessitavam, também, de outros diagramas de compreensão.

Considerações finais

Neste sentido, talvez seja pertinente introduzir alguns exemplos empíri-


cos acerca da conformação contemporânea da conflitividade social ensejada
nos contatos das esferas da lei e do direito estatal com as periferias urbanas.
Retomo, para isso, algumas situações em que as categorias “trabalhadores”
e “bandidos” operam em situações de campo. Três situações, muito relacio-
nadas umas com as outras, me auxiliam a demonstrar como essas categorias
são situacionais e polissêmicas, transitando entre significados e construindo

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grupos populacionais distintos a depender das modalidades de interação em


questão. A partir desses exemplos, nota-se ainda como as fronteiras entre esses
marcadores é gerenciada plasticamente pelas políticas estatais, em operação
que guarda analogia aos distintos regimes estatais descritos e analisados por
Veena Das (2007) entre grupos “marginais” na Índia. É a plasticidade dos
modos de agir nesse conflito, e o privilégio estatal na definição do regime
em que esse conflito se desenvolve a cada situação, que caracteriza o tipo de
gestão contemporânea da tensão latente nas relações entre a esfera legal e dos
direitos e as periferias da cidade.
Os exemplos se referem a três formas distintas de repressão policial que
coexistiram nas favelas do “Madalena” e do “Elba”, em Sapopemba, durante
os anos de minha pesquisa de campo. A primeira delas é cotidiana, rotineira,
caracterizada pelas rondas realizadas por policiais que conhecem bem o ter-
ritório patrulhado. Sabem há tempos onde se situam os pontos de venda de
droga, conhecem quem faz parte das “quadrilhas”, cumprimentam as pessoas
pelo nome, sabem onde moram, e que muitas vezes mantém acordos finan-
ceiros ilegais com indivíduos e grupos inscritos no “mundo do crime”. Essa
relação cotidiana entre policiais e “bandidos”, embora sempre marcada por
acordos instáveis e desconfiança recíproca, é praticamente desprovida de vio-
lência. Trata-se de relação muito próxima daquela que Whyte (2005) descre-
veu nas esquinas de Boston, já nos anos 1940, entre policiais e operadores de
atividades ilegais. Os policiais dão segurança ao funcionamento dos negócios
ilícitos, e recebem contrapartidas financeiras por isso. As dinâmicas não são
estáveis, nem todos os policiais fazem acordos da mesma forma, mas há uma
lógica de reciprocidade que se estabelece contextualmente e que permite que
as partes sigam legitimadas em seus negócios e posições sociais.
Há, entretanto, um segundo tipo de ação policial em favelas de São Paulo,
também recorrente: as “operações policiais”, que coordenadas centralmente
atuam em lógica distinta dessa primeira. As “Operações Saturação” torna-

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ram-se conhecidas em São Paulo nos anos 2000: trata-se de operações em que
muitos policiais ocupam um território de favela, às vezes por meses. Chegam
de surpresa, integrando ações de polícia civil, militar, federal, com tropas da
cavalaria, descendo de rapel de helicópteros, para fazer o que se chama, infor-
malmente, de “quarentena” na favela. Nesses casos os policiais vêm de fora, o
evento de ocupação é evidentemente marcado por muita tensão para todos os
envolvidos, e os policiais de ação de base devem “tomar o controle” da favela.
Para isso, o método utilizado é invadir todas as casas, abordar quase todos os
moradores, para daí começar a triagem que delineará quem “é do crime” e
“quem não é”. Há muitas denúncias de tortura nesses primeiros momentos
de atuação, porque os policiais precisam ter acesso às informações acerca do
funcionamento do “crime” no local, e por vezes os métodos para consegui-las
não são os mais democráticos. Essas ações têm grande efeito midiático, e in-
variavelmente, nelas, os policiais de base estão ainda pressionados por seus su-
periores, e pelo poder político, a “mostrar serviço”. Uma operação como essa
em Sapopemba, em 2005, gerou forte reação da parte dos moradores e das
associações locais, ao contrário das que ocorrem cotidianamente, do primeiro
tipo. Por uma razão muito simples: não se reclama quando a repressão poli-
cial é direcionada aos “bandidos”, isso faz parte do jogo; mas recebe-se muito
mal a repressão voltada indistintamente a “trabalhadores” e “bandidos”.
Finalmente, existe um terceiro tipo de ação policial voltada às periferias,
que também pude acompanhar em pesquisa de campo, durante os eventos
de maio de 2006, que ficaram conhecidos publicamente como “Ataques do
PCC”, e ressignificados na expressão “Crimes de Maio” pelos ativistas de di-
reitos humanos. Nesses eventos, como se sabe, houve uma ofensiva do PCC
que matou mais de 40 policiais em uma noite, a maioria da Polícia Militar. A
imprensa entrou em alarde, a cidade passou dias em tensão permanente e todos
os serviços pararam de funcionar numa tarde. A palavra “guerra urbana” foi a
melhor descrição dos jornais para o que acontecia. Como retaliação, e demons-

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trando sua capacidade de restabelecer a ordem, o comando da polícia de São


Paulo lançou uma “ofensiva” voltada às periferias da cidade. Nessa situação de
“guerra”, executou-se jovens que tinham antecedentes criminais, que andavam
em grupos ou que poderiam se parecer com “bandidos”. O saldo dos even-
tos foi de, ao menos, 493 mortos em uma semana, no estado de São Paulo.
Durante o mês seguinte, com a “ordem pública” garantida, foram executadas
mais 500 pessoas. Em um mês, portanto, foram mortas quase mil pessoas na
reação da polícia aos “Ataques do PCC”. Adorno & Salla (2007) contabilizam
esses dados a partir de pesquisa em 23 Institutos Médico-Legais, mas a gran-
de imprensa praticamente silenciou sobre esses homicídios. Cinco das pessoas
assassinadas nessa ofensiva policial viviam em São Mateus, distrito vizinho a
Sapopemba. Um deles era sobrinho de um interlocutor importante de minha
pesquisa de campo. O Centro de Direitos Humanos de Sapopemba acom-
panhou o caso, o que me favoreceu o acesso a muitas informações desse caso.
Ao colocar em relação essas três situações repressivas, que coexistiram no
tempo durante meus trabalhos de pesquisa em Sapopemba, salta aos olhos a
plasticidade da clivagem entre “trabalhadores” e “bandidos”. O conjunto de
moradores inscritos como público-alvo daquele primeiro tipo de operação,
rotineira, é restrito àqueles inscritos no “mundo do crime”, ou rotulados pela
etiqueta de “bandido” mesmo entre seus pares, na favela. Não se reprime
nenhum “trabalhador” nessa primeira forma de ação policial. A ação é prati-
camente desprovida de violência, voltada a manter os negócios funcionando e
o conflito social administrado – não se intenta minimizar o tráfico de drogas
ou os assaltos, espera-se mantê-los em níveis aceitáveis, de modo a que não se
tornem assunto público. No segundo tipo de operação assinalada, as forças
da ordem consideram como “suspeitos”, ou “bandidos”, todos os moradores
da favela. A categoria “bandido” abarca todo o território ocupado, espraia-
se pelos corpos de seus moradores, e para os policiais que chegam até ali,
pressionados por seus superiores hierárquicos e em risco efetivo durante as

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operações, as fronteiras entre as casas de “trabalhadores” e “bandidos” não


são visíveis. Daí o desacordo dos “trabalhadores” que vivem na favela frente a
esse tipo de operação; eles não aceitam ser confundidos com “bandidos”. O
caráter gerencial da iniciativa torna-se ainda mais claro quando se percebe que
as favelas de Paraisópolis e Heliópolis, em São Paulo, vivenciaram essa “Ope-
ração Saturação” imediatamente após os levantes violentos, separados por
poucos meses, que cada uma delas viveu em 2009, amplamente noticiados
na imprensa paulista. No terceiro tipo de operação policial elencado, de con-
fronto guerreiro e altamente letal, no qual efetivamente o “mundo do crime”
e as polícias estão “batendo de frente”, os significados da categoria “bandido”
são ainda mais ampliados. De imediato, é preciso acalmar a opinião pública
e, como a representação dominante nela situa os “suspeitos” ou “bandidos”
como jovens moradores das periferias, é imprescindível apresentar o saldo
dos mortos entre eles. Os cinco meninos assassinados em São Mateus, si-
tuação que pude acompanhar mais de perto, foram executados no caminho
do trabalho, no sábado que se seguiu à primeira noite da ofensiva do PCC.
Eles não eram “bandidos”, eram típicos jovens “trabalhadores”, seguiam para
uma fábrica em Santo André. Jamais seriam importunados por policiais co-
nhecidos no bairro. Mas eram meninos da periferia e, naquela situação, não
importava o que faziam, mas o que “eram”. O carro deles passou, e policiais
os mandaram parar, eles saíram do carro. As mãos deles foram à parede e
todos foram fuzilados, sumariamente. A morte deles, atribuída a policiais por
todas as testemunhas, contou entre os “suspeitos” no noticiário televisivo. Foi
traduzida, portanto, como recuperação da ordem democrática, que oferece
segurança aos cidadãos. As instituições da democracia seguiam protegidas.
Analiticamente, portanto, fica patente a plasticidade da categoria “bandi-
do” e os sentidos propriamente políticos do conflito inscrito em sua utilização
contemporânea. As situações demonstram como, em cada uma das três mo-
dalidades de repressão, a definição de quem é o “bandido” a reprimir tem em

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sua base um impulso por gerenciar o conflito social (e político) que emana
das periferias da cidade. No primeiro caso, mantém-se o conflito latente, e as
partes em negociação direta ganham com isso; no segundo, a tensão extravasa
mas lê-se publicamente que o Estado combate o “crime” das favelas, e assim o
argumento de justificação do “combate ao crime” legitima-se publicamente,
deslegitimando-se nas periferias; no terceiro, mata-se jovens favelados e mo-
radores de bairros periféricos para restabelecer os controles democráticos. A
ilegalidade constitutiva de todas as situações é mais ou menos letal a depender
da intensidade do conflito político que a presença pública das periferias pode
causar. O dispositivo de “gestão dos ilegalismos” (Foucault, 1975; White,
2005) torna plásticas as formas de utilização social do par de categorias “tra-
balhador” e “bandido” e expõe, quando enxergado na etnografia, distintos
modos de gerenciamento de um conflito político, ainda que muito distinto
daquele que os movimentos sociais dos anos 1970 e 80 tentaram produzir.
O declínio da perspectiva universalista do direito como referência normativa
para essa marcação, e da legitimidade desses atores entre suas “bases”, expõe-se
aqui numa outra perspectiva. Já não mais como um discurso alheio às periferias
da cidade, imposto de fora por idealistas (ou por analistas pouco informados),
mas como inteiramente relacionado com os demais processos sociais em ques-
tão, inclusive a análise do “crime”. Pois parece ser hoje a violência um dos modos
fundamentais de contenção daquele mesmo conflito político que a narrativa do
direito pretendia mediar. Sobretudo nas situações-limite em que esse conflito
se demonstra, contemporaneamente, a força ou a possibilidade de sua utiliza-
ção encontra-se na base de seus modos de gerenciamento. As transformações
fundamentais nas dinâmicas sociais das periferias da cidade, percorridas nesse
artigo, parecem conduzir, portanto, a problemas teóricos, analíticos e políti-
cos conectados. Essas transformações sugerem que podem estar situadas num
mesmo diagrama analítico, por exemplo, as esferas do direito, do “crime”, do
trabalho, da família, da religião, da política e do Estado. Tantas outras dimen-

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sões poderiam se somar a essa lista. A busca por um mesmo diagrama analítico
pautado por relações entre essas esferas, entretanto, supõe certamente múlti-
plas perspectivas e situações a serem descritas, que remetem a planos distintos de
análise, bem como a um debate entre distintas posições teóricas, normativas e
metodológicas em questão. Assim, a questão dos marcadores de diferença, dos
projetos normativos e das formas de interpretá-los numa etnografia parecem
conduzir a problemas teóricos e políticos conectados. Não me parece ser pro-
dutivo separá-los em caixas ou disciplinas, especialmente pela relevância destes
problemas tanto para a etnografia, quanto para a compreensão do conflito po-
lítico que as periferias urbanas ensejam no Brasil contemporâneo.

Notas
1 Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar),
pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e do Centro Brasileiro de Análise e
Planejamento (CEBRAP).
2 Este artigo teve origem na transcrição – realizada por Patrícia Polastri – de minha exposição na
mesa “Antropologia do Direito e Marcadores Sociais da Diferença”, no I Encontro Nacional
de Antropologia do Direito, na Universidade de São Paulo em 2009. Agradeço a Ana Lúcia
Pastore, pela oportunidade de elaborar essa reflexão, e a Adalton Marques, pela leitura aguda
das provas do artigo.
3 As categorias “trabalhador” e “bandido” têm me instigado há bastante tempo (Feltran, 2008,
2009). As relações entre as categorias já foram muito bem formuladas etnograficamente,
há mais de duas décadas, por Zaluar (1985). A noção de “bandido” foi também trabalhada
teoricamente por Misse (2010). Ainda que os contextos de pesquisa desses trabalhos sejam
muito distintos, há muitas ideias neles das quais me sirvo aqui.
4 Tensão constitutiva também de suas atualizações como conceitos, já que as relações fundam
os elementos em relação, e não o contrário. Para uma abordagem da distinção teórica entre
as esferas social e política, ver Arendt (2003, 2004). A distinção teórico-normativa da autora
inspira minha abordagem, embora seja subvertida aqui com o intuito de pensar não as esferas
que se distinguem, mas justamente suas relações constitutivas.
5 Ver Dagnino (1994) e a produção do Grupo de Estudos sobre a Construção Democrá-

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tica, agrupada em Dagnino (2002); Dagnino, Olvera e Panfichi (2006); Dagnino e Tatagiba
(2007); Feltran (2005).
6 Sader (1988) e Paoli (1995).
7 O que evidentemente não é em si um problema, já que desde Durkheim sabemos que toda
categoria cristaliza um ideal, nem um problema irrefletido, já que admitido e politicamente
situado pelos autores centrais dessa abordagem. Sobre a análise da reivindicação de direitos
como estratégia política, ver Dagnino (1994).
8 Os mercados, sobretudo, há muito conectam esses espaços; basta pensar nas grandes lojas de
departamentos, no crédito popular, nos telefones celulares, na dimensão transnacional do
tráfico de drogas e armas etc. Também os mercados eleitoral e de trabalho colocam em relação
intensa as periferias a outras dimensões do social.
9 Essa sobreposição de planos de marcação da diferença foi questão central no trabalho de
Kofes (1976, 2001).
10 A escolha dos estatutos, discursos e situações a investigar mais detidamente, na análise, por
isso, segue sendo um atributo do pesquisador, e a exposição dos critérios pelos quais essa
escolha se dá – em geral em diálogo com a teoria – é dimensão constitutiva da inteligibilidade
de sua análise.
11 A igualdade, em contraste com tudo o que se relaciona com a mera existência, não nos é
dada. (...) Não nascemos iguais; tornamo-nos iguais como membros de um grupo por força
da nossa decisão de garantirmos direitos reciprocamente iguais. (Arendt, 2000, p. 335, des-
taques meus).
12 Partilha significa duas coisas: a participação em um conjunto comum e, inversamente, a
separação, a divisão em quinhões (Rancière 1995, p. 7). A noção de partilha já está subjacente
à definição de política no autor em Rancière (1996a, 1996b), e a mesma chave (formular as
polaridades como relação) já era utilizada em Rancière (2002; 2005).
13 Sobre a coexistência de ordenamentos sociais legítimos nas periferias das cidades, ver
Machado da Silva (1993, 2004) e comentários de Misse (2006).
14 Por isso em Arendt a esfera política (normativa) pressupõe a igualdade e o mundo social a
diferença, o que permite a coexistência desses ordenamentos.
15 A extensa produção de Lúcio Kowarick é referência fundamental na descrição e análise dessas
dinâmicas urbanas, sobretudo em São Paulo. Os processos em questão estão em destaque, por
exemplo, em Kowarick (1993).

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16 O termo “comunidade” auxilia a conformação de uma representação de unidade interna


homogênea, e é muito usado nas periferias, desde o contexto de alta da Teologia da Liberta-
ção, nos anos 1970 e 80, época das Comunidades Eclesiais de Base, até hoje.
17 Para a trajetória específica de uma família que viveu essas transformações, ver Feltran (2008, Cap. 2).
18 Almeida (2009) é texto obrigatório sobre a expansão do pentecostalismo no Brasil, a partir de
estudo etnográfico em São Paulo.
19 Eu era mulher, então não fiz o SENAI. O que me sobrava, então? Casar, ter filhos, essas
coisas. Estudar foi uma opção minha. Fui estudar porque tinha algumas inquietações e fui
estudar. (...) Eu me achava muito estranha porque desde quando eu era pequena eu gostava
de música clássica, gostava de ler, gostava de um monte de coisa que não tinha nada a ver com
a minha família. [Juliana, 36, psicóloga, solteira].
20 Essa transformação pode se notar, inclusive, comparando-se as expressões culturais marcantes
das periferias da cidade nos anos 1980 (a estética punk, a xenofobia dos “carecas do ABC”
ou as letras politizadas do rock nacional, todas emanadas de filhos de operários denunciando
a incompletude da promessa de integração), àquelas que marcaram esses territórios nos anos
1990 (o rap e o funk, cantados agora não pelas elites operárias dos territórios, mas por aqueles
que nasceram nas favelas dali, e seu desenvolvimento em vertente gangsta, nos anos 2000).
21 As últimas três décadas são, não há como esquecer, o período da construção institucional de
canais de relações entre Estado e sociedade, espaços participativos, conselhos, orçamentos
participativos, fóruns de discussão e deliberação de políticas sociais. São referências dessa
bibliografia Dagnino (2002, 2006) e Dagnino e Tatagiba (2007).
22 O termo é emprestado de Eduardo Marques, que o utilizou para se referir a esse processo de
cristalização da posição institucional subalterna dos movimentos sociais urbanos, em comu-
nicação pessoal no ano de 2006.
23 Analiso essa tendência, com mais detalhe, em Feltran (2007).
24 Por isso os “justiceiros” praticamente desaparecem na virada para os anos 1990, em São
Paulo, e a gestão da segurança passa a ser feita, em muitos territórios, pelo próprio “crime”,
cujo senso de justiça esteve em franca expansão e legitimação, lastreadas pela acumulação
decorrente da conexão dos mercados nacional e internacional de drogas e armas. Ver Feltran
(2010; 2010b).
25 Marques (2007); Telles (2009); Biondi (2010); Hirata (2009); e meu próprio trabalho (Fel-
tran, 2008).

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26 Se Michel Foucault afirma que “lá onde há poder há resistência” (Foucault, 1988, p. 91),
a necessidade de resistir à essa expansão do “crime” denota as relações de poder que lhe são
constitutivas e, nessa chave, a questão política que se desprende delas.
27 A expressão dá título a um álbum duplo do grupo Racionais MC’s, ícone do gênero em
São Paulo. Daniel Hirata (2009) produz ensaio em que procura relacionar a representação
de “vida loka” ao conceito de “vida nua” que o filósofo Giorgio Agamben (2002) tomou
emprestado de Hannah Arendt (2000, p. 333).
28 Há toda uma bibliografia socioantropológica que pauta, recentemente, a “gestão diferencial
dos ilegalismos” proposta por Michel Foucault (1975) para analisar esse gerenciamento (Telles,
2009; Marques, 2009; Biondi, 2010). A ideia de que a lei serve para demarcar um espaço de
gestão da fronteira legal-ilegal já aparecia em Whyte (2005, cap.4). Para uma análise de fronteira
acerca dos modos dessa sujeição no Brasil, em diálogo crítico com as “teorias do sujeito” e espe-
cificamente tratando da categoria “bandido”, ver Misse (2010). O problema da subjetivação
política dos mais pobres anima a teoria democrática há tempos, e a crítica de Jacques Rancière
aos modelos deliberativos de democracia (mais centralmente à Habermas), nesse ponto, pode
ser lida em Rancière (1996a, 1996b).
29 Discuto as transformações nos modos de relação entre entidades de atendimento (que crescem muito
nos anos 1990 e 2000) e governos, via convênios em políticas sociais, em Feltran (2008; parte III).
30 Sobretudo o urbanismo securitário (exemplar nas rampas “antimendigo” do centro de São
Paulo) que concentra técnicas de segurança em algumas regiões, limitando assim os territórios
urbanos plausíveis para que o conflito social ensejado pela presença dos pobres se manifeste.

Bibliografia
ADORNO, Sérgio & SALLA, Fernando
2007 “Criminalidade organizada nas prisões e os ataques do PCC”, Revista Estudos Avançados,
21 (61), pp. 7-29.

AGAMBEN, Giorgio
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ABSTRACT: Based on three ethnographic situations, this article describes and


analyzes the changes in analytical, theoretical and political approaches to the
question of urban periphery in contemporary Brazil. Focusing on the transfor-
mations in “worker’s project” that established the basis of social dynamic of Sao
Paulo’s periphery in last four decades, I argue that the social and political conflict
that emerge in these territories has nowadays a new status. If in the 1980’s this
conflict could be thought in a perspective of integration of the “workers”, throu-
gh a promise of citizenship rights extension, now the problem is how to manage
the conflict – often very violent – that emerges from these “marginal” territories.

KEYWORDS: Urban periphery, violence, difference, rights, São Paulo - Brazil.

Recebido em março de 2010. Aceito em junho de 2010

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A abordagem ecológica e os paradoxos da cidade
Alba Zaluar

Universidade Estadual do Rio de Janeiro

RESUMO: O artigo discute as limitações da tese que vincula a pobreza à crimina-


lidade violenta com base nas novas teorias ecológicas sobre a concentração de certos
crimes em áreas urbanas. Considera-se que o enfraquecimento de laços interpessoais,
intergeracionais e interpares favorece o esgarçamento do tecido social, além de propi-
ciar a impunidade, pois o que distingue as vizinhanças pobres das prósperas, mesmo
aquelas em que há níveis semelhantes de crimes nelas cometidos, é o grau de registro
dos crimes, mais baixo nas primeiras. A diversidade e o anonimato, concomitantes à
maior liberdade dos citadinos vis-à-vis senhores e figuras de autoridade em domínios
privados, vieram acompanhados da diminuição dos controles sociais informais sobre
os jovens devido aos laços sociais enfraquecidos e à falta de confiança entre vizinhos,
o que resultaria no aumento da criminalidade. Este é o cerne da abordagem ecológica
discutida à luz da situação vivida no Rio de Janeiro e seus paradoxos.

PALAVRAS-CHAVE: violência, juventude, pobreza, vizinhança, controle social in-


formal, confiança, polícia, ecologia humana.

Hoje, apesar de acirrados debates sobre os determinantes, há certo consenso de


que houve um aumento no crime urbano que ultrapassa o crescimento demo-
gráfico das cidades em todos os continentes. Entre 1975 e 1996 o acréscimo
médio foi estimado entre 3% e 5%, embora com variações no tempo, no local
e no padrão criminal. Uma das hipóteses que tenta dar conta disso é a de que a
proteção social e o controle informal exercidos nas comunidades locais foram
perdendo importância em virtude da perda de poder de seus atores. A diversi-
dade social e o anonimato das cidades eliminariam a participação comunitária

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Alba Zaluar. A abordagem ecológica e os paradoxos da cidade.

ou a tornariam mais difícil. Do mesmo modo, ao contrário do que aconteceria


nas comunidades rurais e nos bairros de trabalhadores pobres onde, às vezes,
formas de apoio e proteção para enfrentar a pobreza fortaleceram a solidarieda-
de interna da classe social, nas cidades pós-industriais e da sociedade de risco, o
enfraquecimento de laços interpessoais, intergeracionais e interpares favoreceu
a fragmentação social e o esgarçamento do tecido social.
Nesse quadro de desagregação, a ação criminosa teria perdido uma impor-
tante fonte de controle social – o exercido nas famílias e vizinhanças –, favo-
recendo o acréscimo nas taxas de criminalidade, que, por sua vez, exacerbou
ainda mais a tendência à fragmentação. O círculo vicioso mostrou ainda mais
vigor com o desenvolvimento de modalidades variadas de crime organizado,
especialmente o que se desenvolveu em torno do tráfico de drogas e de armas
(Vanderschueren, 1996), corroborado pelas pesquisas de campo realizadas no
Brasil (Zaluar, 1985, 1994; Alvito, 1998; Dowdney, 2005).
Na América Latina e na África há evidências etnográficas de que os cri-
mes decorrentes da manutenção e continuidade dos negócios ilegais do
tráfico representaram a maior contribuição para o aumento dos crimes
violentos. Nesses continentes, estudos indicam que o que distingue vizi-
nhanças pobres das vizinhanças prósperas, mesmo aquelas em que há níveis
semelhantes de crimes nelas cometidos, é o grau de registro dos crimes,
mais baixo nas primeiras. A preservação de laços sociais entre vizinhos e o
sentimento de insegurança, provavelmente, no caso brasileiro, exacerbado
pelo alto grau de desconfiança nos policiais, paralisariam as pessoas para
acusar os danos a elas causados. Segundo estudos internacionais, a impu-
nidade relativa explica porque, embora criminosos sejam conhecidos pelos
moradores de tais vizinhanças, uma espécie de omerta, ou lei do silêncio, ou
cumplicidade forçada impede a denúncia daqueles. �������������������
(Badiane, A. & Van-
dershueren, F., 1995).�����������������������������������������������������
As imagens da cidade e os significados da vida urba-
na foram sendo modificados no processo.

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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.

Teorias sobre a desagregação e a violência na cidade

As cidades foram criadas para a segurança de seus habitantes, que encontra-


ram ali um espaço de proteção e liberdade que romperia os grilhões do sistema
feudal. Foram as cidades que propiciaram, segundo autores clássicos e con-
temporâneos, o desenvolvimento da cidadania, da racionalidade econômica,
de um sistema de leis válidas para todos e de novas formas de associação entre
indivíduos, fora dos laços de parentesco e de servidão. Desde o clássico de
Weber (1958) até as obras mais recentes de Godbout (1997) e Jacobs (1993),
a liberdade é apresentada como uma conquista urbana. Essas novas formas de
liberdade foram saudadas porque dissolviam laços de domínio dos poderes fa-
miliares e feudais que impediam o aparecimento de um poder público voltado
para o povo (Habermas, 1994). Mas, simultaneamente, por atraírem pessoas
vindas de diferentes lugares, com diferentes culturas, religiões, compromissos
políticos e identificações, que apenas se esbarrariam nos novos espaços. As ci-
dades teriam, então, comprometido o estabelecimento de relações duradouras
entre seus habitantes. Este argumento negativo sobre a cidade colossal negli-
gencia as diversas formas de interação social existentes no contexto urbano,
desde a mais civilizada (na qual a cultura cívica de participação, e de respeito
cosmopolita às diferenças entre os atores na cena urbana, passa a constituir as
interações) até a mais violenta (na qual a luta pela sobrevivência e a disputa
violenta do espaço são a tônica).
Não há duvida de que o próprio sucesso das cidades criou dificuldades para
a convivência entre seus moradores devido às diferentes origens, identificações,
valores, conhecimentos, afiliações religiosas e políticas deles. A diversidade e o
anonimato foram apontados como fatores para a ampliação da liberdade de
ação dos citadinos, mais livres de laços que criam obrigações com senhores e fi-
guras de autoridade em domínios privados. Simultaneamente, foram associa-
dos à diminuição dos controles sociais informais sobre os jovens em formação

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Alba Zaluar. A abordagem ecológica e os paradoxos da cidade.

devido aos laços sociais enfraquecidos e à falta de confiança entre vizinhos, o


que resultaria no aumento da criminalidade. A Escola Sociológica de Chicago
vem desenvolvendo estudos nessa direção desde o início do século passado.
Nessa Escola, o foco passa a ser a desorganização social que poderia apare-
cer também por uma mudança brusca no meio urbano, seja pelo crescimento
desordenado da cidade com cada vez maior densidade populacional, como
Chicago e Nova Iorque, ou o abandono de outros espaços. Crises econômicas
e políticas, além de catástrofes naturais, poderiam causar desorganização social,
com repercussões sobre os indivíduos que seriam, por um afastamento dos
padrões morais de seus grupos, levados a adotar comportamentos desviantes.
Dois autores da Escola de Chicago – Thomas e Znaniecki – concentraram seus
estudos sobre os imigrantes poloneses. Para eles, os descendentes dos imigran-
tes, ao se estabelecerem na metrópole, adquirem novas práticas de consumo,
novos valores que diminuem a solidariedade interna à família e à comunidade
da vizinhança onde permanecem como estrangeiros. Disso resulta menos con-
trole sobre crianças e jovens, o que favoreceria a delinquência juvenil. Entre os
delinquentes, 70% eram filhos de imigrantes, 92% eram meninos, 45% dos
quais acusados de roubo no final do século XIX, no auge das levas de imigran-
tes para os Estados Unidos (Savage, 2009, apud Ribeiro, 2009).
Estava posta para a Escola de Chicago, desde o início do século XX, uma
tensão entre, de um lado, o paroquialismo comunitário que prioriza as rela-
ções face a face, a estabilidade da residência e a uniformidade cultural entre
vizinhos, e, de outro lado, a artificialidade, o anonimato e a liberdade da vida
urbana, agitada e alienadora. Esta ambivalência em relação à vida urbana mo-
derna poderia ser resolvida, ou seria necessário escolher entre as vantagens das
pequenas comunidades e o papel civilizador da cidade com os benefícios da
modernidade, visto que o crescimento das cidades na era industrial era inexo-
rável? Os grandes autores dessa importante escola de pensamento sociológico
concluem que a cidade tem um papel na história universal que é civilizador

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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.

e emancipador, pois combina anonimato e desarraigamento, liberdade e cos-


mopolitismo. O que importa é a multiplicidade de dimensões e as variadas
tendências nela presentes. Ou seja, haveria muitas possíveis combinações de
economia, política, cultura e sociedade em cada cidade. Haveria muitas ci-
dades, embora em todas se encontrasse o anonimato e o desarraigamento. O
cosmopolitismo seria apenas um dos horizontes possíveis.
Entre os pontos positivos da Escola de Chicago está a grande motivação
para discutir as transformações políticas e urbanísticas da metrópole, e inter-
ferir de forma mais eficaz no espaço urbano, de modo a minorar os proble-
mas dela. Para fazer frente ao processo de delinquência juvenil, soluções foram
apontadas: a reorganização das atitudes destes jovens – de preferência com a
inserção no mercado de trabalho –, a mudança dos valores religiosos, os inves-
timentos na educação (Savage, 2009, pp. 88) e o fortalecimento de instituições
de ajuda mútua. Outros autores, tais como William Foote-Whyte (1943), cri-
ticam o conceito de desorganização social, argumentando que pode haver or-
ganizações diferentes, especialmente na família e na vizinhança, organizações
estas que não seriam geridas por normas explícitas.
Hoje, os continuadores da Escola de Chicago focalizam o espaço urbano
em sua diversidade para localizar aquelas áreas onde a desorganização social e,
portanto, o controle social, estaria mais enfraquecido. O foco é posto no esgar-
çamento dos mecanismos habituais de controle que moradores teriam sobre
os espaços onde vivem. A ecologia da cidade, neste caso, é reduzida à forma
e ao grau de controle social sobre as várias formas de ações desviantes que ali
poderiam vir a se manifestar. A pesquisa se limita a entender o que vem a esgar-
çar os laços entre moradores de comunidades e vizinhanças, impedindo-os de
exercer o controle social informal sobre futuros predadores (Shaw & Mackay,
1969), consequentemente favorecendo as oportunidades para a ocorrência de
diversos delitos (Cohen & Felson, 1979), e impedindo a cooperação entre
moradores e agentes do controle público, ou seja, o sistema de justiça.

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Alba Zaluar. A abordagem ecológica e os paradoxos da cidade.

Os estudos quantitativos demonstram que as variáveis tais como a desi-


gualdade econômica, a estrutura populacional, a densidade demográfica e a
taxa de desemprego estão associadas significativamente aos homicídios. Pes-
soas de estratos sociais marcados pela baixa renda, baixa escolaridade, famílias
chefiadas por mulheres, com altas taxas de gravidez na adolescência moram
em bairros superpovoados e, no Brasil, favelas. Mas tais bairros são marcados
também pela escassez de órgãos e serviços públicos, quando comparados com
as regiões abastadas, sugerindo que o nó estaria também na articulação entre
poder público e a organização local.
Assim, além do uso de variáveis socioeconômicas e individuais agregadas, a
compreensão de fatores relacionados ao espaço urbano tem se constituído em
terreno profícuo de investigação criminológica de base qualitativa. O modelo
ecológico de geração do crime busca a compreensão da natureza multifacetada
da violência e a identificação dos fatores que influenciam o comportamento,
aumentando o risco de cometer ou de ser vítima de violência. A análise eco-
lógica das distribuições dos delitos criminais em centros urbanos nos conduz
a questões de natureza prática e teórica. A questão é: por que alguns bairros e
localidades de uma cidade têm altas taxas de criminalidade? As respostas tor-
nam a pesquisa de campo etnográfica imprescindível.
Uma das respostas tem a ver com mecanismos de controle que são desen-
volvidos em áreas específicas dos centros urbanos, continuando a preocupação
com a desorganização social da Escola de Chicago, segundo a qual o uso dos
espaços comuns nos centros urbanos é caracterizado pela presença ou não de
pessoas estranhas interagindo com pessoas residentes em uma mesma área. A
preocupação aqui é com essa capacidade de controle social mais evidente nas
áreas residenciais e homogêneas das vizinhanças, porém muito mais difícil nas
áreas centrais e comerciais onde desconhecidos se cruzam. Em áreas comerciais
há a ocorrência de encontros frequentes com desconhecidos, ao contrário das
áreas residenciais em que predominam relações face a face de longa duração,

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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.

a partir de valores comuns e de mecanismos de controle informal. Aqui fica


clara a dinâmica centro versus periferia das cidades americanas, onde os subúr-
bios são constituídos de bairros exclusivamente residenciais, mais afastados do
Centro que adquire variadas funções e desenvolve o que se denominou “zona
moral” desagregada e violenta. Segundo essa teoria, apenas nas comunidades
em que os valores morais e regras culturais fossem homogêneos e os laços so-
ciais estáveis, a intervenção comunitária poderia ser mantida.
A hipótese da desorganização social tomou, assim, novas dimensões, de-
bitando a maior incidência de crimes não às características socioeconômicas
das pessoas, mas às das comunidades, cidades, bairros e vizinhanças (Bursik,
1986), ou à “eficácia coletiva” no controle do comportamento de seus habi-
tantes (Sampson et al., 1997). Isto porque as áreas com maior privação relativa
e absoluta aumentariam a mobilidade e heterogeneidade populacional, o que,
por sua vez, provocaria a frouxidão dos laços sociais, diminuindo o controle
social informal. Às características pessoais, medidas pelos dados censitários,
deveriam ser acrescentadas as variáveis ecológicas: os laços sociais de confiança
entre vizinhos, a homogeneidade de valores morais, os recursos institucionais
(Sampson et al., 2002), que pretendiam ser quantificadas mas que, de fato,
ficaram circunscritas à observação e entrevistas dos moradores.
Porém, mesmo nas áreas centrais e mistas, a presença contínua e em grande
número das pessoas, residentes e estranhos (transeuntes), nos espaços comuns
é a condição primordial para a geração e manutenção da ordem nesses espaços
(Jacobs, 1993). A conclusão é a de que a segurança nas cidades é original-
mente produzida pela intensidade, ao longo do tempo, do fluxo de pessoas
que passam, usam e permanecem nas ruas e calçadas das áreas da cidade, ob-
servando, interagindo e informando umas às outras o que acontece ao redor.
Os transeuntes seriam como os “olhos” vigilantes que deteriam criminosos de
cometer violações às leis vigentes, tornando-se predadores dos citadinos, em
cooperação com as organizações policiais existentes.

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Alba Zaluar. A abordagem ecológica e os paradoxos da cidade.

Em texto posterior, Sampson, Morenoff e Gannon-Rowley (2002) admi-


tem vários outros mecanismos interligados que explicam as diferenças mar-
cantes entre vizinhanças e sua relação com o crime. Primeiro, a conexão entre
as desvantagens concentradas e o isolamento geográfico dos afro-americanos,
ou seja, a segregação racial como variável da vizinhança que provoca a concen-
tração de diversos problemas sociais vicinais, como desordem social e física,
variáveis individuais, baixo peso ao nascer, mortalidade infantil, abandono da
escola e abuso contra crianças, todas vinculadas também a variáveis familiares
– por exemplo, famílias chefiadas por mulheres. Aqui os autores fazem uma
concessão à ideia do gueto e reiteram alguns argumentos da teoria da exclusão.
Segundo, os autores desse novo texto de 2002 reconhecem explicitamente
a contribuição da teoria do capital social para entender um dos mecanismos
vicinais que foi mensurado, em diferentes estudos, pela densidade dos laços
sociais entre vizinhos, a frequência da interação social entre vizinhos e os pa-
drões que constituem a vizinhança. A eficácia coletiva seria apenas um desses
mecanismos, por se referir à disposição ou à vontade dos vizinhos em intervir
pessoal e diretamente no controle de jovens, o que também depende da con-
fiança construída a partir desses laços, fruto de processos sociais complexos e
carregados de sentidos para as pessoas envolvidas.
Terceiro, apontam o mecanismo dos recursos institucionais, que compre-
endem escolas, bibliotecas, centros de atividades recreativas, centros de saúde,
agências de apoio a pais e jovens, oportunidades de emprego – o que nos
interessa sobremaneira, por ser revelador na comparação entre cidades brasi-
leiras e cidades estadunidenses. Este mecanismo, segundo os autores, tem sido
mensurado pelo número de organizações nas vizinhanças, mas não pela parti-
cipação dos vizinhos nessas organizações, a ser observada pelo pesquisador. Ao
falar em participação, os autores vinculam a eficácia coletiva ao que Putnam
(2006) denominou participação cívica, claramente vinculada à ordem pública
e suas instituições.

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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.

Como não discutem a habilidade ou a competência que vizinhos podem


ter em usar seus vínculos políticos de modo eficaz, pois querem ressaltar a
eficácia do controle informal da vizinhança, a análise é feita implicitamente
em quadro institucional e político partidário, que pode ser único no país ou
na cidade em foco. Seria, pois, necessário ampliar o escopo do estudo das vizi-
nhanças como meio de controle social, portanto de ordem social, comparando
não apenas vizinhanças em cidades, mas cidades em um país, principalmente
cidades em diferentes países, por métodos quantitativos e qualitativos.
Pode-se dizer que Sampson e os demais autores descreveram não só a efi-
cácia informal da vizinhança, mas também a capacidade de alguns sistemas
político-partidários e de segurança pública em mobilizar e articular as redes de
vizinhos potencialmente ativos em organizações para cooperar com o trabalho
policial. Essa capacidade permanece no pano de fundo da análise, embora seja
crucial para o entendimento de por que, em algumas vizinhanças de Chicago
e não em outras; por que em Chicago e não em outras cidades dos Estados
Unidos da América, por que em cidade dos Estados Unidos e não em outras
cidades do mundo, vizinhos participam, informal e ativamente, da socializa-
ção dos mais jovens.
Hunter (1985), por sua vez, assinala que quando os adolescentes, não mais
sob o controle familiar, saem para relações fora da ordem privada e começam
a praticar incivilidades e crimes na vizinhança, rompe-se a interação entre o
privado e o paroquial. E isto acontece quando igrejas, escolas, clubes de jovens,
ligas de atletas deixam de prover o controle social dos jovens por dependerem
principalmente do trabalho voluntário dos vizinhos. Ou seja, essas organiza-
ções vicinais são mais fundamentais na socialização dos adolescentes do que
a intromissão informal de vizinhos. A desarticulação organizacional da vizi-
nhança tem mais impacto sobre a criminalidade do que a da ordem privada,
visto que pode fazer a vigilância que a polícia não tem meios suficientes para
exercer. O autor conclui, então, que fortalecer as organizações vicinais, mais

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Alba Zaluar. A abordagem ecológica e os paradoxos da cidade.

do que caçar criminosos, é a saída para tais problemas de controle social, pois
basear o controle social em tais organizações, que vão ajudar a controlar os
jovens, libera a polícia para cuidar da ordem pública nos locais públicos, os
quais envolvem encontros entre desconhecidos, ao contrário do que acontece
na vizinhança, onde quase todos se conhecem.
Tais teorias adquiriram ainda mais importância nas últimas décadas do
século passado por conta do aumento da violência cujas interpretações cria-
ram um aceso debate. Uma delas é sobre a importância da teoria do crime
organizado no século XX para entendermos o que se passa com os jovens,
especialmente os originários das camadas mais pobres da população. Vários
sociólogos urbanos assinalam as profundas associações entre o crime profis-
sionalizado ou organizado e o capitalismo selvagem, entre os negócios ilegais
e os legais, entre o desvio e o mundo convencional, os quais se interpenetra-
riam, contagiariam e superporiam (Matza, 1969, pp. 70-71; Hannerz, 1981,
p. 54; Samuel, 1981).
Outra interpretação é a relativa à xenofobia e ao nacionalismo, usada na
década de 70 para entender as galères nas cidades francesas, particularmente
em Paris, quando as tensões e conflitos, decorrentes da imigração recente e da
recusa à nacionalidade aos “estrangeiros” imigrados, teriam exacerbado sen-
timentos étnicos e nacionais. Tanto Dubet (1987) quanto Lagrange (1995)
dão grande importância ao desmantelamento dos bairros operários e ao en-
fraquecimento do movimento operário como o pano de fundo para o apare-
cimento das galeras de jovens na periferia de Paris. O princípio explicador de
sua conduta não seria a pobreza, mas a exclusão, termo que se refere a diversos
processos simultâneos, entre os quais se inclui o desemprego, o afastamento
da escola, a estigmatização pelo uso de drogas, o enfraquecimento dos movi-
mentos sociais (novos e velhos), assim como a diluição dos laços sociais nos
bairros operários e a própria ausência do conflito social, substituídos pelo
vazio e pela raiva.

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Ainda outra interpretação é a relativa à cultura jovem. Na Inglaterra, o


aparecimento de estilos jovens na música, na maneira de se vestir, no uso
de drogas ilegais e nas relações entre os sexos é recente: surge na década de
60, quando se formaram estilos de vida mimetizando estilos culturais nor-
te-americanos, inclusive da música negra. Os sociólogos que estudavam a
cultura operária procuraram os vínculos que ainda guardariam esses estilos
jovens com sua cultura de origem, a operária (Hall, 1980), o que não foi
problemático, visto que os grupos juvenis que se formaram para fazer música
e desenvolver práticas recreativas vinham principalmente da classe operária.
Depois, a Sociologia da Juventude foi se afastando da classe, cada vez mais
fragmentada, precarizada e desorganizada.
Finalmente, mais um patamar deve ser analisado na discussão. A própria
cultura da civilidade e o processo de pacificação dos costumes que transforma-
ram a relação entre o Estado e a sociedade, dividida em classes sociais, etnias,
raças, grupos de idade, gêneros, afiliações religiosas e assim por diante, mais
claros em países europeus do que nos do continente americano, devem ser
consideradas no entendimento das brutais diferenças nas taxas de criminali-
dade entre eles, ainda mais brutais no que se refere aos homicídios nos quais
perderam suas vidas tantos jovens pobres e negros. Enquanto os países euro-
peus haviam sofrido no século anterior um processo muito bem-sucedido de
desarmamento de sua população civil, com a proibição de duelos, e o conse-
quente monopólio da violência pelo Estado, nos Estados Unidos a Constitui-
ção continuou a garantir a qualquer cidadão o direito de ter e negociar armas.
Em consequência de guerras civis nos Estados Unidos, Colômbia e México,
para mencionar as principais, a posse de armas se espalhou pela população civil
e o imaginário midiático cultuou a figura do homem armado que, sozinho,
enfrenta todos os inimigos com um dedo rápido no gatilho.
Na Europa, a partir da Inglaterra, os processos de pacificação dos costumes,
estudados por Norbert Elias, tiveram, segundo este autor, diversos aspectos

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Alba Zaluar. A abordagem ecológica e os paradoxos da cidade.

que interagiram para formar novas configurações relacionais (Elias & Dun-
ning, 1993). Elias focaliza alguns dos que ocorreram na Inglaterra por meio do
desenvolvimento do jogo parlamentar, no qual as partes em disputa passaram
a confiar uma na outra de que não seriam mortas ou exiladas, caso perdessem
o jogo. As regras acordadas seriam seguidas pelos parceiros que dele participas-
sem no intuito de resolver conflitos verbalmente. Na sociedade assim pacifica-
da, o monopólio legítimo da violência pelo Estado foi efetivado por modifica-
ções nas características pessoais de cada cidadão: o controle das emoções e da
violência física, o fim da autoindulgência excessiva, a diminuição do prazer de
infligir dor ao alheio. Este processo civilizador não foi, entretanto, uniforme
em todas as classes sociais, cidades e países. Onde o Estado fosse fraco, um
prêmio era colocado nos papéis militares, o que resultaria na consolidação de
uma classe dominante militar (Elias & Dunning, 1993, p. 233). Onde os
laços segmentais (familiares ou locais) fossem mais fortes, o que acontece em
bairros populares e vizinhanças pobres, o orgulho e o sentimento de adesão ao
grupo diminuem a pressão social para o controle das emoções e da violência
física, resultando em baixos sentimentos de culpa no uso aberto da violência
para resolver conflitos.
De todo modo, há enormes diferenças entre localidades, vizinhanças ou
territórios em virtude da diversidade de engenharias institucionais e político-
partidárias de cada país. Em alguns, gerações sucessivas de migrantes ocuparam
partes das cidades, há um aumento impressionante nas taxas de criminalidade,
espalham-se tanto o uso de drogas ilegais quanto as práticas violentas (arma-
das) do crime organizado e da polícia que o combate, seguidos pelo enfraque-
cimento da autoridade dos líderes comunitários e das associações vicinais nas
áreas mais pobres das cidades. A atual configuração urbana é um dos obstá-
culos a se enfrentar para a reafirmação dos direitos fundamentais (tais como
o direito à vida e ao ir e vir) entre a população mais vulnerável, mais afetada
pela precariedade, desigualdade e pobreza, fatores agravados pela violência que

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passa a reinar em algumas vizinhanças, e pelo medo, tanto de traficantes arma-


dos quanto da polícia. Mas é o quadro institucional incompleto ou falho que
explica a submissão aos que darão respostas vicinais de autodefesa, despóticas
no caso brasileiro, compondo grupos de extermínio ou “milícias” (Zaluar &
Conceição, 2007).
O modo como se vinculam as localidades ao poder político dos represen-
tantes nas Assembleias e Câmaras e, por meio deles ou diretamente, ao poder
Executivo da cidade ou do Estado é parte desse quadro não explicitado, na
medida em que pode favorecer, incentivar ou bloquear a capacidade ou a dis-
posição de vizinhos em se organizar para resolver problemas comuns, entre
eles o controle sobre jovens em processo de socialização. Por exemplo, sabe-se
que a prática do clientelismo via cabos eleitorais tem tido um efeito devastador
ao minar a confiança que os vizinhos possam depositar em líderes locais que
assumem este posto, para não falar do desalento em encontrar soluções que
venham a ser verdadeiramente para o bem comum. Mais importante ainda
são as formas de vinculação da vizinhança com as polícias locais e, portanto, a
confiança nelas depositada pelos moradores. O papel da polícia como um ator
estratégico no cenário urbano não pode ser ignorado. Isto por que o controle
da violência nos espaços urbanos deteriorados dependerá em grande medida
das formas pelas quais se dá a atuação da polícia nestes locais, e da relação que
estabelece com os moradores que podem ser os “olhos da rua” (Jacobs, 1993)
em cooperação com as polícias que têm, por definição, efetivo limitado.

As áreas degradadas ou subnormais da cidade

No Brasil, segundo o Censo do IBGE feito em 2000, havia 3.905 favelas,


ou “áreas de habitações subnormais”, espalhadas no território nacional, tendo
crescido 22,55% desde 1991, enquanto a população do país cresceu apenas
2,1%. Na cidade do Rio de Janeiro, havia cerca de 600 favelas no mesmo

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ano, 50% das quais concentradas em uma das cinco áreas de planejamento
da cidade, a AP3. Nessas centenas de favelas, o crescimento populacional foi
de 2,4% de população favelada, enquanto que o da cidade foi de 0,4%, um
índice europeu. Hoje, em 2010, são 1006 favelas, segundo o Instituto Pereira
Passos, da Prefeitura do Rio de Janeiro. Portanto, embora menores, os núme-
ros da cidade continuam preocupantes quanto ao crescimento contínuo das
habitações irregulares, logo associado à informalidade e à ilegalidade, abrindo
caminho para o fascínio exercido pelo crime organizado junto aos jovens mais
vulneráveis, a partir dos anos 1970.
De fato, as favelas do Rio de Janeiro, que existem há mais de um século,
sempre tiveram um lugar marcante no imaginário político e cultural da cida-
de. Ficaram registradas oficialmente como áreas de habitações irregularmente
construídas, sem arruamentos, sem plano urbano, sem esgotos, sem água, sem
luz, a partir das quais foi sendo formada a imagem de uma cidade bipartida,
ou seja, uma imagem devedora de ordem social que se monta na clareza de
quem são os amigos e os inimigos, uma ordem pré-moderna, das sociedades
de pequena escala, dificilmente aplicável às metrópoles. Nestas, como lembra
Bauman (2003), aparecem os estranhos não convidados, os que carregam as
marcas do ambíguo e do misturado, os que partilham ao mesmo tempo da
proximidade das relações morais e da distância do que não se conhece, firman-
do um terceiro elemento entre amigos e inimigos que outros autores denomi-
nam o espaço público.
Até hoje perduram elementos desta representação sintética e econômica
da cidade segundo os eixos alto/baixo, refinamento/selvageria, avanço tecno-
lógico/atraso, centro/periferia que acabaram por influir nas políticas públicas,
especialmente na segurança. Mas tal imagem bipolar não consegue representar
a peculiar mistura da ordem e da desordem, nem a tensão entre o pessoal e
o impessoal, entre o moderno e o antigo, que sempre caracterizou o Rio de
Janeiro. Nem muito menos a sua intensa criatividade na música, com a criação

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de vários gêneros musicais, e outras formas de expressão culturais a meio ca-


minho entre o erudito e o popular, entre a Zona Sul e a Zona Norte, o pobre
e o rico, criatividade e mistura também peculiares à cidade, nas quais a favela
e seus moradores participaram decisivamente.
São inúmeros os livros sobre a história musical do Rio de Janeiro que falam
dos encontros entre os músicos e literatos eruditos com os poetas e composi-
tores populares, da mistura de gêneros e estilos musicais que sempre marcou
a produção cultural do Rio de Janeiro (Velloso, 1996; Cabral, 1996; Gardel,
1995; Braga, 1997). A favela constituiu, sobretudo, o espaço onde se produziu
o que de mais original foi criado culturalmente na cidade: o samba, a escola
de samba, o bloco de carnaval, a capoeira, o pagode de fundo de quintal, o
pagode de clube. Mas onde também se faz outro tipo de música, globalizada
(como o funk e o hip hop).
Portanto, o desenvolvimento da cidade já se deu por duas vias: uma de
diálogo e encontro entre ilustrados e humildes moradores na produção artís-
tica; outra de repressão e desconfiança na política de segurança implementada
pelas Polícias, mais particularmente a Polícia Militar a partir do início dos anos
1970, exatamente quando começava a crescer o tráfico de drogas e de armas na
cidade (Zaluar, 1994 e 1998). Muitos desencontros foram sendo produzidos
ao longo dos últimos 40 anos, desencontros que resultaram na concentração
de homicídios e outros crimes violentos justo nas áreas de povoamento mais
antigo da cidade: a AP1 e a AP3 (Ribeiro, 2009), berço das mais importantes
escolas de samba, blocos de carnaval e muitas outras formas de associação vi-
cinal que marcaram a imagem alegre e sociável da cidade no país e no mundo.
Técnicas de estimativas demográficas indiretas, a partir de dados censitá-
rios, permitem a comparação entre diferentes Regiões Administrativas (RA)
da cidade do Rio de Janeiro, entre as quais figuram as cinco mais populosas fa-
velas em diferentes zonas da cidade. Por meio delas é possível identificar as re-
giões de maior risco de mortes violentas, estimando a probabilidade de morrer

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jovem, antes dos 30 anos para quem sobreviveu até os 15 anos, visto que nesta
faixa de idade 80% das mortes são violentas (Monteiro, 2008). As diferenças
entre as RAs são significativas: na Lagoa, bairro de alta renda familiar, 3,1%
dos nascidos vivos não completa 30 anos; no Complexo do Alemão, conjunto
de favelas de renda familiar baixa, 12,9% morre antes dos 30. As outras três
RAs com maior percentual de jovens que não chegam aos 30 são favelas do-
minadas por traficantes: Jacarezinho (10%), Maré (9%), Rocinha (9%). Mas
em Cidade de Deus é bem menor: 6% (ibidem). As áreas mais violentas não
coincidem totalmente com as mais pobres.
Quando localizadas no mapa da cidade, quatro das RAs, onde o risco de
morrer jovem é maior, estão localizadas perto da baía da Guanabara e do Aero-
porto Tom Jobim, por onde chegam navios e aviões, assim como ao longo da
avenida Brasil, por onde passa o transporte rodoviário que liga o Rio de Janeiro
a São Paulo, e outros estados limítrofes com os países produtores de drogas
ilegais. Também as etnografias feitas anteriormente e as longas entrevistas re-
alizadas com ex-traficantes revelaram o porquê: as transações entre traficantes
e fornecedores são feitas nas principais vias de acesso à cidade em postos de
combustível, motéis etc. (Pereira, 2009)
Isto porque, segundo dados da pesquisa domiciliar de vitimização realizada
em 2005-2006, a Polícia Militar é mais violenta e menos presente nas favelas,
nos bairros pobres dos subúrbios, especialmente na AP 3 onde estão as quatro
favelas que apresentaram maior risco de morte antes dos 30 anos. Ela dispara
dez vezes mais tiros nas favelas do que no asfalto. O barulho de tiros, por
exemplo, é ouvido por 60% dos entrevistados na AP 3 (nos subúrbios), 65%
na AP1 (Centro), mas por 30% no resto da cidade.
A pesquisa de vitimização também revelou o paradoxo da cidade: nas áreas
mais pobres, onde a violência é maior, a muito boa convivência entre vizinhos,
marca da cultura carioca, é também maior. Esta convivência, assim considera-
da pelos entrevistados, apresenta proporções maiores nas áreas em que vivem

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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.

os pobres: AP1 (52%), AP3 (39%) e AP5 (36%), correspondentes respectiva-


mente ao Centro, aos subúrbios e à Zona Oeste, enquanto que nas zonas ricas
da cidade encontra-se metade desta boa convivência: AP2 com 20%.
Nessas áreas mais pobres da cidade, a AP1 e a AP3 e AP5, se encontram os
percentuais mais altos de confiança nos vizinhos. Na AP1 67,9% dos morado-
res afirmou confiar na maioria deles ou em alguns vizinhos; 53,3% dos mora-
dores da AP5; 48,8% dos moradores da AP3. Em contrapartida, os moradores
da AP2 (com 4,8%) e os da AP4 (com 4,1%) são os que menos conhecem
seus vizinhos, justamente os moradores das áreas com maior IDH da cidade,
maior renda e escolaridade (Ribeiro, 2008).
Como explicar o paradoxo que nega as teorias recentes, que explicam a
maior ou menor criminalidade pelos indicadores de capital social e eficácia
coletiva, baseadas na maior sociabilidade e confiança entre vizinhos?
Uma das conclusões das pesquisas etnográficas feitas por nós no Rio de
Janeiro sugere que, no Brasil, impera a conjunção entre a facilidade de obter
armas de fogo e a penetração do crime organizado na vida econômica, social
e política do país. Aqui o estilo de tráfico da cocaína, introduzido a partir
do final dos anos 1970, trouxe uma corrida armamentista entre quadrilhas e
comandos de traficantes. Este é o quadro dos bairros de subúrbios no Rio de
Janeiro e das favelas. Só o trabalho de campo etnográfico permitiu entender
como algumas terminam concentrando intensa atividade de quadrilhas ligadas
ao tráfico de drogas, com elevadas taxas de homicídios por conta da dinâmica
de conflito em torno, primeiramente, da boca de fumo e, posteriormente, do
território dominado pela quadrilha (Zaluar, 1994; Zaluar, 2004).
A informalidade e a maior tolerância para com os desviantes, especialmente
no que diz respeito ao uso de uma das drogas ilegais – a maconha – de uso
secular entre escravos e ex-escravos no Brasil, abriu o caminho para o estabele-
cimento das “bocas de fumo” nas favelas do Rio de Janeiro, inicialmente sem
guerra de quadrilhas. Este é um dos elementos que permitem compreender

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a facilidade com que se deu o domínio dos traficantes armados sobre os seus
territórios a partir dos anos 1970. Mais isolados internamente e alvo de des-
confiança e medo dos seus vizinhos prósperos, os bairros pobres e as favelas,
onde moram os pobres, embora tenham historicamente contado com gran-
de capacidade organizativa que se concretizou nas escolas de samba, blocos
de carnaval, times de peladeiros, assim como associações de moradores, não
contam hoje com os serviços públicos de qualidade na saúde e na educação, e
têm de enfrentar os efeitos desastrosos da falta de policiamento, com incursões
eventuais e violentas de forças policiais que não se guiam pelas normas estabe-
lecidas na lei.
Sem contar com os controles informais que se enfraqueceram no pro-
cesso de militarização dos traficantes, nem com a mediação de conflitos
entre estes últimos – sempre disputando o controle dos pontos de venda
e de poder local –, o poder policial entra em locais já conflagrados pelo
conflito armado. Em um círculo vicioso infindável, esta situação só faz
reforçar aquelas práticas policiais baseadas no seu poder de fogo e na pers-
pectiva das práticas repressivas da “guerra contra os inimigos internos”
estabelecidas nas últimas décadas. Mas a polícia não pode fazer guerra
contra cidadãos trabalhadores, crianças, idosos, jovens estudantes e donas
de casa, nem até mesmo contra suspeitos de praticarem crimes. A ideia
da guerra contra outro poder armado “paralelo”, com alta capacidade de
corromper, dificulta enormemente a adesão às normais legais que deve-
riam orientar a ação policial.
De fato, o comércio de drogas tornou-se sinônimo de guerra em muitos
municípios do Brasil, mas com diferenças regionais entre cidades e entre bair-
ros na mesma cidade. No Rio de Janeiro, mesmo que não completamente
coordenado por uma hierarquia mafiosa, o comércio de drogas tem um ar-
ranjo horizontal eficaz pelo qual, se faltam drogas ou armas de fogo em uma
favela, esta imediatamente as obtém das favelas aliadas. As quadrilhas ou co-

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mandos conciliam os dispositivos de uma rede geograficamente definida, que


inclui pontos centrais ou de difusão, e outros que se estabelecem na base da
reciprocidade horizontal. Nesta cidade, as armas de fogo são mais facilmente
obtidas por causa dos portos e vários aeroportos, assim como os mais impor-
tantes depósitos de armamentos das Forças Armadas que estão dentro do seu
território. Muitos furtos ocorreram e continuam ocorrendo em tais depósitos,
onde não impera o controle de estoque apropriado. Consequentemente, o
tráfico de drogas tornou-se mais facilmente militarizado. Resumindo o que já
apresentei em textos anteriores, o porte de armas de fogo pelos traficantes se
explica pela lógica da guerra: competidores se tornam inimigos mortais que é
preciso dissuadir pelo aumento progressivo do arsenal de armas e homens da
quadrilha. Esta lógica se expande nos pequenos grupos aos quais pertencem
os jovens que passam a andar armados para evitar serem vitimizados pelos seus
pares armados, para impor respeito e para gozar do prestígio adquirido com
a posse de armas (Zaluar, 1994 e 1998; Alvito, 1998; Dowdney, 2005). A
grande quantidade de armas disponíveis para os jovens moradores das favelas,
grande parte das quais exclusivas das Forças Armadas Brasileiras, são também
trazidas por policiais corruptos1 ou por contrabandistas.
Em algumas regiões pobres da cidade, os quatro Comandos que con-
trolam os morros dividiram militarmente não apenas as favelas, mas tam-
bém as ruas próximas. É preciso prestar atenção para não cair nas mãos de
“alemães”. Além disso, as ruas são pouco iluminadas e a polícia não vai ali
senão em patrulhas raras violentas ou “blitzen”. Por isso, os traficantes das
favelas reinam sem muitos problemas nas ruas dos bairros mais longín-
quos. Trata-se, para eles, de impedir fornecedores independentes de droga
de vender sua mercadoria ali ou de mostrar seu poder de fogo. Quando o
“proprietário dos morros” avista um vendedor não autorizado, ameaça-o.
Se este último insiste, e enfrenta a quadrilha, é morto. Não se pode vender
drogas sem ser autorizado pelo dono. Se o traficante ou o policial corrom-

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Alba Zaluar. A abordagem ecológica e os paradoxos da cidade.

pido suspeita que os bandidos menos importantes estão ganhando muito


dinheiro, estes podem passar pela experiência de serem agredidos, tortura-
dos ou extorquidos. A situação, como dizem, fica “sinistra”. Eles podem ser
mortos por um ou por outro. Em suma, não é nem a cidade nem a favela
que é violenta, é o tráfico de drogas ilegais e a Polícia que o combate que se
tornaram muito violentos.
Há, portanto, os efeitos político-institucionais pouco analisados na litera-
tura e que revelam como a criminalidade violenta aumenta a pobreza e os so-
frimentos dos pobres. Isto na medida em que os obriga a viver entre dois fogos
e duas tiranias – a dos traficantes e a das polícias justamente nas áreas subnor-
mais, especialmente nos subúrbios cariocas, berço da cultura associada ao ser
carioca. Esta criminalidade impede também o acesso aos serviços e instituições
do Estado presentes, tais como escolas, postos de saúde, quadras de esporte e
vilas olímpicas com as restrições ao ir e vir dos moradores e dos profissionais
que atendem a população pobre.
Sobretudo, nas favelas e bairros pobres adjacentes, não há policiamen-
to nem muito menos investigação, tal como acontece nos bairros mais
ricos da cidade. Este é um elemento importante na equação que vai ex-
plicar a existência de pontos quentes de crimes violentos, especialmente
o homicídio, um crime quase nunca investigado nas áreas onde há favelas
dominadas por traficantes. Além da vulnerabilidade que a pobreza cria,
a rede de relações sociais e a rede de proteção institucional do sistema
de justiça têm enormes falhas em tais locais, não conseguindo suprir a
demanda local (Monteiro, 2009; Ribeiro, 2009), embora muitos deles,
como Madureira, tenham alta atividade comercial e muitas atividades
esportivas e culturais vinculadas a associações vicinais.
Tal constatação é confirmada por levantamento do homicídio em São
Paulo feito por Oliveira & Pavez (2002), que o aponta claramente como
um crime de pobres contra pobres. As pesquisadoras ressaltam dois aspec-

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tos que mais as impressionaram: 46,3% dos bairros visitados, todos nas zo-
nas mais pobres da cidade, não contam com ronda policial. A maior parte
dos casos decorre de conflitos banais na periferia que poderiam ser evitados
com políticas públicas que criassem formas de mediação na vizinhança, nos
bares, na escola, na família. Por fim, a maior parte das vítimas teve morte
anunciada e seus familiares sabiam do destino por terem essas vítimas vin-
culações com traficantes de drogas ilegais, seja como usuários contumazes,
seja por envolvimento nas suas atividades ilegais.

As armas e a ecologia do crime

Não há a menor dúvida de que a difusão do uso de armas de fogo para


resolver conflitos comerciais, passionais e de pequenas desavenças deu-se no
ambiente das favelas pela facilidade em obtê-las e pela socialização que se dá
nas ruas e vielas. Crianças e adolescentes crescem vendo a exibição ostensiva
das armas como símbolos de poder e o seu uso cruel para punir ou vingar
quem atravessa o caminho dos traficantes armados e dos policiais corruptos.
O contágio de ideias e posturas da crueldade e insensibilidade ao sofrimento
alheio se espalham entre eles.
Do mesmo modo que o uso das drogas, o porte de armas de fogo se
explica pelo contexto socioeconômico dos pequenos grupos a que perten-
cem os jovens. Muitos estudos, sobretudo os feitos nos Estados Unidos,
apontam o grupo de pares como o maior preditivo de delinquência entre
homens jovens, especialmente os crimes violentos mais graves e o hábito de
portar armas (Myers et.al., 1997). A família poderia influir direta ou indire-
tamente, mas é a rede de relações do jovem com outros jovens de sua idade
ou com jovens de idade superior que aparecem como mais importantes
para se entender o seu comportamento. Os que portam armas constituíram
20% da amostra de adolescentes negros entre 12 e 15 anos entrevistados.

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Alba Zaluar. A abordagem ecológica e os paradoxos da cidade.

Estes jovens mencionam 19 vezes mais do que os que não portam armas
que têm colegas também portadores de armas de fogo (ibidem).
Tais estudos procuram entender porque jovens que de outra maneira
não andariam armados, passaram a fazê-lo para evitar serem vitimados pe-
los seus pares armados, para impor respeito e para gozar do prestígio ad-
quirido com a posse de armas. Pois, mais do que uma inclinação natural
dos homens jovens pobres à violência, o que explica o aumento da taxa de
homicídios nos locais onde vivem é a alta concentração de armas nestes
locais. É isso que cria o que o criminologista Jeffrey Fagan (2005) da Uni-
versidade de Columbia chamou “ecology of danger”. Depois de entrevistar
400 jovens nas vizinhanças mais perigosas de Nova Iorque, descobriu que
a violência se expandiu nessas vizinhanças entre 1985 e 1995 pelo contágio
de ideias e posturas.
Este é outro círculo vicioso encontrado também no Brasil. Nas várias pes-
quisas de campo que realizei com assistentes de pesquisa no Rio de Janeiro,
também sempre foi assinalada, desde 1980, a facilidade e a quantidade de
armas disponíveis para os jovens moradores das favelas tidas como perigosas. E
nelas jovens passam a andar armados para se proteger de outros jovens arma-
dos; juntam-se a quadrilhas por crer que assim contarão com a sua proteção
militar, jurídica, política e pessoal; preparam-se para a guerra, aprendem a ser
cruéis e a matar sem hesitação outros jovens pobres como eles que fazem parte
dos comandos, quadrilhas ou favelas “inimigas”. Acreditam que permanecerão
impunes nesse crime e acabam, eles também, como vítimas nas estatísticas
sobre os homicídios no país.
Tal ethos guerreiro, de hipermasculinidade ou de excesso na virilidade
agressiva e destrutiva, ao qual aderem os jovens atraídos pelas quadrilhas, im-
pregna o lugar onde os meninos crescem. Pois é nas ruas que eles são em
parte socializados nessa configuração analisada por Norbert Elias (Elias &
Dunning 1993, pp. 10-11). Ao adotar seus códigos ou suas práticas sociais

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não conscientes, eles procuram conquistar o respeito e a consideração dos


membros da quadrilha, para serem aceitos e construírem uma reputação.
Alguns acham que este contexto social é uma composição natural e eterna
da interação social. Não é. Entre estes, vários têm amigos ou parentes que
fazem parte da rede de traficantes e não ousam contrariar as regras do “con-
texto”, um termo empregado para falar da situação de poder existente na
favela. É assim que se tornam conformistas e perdem a autonomia, passando
a ser chamados pelos trabalhadores locais de “teleguiados”. É assim que são
progressivamente preparados para entrar na guerra e matar impiedosamente
seus inimigos. Nesse processo, vão sendo anestesiados para o sofrimento que
possam infligir aos outros.
Contudo, os jovens favelados que aprendem a ser cruéis na rua, recebem
de fora os instrumentos de seu poder e de seu prazer. Isto se torna possível
em razão de funcionamentos institucionais apropriados e da influência de
valores que os impelem à busca das sensações do crime violento e do dinheiro
fácil. Entretanto, para além das conexões da causalidade objetiva, mesmo as
que têm lugar no plano simbólico, são poucos os meninos, e não todos sub-
metidos às mesmas condições, que “delegam ao mundo os poderes que os
seduzem à criminalidade” (Katz, 1988). Nesse arranjo interno, agem enquan-
to autores de suas ações. Para os meninos atraídos, então, a fonte principal
da soberba vem do fato de que fazem parte da quadrilha, utilizam armas de
fogo, associam-se para o roubo e a pilhagem, tornam-se célebres por causa
disto tudo, e, se possuem a “disposição” apropriada, poderão um dia subir na
hierarquia do crime (Zaluar, 1985 e 1994). Mas continuam morando junto
aos seus familiares, entram e saem das escolas, e participam das atividades
cotidianas de suas vizinhanças.
Portanto, é preciso dizer que a situação encontrada nas favelas brasileiras
não é tão grave do ponto de vista da militarização das crianças e adolescen-
tes como a vivida em países africanos e europeus do leste, onde há confli-

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Alba Zaluar. A abordagem ecológica e os paradoxos da cidade.

tos étnicos armados. Nestes países, crianças são afastadas de suas famílias
para se incorporar a forças militares nas quais são treinadas para a guerra.
Nos conflitos étnicos, crianças não são poupadas como alvo da ativida-
de guerreira. Elas, assim como as mulheres de todas as idades, são vítimas
do morticínio, assim como seus autores. Os soldados das guerras civis não
vão à escola, não participam das atividades cotidianas nas vizinhanças em
que vivem (Wessell, 1998). São partes integrantes dos exércitos militares
ou paramilitares. As ações propostas para recuperar estas crianças apontam
para a importância de desmobilizá-los, banir qualquer possibilidade de re-
crutamento futuro e reestabelecer o contato com suas famílias, com suas
comunidades civis, reintegrando-as às atividades cotidianas culturais fora
ou dentro da escola (ibidem).
Outras conclusões de nossos estudos etnográficos afirmam que, além da
inegável importância do esporte na pacificação dos costumes (DaMatta, 1982;
Zaluar, 1994), outro processo se espalhou pelo Rio de Janeiro: a instituição de
torneios, concursos e desfiles carnavalescos envolvendo bairros e segmentos
populacionais rivais. Desde o início deste século, os conflitos ou competições
entre bairros, vizinhanças pobres ou grupos de diversas afiliações eram apre-
sentados, representados e vivenciados em locais públicos que reuniam pessoas
vindas de todas as partes da cidade, de todos os gêneros, de todas as idades,
criando sociações, ligações, encenações metafóricas e estéticas das suas possí-
veis desavenças, seguindo regras cada vez mais elaboradas. O samba reunia
também pessoas de várias gerações, constituindo uma atividade de lazer fre-
quentada por toda a família, o que quer dizer que nos ensaios, nas diversas
atividades de preparação do desfile, no barracão onde juntos trabalhavam, os
valores e regras da localidade e da classe conseguiam ser transmitidos de uma
geração para outra, mesmo que não completamente.
Apesar dos sinais de que a classe social estaria partida, as organizações
vicinais paralisadas onde traficantes e milicianos dominam o território, e

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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.

movimentos sociais esvaziados ou cooptados por políticos clientelistas, ape-


sar do processo civilizador ter sido interrompido, provocando a explosão de
violência intraclasse e intrassegmento que não se pode explicar pelo econô-
mico apenas, a convivência com pessoas de diversas faixas etárias ocupa um
local de suma importância nos espaços familiares, de trabalho e de lazer.
Continuaram sendo importantes a memória e a transmissão oral de conhe-
cimentos nos ofícios, tanto no mundo do trabalho, quanto no samba e nas
práticas esportivas, a partir de uma tradição passada pelos mais velhos na
rua, no bairro, na associação vicinal. A convivência intergeracional também
permaneceu na família, na qual os mais velhos cuidam da educação dos
mais novos, tendo vínculos biológicos ou não, aconselhando e orientando
para o estudo, encaminhando-os, sem obrigações formais, para longe de atos
violentos (Ribeiro, 2009).
As soluções apontadas nos estudos que seguem o diagnóstico da pobreza
e desigualdade relativa vivida pelos jovens não brancos (ou sua exclusão) são
unânimes em advogar a ampliação da escolaridade dos jovens; mecanismos
compensatórios que aumentem a renda dos jovens extremamente pobres,
como a bolsa escola ou bolsa família; por fim, mais unanimemente ainda, o
acesso dos jovens à cultura, à música, ao esporte, ao lazer e à tecnologia digi-
tal, todos visando aumentar suas chances de “inclusão”. Nenhum se propõe
a considerar a cidadania pelo ângulo da civilidade, das obrigações mútuas
que os cidadãos devem adotar entre si para conviver socialmente e de modo
civilizado, mesmo que em conflito.
Para estes pesquisadores, a dimensão simbólica seria tão ou mais im-
portante do que a renda para os jovens. Grande parte dos projetos, espe-
cialmente os desenvolvidos pelas ONGs em parceria ou não com o poder
público, segue esta perspectiva da inclusão baseada na “identidade”. Mas
o diagnóstico devedor dos argumentos da teoria da exclusão não é devida-
mente aprofundado. Não resta dúvida que o jovem vulnerável, em risco,

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Alba Zaluar. A abordagem ecológica e os paradoxos da cidade.

ver-se-ia desvinculado das instituições encarregadas de formá-lo – a família,


a comunidade, a escola – e, com a autoimagem fraturada, acabaria sob a
influência do grupo de pares.
Sem dúvida, a abordagem via rede social tem sido cada vez mais explorada
na perspectiva de uma epidemia da violência, do uso de drogas e de armas
pelo contágio social, pela imitação e pela pressão do grupo no qual o jovem
quer ser aceito por se sentir afastado dos pais, da escola e de outros protetores
adultos que não cumprem suas finalidades de proteção, atenção e cuidado.
Mesmo admitindo que a pobreza impõe dificuldades no viver que propicia
a marginalização do jovem, é preciso nunca perder de vista que a categoria
“pobres” é altamente diferenciada em termos das proteções e apoios recebidos
pelos jovens em questão nas vizinhanças onde vivem.
O aprofundamento dos conhecimentos sobre os mecanismos de mar-
ginalização aponta com mais precisão os processos que provocam os desli-
gamentos, afastamentos e rupturas nas ligações sociais dos jovens com os
adultos que deveriam formá-los. Pais que não prestam atenção na compa-
nhia dos filhos são pais inadequados.2 A escola que marginaliza os jovens
antes de completar o ciclo básico é de má qualidade. Políticas públicas que
juntam jovens que já praticaram atos delinquentes estão destinadas ao fra-
casso por estarem facilitando essa dinâmica do contágio de ideias e compor-
tamentos. E a guetificação, evidentemente, seria o local propício para a sua
propagação por isolar uma população pobre, que apresenta um percentual
alto de famílias com “paternidade falha” (Fagan, op.cit.).
Entretanto, os efeitos combinados da pobreza e da urbanização acelera-
da têm que ser examinados também pelo ponto de vista da disseminação
de uma cultura urbana tolerante, civilizada e respeitadora das diferenças.
De fato, a urbanização muito rápida não permite que as práticas sociais ur-
banas de tolerância e civilidade sejam difundidas entre os novos habitantes
das cidades, nem que os valores morais tradicionais sejam interiorizados

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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.

do mesmo modo pelas novas gerações da cidade. Assim, muitos homens


jovens e pobres se tornaram vulneráveis às atrações do crime-negócio por
causa da crise em suas famílias, muitas delas incapazes de lidar com os con-
flitos surgidos na vida urbana mais multifacetada e imprevisível. Vulne-
ráveis também por causa do abismo entre adultos e jovens, por causa do
sistema escolar ineficaz e da falta de treinamento profissional, adicionado
aos postos de trabalho insuficientes. E se tornaram violentos por causa da
falta de socialização na civilidade e nas artes da negociação, próprias do
mundo urbano cosmopolita mais diversificado e menos segmentado em
grupos fechados de parentesco ou localidade. Foi isto que apresentei como
os argumentos para sustentar a ideia de “integração perversa” ao sistema
econômico (Castels & Mollenkopf, 1992; Zaluar, 2000), formada na vin-
culação em posições menores no tráfico de drogas. Mas essa capacidade
organizativa e socializadora continua a existir, bastando articulá-la a estraté-
gias de pacificação nas áreas mais violentas da cidade.
No Brasil, não se trata, como na África, Ásia e Europa do Leste, onde exér-
citos mobilizam crianças e adolescentes, de trazer a criança de volta à escola, à
família, à vizinhança, deixando de ser soldados. Trata-se de melhorar a escola
de modo que não se tornem defasados no estudo e acabem evadindo dela.
Trata-se, portanto, de diminuir o contingente de jovens pobres que não tra-
balham nem estudam, que vagam pelas ruas, que reforçam as hostes dos que
procuram as quadrilhas para se sentirem protegidos e encontrarem fontes de
poder, dinheiro e aceitação de seus pares.
Mesmo assim, projetos baseados na vizinhança, em que os moradores
adultos arranjam atividades para acompanhar e socializar as crianças e ado-
lescentes em situação vulnerável, não podem ser descartados. As escolas de
samba, os blocos de carnaval e os milhares de escolinhas de esporte espalhadas
pela cidade devem ser apoiados, tanto quanto os novos projetos que desen-
volvem identidades ou estilos juvenis globalizados, como os do hip-hop e do

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Alba Zaluar. A abordagem ecológica e os paradoxos da cidade.

reggae. Muitos adultos já estão mobilizados para isso, mas faltam-lhes apoio
público e reconhecimento. Como o trauma resultante das experiências de
violência é coletivo (Reichenberg & Friedman, 1996), estas iniciativas são
mais exitosas em atrair os moradores jovens e iniciar diálogo com eles do que
programas que focam no indivíduo (Wessells, op.cit.). Neles, as famílias dos
jovens podem também ser envolvidas e passar a participar do seu crescimen-
to. As formas de associação vicinal implantadas na cidade do Rio de Janeiro
ao longo do século XX têm exatamente este espírito e constituíram, portanto,
veículos importantes para se chegar aos jovens desgarrados das instituições
que deveriam prepará-los para a vida adulta.
É claro que, pelo que já foi exposto, os projetos têm que incluir o obje-
tivo de reduzir o acesso e a posse de armas de fogo pelos jovens, pois é isso
que os mata. As armas que portam vêm, pelo menos desde o final dos anos
1970, de depósitos das Forças Armadas, do contrabando, dos estoques das
Polícias Militares e também dos poucos que guardam armas em casa ou
andam armados na rua. Primeiramente, é preciso, pois, estancar o fluxo que
parte dos depósitos militares e das fronteiras do país.

Notas
1 De acordo com o General Social Survey dos EUA, 45% dos domicílios têm uma arma de fogo e
em mais da metade destes domicílios, mais de uma arma. No Brasil, dados de uma pesquisa domi-
ciliar coordenada pela Organização Pan-Americana de Saúde em 1997 indicam que, na cidade do
Rio de Janeiro, apenas 4,5% da população declara ter uma arma de fogo em casa. Em São Paulo,
dados mais recentes, de 2003, de uma pesquisa domiciliar realizada pelo Instituto Futuro Brasil,
permitem calcular que apenas 2,5% dos domicílios têm alguém com arma em casa.
2 O perfil das mães brasileiras, divulgado pelo IBGE com base no censo 2000, alerta que de
1991 a 2000 o número de jovens de 10 a 14 anos que foram mães pela primeira vez subiu
93,7%. O segundo maior aumento, 41,5%, foi no grupo de 15 a 19 anos. Segundo o IBGE
em 1991, 35% dos bebês nascidos eram filhos de mães com idades entre 10 e 19 anos; em
2000 este número subiu para 38%. Um estudo da Fundação Getúlio Vargas apontou que

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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.

na faixa de 15 a 19 anos, a fecundidade das cariocas é 5 vezes maior nas favelas do que nos
bairros de renda mais alta. A pesquisa indicou que em cada 100 jovens desta faixa etária há
26,6 filhos; em um mesmo grupo na Zona Sul o número cai para 5,4 filhos.

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ABSTRATC: This article discusses the limitations of the hypothesis that ties
poverty to violent criminality based on new ecological theories about the con-
centration of certain crimes in urban areas. We consider how the weakening of
interpersonal, inter-generational and inter-peer bonds contributed to the dis-
ruption of the social linkages and provided a sense of impunity, because what
distinguishes the poor neighborhoods of the wealthy ones, even in those where
there are similar numbers of occurrences, is the record of those crimes, which
is lower in the poor ones. The diversity and anonymity, concomitant with the
greater freedom of the townspeople vis-à-vis the gentlemen and figures of autho-
rity on private domains, were accompanied by the decrease of informal social
control over the youth, due to weakened social bonds and the lack of confidence
between neighbors, witch would result in the increase of the criminality. This is
the core or the ecological approach, seen through the situation lived in Rio de
Janeiro and its paradoxes.

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KEYWORDS: Violence, youth, poverty, neighborhood, informal social control, con-
fidence, police, human ecology.

Recebido em junho de 2010. Aceito em novembro de 2010.

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Sofrimento e ressentimento: dimensões
da descentralização de políticas públicas
de segurança no município de Niterói

Kátia Sento Sé Mello1

Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO: O objetivo do trabalho é apresentar uma discussão a respeito do


impacto do processo de descentralização de uma política pública de segurança
no município de Niterói, considerando, de um lado, o contexto da implemen-
tação das Guardas Municipais no Brasil, a partir da sua formalização na esfera
normativa da Constituição brasileira de 1988, e, de outro, o recadastramento
dos camelôs no município. O material etnográfico no qual se baseia esta aná-
lise refere-se tanto à reformulação da Guarda Municipal de Niterói quanto ao
recadastramento dos camelôs, no contexto de municipalização da Segurança.
Observou-se que, na implantação de mecanismos igualitários e universais de
administração institucional dos conflitos no espaço público, as dificuldades en-
contradas pelo governo local de Niterói dizem respeito à persistência de um
habitus na prática dos guardas municipais, baseado na repressão. Do mesmo
modo, a política de recadastramento não significou a garantia de acesso a um
direito social, mas sim um processo de estigmatização de um grupo social es-
pecífico, ao mesmo tempo em que possibilitou um melhor controle do mesmo
pelo Estado. Como consequência, os camelôs manifestaram a sua insatisfação
recorrendo a discursos que valorizam o sofrimento e a desconsideração como es-
tratégias de construção de uma imagem pública que lhes permitisse um espaço
na política de segurança municipal.

PALAVRAS-CHAVE: administração institucional de conflitos, camelôs, Guarda


Municipal, Políticas Públicas.

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Kátia Sento Sé Mello. Sofrimento e ressentimento: dimensões...

No momento em que realizei a pesquisa sobre o impacto das políti-


cas públicas de Segurança Municipal em Niterói, os estudos sobre este
tema no Brasil apontavam que a descentralização havia tornado-se um
dos focos do processo de implantação das ações em diversas áreas, parti-
cularmente a partir do final dos anos de 1990, com a “redemocratização”
das instituições. A descentralização foi concebida como uma estratégia
que visava ampliar este processo com a realização de direitos. No entanto,
pesquisas empíricas têm apontado vários obstáculos a esta estratégia, que
não dizem respeito apenas à redução de recursos públicos ou ao desman-
telamento dos serviços proporcionados pelo Estado, mas, igualmente ao
estímulo do clientelismo político.
O material etnográfico em que se baseia esta análise refere-se, de um
lado, às condições de socialização dos guardas municipais para o exercício
das suas funções e, de outro, ao recadastramento dos camelôs, no contexto
de municipalização da Segurança em Niterói, Rio de Janeiro. Observa-se
que o esforço da estratégia de descentralização não encontra eco facilmente
entre os princípios normativos do governo federal, indutor das políticas
de municipalização da segurança, e as práticas que tomam lugar no espaço
público da rua. Uma das hipóteses que orientou a pesquisa tratava de com-
preender se a socialização dos guardas com princípios e práticas oriundos
de espaços militarizados teria consequências na reprodução de um modelo
de interação social violento e repressivo com que eles lidavam com a po-
pulação, em particular com os camelôs, principais atores com os quais os
guardas do município de Niterói interagiam no espaço público da rua e que
tornavam pública uma certa identidade dos guardas.
Pretendo, portanto, apresentar duas dimensões de uma das iniciativas de
descentralização de políticas públicas de segurança considerando dois ato-
res principais, para os quais as mesmas foram destinadas: os guardas muni-
cipais e os “camelôs” de Niterói. Do mesmo modo, pretendo compreender

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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.

estas dimensões fazendo referência aos princípios normativos da Segurança


Pública então em voga no Brasil e a literatura acadêmica sobre o tema, que
estava ainda em processo de amadurecimento sobre o assunto.

Princípios normativos do Plano Nacional de Segurança Pública

O Plano Nacional de Segurança Pública, elaborado em 2000, sob o


governo de FHC, foi apresentado como um plano de ações visando ao
aperfeiçoamento do sistema de segurança pública brasileiro, integrando
políticas de caráter social e ações comunitárias. No entanto, estas não
foram explícitas, o que justifica o argumento utilizado no plano de que
estas ações estariam “perpassando todo o conjunto de ações e propostas”
apresentadas no documento do PNSP. A ênfase parece voltar-se às ações
para a vigilância e fiscalização das fronteiras nacionais, assim como àque-
las de “combate ao narcotráfico e ao crime organizado”, ao desarmamento
e controle de armas, à implantação de um sistema de inteligência de Se-
gurança Pública, o que seria implantado no âmbito do governo federal.
Por outro lado, ao tratar das medidas de cooperação e parcerias voltadas
para ações da redução da violência urbana, “combate e defesa à desordem
social”, capacitação e reaparelhamento das polícias e o aperfeiçoamento
do sistema penitenciário, o plano previa ações conjuntas com os Estados.
Uma inovação apresentada por este Plano foram as orientações vol-
tadas para a elaboração de conhecimento, incluindo o estímulo das par-
cerias com as universidades, e a formação e capacitação profissional dos
agentes da Segurança Pública. O objetivo parecia ser, segundo Adorno
(2003), o de “articular, de modo orgânico, as relações entre diagnóstico,
planejamento, execução de ações e avaliação, cobrando resultados e rea-
lizando balanço de conquistas e fracassos” (Adorno, 2003, p. 129). No
entanto, o mesmo autor reconhece que o esforço do governo federal não

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Kátia Sento Sé Mello. Sofrimento e ressentimento: dimensões...

conseguiu romper com problemas herdados do mandato anterior, em que


as políticas propostas continuaram sendo operadas de acordo com lógicas
próprias e setoriais conforme as demandas dos grupos de interesse das
agências responsabilizadas por implementar estas políticas. Segundo ele,
“permaneceu o gap entre direitos humanos e segurança pública; não se
construíram as bases para lograr um consenso político de como imple-
mentar lei e ordem sem comprometer o Estado de Direito e as políticas
de proteção dos direitos humanos” (Adorno, op.cit., p. 137).
Não seria, ainda, por meio do PNSP de 2000 que os municípios
teriam o reconhecimento da sua participação. Pelas ações propostas no
compromisso número 7 deste plano, a Segurança Pública parecia signi-
ficar a presença ostensiva de policiamento nas ruas, o cumprimento de
mandados de prisão, patrulhamento integrado entre as Polícias Militar e
Civil e a criação de grupos especiais antissequestros. A criação de Guardas
Municipais previa a sua atuação no controle do trânsito, não havendo ne-
nhuma diretriz quanto à sua formação e quanto à capacidade de atuarem
na área de diagnóstico de problemas relativos à segurança foi mencionada.
No período analisado no âmbito deste trabalho, será no contexto do
debate sobre a implantação de um Sistema Único de Segurança Pública
(SUSP) pela SENASP, através do PNSP de 2002, que a Segurança Pú-
blica vai adquirir contornos mais definidos voltados para os municípios.
As diretrizes estão voltadas principalmente para a implantação ou con-
solidação de Guardas Municipais por todo o país com o propósito de
atuarem nas atividades de regulação e ordenamento públicos: “combate
à poluição sonora e visual; fiscalização de trânsito; fiscalização de eventos
públicos; fiscalização de estabelecimentos de comercialização de bebidas
alcoólicas e, principalmente, na regulação, fiscalização, controle e “en-
frentamento” do comércio ambulante irregular. É interessante notar que,
embora haja o estímulo ao desenvolvimento de ações integradas entre

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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.

diferentes instituições da sociedade em geral, e governamentais nos três


níveis, municipal, estadual e federal, respeitando princípios democráticos
do Estado de Direito, palavras como “combate” e “enfrentamento” nas
ações das Guardas em direção ao comércio ambulante irregular, parecem
contradizer aqueles princípios.
Do mesmo modo, há um estímulo e uma ênfase na valorização profis-
sional das Guardas Municipais, nas políticas de formação para os guardas
e na implantação de mecanismos de informação e gestão do conheci-
mento, e, contrariamente, uma tendência em definir o papel das Guardas
como Polícias Municipais de prevenção. Destacou-se uma ambiguidade
quanto aos termos de referência a estes atores municipais que ora são
tratados como Guardas Municipais ora como Guardas Civis Municipais
ora como Polícias Municipais. Colocou-se ênfase nos investimentos que
os municípios têm feito e que ainda pretendem implementar visando ao
aperfeiçoamento das ações das Guardas Municipais com o objetivo de
“explorar com maior profundidade suas interconexões com a segurança
pública e formular ações e estratégias orientadas à criação de condições
para a garantia da legalidade na cidade e na redução dos fatores indutores
de criminalidade e violência” (Relatório SUSP, 2003, p. 7).
Dando continuidade ao que dispõe o Programa de Segurança Pública
do Governo Federal, e com base em recursos do Fundo Nacional de Segu-
rança Pública,2 a SENASP pode firmar convênios com “entes federados”.
No caso dos municípios, a condição é que estes constituam Guarda Mu-
nicipal ou realizem “ações de policiamento comunitário ou implantem
Conselhos de Segurança Pública”.
O Plano Nacional de Segurança Pública de 2002, por sua vez, parece
ter avançado em relação às diretrizes que compõem o PNSP anterior.
Questões que anteriormente não foram explicitadas aparecem mais deta-
lhadamente no seu texto: problemas relacionados à violência doméstica

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e de gênero, o controle das ações policiais, violências praticadas contra


minorias (ou seja, aquelas pessoas que estão submetidas a situações de
violência com dinâmicas próprias, homossexuais, idosos, adolescentes,
negros, ou outra particularidade que “a torna frágil diante do crime e da
polícia”), acesso à justiça, segurança privada e responsabilidade pública,
problemas relativos ao Estatuto da Criança e do Adolescente, são alguns
exemplos de que a problemática da Segurança Pública não se limita ao
controle e fiscalização de fronteiras, das drogas, do tráfico e problemas
afins. A inserção dos municípios no Sistema de Segurança Pública é ob-
jeto de destaque em um dos capítulos do Plano, no qual trata exclusiva-
mente da implantação ou da consolidação da Guarda Municipal.
O PNSP3 em vigor desde a gestão do presidente Lula, tem como
princípio orientador da ação dos guardas municipais a ideia de um agente
de segurança pública que atue junto à população, que desenvolva a con-
fiança e adquira o reconhecimento e o respeito desta mesma população,
de modo a desenvolver uma ação que auxilie na prevenção de conflitos.
Esta orientação, que propõe a “modelagem desejável da Guarda Muni-
cipal”, deve contemplar aspectos que são expressos da seguinte maneira:

1) os guardas municipais serão gestores e operadores da segurança públi-


ca, na esfera municipal. Serão os profissionais habilitados a compreender
a complexidade pluridimensional da problemática da segurança pública
e a agir em conformidade com esta compreensão, atuando, portanto,
como “solucionadores de problemas”... (Plano Nacional de Segurança
Pública, 2002, p. 58).

O modelo das suas atribuições pressupõe ainda que estes guardas, en-
quanto agentes de elaboração de diagnósticos dos problemas de um mu-
nicípio, tenham a competência para formular soluções para estes proble-

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mas de forma interativa com a população e com outros atores sociais em


múltiplas esferas: policiais, sociais, econômicas, culturais etc. Para tanto,
o Plano propõe que estas atribuições exijam que o guarda tenha mobili-
dade pela cidade, que esta mobilidade seja rotineira, sistemática e repetida
para que a “sua presença iniba o crime e a violência”. Outras atividades
propostas estão relacionadas a um núcleo de gestão da informação; intera-
ção com as polícias; curso de formação; controle interno e externo; apoio
psicológico; plano de cargos e salários. A ideia de agentes mediadores de
conflito voltados para o cidadão, ou melhor, em coparceria com este no
tocante à Segurança Pública, fica expressa na seguinte orientação:

3) essa circulação constante deve ser acompanhada pelo uso de tecno-


logia leve e ágil de comunicação com a central de monitoramento da
Guarda, integrada ao núcleo de despacho da Polícia Militar. A ênfase no
treinamento em artes marciais apresenta muitas vantagens práticas e cul-
turais, ajudando a infundir na corporação seu compromisso com a paz e
o uso comedido da força, sempre compatível com o respeito aos direitos
civis e humanos. (idem, p. 58).

A proposta estabelecida pela diretriz nacional que orienta a atuação das


Guardas Municipais no sentido de integrar uma comunicação entre as três
instituições com uma central de monitoramento da Guarda, fazendo crer
em uma proposição de dependência da Guarda em relação à Polícia Militar
parece, ainda, incongruente se considerarmos a reconhecida dificuldade de
integração entre as próprias Polícias – Civil e Militar – no que diz respeito
ao sistema de comunicação sobre os registros das suas atividades.
Estudos recentes argumentam que não há um único modelo de prá-
ticas recobertas pela denominação de “Polícia Comunitária”, tanto no
Brasil (Kahn, 2003) quanto em nível internacional (Skolnick & Bayley,

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2002); e uma vasta gama de atividades aparecem sob a denominação dos


seus correlatos “Policiamento Interativo”, “Policiamento Solidário”, “Po-
lícia Cidadã” (Kahn, 2003). No entanto, o que estas práticas têm em
comum é um modelo de referência para práticas consideradas mais de-
mocráticas de atores sociais engajados na Segurança Pública, como é o
caso das polícias civil e militar, e atualmente, para as Guardas Municipais.
As ideias presentes na orientação do PNSP difundem uma perspecti-
va de “policiamento comunitário” (Trojanowicz & Bucqueroux, 1994, in
PNSP, op.cit.). De acordo com estes autores, esta expressão define uma
filosofia organizacional que promove a interação entre a polícia e a popula-
ção, com o objetivo de identificar e resolver problemas contemporâneos tais
como o medo, as drogas, as “desordens físicas e morais”, como a decadência
de um bairro, e o crime. O policial deve estar cotidianamente presente na
comunidade para que se faça conhecido por ela, bem como para que possa
fazer diagnósticos dos problemas locais. A palavra “comunidade”, de gran-
de controvérsia na Antropologia (Geertz, 1959 & Gusfield, 1975), adquire,
ainda segundo os autores, um duplo sentido. De um lado é comunidade
geográfica, definindo a delimitação territorial de um bairro ou de uma re-
gião; e de outro, é comunidade de interesse gerada pelo crime, permitindo
e justificando que os policiais entrem nesta “comunidade geográfica”.
Como, à época, não havia material teórico nem empírico específico
sobre a instituição Guarda Municipal, esta vinha sendo pensada a partir
das experiências e reflexões analíticas sobre a polícia, em particular sobre
a designada “polícia comunitária”, ainda que não haja consenso sobre a
sua definição e sua eficácia. Vários são os trabalhos que apontam para as
dificuldades e resistências na implantação desta (Muniz & Musumeci,
1997), assim como para a dificuldade em se medir a relação entre o esta-
belecimento de uma base de “policiamento comunitário” em um local e a
diminuição dos índices de criminalidade (Kahn, 2000).

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No tocante à ênfase ao modelo desejável de formação, o PNSP prevê


um “processo permanente e multidisciplinar” oferecido por instituições
especializadas em temas pertinentes como as universidades ou as organi-
zações não-governamentais, enfatizando a mediação de conflitos a partir
de temas e metodologia específicos explicitados da seguinte maneira:

12) a formação será um processo permanente e multidisciplinar, devendo


ser oferecida pelas Universidades e por Organizações Não-Governamen-
tais especializadas nos temas pertinentes, com ênfase em mediação de con-
flitos, nos direitos humanos, nos direitos civis, na crítica à misoginia, ao
racismo, à homofobia, na defesa do Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), na especificidade da problemática que envolve a juventude, as dro-
gas e as armas, e nas questões relativas à violência doméstica, à violência
contra as mulheres (incluindo-se o estudo do ciclo da violência doméstica)
e contra as crianças. Além das matérias diretamente técnicas, policiais e le-
gais, haverá uma focalização especial das artes marciais e no estudo prático
e teórico do gradiente do uso da força. As disciplinas incluirão elementos
introdutórios de sociologia, história, antropologia, psicologia, comunica-
ção, computação, português/redação/retórica oral, teatro e direito. O mé-
todo didático prioritário será o estudo de casos, nacionais e internacionais,
com seminários, debates e simulações (idem, p. 60).

O perfil da Guarda Municipal de Niterói

De um universo de 230 guardas municipais de Niterói em 2002, tive


contato com uma amostra de 94 guardas que participaram da pesquisa.4
Deste universo, 16 eram inspetores e subinspetores. Dos 78 guardas que
não exerciam a função de inspetores ou subinspetores, 6 eram “antigos”.
Em relação à idade, fez-se a classificação por grupos etários que permi-

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tiu observar que: 44% dos guardas encontravam-se na faixa entre 18-27;
16% entre 28-37; 16% entre 38-47; no entanto, 24% dos guardas que
participaram da pesquisa não informaram a idade.
É interessante ressaltar que a maior parte dos guardas não reside no
município de Niterói, motivo utilizado como justificativa por eles pelo
não conhecimento do espaço da cidade onde trabalham já que, ao ingres-
sarem na Guarda, não receberam nenhuma orientação sobre a história
da cidade nem sobre os bairros ou pontos de referência importantes. Isto
tem uma implicação conflitante com as diretrizes determinadas pelo go-
verno federal no sentido de que estas preveem um trabalho baseado nos
princípios de uma polícia de proximidade, que conhece e interage com
os cidadãos do município e capaz de elaborar diagnósticos e propostas de
resolução dos problemas relativos à segurança pública do município.
Quanto à experiência profissional anterior observa-se a tendência
maior daqueles que exerceram ou prestaram serviço militar nas Forças
Armadas. Cabe esclarecer que, de acordo com os relatos dos guardas, é
possível agruparmos algumas atividades em três categorias maiores: 1 -
atuação com ‘camelôs’: volante, combate ao comércio clandestino e ge-
rência operacional; 2 - policiamento preventivo: policiamento preventi-
vo, posto em próprio público, posto em parques, ronda escolar, brigada
de incêndio, guarda florestal; 3 - trabalho interno: supervisão, seção de
logística, seção de pessoal, telefonista, gerência operacional.
Este perfil parece indicar que, embora uma parte significativa dos
guardas trabalhem no policiamento preventivo, há uma representação
igualmente significativa daqueles que atuam no “combate aos camelôs”,
destacando-se que é para esta função que grande parte da orientação de
trabalho está voltada. Cabe ainda ressaltar que os guardas relataram que,
quando solicitados pelo comando, devem atuar no “combate aos came-
lôs”, ainda que suas atribuições estejam referidas a outros postos.

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A pesquisa revelou a tendência da incorporação de profissionais do


campo militar tanto no comando desta instituição como no seu quadro.
Somente no período em que realizei esta pesquisa foram três diferentes co-
mandantes com a patente de coronel da Polícia Militar. No caso de Niterói
ainda é importante ressaltar que a Secretaria Municipal de Segurança tam-
bém apresentou a mesma característica, pois ao longo dos quatro anos da
minha pesquisa, foram três coronéis da PM que ocuparam a sua gestão.
Outro aspecto que podemos perceber por meio destas informações é
que frente à falta de perspectiva daqueles que ingressaram na Guarda –
baixo nível de escolaridade e uma faixa etária bem jovem – esta se tornou
uma opção transitória na sua trajetória de vida. Quanto a isto, muitos ex-
plicam que a sua preferência seria ingressar na Polícia Militar, sendo que
o concurso para esta última era mais difícil no momento em que ingres-
saram na Guarda Municipal. Um deles diz que pensava “em ir para a PM
porque é mais estável, ganha mais e é mais importante, mas eu não consegui
passar no concurso” (guarda municipal há 7 meses na ocasião da pesquisa).
Uma guarda municipal argumentou ainda que já trabalhou como “ca-
melô” e que está somente de passagem na Guarda Municipal. Segundo
ela, “quando eu melhorar um pouco eu vou tentar fazer outra coisa, pois
ninguém quer ser guarda municipal para sempre” (guarda municipal há 7
meses, na ocasião da pesquisa). Aqueles que se encontravam fazendo cur-
so superior argumentam que trabalhar na Guarda lhes dá a oportunidade
de terem disponibilidade de horário para estudar.

Desafios para uma Guarda Municipal mediadora de conflitos

Um dos problemas identificados pelos guardas para a construção


da sua identidade é a divisão interna à Guarda, colocando de um lado
os guardas “antigos” e, de outro, os “novos”. Entre os primeiros, há

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a percepção da Guarda como uma organização paramilitar, mesmo


porque já lhes foi permitido o uso de armas de fogo. Os últimos, por
outro lado, afirmam que tanto a natureza das suas funções, quanto a
estrutura hierárquica da instituição, não se apresentam de forma cla-
ra para eles. Do mesmo modo, parece-lhes que esta hierarquia não é
estabelecida através de critérios específicos concebidos dentro de um
plano de carreira.
Segundo argumentam os guardas, o que orienta a sua conduta no exer-
cício da sua função é o bom senso. No entanto, esta categoria é muito
ambígua porque depende de uma percepção individualizada do que seja
o bom senso. Explorando detalhadamente o seu significado, ficou eviden-
ciado pelo discurso dos guardas que esta orientação baseia-se, de um lado,
na formação doméstica, ou seja, na educação que receberam de casa sobre
como se comportar e atuar no mundo. De outro lado, o seu significado
está igualmente relacionado a um aprendizado adquirido em experiências
profissionais anteriores, particularmente em alguma instituição das forças
armadas brasileiras, em especial o exército ou a aeronáutica. Se pensarmos
esta socialização como um processo de interiorização de normas e valores,
um sistema de classificações preexistentes às representações sociais, pode-
mos nos referir a um habitus (Bourdieu, 1989) dos guardas que, enquan-
to “esquemas generativos”, presidem as suas escolhas de ação.
Dessa forma, é possível compreender a dificuldade de implantação de
práticas de administração de conflitos com base em princípios universais e
includentes, conforme propostos nas diretrizes nacionais para a ordenação
do espaço público, uma vez que isto requer a desconstrução contínua das
normas e valores que fazem parte de um esquema de classificação arraiga-
do na sociedade brasileira, através do qual o espaço público se apresenta
estruturado segundo a complementaridade dos modelos particularistas e
holistas (Kant de Lima, 2001 e 2004 & Cardoso de Oliveira, 2002).

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A tensão existente entre os guardas “antigos” e os “novos”5 parece nos


remeter à questão das situações de humilhação e desigualdade na relação
entre superiores e subordinados no interior da Guarda Municipal, levan-
do a refletir sobre o lugar e o papel dos poderes públicos na difusão de
uma política igualitária.
Do ponto de vista dos guardas, a percepção que a população tem da
sua ação é ambígua. Argumentam que o desempenho de suas ativida-
des de “combate ao “‘camelô’” ou “combate ao comércio clandestino”, é
muito tenso. A interação entre os guardas e os “camelôs” é a que adquire
maior visibilidade pública na medida em que torna o espaço da cidade,
da rua, um espaço de conflito aberto: enfrentamento físico entre guardas
e “camelôs”, xingamentos, apedrejamentos, fechamento de lojas, provo-
cando correria nas ruas e sentimento de medo na população (Miranda,
Mouzinho, Mello, 2003 & Mello, 2007).
Eles descrevem a sua atuação como sendo caracterizada originalmente
pela argumentação verbal para que os “camelôs” desloquem os seus tabulei-
ros de mercadorias para as áreas permitidas até a agressão física na apreensão
das mesmas – junto aos fiscais de postura6 – quando não são atendidos pe-
los “camelôs”. Quando esta operação ocorre na área das barcas e do termi-
nal rodoviário no centro de Niterói – área de intenso trânsito de segmentos
heterogêneos da população – esta reage negativamente posicionando-se ao
lado dos “camelôs”, argumentando que são trabalhadores que estão tentan-
do ganhar a vida de forma honesta. Por outro lado, quando esta atividade é
realizada nas áreas dos grandes shoppings de classe média, a população de-
manda a presença do guarda municipal no sentido de reprimir o comércio
de “camelôs” argumentando que estes bloqueiam as calçadas, ou seja, o seu
espaço de circulação entre diferentes pontos da cidade.
Alguns guardas que participaram da pesquisa também têm uma per-
cepção da população que parece coincidir com a maneira como, aos

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seus olhos, a cidade parece estar dividida. A maioria dos guardas que
participou dos grupos focais foi unânime ao argumentar que é muito
mais fácil trabalhar na área de Icaraí – bairro de classe média da cidade
– do que no centro de Niterói – área de intensa passagem de um públi-
co heterogêneo, mas fortemente marcada pela presença de vendedores
ambulantes e comércio de população de baixa renda. Segundo eles, a
população de Icaraí é muito mais educada na relação com eles e parece
estar muito mais ciente da sua presença, ao contrário do que ocorre no
centro, onde a receptividade da sua atuação, conforme descrita acima, é
muito ambígua. Do mesmo modo, a atividade de “combate ao “camelô”
pode representar uma ameaça para os guardas quando estes circulam
pelo centro para fazer compras ou passear com a família. Eles se sentem
ameaçados de represálias.
No decorrer da realização da pesquisa de campo foi recorrente, por
parte dos guardas, o discurso de que um dos problemas para a construção
da sua identidade, bem como para o pleno exercício de suas funções, era
a ausência de uma formação institucional que, na prática cotidiana do seu
trabalho, vem sendo substituída pelo que chamaram de bom senso.
Foi possível observar que as práticas baseadas no que consideram o
bom senso refletem o suposto despreparo dos guardas e, por isso, são con-
sideradas menos legítimas. No entanto, a hierarquia institucional interna,
expressa através das categorias novos e antigos, não parece, segundo a visão
dos guardas novos, residir na transmissão de um “saber fazer” o trabalho,
dos guardas mais antigos para os guardas mais novos. Contrariamente a
esta posição, a partir de entrevista a dois subinspetores, ambos integrantes
do grupo de antigos guardas, isto não seria totalmente uma verdade uma
vez que os guardas de fato recebem orientação para atuar, em particular
através de ensinamentos de gestos corporais que, em seu conjunto, é de-
nominado Ordem Unida.

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O argumento sobre o despreparo dos guardas municipais7 e a falta de


orientação que recebem para o trabalho, está presente tanto no discurso
dos guardas novos como no discurso da população em geral. Combate,
confronto e repressão aos «camelôs» têm sido as categorias mais utilizadas
na mídia e no discurso referente à ação dos guardas municipais. O clima
de medo tão difundido entre a população, sugere que os guardas não
estão devidamente preparados para a sua função, confirmando, na visão
deles, a ideia de que agir segundo o bom senso não é eficaz, e por isso, não
é uma prática legítima, no tocante à administração de conflitos no espaço
público e à construção de uma segurança pública baseada em princípios
democráticos e universais. Por parte da população, chegam a ser associa-
dos à imagem de “ladrões” ou “capetas”, quando atuam em confronto
com os vendedores ambulantes (Miranda, Mouzinho & Mello, 2003 e
Mello, 2007).
As categorias usadas pela mídia e a representação negativa que eventu-
almente recebem da população, remetem a uma concepção de segurança
pública e de ordem social baseadas, não na mediação e no compartilha-
mento consensual de regras a partir do debate acerca dos conflitos, mas
expressam hierarquia e autoritarismo no tocante à ordem da sociedade
brasileira. Os guardas novos dizem que não recebem dos seus superiores e
dos guardas antigos nenhuma orientação para o trabalho, contrariando a
visão destes últimos; não têm uma formação institucional específica para
o seu trabalho; e, muito provavelmente, a noção de bom senso está infor-
mada por valores recebidos pela educação doméstica, assim como por ex-
periências profissionais anteriores. Cabe, então, indagarmos se a categoria
bom senso não reflete outros fatores que não exatamente o despreparo para
o trabalho. Sendo assim, uma questão importante é: qual o significado da
noção de bom senso e as suas implicações no interior da Guarda Municipal
de Niterói e na relação dos seus guardas com outros atores sociais?

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Conforme já foi mencionado, um dos primeiros problemas identificados


para a construção de uma identidade é a divisão interna à Guarda, colocando
de um lado os guardas “antigos” e, de outro, os guardas “novos”. Um dos
guardas afirmou que entrou para a guarda com a intenção de melhorá-la. No
entanto, ele argumentou que os guardas “tiveram que bater de frente com os
mais antigos, porque eles pensavam que iríamos tomar seus postos”.
Os guardas falaram que a ausência de união entre guardas “novos” e
“antigos” é um problema que se expressa de múltiplas formas e nasce na
diferença do tratamento dispensado pelos superiores aos guardas “novos”.
Um exemplo citado foi o da intolerância em relação aos atrasos na hora de
chegada que, segundo um dos guardas, “é cobrado dos guardas mais novos.
Os mais antigos chegam atrasados e pegam no serviço”. Outro guarda argu-
mentou que a relação entre os “antigos” e os “novos”, quando pontuada
pelo controle do horário de chegada na sede ou no posto, depende da re-
lação de amizade entre o inspetor do dia que faz este controle - um guarda
“antigo” - e o guarda que chegou atrasado. Diz ele que, “Eu entro lá às 7:16
horas e ele diz: ‘olha o horário’. Eu entro. Porém, quando chega um amigo dele,
ele pode chegar às 9:00 horas que o inspetor diz: ‘ôpa, tudo bem?’ Vão direto ao
posto” (Guarda Municipal há 7 meses na ocasião da pesquisa).
O mesmo guarda apresentou uma interpretação acerca do problema.
De acordo com ele, o critério para nomeações de inspetores e subins-
petores é baseado nas redes de amizade e proximidade entre eles, o que
tem como consequência a escolha de algumas pessoas despreparadas para
assumir estas funções. Segundo os guardas, o “poder” dos inspetores e
subinspetores deveria ser “desmembrado”; um deles disse que “seria muito
melhor colocar um garoto no lugar deles porque os atuais inspetores e subins-
petores são retrógrados”.
Esse critério foi amplamente criticado porque, segundo os guardas, as
diferenças se desdobram em punições. Para eles a relação marcadamente

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tensa relaciona-se ao fato de que não há conhecimento sobre o estatuto e


orientação para o trabalho de modo que os inspetores podem abusar da
autoridade que têm relacionada à sua função.
Embora exista um discurso de que usar o bom senso na atuação coti-
diana representa uma falta de preparo para a sua atuação enquanto guar-
das municipais, esta categoria parece referir-se a uma prática baseada em
uma socialização de tradição inquisitorial caracterizada pela não explici-
tação das regras, dos procedimentos, da punição, com base em um saber
construído pela suspeição (Kant de Lima, 1994, 1995 e 2004). A noção
de bom senso, no entanto, parece revelar uma estratégia presente no in-
terior da instituição, enfatizando a hierarquia e um tipo de disciplina às
quais os guardas municipais devem se submeter se desejam ser guardas.
Dos problemas levantados, o que mais se revelou importante para os
Guardas é a inexistência de uma estrutura para a capacitação, que após
a aprovação do concurso costumavam ser “despejados nas ruas” sem ne-
nhuma orientação sobre como proceder.
A descrição das rotinas de trabalho indicou que a cada dia o guarda
municipal é informado do que deve ser realizado naquele dia. Não haven-
do nenhuma garantia acerca do trabalho a ser realizado no dia seguinte,
os guardas reclamavam de não ter uma visão do conjunto das ativida-
des a serem desenvolvidas. A não definição das funções e das atividades
previamente é substituída na prática pelo repasse por cada inspetor ou
subinspetor de “ordens” que devem ser cumpridas, sem que na maioria
das vezes essas ordens sejam acompanhadas de uma orientação acerca da
própria execução.
Esse tipo de procedimento é explicado por outros guardas como a forma
padrão, o que os leva a agir conforme sua própria consciência ou, melhor
dizendo, segundo o bom senso, que se construiria a partir da experiência de
trabalho. O discurso que qualifica o bom senso parece dar suporte à oposi-

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ção entre teoria e prática no sentido de que, embora sem um aprendizado


formal, este é um saber que se aprende na prática. Porém, ao contrário do
que poderia parecer, não há no grupo uma forma tradicional de orientação
informal para o trabalho dos mais velhos para os mais novos, como se po-
deria imaginar já que não havia até então nenhum curso de formação ou
treinamento para os recém-concursados. A primeira hipótese foi a de que
os mais antigos não repassavam seu conhecimento aos mais novos porque
se viam ameaçados por eles. Estes possuem escolaridade maior do que os
que lá estavam, e também porque os mais novos estariam questionando o
modelo “informal” de trabalho do guarda, o que era percebido como crítica
ao trabalho desenvolvido até então. A forma pela qual a pouca orientação é
passada também indica uma fonte permanente de conflito entre os guardas
“novos” e os “antigos”. A ideia da “ordem do dia” que é anunciada pelos ins-
petores e subinspetores, coloca os guardas numa posição passiva de cumprir
a ordem, mesmo sem saber como fazê-lo. A ordem não é vista como uma
diretriz de trabalho, pois os guardas argumentam não saber o que podem
ou não fazer frente às situações de conflito.
De acordo com os guardas, não há comando nem em relação aos guar-
das que têm como função “combater” os ambulantes8. Alguns guardas
acusam os superiores de favorecer os ambulantes e afirmam ainda que a
arbitrariedade das ordens estaria ligada a interesses próprios dos guardas
em relação aos “camelôs”. Esse quadro é analisado como melhor atual-
mente, pois se a arbitrariedade ainda vigora, antes haveria uma maior
corrupção fomentada pelo “Apoio”.9 De modo geral, os guardas avaliam
que o “combate ao comércio clandestino” é uma forma de policiamento
que causa um incômodo a eles mesmos e à sociedade, pois eles acabam
por combater “gente que está trabalhando para ganhar o pão”.
A única forma de treinamento mencionada foi relativa ao ensino de
técnicas de defesa pessoal que, segundo os guardas, acontecia em uma

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das dependências da sede. Um dos guardas descreve assim este tipo de


treinamento:

O diretor levava a gente pro quartinho e mandava dar porrada! “Rola no


chão, não tem medo não. Se o «camelô» vir armado você toma a arma
dele”. Eu não sei se isso é curso, e tinha guarda municipal acreditando.
Esse era o chefe! (Guarda Municipal há 7 meses)

A turma era dividida em “lado A” e “lado B”; uma linha imaginária


era determinada, separando os lados, e para cada lado ficava um grupo.
Um deles desempenhava o papel de guardas municipais e o outro de am-
bulantes. Criava-se, com isso, uma percepção polarizada, expressando a
ideia de que os ambulantes são os inimigos. Iniciado o treino, “guardas”
e “ambulantes” jogavam caixotes uns nos outros a fim de resolver o con-
flito; o objetivo do treinamento era construir uma situação hipotética,
porém normal no exercício do dia a dia do guarda, que se socializa com
tais métodos.
Os caixotes, no entanto, não eram os únicos instrumentos utilizados
para a resolução dos conflitos. Outros relatos narram o incentivo dado
nos treinos para que, em uma situação real, os guardas usassem as barras
das barracas dos ambulantes como instrumento de combate; se o «came-
lô» pegasse uma barra de suspensão da sua barraca, o guarda deveria fazer
o mesmo e prontamente também sacar uma barra.
Essa situação de confronto entre guardas e “camelôs” é citada como
um conflito cotidiano e aparece como a situação onde os guardas atuam
de forma mais violenta e fisicamente agressiva. Esse é também o momen-
to no qual os guardas sofrem com as reações dos “camelôs”, da população
e de outros agentes de segurança, em especial os policiais militares, que
são acusados de dar proteção aos ambulantes, ou porque são os donos

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das barracas ou porque recebem para fazê-lo. Alguns afirmaram que são
insuflados ao combate físico, o que é um risco, pois às vezes, o guarda vai
para a ronda sozinho e fica mais vulnerável às represálias.
O conflito com os “camelôs” sob a forma de enfrentamento ocorre,
segundo alguns guardas, com o objetivo de preservar a segurança dos
próprios guardas e a dos colegas. No entanto, essa visão não é consensu-
al, um dos guardas também revelou que essa rotina seria problemática,
pois colocaria um trabalhador contra outro trabalhador. É importante
destacar que alguns dos guardas já trabalharam como ambulantes antes
da realização do concurso, e outros declararam que possuem amigos e/ou
familiares que se encontram ainda nessa situação.
Um guarda relatou um caso de conflito entre os “camelôs” e os guardas
no Centro de Niterói, no qual o tenente da Polícia Militar que coman-
dava uma guarnição teria ordenado aos seus homens que aguardassem
e deixassem os guardas combaterem na frente. Um outro contou uma
situação na qual esteve envolvido, fugindo da confusão apesar da zomba-
ria dos colegas. E reafirmou que faria quantas vezes isso fosse necessário
porque não se sente preparado para o “combate” nem acha que a sua fun-
ção é esta. Foram narrados ainda vários casos onde os policiais militares
são apontados como responsáveis pela agressão aos guardas, agressão esta
interpretada pelos guardas municipais como consequência do fato de que
estes policiais estariam sendo pagos para protegerem os “camelôs”.

Política de recadastramento dos “camelôs” de Niterói10

A política de recadastramento dos «camelôs» de Niterói foi implemen-


tada, no ano de 2005, com o objetivo de reduzir o número de “camelôs”
nas ruas, em sua maioria com a licença vencida. De acordo com o Sub-
secretário de Segurança Pública e Direitos Humanos, cerca de oitocentas

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barracas de ambulantes estavam espalhadas pela cidade, concentrando-se


principalmente no Centro e em Icaraí, o que provocava reclamações prin-
cipalmente por parte dos moradores e dos comerciantes da região.
A situação, vista pela SSPDH como um problema grave, derivava,
segundo o discurso da equipe, das licenças que haviam sido emitidas pelo
então Secretário de Segurança do município em 2001, para sua rede de
amigos e destes para outros amigos. A licença, cuja validade deveria ser
de um ano, havia sido expedida por ele com validade até o ano de 2004.
O Subsecretário, então, iniciou este processo com uma reunião com os
membros da Associação dos Vendedores Ambulantes Licenciados de Niterói,
AVALNI. De acordo com ele, o objetivo era trabalhar em conjunto com esta
associação de modo que os critérios definidos para a emissão de novas licen-
ças fossem estabelecidos com transparência. Tratava-se de definir a situação
de residência daqueles que requeriam a licença, ou seja, quem era e quem
não era residente do município, bem como a situação econômico-social que
representasse um perfil de pobreza e dependência dessa atividade para a sua
sobrevivência. Além disso, acrescentou que, acompanhado por membros da
associação, ele foi, no mês de março de 2005, de barraca em barraca nas
principais ruas de Niterói para “traçar o perfil de cada uma das pessoas”. Este
procedimento permitiu à Subsecretaria determinar as irregularidades que
haviam sido encontradas. Pessoas que usavam a barraca de um “camelô”
que já havia falecido; pessoas que transacionavam barracas seja através de
cartório, onde compravam barracas cujas licenças eram intransferíveis, seja
“de boca”, promovendo, segundo ele, um comércio “ilegal”, no qual os
preços variavam entre três e cinco mil reais no Centro de Niterói, chegando
mesmo a oito mil reais, em Icaraí. Além destes casos, o subsecretário acres-
centa que havia donos de lojas que tinham vinte barracas alugadas para
terceiros que, por sua vez, contratavam empregados, estes sim, trabalhando
como “camelôs”, recebendo salários que variavam entre trinta e cinco e qua-

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renta reais (R$ 35,00 - R$ 40,00) por semana, quando localizados no Centro
de Niterói, e entre cinquenta e sessenta reais (R$ 50,00 - R$ 60,00) tratando-
se do bairro de Icaraí, o que não compunha um salário mínimo por mês.
A segunda fase constou da inscrição das pessoas que quisessem reque-
rer a licença. O total de inscritos somou quinhentos e quinze requerimen-
tos dos quais a grande maioria já trabalhava com barraca na rua, afirma
o subsecretário. Com os formulários preenchidos e os requerimentos nas
mãos, a equipe partiu para um terceiro momento do processo de reca-
dastramento que constou da visita às casas dos “camelôs”, ou seja, das
quinhentas e quinze pessoas que haviam feito a inscrição.
Após o pagamento do Documento de Arrecadação Municipal
(DARM) no valor de R$ 21,00 (vinte e um reais), os “camelôs” preenche-
ram um cadastro com dados referentes à idade, local de residência, nú-
mero de filhos, estado civil, propriedade, tamanho e tempo de residência
no município, renda, tipo de mercadoria a ser comercializada e local em
que pretendia vendê-las, incluindo justificativa do que desejavam vender
no verso do formulário. Aqueles que não sabiam escrever tinham o seu
requerimento escrito por um terceiro e a sua assinatura registrada pela
estampa do dedo polegar. Conforme o critério estabelecido pela SSPDH,
o vendedor ambulante não podia ter uma renda familiar acima de um
salário mínimo da época, condição que estabelecia um “perfil de exclusão
social”, alegado pelo Secretário de Segurança.
A prioridade foi dada àqueles que residissem em Niterói e que estives-
sem dentro do perfil socioeconômico. Um outro critério anunciado pelo
Secretário de Segurança foi o de que não seria permitido “o monopólio
familiar, ou seja, uma família com diversas barracas”. Os cadastros eram
devidamente organizados por bairros pelos membros da Subsecretaria de
Segurança e Direitos Humanos. À frente de cada cadastro foi colocada
uma folha de rosto com um questionário que, ao chegar na residência da-

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quele que havia feito o pedido, era preenchido por um destes técnicos no
momento da entrevista ao vendedor ambulante. Este questionário conti-
nha perguntas referentes ao perfil socioeconômico, tais como: se o imóvel
era de propriedade ou alugado pelo candidato à licença; quantidade de
cômodos; aquisição de objetos eletrodomésticos como televisão – se preto
e branco ou colorida -; aparelho de som; máquina de lavar roupa; forno
micro-ondas; liquidificador; quantos dependentes residiam na casa; ren-
da familiar; quem trabalhava na casa; se mais alguém da unidade domés-
tica também estava requisitando licença. Além destas, havia um espaço
reservado ao técnico da equipe no qual, chegando à sede da SSPDH, fazia
a sua própria avaliação a respeito da condição do “camelô”.
A visita às residências de cada pessoa que estivesse pedindo a licença para
vender suas mercadorias, tinha por objetivo conferir se ela havia dito a “ver-
dade”. Após a entrevista dos funcionários ao candidato e o preenchimento
do cadastro, o funcionário explicava a este último que os relatórios seriam
encaminhados ao Secretário de Segurança para que este desse o parecer final.
Questionados sobre quais procedimentos iriam adotar para descobrir
se a renda declarada era verdadeira, visto que, em sendo trabalhadores in-
formais, muitos não teriam como comprovar a sua fonte, os membros da
equipe responderam que avaliariam as condições de moradia das pessoas.
No entanto, a lógica parece revelar um sistema de classificação subjetivo
que comporta discrepâncias e, ao mesmo tempo, aponta para as exceções
que eram feitas a partir de uma análise subjetiva da pessoa que estava vi-
sitando a casa do “camelô”. A pretendida objetividade e profundidade do
recadastramento, como uma política pública de inclusão, ficava refratária
às avaliações pessoais dos membros da equipe que parecem revelar um
substrato de valores dado a priori que permitiu esta classificação, con-
siderando a “situação da casa e dos dependentes”. Outro procedimento
adotado para a verificação das informações a respeito de quem requeria a

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licença baseava-se em conversas realizadas com os vizinhos. Desta manei-


ra, a informação poderia surgir sob a forma de denúncia.
Havia também os casos em que a regra não era seguida devido à avalia-
ção pessoal que era feita e ao entrosamento que acontecia no decorrer da
visita o que, por sua vez, demonstra um nível de arbitrariedade contido
no processo. Ainda segundo o Subsecretário de Direitos Humanos:

A gente ia, e isso não era uma coisa fechada, não era uma fórmula pré-
estabelecida, uma fórmula absoluta. Eu visitei uma casa de um senhor
que ganhava, ele e a esposa, tinham uma renda de mil e quatrocentos
reais por mês, morava num apartamento próprio, um kitnet, mas pró-
prio. Só que, só de remédio e plano de saúde, ele gastava mais de mil
reais. Então, embora ele tivesse uma renda de mil e quatrocentos reais
por mês, a renda da barraca era fundamental para complementar a renda
deles porque só de saúde eram mil reais e sobravam quatrocentos reais
para o resto... (Subsecretário de Direitos Humanos).

De acordo com o resultado final do processo, foram duzentas e qua-


renta pessoas que receberam a licença para atuarem como “camelôs” nas
ruas da cidade. Deste total, cento e noventa já trabalhavam na rua com
licenças anteriores e cinquenta receberam a licença pela primeira vez, sen-
do que estas cinquenta trabalhavam sem licença, ou seja, faziam parte do
grupo de “camelôs” denominados “perde e ganha”, ou seja, aqueles que
podem vender a mercadoria num dia e no outro perdê-la com a apreensão
da fiscalização dos guardas municipais.
O recadastramento, no entanto, não foi o único instrumento que, sob
o título de política pública, visava ao “ordenamento urbano dentro da
legalidade” em Niterói. Um outro instrumento de controle foi utiliza-
do pela Subsecretaria de Direitos Humanos, em acordo com a AVALNI,

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com o objetivo de impedir a situação descrita como problemática pela


SSPDH, qual seja, o “termo de ajuste de conduta”. Este documento re-
presentou um manual do que seria permitido ou não fazer por parte dos
duzentos e quarenta “camelôs” que foram legalizados após o processo de
recadastramento. Assim relata o Subsecretário: “por exemplo, não pode ex-
plorar a mão de obra infantil, não pode vender CD pirata; não pode comer-
cializar fora do seu ponto, não pode alugar a barraca”.
Existe, no entanto, uma contradição no mecanismo da implantação
desta política de ordenamento urbano. De um lado são estipulados crité-
rios padronizados para a emissão das licenças assim como um documento
disciplinador da conduta daqueles que foram por ela contemplados, mas
por outro, exceções conforme a descrita em relação ao casal que possuía
uma renda de mil e quatrocentos reais por mês.
A aplicação desta política pareceu excludente, pois, ao contrário da
promoção da igualdade através da autonomia dos cidadãos no mercado,
esta política também não compensou as desigualdades, como seria de se
esperar da ação de um Estado numa sociedade que se apresenta regida
por um “paradoxo legal” (Kant de Lima, 2004), construindo uma nova
classificação dos mesmos como “pobres”, como “miseráveis”, reforçando a
ordem social vigente. Esta prática, no entanto, não é nova. Recenseamen-
to, listagem, classificação e seleção daqueles que merecem ser assistidos
são procedimentos que se inscrevem em diferentes editos, regulamentos,
leis e ações de caridade desde a Idade Média, quando diferentes práticas
voltadas para o auxílio ao pobre terminaram por construir uma imagem
social do mesmo. No caso particular de Niterói, pareceu-me que, os “ca-
melôs” excluídos de tal política, reagem à mesma, e esta reação contribui
para o aprofundamento da sua representação enquanto “pobre”.
Não encontrando, segundo eles, fóruns legais para a formalização das
suas demandas por direitos, assim como destituídos da licença anterior ou

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mesmo no esforço de adquiri-la, os “camelôs” parecem, em contrapartida,


construir politicamente uma identidade de “miseráveis” que é publicizada
por meio de um discurso e uma performance do sofrimento, seja no espa-
ço doméstico, quando da visita seja no espaço da rua.
A visita realizada pela equipe da Secretaria de Segurança às casas dos
“camelôs” que haviam solicitado a licença ou a sua renovação, constou de
perguntas e observações feitas a partir do questionário. Quando indagados
a respeito da posse de eletrodomésticos e do tamanho da suas casas, de
quantos cômodos havia etc., muitos dos entrevistados, constrangidamente
respondiam que bastava olhar ao redor para constatar que as precárias con-
dições de moradia respondiam por si só. Em sua maioria, acrescentavam às
suas respostas as marcas físicas contraídas ao longo da vida. Um dos exem-
plos foi o “camelô” que pretendia vender maçã do amor. Ele levantou a sua
blusa e mostrou a ferida, não cicatrizada, de uma queimadura no abdômen,
acrescentando que precisava da licença para trabalhar de modo que pudesse
comprar os remédios necessários para o tratamento.
Embora houvesse uma tentativa de padronização dos procedimentos
para a realização do recadastramento, as abordagens dos técnicos eram di-
ferenciadas. Enquanto dois deles – o engenheiro e a guarda – faziam as
perguntas diretamente e faziam a “vistoria” nas casas, o outro técnico, para
não constranger as pessoas visitadas, evitava algumas perguntas que, para
ele, eram preliminarmente respondidas à sua observação geral das casas.
Alguns entrevistados, por não perceberem a lógica de avaliação sub-
jacente à política de recadastramento, tiveram o seu pedido indeferido,
como foi o caso da Dona D. Apesar dos sinais de pobreza evidentes na
sua casa e de hospedar e cuidar da sogra idosa e doente, o fato dela ter
respondido que precisava da licença para trabalhar como vendedora am-
bulante por sugestão médica, já que, segundo ela, o médico havia falado
que ela precisava sair, “ver gente e se distrair”, não pareceu, aos olhos do

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técnico que a entrevistou, um perfil de “miserável”. Segundo este técnico,


o argumento para a recusa do seu pedido deveu-se ao fato de que, “em-
bora ela seja muito pobre, ela não precisa tanto assim. Ela quer a licença
só para distrair a mente”.
Apesar desta exceção, a maioria dos entrevistados em suas casas pode
perceber, ou se antecipar ao significado da visita e, por isso, operaram um
discurso do sofrimento que, da sua perspectiva, aprofundava o perfil de
“miséria” por eles vividos, na expectativa de mobilizar os sentimentos dos
técnicos da Subsecretaria de Direitos Humanos e levá-los a uma avaliação
positiva segundo o perfil socioeconômico delineado na política de reca-
dastramento.
Mas se isso é possível, é porque parece existir um “patrimônio co-
mum de estereótipos”, compartilhado tanto pelos operadores da política
implantada, ou seja, na esfera da gestão pública local quanto pela popu-
lação para a qual se dirigiu, ou seja, os “camelôs”. Trata-se, portanto, da
enunciação pública de um discurso no qual os atores, para se definirem
e existirem socialmente, precisam lançar mão de elementos linguísticos e
da sua vida cotidiana.
Os elementos constitutivos da percepção dos “camelôs” que foram vi-
sitados em suas residências pelos funcionários da SSPDH em relação ao
recadastramento, também encontram eco na percepção que outros “ca-
melôs”, no espaço da rua, têm sobre a mesma política.
O trabalho de campo que realizei sobre os “camelôs” se constituiu
da observação nas ruas do centro de Niterói, de entrevistas com eles e
de conversas que se realizaram desde o mês de outubro de 2005. Mi-
nha atenção foi centrada particularmente na Rua Visconde do Uruguai
na “Pracinha dos Aposentados” ou, como os “camelôs” “portadores de
deficiência física” (PDF) denominam, “Pracinha dos Chumbados”, em
alusão ao fato de que a maioria dos seus frequentadores são PDF e pessoas

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destituídas economicamente. Em função do período de festas de fim de


ano que aumenta o movimento no centro da cidade, assim como da pre-
sença de ambulantes, o Secretário de Segurança declarou no jornal O Flu-
minense (13/07/05) que a ordem era colocar todos os guardas municipais
nas ruas (até mesmo aqueles que fazem o serviço interno) para controlar
os “camelôs”, que “onde houver guarda não há camelô”.
A percepção que os “camelôs” têm sobre a atuação das autoridades
locais responsáveis pela implantação de políticas municipais de Segu-
rança é a de que estas os negligenciam completamente ou os tratam
com violência. Além disso, embora sendo um órgão público, esta con-
cepção não é aplicada uma vez que nem todos têm o direito de entrar
lá, evidenciando a representação de público como o que é estatal e, por
isso, contra o cidadão, não com o sentido de coletividade, presente na
sociedade brasileira.
Quando indagados sobre o que achavam da política do recadastra-
mento, todos os “camelôs” se queixaram do critério que exigia a residên-
cia do camelô no município de Niterói, particularmente em dois aspec-
tos: um de que o critério não era igualmente aplicado a todos uma vez
que alguns “camelôs” que obtiveram a licença moravam em São Gonçalo;
outro de que, mesmo residindo em São Gonçalo, alguns “camelôs” se
ressentiam do fato de que haviam prestado serviços ao município uma
vez que trabalharam no mesmo durante quase toda as suas vidas e igual-
mente se ressentiam do fato de que haviam ajudado à Guarda Municipal
em diferentes momentos ora auxiliando com material e mão de obra na
construção do gabinete da direção, ora nas festas de comemoração de Na-
tal e de fundação da instituição. Além disso, uma outra crítica recorrente
era a de que, tendo trabalhado toda a sua vida na rua como camelô, esta
era a única atividade que sabiam e gostavam de fazer. O relato de um dos
“camelôs” mais antigos de Niterói é revelador:

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Então, hoje, eu vou dizer a minha vida, para a senhora, na rua. Eu,
dos 8 anos de idade até 59, só tive dois inimigos fiscais. A fiscaliza-
ção sempre foi apaixonada por mim, a Guarda Municipal sempre foi
apaixonada por mim, e hoje entraram esses coronéis, porque a gente
não sabe se é guarda ou se é quartel da polícia. Do meu ponto de
vista eles são uns monstros, não entendem nada disso. Eu acho que
cada prefeito tem que tomar conta da sua cidade, cada prefeito tem
que dar emprego aos seus, como se diz, às pessoas que pagam impos-
to no município, vamos dizer, filhos da cidade. Se eu sempre fui de
Niterói, nunca trabalhei um dia no Rio, nunca trabalhei um dia em
São Gonçalo, nunca trabalhei um dia em Icaraí; eu só conheço essa
rua daqui, a senhora não acha que eu tenho direito a minha licença?
A senhora acha que alguém tem o direito de tirar a minha licença,
o meu direito de trabalho? Eu não aprendi a fazer mais nada a não
ser camelô. A Guarda Municipal hoje tem um gabinete que fui eu
que fiz. Antes havia um diretor que era bravo, ele tinha o nome de
campeão de luta brasileira, esse foi um deles, há uns doze anos; mas
ele se comunicava com a gente. Ele não esculachava a gente. Além
dele ser forte e bravo, ele beijava o nosso rosto e a gente nunca abu-
sou dele. Então, o que acontece? Eu fazia a festa da Guarda no final
do ano. Pode perguntar a todos os guardas antigos ou a esse diretor
porque ele ainda é vivo. Eu arrumava com os meus amigos, «came-
lôs» também; um dava uma caixa de cerveja, quem podia dar dava
duas; dava caixa de refrigerante. Então juntava aquilo tudo; um dava
uma caixa de fruta, outro dava outra caixa de fruta; a gente juntava.
De barraca em barraca eu pedi brinquedo para dar de presente aos
filhos dos guardas. Eu pagava do meu bolso um conjunto para tocar
no dia da festa, uma aparelhagem de som (Camelô há 51 anos no
Centro de Niterói).

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Dar implica em receber, ou seja, em estabelecer uma comunicação de


reciprocidade (Mauss, 1974) que garante as relações sociais, comprome-
tendo os indivíduos que entram na troca entre si e a coisa que é dada, que
é transmitida, oferecida, não é inerte. Quem presenteia alguém com algu-
ma coisa, dá uma coisa de si, da sua “substância”. Daí decorre igualmente
a obrigação de retribuir, pois que a não retribuição implica na não aceita-
ção da substância do doador ou, colocado em outros termos, implica na
sua “desconsideração” (DaMatta, 1983 e Cardoso de Oliveira, 2002). É
Mauss (1974) que ainda destaca dois elementos essenciais no potlach que
servem como referências para pensar os valores depreendidos do relato
do “camelô”: “o elemento da honra, do prestígio, de mana que confere a
riqueza e o da obrigação absoluta de retribuir essas dádivas sob pena de
perder este mana, esta autoridade, este talismã e esta fonte de riqueza que
é a própria autoridade” (Mauss, 1975, p. 50).
Uma vez esta reciprocidade rompida, ou seja, a não retribuição por
parte da Guarda Municipal, e no lugar da troca/comunicação a repressão,
o relato desse “camelô” parece indicar que este rompimento, que o trata-
mento baseado na repressão e no não reconhecimento da dádiva oferecida
pelos “camelôs” é percebido por eles como um esculacho.11 Decorre daí
que neste período marcado por conflitos abertos entre os guardas e os “ca-
melôs”, uma certa percepção sobre o que é fazer política local é valorizada
e reforçada, desvalorizando, de certa forma, a representação da Guarda
Municipal como autoridade local. Ao contrário de considerar uma políti-
ca formal, baseada em critérios impessoais e procedimentos previamente
estabelecidos e acordados com a própria ALVANI, como o que foi des-
crito sobre o recadastramento, este relato valoriza a política com base em
princípios de reciprocidades pessoais. Olhando para o passado, o “came-
lô” revela um período no qual o Diretor da Guarda se “comunicava” com
os “camelôs” e ainda que fosse “bravo e campeão de luta brasileira”, ele

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também os “beijava no rosto”. É como se não houvesse nos dias de hoje


o reconhecimento da dádiva (Mauss, 1974) que os “camelôs” ofereceram
no passado: a construção do gabinete da Guarda, os preparativos e pre-
sentes para o dia da festa.
É interessante notar que embora assinalando criticamente que a justiça
em Niterói funciona na base das relações pessoais, o argumento utilizado
pelo mesmo “camelô” anteriormente destaca uma espécie de ressentimen-
to por estas relações terem sido rompidas na lógica das trocas estabeleci-
das no passado. A manifestação dos “camelôs” parece reforçar a crença
nas práticas baseadas nas relações pessoais do mesmo modo que também
parece negar, ou não reconhecer o Estado como o lócus que, por excelên-
cia, detém a autoridade legítima da imposição de uma visão do mundo
social, como argumenta Bourdieu (1989).
A imagem que os “camelôs” PDF constroem deles mesmos é a de que
são destituídos economicamente, excluídos socialmente e vítimas de “de-
ficiência física”. Com base nesta imagem, estes “camelôs” relatam dramas
e problemas que são, do seu ponto de vista, produzidos e agravados pelas
práticas resultantes de políticas de segurança cujas propostas de reconhe-
cimento legal e real de direitos permanece, segundo relatam, uma “pro-
messa não cumprida”. Argumentando que são incapazes de conquistarem
seu acesso aos Direitos dos quais se julgam elegíveis, lançam mão de estra-
tégias performáticas que acentuam uma identidade coletiva de miseráveis,
compatível com as exigências da política de recadastramento.
De acordo com um dos camelôs entrevistados, uma das estratégias
encontradas por ele para lidar com estes problemas no dia a dia passa pela
tentativa de mobilização dos sentimentos de indignação e de piedade dos
espectadores das cenas que se passam diante dos seus olhos no espaço pú-
blico. Ele diz que “como eu sou assim, um PDF, e não tenho direito de defesa,
eu me defendo da forma que eu posso – eu mordo os guardas”.

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O deboche também é uma das práticas escolhidas para mobilizar os


sentimentos dos espectadores presentes no espaço público e, consequen-
temente precipitar neles o engajamento na causa destes “camelôs”. Em
um dos seus relatos o mesmo camelô conta que:

Um dia eu forrei o chão com uma lona em frente à Pracinha dos Chumba-
dos e coloquei um monte de lixo em cima – capa de celular rasgada, pilha
que não funcionava, pente usado, lápis quebrados e canetas sem tinta.
O guarda chegou e pediu que eu tirasse as mercadorias dali. Eu falei que
não ia tirar nada não. O guarda disse então que seria obrigado a recolher
a mercadoria e eu falei: “ah, é lixo o que você quer? Então toma aí o seu
lixo!”. Eu peguei a minha muleta por baixo da lona e levantei tudo para
cima do guarda; o lixo foi todo pra cima dele e eu continuei a falar: “toma
o seu lixo, toma o seu lixo” (X, camelô há 20 anos no Centro de Niterói).

Considerações finais

Espero que, com a etnografia apresentada ao longo deste artigo, possa


trazer ao debate público questões pertinentes ao domínio de elaboração,
implementação e execução de políticas públicas municipais de segurança
no processo de descentralização porque vem passando este campo no Bra-
sil desde a Constituição de 1988. Parece que a expectativa deste processo
e a consequente democratização no âmbito da gestão do ordenamento
urbano municipal se constitui de manifestações no plano moral, melhor
dizendo, da evocação dos sentimentos, que especialistas tanto no plano
acadêmico quanto no plano político não têm dado a devida atenção.
Gostaria ainda de finalizar este trabalho destacando que, apesar das
diretrizes nacionais com base em princípios do Estado Democrático de
Direito, visando à implantação de princípios universais e democráticos

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de administração institucional de conflitos, os guardas municipais de Ni-


terói orientam as suas ações por um habitus (Bourdieu, 1989) baseado
em valores repressivos, autoritários e hierárquicos, enraizados na cultura
jurídica brasileira. Ainda que um habitus (Bourdieu, 1989) não seja imu-
tável, ele se caracteriza como um “sistema de disposições duráveis” que es-
trutura as práticas e as representações que são objetivadas e reproduzidas
nas interações entre os “guardas novos” e os “antigos” que frequentemente
tomam lugar no interior da Guarda Municipal. Dessa forma, embora a
política de reestruturação e consolidação da Guarda de Niterói proponha
novos paradigmas, há uma tendência à reprodução, no interior da insti-
tuição, das estruturas hierarquizadas e autoritárias, objetivadas na relação
entre os guardas e seus superiores. No entanto, parece que em relação às
interações conflituosas destes com os “camelôs” não se explica exclusiva-
mente pela atualização deste habitus no espaço público. Outras dimen-
sões desta interação, baseadas na história construída por ambos atores,
conforme seus relatos, parecem contribuir tanto para as manifestações de
conflitos entre eles nas ruas da cidade, bem como para as manifestações
de sofrimento dos “camelôs”.
Ao estabelecer um perfil socioeconômico a partir do qual uma avalia-
ção de pobreza dos “camelôs” pudesse ser construída como critério para a
aquisição de licença, a SSPDH de Niterói parece ter buscado um meca-
nismo para minimizar as desigualdades no município. No entanto, con-
forme afirma Kant de Lima (2004), em uma sociedade na qual o controle
social é regido pelo modelo da pirâmide, a ação compensatória do Estado
para minimizar as desigualdades sociais promovidas pelo mercado acaba
por reproduzi-las já que, supostamente concebida como geral para um
público considerado naturalmente desigual, tem a sua aplicação de forma
particularizada por destinar-se a segmentos particulares dentro do con-
texto do espaço público no qual esta ação é implementada.

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Em relação aos “camelôs”, a recorrência de aspectos do sofrimento


material e físico, sempre invocados por eles como evidências de que deve-
riam ter a demanda contemplada, aponta para a questão da construção de
um discurso do sofrimento aceitável enquanto um discurso político (Bol-
tanski, 1993), como uma estratégia de construção de uma identidade co-
letiva que possibilitava a sua consideração enquanto sujeitos de direitos.
Em sua análise sobre “la souffrance à distance”, Boltanski (1993),
partindo da perspectiva que o homem constrói a sociedade e, por isso,
não está preso aos constrangimentos impostos por uma estrutura social
pré-existente, considera que os atores sociais têm capacidade reflexi-
va sobre as suas ações, ou seja, têm competência para julgar, criticar e
denunciar os fenômenos vividos e observados por eles na vida cotidia-
na. Em seu livro, o autor parte da indagação a respeito das exigências
morais e da dimensão política que o “sofrimento à distância” impõe ao
espectador quando este se depara com cenas de sofrimento veiculadas
pela televisão. Pergunta ele: “em quais condições o espetáculo do so-
frimento à distância, interposto pela mídia, é moralmente aceitável?”
(Boltanski, 1993, p. 9). Ao desenvolver a sua análise, Boltanski oferece
alguns elementos importantes para pensar o discurso do sofrimento não
como uma emoção individual e espontânea, mas como uma construção
social que é operada como estratégia para o acesso a direitos.
Boltanski (1993) considera que o espaço público se constitui em tor-
no de causas que são instituídas a partir de deslocamentos de posições e
representações dos fenômenos sociais por este espectador. E, para o au-
tor, “nada é mais favorável à formação de causas do que o espetáculo do
sofrimento... É inicialmente em torno do sofrimento dos infelizes que as
pessoas, até então indiferentes, se sentem inclinadas a aderir a uma cau-
sa” (Boltanski, 1993, p. 53). Além disso, não estando voltado para uma
objetividade, sem a tomada de posicionamento por parte dos atores so-

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ciais, o autor considera que, no espaço público, o “sofrimento modifica as


condições do debate, submetendo-o à urgência e exigindo das pessoas o
seu engajamento para as causas do sofrimento” (Boltanski, op.cit., p. 53).
Considerando o lugar de onde o espectador é colocado diante de pes-
soas que sofrem, o autor argumenta que lhe restam duas opções. Ele pode
simplesmente ver o espetáculo do sofrimento e não se pronunciar ou,
por outro lado, dar voz ao sentimento que tal sofrimento lhe impôs. A
primeira posição leva à crítica a respeito de uma atitude essencialmente
negativa, caracterizada por um “olhar egoísta” por meio do qual o es-
pectador absorve internamente as emoções suscitadas pelo espetáculo do
sofrimento: sejam elas emoções de fascinação, de horror, de prazer, etc.
A segunda posição, por outro lado, permite a construção de um olhar
voltado para o exterior, segundo o critério da “palavra pública”, aquele
que expressa a sua “piedade” e a intenção de acabar com o sofrimento
daquele que sofre, ainda que o espectador não esteja em condição de agir
concretamente. Para o autor, a simples inclinação do espectador para co-
municar a um público ilimitado a emoção suscitada já é, por princípio,
uma “palavra pública”.
Como as implicações políticas, nesse caso, estão referidas às exigências
morais impostas à observação que um espectador faz do sofrimento, é im-
portante apresentar a distinção que Boltanski (1993) estabelece entre uma
“política da justiça” e uma “política da piedade”. De acordo com ele, esta
distinção compreende, pelo menos, três pontos essenciais. A “política da
justiça”, apoiando-se sobre uma teoria da justiça considerada, ela mesma,
pelo que o senso comum percebe como justiça, visa à administração de dis-
putas e representa um modelo que separa as pessoas pelas suas grandezas12
e não por serem felizes ou infelizes. Neste modelo, a questão que se coloca
é saber se a maneira através da qual as pessoas são ordenadas segundo a
sua grandeza e valor é justa ou não. Em segundo lugar, as qualidades que

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definem as diferentes grandezas das pessoas não estão ligadas às condições


das pessoas. Por fim, uma “política da justiça” busca resolver as disputas
operando uma lógica de equivalências no contexto de uma prova.
A “política da piedade”, por outro lado, caracteriza-se pelo inverso,
fundamentalmente pelo fato de que não importa se o sofrimento ou a
infelicidade são justificáveis, ou seja, o sofrimento não é acompanhado
pela prova, ele invoca a urgência da ação, ainda que seja pela enunciação
da piedade do espectador. É preciso ainda esclarecer o que é essa política
da piedade e em que medida o seu conteúdo está presente tanto na ma-
nifestação do discurso do “sofrimento” dos “camelôs” que são portadores
de deficiência física, bem como na política do recadastramento proposta
pela Secretaria de Segurança do Município de Niterói.
Em seu livro “La société décente”, Margalit (1999) propõe que uma
sociedade decente é aquela na qual não somente os indivíduos, mas igual-
mente as instituições que dela fazem parte, não humilham as pessoas.
Dentre as sociedades que não podem se caracterizar como decentes, o
autor destaca aquelas nas quais a condição da miséria humana é tratada
com humilhação: o abandono, a ausência de abrigo e de meios de defesa,
abandono ao revés, a batalha pela vida, o rebaixamento de alguém que é
conduzido a um nível bestial numa luta desesperada pela existência; au-
sência de fraternidade humana sem compaixão nem simpatia.
Margalit argumenta que a “piedade” é o motor emotivo que impul-
siona as pessoas a ajudar os pobres nas sociedades de beneficência, sen-
do necessário, porém, distinguir entre o que é uma relação de piedade
e uma relação de compaixão. Para ele, a “piedade” é uma relação assi-
métrica que pressupõe o sentimento de superioridade do doador para
com o “miserável” que recebe o seu auxílio sob a forma de caridade, de
esmola. A “compaixão”, por outro lado, se caracteriza por uma relação
simétrica.

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Diz ele que “aqueles que se beneficiam da piedade têm uma boa razão
de suspeitar que eles não são respeitados na medida em que a piedade é
desencadeada pela visão da impotência e da vulnerabilidade. Se as pessoas
são mestras delas mesmas, não se tem piedade por elas, mesmo quando
elas caem na miséria. A piedade é endereçada às pessoas que perderam
importantes motivos de respeito delas mesmas e que estão ao ponto de
perderem os meios de defender a sua dignidade pessoal” (Margalit, 1999,
pp. 221-222). “Piedade”, “piété”, “pitié”, derivam do latim pietas, sendo
que em inglês, como em francês, sofreram uma modificação semântica. A
piedade expressa um sentimento religioso sustentado por uma obrigação
incondicional e sincera em relação ao outro que sofre, uma extensão da
obrigação do homem para com Deus, e não um sentimentalismo condes-
cendente em relação aos pobres.
Dessa forma, é utilizando um discurso, elaborado a partir de relatos
e de enunciações, bem como da dramatização do seu sofrimento, que os
“camelôs” parecem querer impor uma questão moral aos espectadores – a
população em geral, a mídia e as autoridades locais – no sentido de que
estes se tornem engajados na sua causa. Se esta estratégia política obterá
realmente a resposta do espectador no sentido de que este torne o seu so-
frimento público, é outra coisa. Por outro lado, na medida em que, mes-
mo que a resposta do espectador não contemple o fim do seu sofrimento,
a sua causa é tornada pública na medida em que é publicizada no espaço
público no qual o discurso é transmitido.

Notas

1 ����������������������������������������������������������������������������������������
Antropóloga, Professora do Departamento de Política Social/ESS/UFRJ. Pesquisadora Asso-
ciada ao NECVU/IFCS/UFRJ e ao InEAC/Nufep/UFF.
2 Este Fundo é regulamentado pela Lei Federal no 10.201/2001 e alterado pela Lei 10.746/2003.
3 Passarei a me referir ao Plano Nacional de Segurança Pública pela abreviação PNSP.

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4 Além de entrevistas à população que circulava nas ruas, aos representantes das Secretarias
Municipais, levantamento bibliográfico e da minha inserção como professora, coordenadora
e pesquisadora no projeto de extensão de Capacitação da Guarda Municipal de Niterói,
desenvolvido no âmbito do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas – Nufep, da UFF
entre 2002 e 2007, este trabalho contou com diagnóstico elaborado a partir da realização
de grupos focais. O grupo focal é uma técnica de pesquisa qualitativa baseada no debate
entre os participantes, que permite, em um curto espaço de tempo, o acesso ao quê os par-
ticipantes pensam e não ao como, ou porquê, eles chegaram a pensar o que pensam sobre
um determinado assunto. Aplicada aos guardas municipais, esta ferramenta indicou algumas
representações sobre a ordem social e a segurança pública presentes entre os guardas que
participaram dos grupos focais. Ao longo de duas semanas do mês de julho foram realizados
13 grupos focais com guardas municipais que ocupavam diferentes funções de trabalho de
modo que fosse possível obter uma visão mais clara de todos os aspectos das suas funções.
Destes 13 grupos, dois foram compostos por inspetores e subinspetores para evitar possíveis
constrangimentos para os guardas no momento de exporem as suas avaliações a respeito do
trabalho daqueles, bem como os problemas por eles vivenciados na sua função e interna-
mente à instituição. A seleção dos participantes foi feita pela própria Secretaria de Segurança
de acordo com os critérios solicitados pela equipe de pesquisadores do NUFEP: postos que
ocupavam e tempo na instituição. Os grupos focais foram realizados em salas de aulas da UFF
e contaram com a participação de diferentes pesquisadores na área de ciências sociais, com
diferentes formações: estudantes de graduação e de pós-graduação, bem como de professores
e pesquisadores vinculados à UFF.
5 Sobre estas categorias na organização da GM de Niterói, ver minha tese de doutorado, inti-
tulada Igualdade e hierarquia no espaço público: análise de processos de administração insti-
tucional de conflitos no município de Niterói, defendida no PPGA/UFF, 2007.
6 Uma postura municipal tem como papel definir e regular a utilização do espaço público e
do bem estar público. Os fiscais de postura são os agentes públicos municipais investidos da
autoridade de executar a regulamentação da utilização do espaço público, que não era, na
época da pesquisa, atribuição dos guardas municipais.
7 Este discurso do despreparo dos guardas é mais extensivo a outros profissionais da área de
Segurança Pública, tanto por parte dos seus integrantes, como por parte da população em
geral. No caso da Polícia Militar, ver Kant de Lima (2003).

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8 Embora esse trabalho seja oficialmente chamado de “combate ao comércio clandestino”, o


termo mais utilizado pelos guardas era “combate ao “camelô”.
9 Segundo os guardas, o “apoio” era a equipe terceirizada pela Prefeitura para recolher as
mercadorias consideradas pelo poder público municipal como “ilegais”. O grupo desig-
nado como “apoio” era constituído de homens altos e fortes; “eles são os músculos”, diziam
os guardas, enquanto os fiscais de postura, eram chamados por eles como a “voz”. Esta
prática sofreu alterações em dezembro de 2003 com a determinação da nova política da
Prefeitura, destituindo o grupo do “apoio” e passando para os guardas a atribuição de
recolher as mercadorias.
10 No que diz respeito aos dados sobre a política de recadastramento dos “camelôs”, entre-
vistei, em 2005, o Subsecretário de Direitos Humanos da Secretaria de Segurança Pública
e Direitos Humanos do município de Niterói, que conduziu esta política. Da equipe de
recadastramento, formada por dois assessores da Subsecretaria de Direitos Humanos e quatro
profissionais de diferentes áreas do conhecimento, contratados temporariamente para execu-
tar esta política, entrevistei e acompanhei o trabalho de dois profissionais em visita às casas
dos “camelôs”. Um deles concluía o doutorado em Engenharia de Produção na Universidade
Federal do Rio de Janeiro e o outro era formado em Geografia na Universidade Federal
Fluminense. Em relação aos “camelôs” mais diretamente afetados pela política de recadas-
tramento, entrevistei 6 dos 12 que se denominavam “Portadores de Deficiência Física”, ou
PDF, e fiz observações da organização espacial da camelotagem diretamente nas ruas do
Centro de Niterói. Por outro lado, para compreender a maneira como a questão dos conflitos
entre os guardas municipais e os “camelôs” era tratada, ainda em nível local, pelas autoridades
do Estado, participei e observei a reunião de cinco Cafés Comunitários em Niterói que se
realizaram entre janeiro e maio de 2006.
11 Esta categoria tem sido recorrente no discurso de “camelôs” de outros municípios e em
contextos de conflitos com outros agentes de Segurança. Uma análise aprofundada sobre o
esculacho pode ser encontrada em Pires (2005).
12 Por este termo, o autor, em parceria com Thévenot, argumenta que as pessoas não são clas-
sificadas a priori, mas a partir de uma situação na qual são colocadas em disputa e na qual
uma série de objetos: humanos e não humanos, para tomar Bruno Latour, são considerados
no julgamento do que é justo nesta situação de disputa e, consequentemente, no peso, ou
melhor, na grandeza que estes objetos têm nesta situação (Boltanski & Thévenot, 1991).

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ABSTRACT: The objective of this article is to present a discussion about the im-
pact of the process of decentralization of a public policy for security in Niterói,
considering, on one side, the context of implementing the Municipal Guards
in Brazil, from its formalization in the sphere of norms in the Constitution of
1988, and on another, the re-registration of street vendors in the city – the so-
called camelôs. The ethnographic material on which this analysis is based refers
both to the reformulation of the Municipal Guard in Niterói and the relisting of
the camelôs in the context of the decentralization of security policies. It was ob-
served that, in the implementation of universal and equitable mechanisms of in-
stitutional management of conflicts in public space, the difficulties encountered
by the local government concerned the persistence of a habitus in the practice
of municipal guards, based on repression. Similarly, the policy of re-registration

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did not mean guaranteed access to a social right, but a process of stigmatization
of a particular social group, while it allowed a better control of the same by the
State. As a result, the camelôs expressed their dissatisfaction using discourses that
valorized suffering and disregard as strategies for building a public image that
could allow a space in the municipal security policy.

KEYWORDS: Camelôs, Institutional Management of Conflicts, Municipal


Guard, Public Policy.

Recebido em fevereiro de 2010. Aceito em julho de 2010.

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Reflexões críticas sobre a metodologia
do estudo do fluxo de justiça criminal
em caso de homicídios dolosos

Theophilos Rifiotis
Andresa Burigo Ventura
Gabriela Ribeiro Cardoso1

Universidade Federal de Santa Catarina

RESUMO: O presente trabalho discute a metodologia empregada no estudo do


fluxo da Justiça Criminal em casos de homicídios dolosos, partindo do levanta-
mento da literatura especializada e da revisão crítica da metodologia empregada
em pesquisas realizadas sobre processos penais de homicídios julgados na Região
Metropolitana de Florianópolis (SC) entre 2000 e 2003.

PALAVRAS-CHAVE: fluxo de Justiça, homicídio, metodologia.

Apresentação

O modo de produção da Justiça e sua garantia de acesso envolvem ques-


tões analíticas, técnicas e políticas contemporâneas que se cruzam num
debate crucial para as sociedades democráticas. No Brasil, desde meados
dos anos 1980, vem se formando um campo de estudos fundado na plu-
ralidade de matrizes teóricas e metodológicas que nos informam sobre o
modo de produção da Justiça e sobre o seu acesso, ao mesmo tempo em

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Theophilos Rifiotis; Andresa B. Ventura & Gabriela R. Cardoso. Reflexões...

que possibilitam a sua crítica. Nesse duplo vínculo, entre uma perspectiva
analítica e uma perspectiva crítica, destacam-se os trabalhos seminais de
Mariza Corrêa (1983) e Edmundo C. Coelho (1986), que desenharam
as grandes linhas de um campo de estudo entre Antropologia e Direi-
to e enfocaram especialmente a produção da Justiça com ênfase no seu
acesso diferencial. Estudos mais recentes têm mostrado que se trata de
um campo promissor de pesquisa (Adorno, 1996; Costa Ribeiro, 1999;
Kant de Lima, 2000), seja pela falta de informações oficiais produzidas
pelas agências do sistema de Justiça Criminal, como pela necessidade de
um melhor conhecimento do processamento da Justiça, especialmente no
domínio criminal. Nesse sentido, cabe destaque aos trabalhos realizados
nos últimos anos que, superando tais dificuldades e limitações para a pes-
quisa (IPEA/CESEC in Cerqueira, 2000), têm produzido importantes
resultados, dentre os quais cabe uma referência especial à contribuição de
Joana Domingues Vargas na vertente dos estudos sobre o chamado fluxo
de Justiça Criminal (Vargas, 1997, 2004).
Na esteira da produção sobre o fluxo de Justiça Criminal, e tomando
como base a realização de uma pesquisa sobre homicídios na Região
Metropolitana de Florianópolis (SC),2 entre 2000 e 2004, realizada no
LEVIS (Laboratório de Estudos das Violências) da Universidade Fe-
deral de Santa Catarina,3 desenvolvemos uma reflexão crítica sobre as
estratégias metodológicas de pesquisa neste campo, que apresentamos
aqui. Para iniciar a nossa discussão, retomamos um balanço da pro-
dução nesse campo publicado em 2008, no qual se mostra a crescente
importância dos estudos sobre fluxo de Justiça Criminal, bem como
a diversidade de abordagens que eles comportam (Vargas & Ribeiro,
2008). No balanço, é analisado um amplo conjunto de publicações des-
de a década de 1980 que mostra a ênfase no recorte na morosidade/
eficiência e na seletividade do processamento no sistema de Justiça, des-

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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.

tacando a importância dos estudos sobre o fluxo de Justiça Criminal em


três frentes complementares:

• reconstituição do funcionamento do sistema de Justiça Criminal;


• identificação e estudo da seletividade dos processos, o chamado “funil
da impunidade”;
• análise dos determinantes do encerramento dos processos.

Naquele mesmo balanço da literatura especializada, são analisadas


também as dificuldades e as possibilidades próprias de cada tipo de abor-
dagem, destacando, ao final, que os estudos sobre fluxo apontam para
conclusões gerais, também identificadas na nossa pesquisa. Dentre as
conclusões, ressaltam-se: há um decréscimo substancial das taxas de sen-
tenciamento/condenação, especialmente para os delitos de homicídio en-
tre 1968 e 2004, e a maior filtragem do sistema de Justiça Criminal tem
lugar entre o encerramento do inquérito policial e o início do processo
judicial, em razão da não identificação da autoria do delito. No que se
refere às estratégias metodológicas das pesquisas analisadas, que são o foco
da nossa apresentação, o estudo identificou três desenhos metodológicos:

1) longitudinal ortodoxo: baseado no acompanhamento do processa-


mento de ocorrências policiais ao longo do tempo;
2) t ransversal: baseado no cálculo do número de casos de cada tipo
penal que são processados em cada uma das agências do sistema cri-
minal de justiça;
3) longitudinal retrospectivo: análise de casos encerrados em um deter-
minado período de tempo, realizando o monitoramento retrospectivo
dos processos.

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Theophilos Rifiotis; Andresa B. Ventura & Gabriela R. Cardoso. Reflexões...

Na nossa perspectiva, trata-se, stricto sensu, de três estratégias de pes-


quisa, mais do que de metodologias, que estão em debate, cada qual com
seus rendimentos e problemas analíticos. A nossa pesquisa sobre fluxo da
Justiça Criminal na Região Metropolitana de Florianópolis (SC),4 a que
nos referimos anteriormente, corresponderia à estratégia longitudinal re-
trospectiva. Assim, grosso modo, o nosso projeto, baseado no levantamento
e análise de processos penais de crimes de homicídios dolosos ocorridos
entre 2000 e 2003,5 poderia ser enquadrado como longitudinal retros-
pectivo. Porém, quando analisamos as estratégias concretas e específicas
adotadas no seu desenvolvimento, identificamos que estas possibilitaram,
para além de uma simples leitura linear do fluxo de Justiça Criminal,
uma melhor compreensão do próprio fluxo. Conforme argumentamos ao
longo deste trabalho, nos parece que há algo mais que é preciso colocar
em debate no âmbito metodológico.
Assim, faz-se necessário retomar a história do desenvolvimento do
nosso projeto para colocarmos em discussão a especificidade da sua estra-
tégia de pesquisa. Lembremos, brevemente, que o projeto fazia parte de
um conjunto de estudos sobre homicídios que chamávamos “Contar os
homicídios da Região Metropolitana de Florianópolis”. A referência ao
verbo “contar” tinha o sentido amplo de fazer convergir diversas pesqui-
sas sobre homicídios realizadas a partir de dados coletados pelo sistema
de saúde, através do SIM (Sistema de Informação sobre Mortalidade),
da Secretaria de Estado da Segurança Pública de Santa Catarina, do IGP
(Instituto Geral de Perícias), dos arquivos do Tribunal de Justiça de Santa
Catarina, dos principais jornais da região, e de narrativas entrevistas sobre
casos de homicídios, nas quais os sujeitos entrevistados narram homicí-
dios. Trata-se de uma proposta de amplo escopo, de olhares cruzados e de
distintas fontes, na qual se inscreve o estudo do fluxo de justiça para os
casos de homicídios e que redundou em vários trabalhos de pesquisadores

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do LEVIS6. As pesquisas e trabalhos oriundos daquele projeto nos permi-


tiram um rico debate teórico-metodológico e cruzamento de informações
entre essas bases de dados, que apresentamos aqui, concentrando-nos no
caso do estudo dos processos penais e das questões relativas à nossa estra-
tégia metodológica no estudo do fluxo de Justiça Criminal.

Refletindo sobre as estratégias metodológicas no estudo do fluxo de


justiça criminal

O estudo do fluxo da Justiça Criminal é um poderoso instrumento de


reflexão sobre acesso diferencial à Justiça e é ainda pouco explorado no
Brasil. Embora tenhamos um crescente número de estudos nos últimos
anos, ainda são poucos os estudos que procuram identificar e investigar
os processos de filtragem dos envolvidos nos crimes (Vargas, 2004; Vargas
& Ribeiro, 2008). Dispomos de poucos dados estatísticos e publicações,
a exemplo de Coelho (1986) e Adorno (1996), para avaliarmos a atuação
da Justiça nos crimes de homicídio doloso.7 Como dissemos anterior-
mente, neste contexto destaca-se o trabalho de Joana Domingues Vargas
(2004), que estudou a seletividade e o tempo de processamento dos cri-
mes de estupro. Muito embora o tipo de evento e estudo desenvolvido
pela autora não contemple o Tribunal do Júri, como é o caso da nossa
pesquisa sobre homicídios, os seus trabalhos foram uma referência inspi-
radora para a nossa trajetória de pesquisa.
Em consequência da especificidade técnica e processual dos homicí-
dios, que têm uma tramitação jurídica diferenciada, a metodologia do
trabalho obrigatoriamente sofreu alterações em relação aos estudos ci-
tados anteriormente. Portanto, em primeiro lugar, o estudo do fluxo de
Justiça Criminal deve ater-se à especificidade processual correlata ao tipo
penal analisado. No nosso caso, foi utilizada uma abordagem que per-

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mitiu analisar o fluxo de processamento de cada subsistema de justiça,


bem como investigar os processos de tomada de decisão que os regem,
assim como a capacidade geral do próprio sistema e seus vieses de atua-
ção. Nesse sentido, foi importante o estudo detalhado dos procedimentos
e decisões, dos tempos gastos em cada etapa do processamento, assim
como das características dos casos de homicídio e do perfil dos acusados
e vitimizados, redundando num rico material sobre as práticas judiciais e
a produção de justiça no crime de homicídio doloso.
Os casos de homicídios dolosos distinguem-se basicamente nas seguin-
tes etapas processuais: inquérito policial, denúncia e processo criminal.
Essas partes são caracterizadas pelo alto grau de fragmentação, como de-
monstrou a nossa pesquisa (Rifiotis & Ventura, 2007a). Entendendo que
o fluxo de Justiça Criminal pode ser compreendido como a trajetória de
personagens nas diversas etapas do processamento criminal, é fácil com-
preender que ele permite visualizar as rupturas, quebras e afunilamentos
do sistema, como também um cruzamento dos dados processuais, pro-
porcionando uma análise do movimento da criminalidade e das respostas
institucionais aos crimes e aos agentes diretamente envolvidos ou, ainda,
cruzar informações dos processos, o que proporciona uma radiografia da
atuação da Justiça (Sergio de Lima, 2000). Pode-se considerar, seguindo
E.C. Coelho (1986), que na administração da Justiça Criminal há dois
grandes determinantes: a disjunção e a integração. A disjunção é con-
sequência de funções bastante diferenciadas dentro da Justiça Criminal
(Polícia, Ministério Público e Magistratura). Um exemplo da disjunção
é que, enquanto a polícia procura envolver o máximo de indivíduos nas
malhas da Justiça, o Ministério Público e a Magistratura consideram os
custos do crime e de sua repressão, que geraria um aumento nas taxas de
aprisionamento, automaticamente um colapso no sistema carcerário. O
segundo determinante é a integração, que é a comunicação realizada en-

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tre esses órgãos, feita quase que exclusivamente por meio de documentos
escritos. Ela expressa práticas e valores das três categorias de operadores
que compõem o sistema: a Polícia, o Ministério Público e a Magistratura,
que produzem e reproduzem concepções hierárquicas, desiguais e que
podem ser discriminatórias.
Segundo Kant de Lima (2000), diremos que, apesar de caber a tais
instituições, em princípio, administrar litígios no espaço público pro-
movendo a justiça, os operadores guiam-se por regras que são normal-
mente muito amplas e podem cometer injustiças e consolidar desigual-
dades sociais. Assim, a determinação do tempo de processamento do
sistema de Justiça Criminal é mais do que uma questão de “morosi-
dade”, ainda que ela seja um importante critério de processamento e
efetividade do sistema. O tempo, nesse contexto, demonstra sua plena
significação como índice do tipo de tratamento dado aos crimes e aos
sujeitos processados. De tal modo, o próprio método de reconstituição
do fluxo considerado mais recorrente é o estudo longitudinal ortodo-
xo, ou seja, aquele tipo de análise que consiste fundamentalmente no
acompanhamento de um conjunto de ocorrências policiais de cada tipo
de crime ao longo de um período (Vargas & Ribeiro, 2008). Esse acom-
panhamento tem por objetivo verificar o percentual de casos que pro-
gridem para as fases subsequentes e ainda os que são arquivados antes
do previsto. Trata-se de uma abordagem que permite analisar o tempo
de processamento, a dinâmica das operações realizadas pelos operadores
do direito, as características dos casos, das vítimas e acusados, redun-
dando num rico material sobre as práticas judiciais e a produção de
justiça. Assim, pode-se estudar a entrada e saída dos casos no sistema,
bem como os resultados do processo e, por essa via, discutir o acesso
diferencial à Justiça. A dimensão temporal no estudo do fluxo de justiça
é, portanto, um elemento central.

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Para especificarmos a estratégia que temos adotado e que apresentare-


mos no item seguinte, faz-se necessário ainda apontar uma característica
geral da estratégia longitudinal ortodoxa: a unidade de análise é o proces-
so considerado como uma totalidade. Em certa medida, cada processo é
concebido como uma unidade independente das demais, às quais se junta
com uma unidade específica, agregada para produzir tendências temporais
e seletivas. O objeto de estudo são, neste caso, os tempos identificados no
processamento, envolvendo basicamente – nos casos de homicídio doloso
– a seguinte sucessão: Boletim de Ocorrência, Inquérito Policial, Denún-
cia, Recebimento da Denúncia, Pronúncia, Julgamento e Arquivamento. A
outra unidade de análise central compreende a caracterização dos sujeitos
acusados e o resultado dos processos. Como constatamos nas pesquisas re-
alizadas no LEVIS, referidas acima, a temporalidade num processo pode
depender de múltiplos outros elementos, tais como: estratégias de defesa,
relação com outros casos, relações entre acusados em diferentes processos,
ameaça ou assassinato de testemunhas, “repercussão social” dos casos etc.
Para nós, no estudo do fluxo de Justiça Criminal, essas questões podem
ser enfrentadas adequadamente se considerarmos a análise documental na
perspectiva etnográfica e relacionarmos os processos a outras fontes docu-
mentais, especialmente a imprensa, como discutido a seguir. A abordagem
etnográfica dos processos penais é a matriz da estratégia de pesquisa que
adotamos no nosso trabalho sobre o fluxo de Justiça Criminal.

Fluxo de justiça criminal para homicídios dolosos e a entrada do di-


ário de campo

Apresentamos a seguir, sumariamente, a estratégia metodológica que


desenvolvemos nos nossos estudos sobre fluxo de Justiça Criminal em
casos de homicídio doloso.8 A primeira etapa do trabalho de pesquisa

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constitui-se no levantamento de dados quantitativos sobre os homicídios


registrados através do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) da
Secretaria de Estado da Saúde de Santa Catarina. Foram coletados dados
desde a década de 1970 até 2003, o que nos permitiu situar historica-
mente os processos analisados na pesquisa, relativos ao período de 2000
a 2003, dando-lhes um contexto específico. Com essas informações, or-
ganizamos a identificação dos processos judiciais, inicialmente a partir
do site do Tribunal de Justiça de Santa Catarina,9 que posteriormente
facilitaria a localização de cada processo penal nas comarcas. Na realida-
de, o trabalho teve que se confrontar desde o primeiro momento com o
processamento judicial nas suas várias instâncias, e foi somente por meio
de uma pesquisa exaustiva que pudemos ter acesso a todos os processos
disponíveis nas comarcas.10
O trabalho de identificação e localização dos processos é extremamen-
te complexo, devido a esses processos estarem em diferentes momentos
de tramitação e em vários órgãos da Justiça Criminal. Outra dificuldade
encontrada nessa fase da pesquisa é a leitura e fichamento dos processos
(cf. Formulário no Anexo). O volume físico desses documentos também
deve ser levado em conta desde o planejamento da pesquisa, pois alguns
tinham vários volumes e mais de mil páginas, o que pode consumir vá-
rios dias de trabalho. Há ainda processos que se encontram em trâmite
nos cartórios, outros que se encontram “temporariamente” extraviados.11
Tais situações nos forçavam a procurar pelas centenas de escaninhos ou
aguardar por alguns dias, até que os funcionários os encontrassem em
outro local.12 Desse modo, logo percebemos que, mais do que um simples
arquivo, nosso trabalho se desenvolvia a partir de uma rede de relações
estabelecidas durante o próprio levantamento do material a ser analisado.
Tal rede, na prática, determinava o nosso acesso ao material documental,
facilitando-o ou não, mas também nos introduzia nos “comentários” car-

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toriais sobre os processos, o que se mostrou uma fonte importantíssima


para os objetivos do nosso projeto.
Constatadas essas condições inerentes ao estudo e às trocas de informa-
ções e avaliações que circulavam nos cartórios, passamos a considerar que,
efetivamente, estávamos diante de um campo etnográfico e passamos a
tratá-lo como tal. Assim, definimos que, paralelamente ao formulário de
coleta de informações (que foi sendo desenvolvido ao longo da pesquisa),
seria necessária a adoção de um diário de campo. Desse modo, o estudo
do fluxo de processamento dos homicídios através dos processos penais
passou a ser considerado um trabalho de caráter etnográfico, envolvendo
as técnicas do diário de campo, para além do registro de dados quantifi-
cáveis do formulário de coleta. Consideramos que a pesquisa documental
pode e deve ser considerada a partir da noção de campo. Assim como a
observação e o registro etnográfico típico, as entrevistas, a utilização de
documentos, jornais, revistas, são fontes fundamentais para a pesquisa
antropológica. Nesse sentido, concordamos com E. Guimbelli (1998),
pois quando se está diante de um objeto contemporâneo, a análise de
fontes documentais pode ser indicada e representa um campo de pesquisa
no sentido antropológico.
Procurando resgatar concretamente como se deu o processo da nossa
pesquisa sobre fluxo de justiça, devemos destacar que durante o traba-
lho de campo foram utilizadas diversas ferramentas metodológicas que
viabilizaram a pesquisa. Em primeiro lugar, tivemos o desenvolvimento
do formulário padronizado, elaborado com o intuito de facilitar, homo-
geneizar e direcionar o trabalho de coleta de dados entre os membros da
equipe.13 O formulário foi sendo aperfeiçoado no decorrer do trabalho,
a partir das necessidades encontradas em campo, a fim de dinamizar e
captar o máximo possível de informações que estavam disponíveis nos
processos judiciais. O último modelo de formulário trabalhado conti-

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nha indicativos que focalizavam o crime de homicídio em todas as fases


processuais, descrevendo minuciosamente as diversas etapas judiciais e
as informações relativas a cada processo (cf. Anexo). Outro instrumento
fundamental para a pesquisa e complementar à leitura e ao fichamento
minucioso dos processos, foi o diário de campo que nos possibilitou fa-
zer uma coleta de outros dados processuais, como também perceber o
cotidiano dos cartórios das Varas Criminais ou dos gabinetes dos juízes.14
Com o auxílio do diário, houve a possibilidade de captar informações
fundamentais para compreender os processos, seu fluxo e as “causas” dos
crimes. Foi possível assim conhecer mais sobre os advogados que atuam
nos processos penais, quais realizam Tribunal do Júri, bem como registrar
outros documentos que eram agregados ao longo do processo, como car-
tas escritas pelos acusados ou mães, diários, notícias de jornal e até mesmo
cópias de outros processos que estavam relacionados. Informações estas
que não estavam no formulário e cuja riqueza seria perdida se nos cen-
trássemos de modo restrito no tempo de cada etapa de processamento.
Portanto, uma parte dos dados da pesquisa provém da leitura, digamos,
etnográfica de processos judiciais sobre os homicídios dolosos, que foi
uma ferramenta fundamental para a análise do fluxo de Justiça Criminal.
Nesse sentido, entendemos que o fluxo de justiça não se limita a um
mero levantamento de entradas e saídas do sistema, o que representaria
uma leitura linear do fluxo de justiça, seja em termos de “eficiência” ou
“morosidade”, e tampouco a um estudo dos “perfis sociais” das vítimas
e acusados. Na nossa perspectiva, importa é enfatizar as operações con-
cretas realizadas pelos operadores do sistema e suas consequências em
termos de tratamento diferenciado na justiça para o estudo do fluxo. Tal
perspectiva segue os princípios sistematizados por Mariza Corrêa (1983)
no que se refere à análise de processos penais, que fundamentalmente
implicam considerar os processos não como narrativas lineares de even-

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tos, mas como a fábula apresentada aos julgadores, ou seja, ter sempre
presente que:

“(...) os atores jurídicos trabalhando cada um de acordo com os objetivos


pretendidos, com a decisão esperada desses julgadores, vão deixando um
rastro dos elementos usados em sua construção, que devem se adequar
ao molde legal e social do seu contexto de ação, sugerindo certa coerên-
cia entre as normas escritas e as normas aceitas pelos componentes do
grupo construtor e julgador.” (CORRÊA, 1983, p. 33)

Entendemos que os “rastros” a que se refere M. Corrêa na citação aci-


ma podem ser mais bem capturados fazendo-se apelo a uma dimensão,
digamos, microscópica e contextual dos processos, o que nos levou a ado-
tar o diário de campo na nossa pesquisa. Este último possibilitou registrar
as peculiaridades das histórias de vidas relatadas e que foram encontradas
dentro dos processos, e fazer menção às diferenças entre os sujeitos e entre
os casos encontrados, o que revelou aspectos importantes, muitas vezes
não evidenciados no estudo geral do fluxo da justiça.15

Considerações finais

A exposição das estratégias metodológicas que desenvolvemos no es-


tudo do fluxo de Justiça Criminal estaria incompleta sem uma referência
aos principais aspectos identificados na nossa análise. Em primeiro lugar,
a complexificação da própria noção de fluxo de Justiça Criminal. De fato,
na abordagem utilizada, ele deixa de ser relativo à unidade de processo e à
somatória de casos, e passa a ser lido numa chave etnográfica que relacio-
na processos, acusados, acontecimentos e discursos registrados e não re-
gistrados em cada um dos processos analisados isoladamente. Sem poder-

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mos avançar aqui na apresentação de casos concretos como gostaríamos


de fazer, e que pretendemos fazer em publicação específica, retomamos
nestas considerações finais os principais aspectos que no nosso entendi-
mento validam a nossa estratégia de pesquisa. Logo, entendemos que a
proposta apresentada mostra rendimento analítico e coloca a necessidade
de complexificarmos os estudos sobre fluxo de Justiça Criminal. Porém,
é nos resultados concretos da pesquisa que fica mais claro o rendimento
analítico da nossa estratégia. De fato, como observamos em trabalho an-
terior (Rifiotis & Ventura, 2007a), a pesquisa etnográfica nos permitiu
identificar estratégias de defesa com impacto determinante no fluxo de
Justiça Criminal, como, por exemplo:

• na maioria dos processos estudados, os acusados tinham advogado


dativo, mas até o momento da pronúncia, passando em alguns casos
a ter advogado constituído a partir de então, mesmo quando os in-
dicadores socioeconômicos encontrados ao longo do processo (e que
variam dependendo da fase processual) pudessem colocar em dúvida a
capacidade financeira do acusado para o pagamento do advogado. Tal
procedimento mudava o curso do processo.16
• o processamento das provas e a investigação policial são problemáticos
no que se refere à produção de provas e, portanto, à “materialidade do
crime”. Nos autos encontramos referências recorrentes à dificuldade de
produção das provas, geralmente justificada e acompanhada de pedido
de novo prazo, o que contribui decisivamente para o processamento.
Tais problemas referem-se basicamente à falta de pessoal para realizar
os laudos e as perícias, porém havia também menção a aspectos orga-
nizacionais, como atrasos por falta de escrivão ou uma simples demora
de entrega dos laudos.
• a ameaça ou intimidação de testemunhas, a chamada “lei do silêncio”.

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Encontramos muitos depoimentos


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de testemunhas denunciando amea-
ças durante o andamento do processo. Em alguns casos, as testemunhas
solicitavam proteção policial e, concretamente, encontramos casos em
que testemunhas de processos foram vítimas de homicídio,17 como num
caso em que três jovens foram mortos e dois conseguiram fugir de uma
“emboscada” que a polícia associou a “tráfico de drogas”. Um deles ficou
paraplégico e o outro sobrevivente foi assassinado pouco tempo depois,
naquele mesmo ano, em outra cidade. Chamado para depor em juízo,
o rapaz que ficou paraplégico nunca era localizado, mudando constan-
temente de endereço pelo que se depreende da leitura do processo. É
possível observar nos processos como a ameaça a testemunhas, fato fora
dos autos, altera radicalmente o rumo do processo.
• o cruzamento de processos permite identificar e analisar a existência de
redes de relações entre casos. Com efeito, encontramos processos em
que casos de homicídios e personagens dos processos se cruzam, pois
são testemunhas em um processo e em outro se tornam vítimas. Além
disso, identificamos na pesquisa que o mesmo possível vitimador era
acusado em outros dois homicídios que aconteceram posteriormente
em consequência de um primeiro homicídio, ou seja, o acusado teria
assassinado uma primeira vítima e posteriormente outras duas por –
aparentemente – denunciarem sua participação nos crimes. Esse caso
mostra a dimensão da ameaça às testemunhas, que somada à falta de
provas materiais, é decisiva no processamento. Em resumo, o cruza-
mento dos processos que a metodologia que utilizamos permite mostra
também a disjunção das decisões no Sistema de Justiça Criminal (Co-
elho, 1986; Vargas & Ribeiro, 2000; Kant, 2008).
• o estabelecimento de uma hierarquia moral entre os sujeitos acusados
e vítimas é também determinante no fluxo de justiça. Como o foi uma
série de homicídios iniciados com uma chacina – relativa ao mesmo caso

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citado acima – que se desdobra no assassinato por vingança a um parente


de um dos suspeitos do crime, e em seguida ao seu primo que denunciou
ameaça contra a sua vida, que acabou com o seu assassinato, e a luta de
sua mãe por “justiça” que culminou no assassinato desta também. Assim
sendo, trata-se de três homicídios que atingiram três pessoas de uma
mesma família em 2002, 2003 e 2004. A primeira vítima, tida como
envolvida com tráfico de drogas, teria sido morta num “acerto de con-
tas” entre grupos de tráfico rivais em 2002, e o seu caso ainda não havia
sido encerrado em 2006. Fato que se explica pelo envolvimento de seu
primo e a mãe dele, ambos mortos após terem sido ameaçados para não
testemunharem contra aqueles que realizaram o primeiro assassinato.
Na investigação deste segundo homicídio, relata-se que a vítima havia
registrado anteriormente uma queixa de ameaça de morte. Em 2004,
foi assassinada a mãe do jovem morto em 2003. Com o assassinato da
mãe em 2004, o caso ganhou grande repercussão na imprensa, como
mostrou o cruzamento de fontes do projeto com os dados da pesquisa
de homicídios na mídia. O processo do assassinato daquela senhora foi
rapidamente a julgamento, inclusive em condições especiais de oitiva de
testemunhas. As testemunhas deste último processo receberam amparo
legal, tendo seus nomes protegidos, com testemunho dado a portas fe-
chadas e com as testemunhas encapuzadas. O tempo de processamento
foi relacionado nesses processos com a hierarquização social das vítimas
(Rifiotis & Ventura, 2007b).

No que tange a esta questão da hierarquização moral das vítimas,


identificamos em nossa análise que a mídia está presente como par-
te de estratégias discursivas dos operadores do direito. Encontram-se
recortes de jornais anexados especialmente pelos promotores para de-
monstrar que o caso tinha “repercussão na imprensa”. Porém, o que

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mais chamou a nossa atenção foi o fato de que em alguns casos, em


que houve uma “repercussão na mídia”, e manifestações populares, os
processos sofreram um fluxo diferenciado dos demais. Tipicamente,
foi o caso de um estupro seguido de morte de uma menina de 10
anos que mobilizou a “opinião pública” e teve presença constante nos
jornais de Santa Catarina. A morte trágica desta menina foi veiculada
por todos meios de comunicação e havia cobrança para que a polícia
e a Justiça resolvessem o caso. Assim, mesmo depois de ter transcor-
rido muito tempo do acontecido e apesar das grandes dificuldades da
investigação, o caso não foi dado por encerrado. O inquérito deste
processo permaneceu na delegacia por mais de três anos, exatamente
1227 dias, até que foi identificado um acusado. Neste processo tive-
mos uma longa, detalhada e minuciosa investigação policial, o que
não é comum mesmo nos casos de homicídio. Portanto, o apelo so-
cial, a “comoção pública” que exigia a solução do caso, anualmente
relatado nos jornais, tem papel importante para o curso dos processos.
Este também é um dos fatores que pode ser considerado relevante
para a resolução dos casos, pois pudemos observar que há homicídios
e homicídios.
O fluxo de justiça pode ser considerado uma descrição da trajetória
de personagens nas diversas etapas do processamento criminal. Ele per-
mite visualizar as rupturas, quebras e afunilamentos do sistema, como
também um cruzamento dos dados processuais, proporcionando uma
análise do movimento da criminalidade e das respostas institucionais
aos crimes e aos agentes diretamente envolvidos, ou ainda, cruzar infor-
mações dos processos, o que proporciona uma radiografia da atuação da
Justiça (Sergio de Lima, 2000). Nas suas várias abordagens, tais estudos
representam contribuições importantes para o conhecimento crítico do
Sistema Judiciário. Nosso esforço aqui se resumiu a apresentar uma tra-

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jetória de pesquisa que revelou aspectos importantes para a pesquisa na-


quele campo. Concretamente, com este trabalho, foi possível descrever
o fluxo de Justiça Criminal na Região Metropolitana de Florianópolis,
avaliando as principais características, as etapas do processo judicial, a
continuidade entre elas e suas implicações no acesso diferencial à justi-
ça, que inscreve o que é mais fundamental, que é o acesso às garantias,
à cidadania e à democracia.
Portanto, é possível concluir, pelo que apresentamos aqui, que os
elementos de seletividade das práticas do sistema de Justiça Criminal,
descritos a partir da nossa abordagem, foram decisivos na determina-
ção do fluxo de justiça para o crime de homicídio doloso, definindo
um acesso diferencial à justiça. Para finalizar, podemos afirmar que
se����������������������������������������������������������������
guindo a máxima de que cada caso é um caso, a abordagem etnográ-
fica revelou-se extremamente importante para o estudo dos processos
penais, nos auxiliando a ampliar a própria noção de fluxo de Justiça
Criminal, e, no limite, que, ao contrário da conhecida máxima, os
casos não se limitam aos autos.

Notas

1 Theophilos Rifiotis (rifiotis@cfh.ufsc.br) – Prof. Dr. do Departamento de Antropologia /


UFSC e coordenador do LEVIS (Laboratório de Estudos das Violências)/UFSC; Andresa
Burigo Ventura (andresaventura@gmail.com) – Pesquisadora do LEVIS/UFSC, Bacharel em
Ciências Sociais / UFSC, Servidora da Pref. Munic. de Florianópolis; e Gabriela Ribeiro
Cardoso (grcgabi@gmail.com) – Pesquisadora do LEVIS/UFSC, Mestranda em Sociologia
Política / UFSC.
2 Para fins da pesquisa, consideram-se como Região Metropolitana de Florianópolis os muni-
cípios de Florianópolis, São José, Palhoça e Biguaçu.
3 Agradecemos ao CNPq pelo financiamento do próprio projeto e pela concessão de bolsa de
iniciação científica que possibilitaram a realização da pesquisa.

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4 No período de 2000 a 2003, ocorreram 452 homicídios. De um total de 290 processos
localizados no site do tribunal de justiça, na pesquisa trabalhamos com um universo de 183
processos judiciais. Neles havia 196 vítimas e 263 acusados. Em Florianópolis foram analisa-
dos 140 processos, na cidade de São José foram 26 processos, em Biguaçu trabalhamos com
10 e na cidade de Palhoça analisamos 7 processos. Entre os processos localizados e analisados
que estavam no Arquivo do Tribunal de Justiça, 48 deles permaneceram sem solução (26%),
ou seja, foram arquivados logo depois da finalização do inquérito.
5 Trata-se de um período significativo de crescimento da taxa de homicídios conforme apon-
tam as séries históricas que estamos analisando a partir de dados coletados no Instituto Geral
de Perícias (IGP) de Florianópolis (SC) e que serão objeto de publicação específica.
6 Para além de apresentações em congressos, nos referimos concretamente às dissertações de
mestrado de Tiago Hyra (2006), Aírton Ruschel (2007) e Danielli Vieira (2008) no Programa
de Pós-graduação em Antropologia Social/UFSC, e aos trabalhos de conclusão de curso de
graduação em Ciências Sociais da UFSC de Andresa Burigo Ventura (2007) e Emília Juliana
Ferreira (2008); além do Relatório Técnico para o CNPq relativo ao Projeto “Fluxo de Justiça
Criminal nos Casos de Homicídio Doloso na Região Metropolitana de Florianópolis de 2000
a 2004” (Rifiotis & Ventura, 2007).
7 Nesta escassez de informações, cabe menção ao trabalho da SEADE (www.seade.gov.br), que
disponibiliza informações sobre o tempo de duração de Processos Penais de homicídio de São
Paulo. O mesmo pode-se dizer do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESEC) da
Universidade Cândido Mendes, que, juntamente com o IPEA (Instituto de Pesquisa Econô-
mica Aplicada do Ministério do Planejamento), publicou uma interessante discussão metodo-
lógica sobre o estudo da Justiça Criminal (2000).
8 Uma discussão detalhada pode ser consultada no relatório final da pesquisa (Rifiotis & Ven-
tura, 2007).
9 Os processos podem ser consultados de forma on-line (www.tj.sc.gov.br) por diversas entra-
das: número, nome das partes, nome dos advogados que estão acompanhando o caso etc.
10 Alguns processos foram encontrados no site do Tribunal de Justiça, mas não foram localizados
nos cartórios, por diversos motivos: estavam em posse dos advogados, voltaram para as Dele-
gacias, estavam em outras Varas, com o Ministério Público etc.
11 Devido ao grande volume físico de processos nos cartórios que visitamos, as pilhas de docu-
mentos ficavam até mesmo pelo chão, com escaninhos improvisados entre as pernas dos fun-

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cionários. Percebemos que, devido a essa falta de infraestrutura, até mesmo os cartorários
tinham uma grande dificuldade em localizar e manusear os processos penais.
12 O acompanhamento ou a localização física desses documentos é controlada por um sistema
de protocolo informatizado que identifica o último estágio ou procedimento. Porém, quando
alguém por descuido colocava o processo no escaninho errado, desestruturava toda aquela
organização (um dos cartórios visitados possuía por volta de 500 escaninhos; em cada um
deles, 40 a 50 processos, mais ou menos), levando os operadores a procurar várias horas pelo
documento.
13 Participaram da fase de coleta de dados as seguintes pesquisadoras do LEVIS/IPESP: Andresa
Burigo Ventura, Emilia Juliana Ferreira, Rosa Maria Dorneles e Gabriela Ribeiro Cardoso.
14 Esta observação também possibilitou perceber as diferentes dinâmicas de funcionamento das
Varas Criminais e de que forma isso pode se relacionar com o tratamento dado aos proces-
sos. Assim, em uma das comarcas estudadas, os processos chamavam atenção pelo volume
superior ao encontrado em outros locais. Ao realizar a coleta dentro do cartório, verificamos
que os processos chegavam ao início do dia, empilhados em um carrinho de supermercado.
Esse fato inusitado contribuía para uma intensa rotina de trabalho que estava centralizada na
figura de um jovem juiz que muitas vezes trabalhava além do seu expediente.
15 Em certa medida, entendemos que os diários de campo contribuem para o conhecimento
etnográfico das instituições judiciárias. Evidentemente, nosso foco eram os processos penais,
mas as observações em campo dos modos de arquivamento, da circulação dos processos,
as falas dos operadores locais em muito contribuíram para o estudo do fluxo de justiça.
Num plano mais amplo, situamos este trabalho como um relato etnográfico, lembrando que
estamos plenamente de acordo com R. Kant de Lima quando ele se refere ao potencial da
etnografia em dar visibilidade aos mecanismos que atuam na formação das decisões ao trazer
as circunstâncias e agentes que são admitidos no processo (Kant de Lima, 2008, 31).
16 No acompanhamento do processo é possível perceber que os advogados dativos são substitu-
ídos quando se coloca um pedido de relaxamento de prisão ou quanto ao cumprimento dos
prazos legais.
17 Essas informações estavam em depoimentos na fase de inquérito ou na fase judicial. Em
alguns casos as testemunhas residiam na mesma localidade e conheciam o acusado, o que
facilitava as ameaças.

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Theophilos Rifiotis; Andresa B. Ventura & Gabriela R. Cardoso. Reflexões...

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Theophilos Rifiotis; Andresa B. Ventura & Gabriela R. Cardoso. Reflexões...

Anexo
Formulário do Projeto “Fluxo da Justiça Criminal em casos
de homicídio na Região Metropolitana de Florianópolis (2000-2004)”

Ficha______________ Pesquisadora________________________________________
Data da coleta: ____/____/____ Local da coleta: ______________________________
Município: ________________________________________ Ano: _______________

INQUÉRITO POLICIAL

Número: ________ Delegacia: _____________________ Data: ____/____/____


Delegado (a): __________________________________________________________
Prisão em flagrante: sim ( ) não ( )
Data do BO ou PF:__/__/__Hora BO ou PF:___:___ Data do crime:__/__/__ Hora:_:_
Tipo local crime: _______________________ Bairro: __________________________
Logradouro: ___________________________________________________________
Data do óbito: ____/____/____ Hora: _____:____ Tipo local: ____________________
Instrumento: ___________________________________________________________

Laudos e perícias
( ) L. Cadavérico ( ) Dos. alcoólica ( ) Perícia toxicológica ( ) Exame do local
( ) Balística ( ) Identificação de projétil ( ) Conjunção carnal ( ) Pesquisa de chumbo ( ) Lesão
corporal ( ) Outros ________________________________

Provas materiais ( ) Arma do crime ( ) Roupas sujas ( ) Outros_______________

Provas testemunhais
Acusação Defesa
(N° de testemunhas) (N° de testemunhas)
Viu

Ouviu

Ouviu comentários

Agentes da prisão em flagrante

Outros

Pedido de prorrogação: sim ( ) não ( ) Quantos ( )


Motivo _______________________________________________________________

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O que foi feito _________________________________________________________

Relatório final: __/__/__ Delegado (a): ______________________________________


Troca de Delegado: sim ( ) não ( ) Quantas: __________________________
Ministério Público: aceita ( ) Data: ____/____/____ Recusa ( ) O que é pedi-
do__________ O que é feito pela autoridade policial: ________________

Antecedentes criminais
Vítima - sim ( ) não ( ) Obs: ______________________________
Acusado(s) - sim ( ) não ( ) Obs: _______________________________

Data do of. da denúncia: ____/____/____ Nº de testemunhas arroladas: ___________


Capitulação: ___________________________________________________________
Promotor: _____________________________________________________________

PROCESSO PENAL

Número: ___________________ Comarca: __________________ Vara: ___________


Juiz aceita a denúncia: sim ( ) não ( ) Data receb. da denúncia __/__/__
Juiz: _________________________________________________________________
Muda a capitulação do Ministério Público sim ( ) não ( )
Data da audiência de interrogatório:__/__/__ Defesa prévia: __/__/__
Nº testemunhas de defesa arroladas: ___
Data da audiência das testemunhas de denúncia:__/__/__ Quantas são ouvidas ( )
Faltantes: ( ) Motivo: __________________________________________________

Data da audiência das testemunhas de defesa: ____/____/____


Quantas são ouvidas ( ) Faltantes: ( )
Motivo: _______________________________________________________________

Acusação Defesa
(N° de testemunhas) (N° de testemunhas)
Viu

Ouviu

Ouviu comentários

Agentes da prisão em flagrante

Outros

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Theophilos Rifiotis; Andresa B. Ventura & Gabriela R. Cardoso. Reflexões...

Laudos e perícias: sim ( ) não ( ) Quem pede: ___________________________


Quais:____________________________________________________
Provas materiais: sim ( ) não ( ) Quem pede: ______________________
Quais:______________________________________________________
Carta precatória: Data de envio: ____/____/____ Data de retorno: ____/____/____
Para onde: ____________________________________________________________
Para quê: __________________________ Resultado: _________________________

Alegações finais: Ministério Público: ____/____/____ Defesa: ____/____/____


Data da pronúncia: ____/____/____ Juiz: ____________________________________
Impronúncia: qual motivo: ________________________________________________

Libelo crime acusatório: ____/____/____ Contrariedade do Libelo: ____/____/____


Tipo de Julgamento: ______________________ Data do julgamento: ____/____/____
Juiz: ___________________________ Promotor: ____________________________

Recurso: sim ( ) não ( ) Quem pede: ____________________________


Data do recurso: ____/____/______ Fase: _________________________________
O que é pedido: ________________________________________________________

Sentença do recurso: ___________________________________ Data: __/__/__


Preso durante o processo: sim ( ) não ( ) Fase: ________________________
Motivo: _______________________________________________________________

Julgamento (por acusado):

Quesitos: ______________ Sentença/ capitulação: ___________________________


Pena:________________________ Regime: ________________________________
Modificou capitulação: sim ( ) não ( ) Qual:________________________________

Troca de Promotor: sim ( ) não ( ) Quantas: __________________________


Troca de Juiz: sim ( ) não ( ) Quantas: ______________________________
Troca de advogados: sim ( ) não ( ) Motivo:_________________________________
Ameaças a testemunhas: sim ( ) não ( ) Quem fez: ______________________
Quais:_______________________________________________________________

Motivo do crime: _______________________________________________________


_____________________________________________________________________

Relação acusado/vítima: sim ( ) não ( ) Tipo: _______________________________

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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.

Relação com drogas: sim ( ) não ( ) Qual: __________________________________


Última movimentação: __/__/__ Qual: ______________________________________
Arquivamento do Processo: __/__/__ Motivo:_________________________________

Tempo de duração do processo

BO/INQ: ________ BO/REL: ________ INQ/DEN: ________ DEN/REC: _______

REC/PRO: ________ PRO/JUL: _______ CRI/JUL: _______ CRI/ARQ: _______


___Vítima ___Acusado
Nome: _________________________________________ Idade: ______ Sexo: _____
Estado civil: ______________________ Escolaridade:__________________________
Profissão:____________________________ Pertença étnica:____________________
Naturalidade: _____________________ Naturalidade dos pais: __________________
Residência cidade: _________________________ Bairro: ______________________
Antecedentes criminais: _________________________________________________
Advogado: ____________________________________________Dativo: __________
Outros: _______________________________________________________________

___ Vítima ___Acusado


Nome: _________________________________________ Idade: ______ Sexo: _____
Estado civil: ______________________ Escolaridade:__________________________
Profissão:____________________________ Pertença étnica:____________________
Naturalidade: _____________________ Naturalidade dos pais: __________________
Residência cidade: _________________________ Bairro: ______________________
Antecedentes criminais: _________________________________________________
Advogado: ____________________________________________Dativo: __________
Outros: _______________________________________________________________

___ Vítima ___Acusado


Nome: _________________________________________ Idade: ______ Sexo: _____
Estado civil: ______________________ Escolaridade:__________________________
Profissão:____________________________ Pertença étnica:____________________
Naturalidade: _____________________ Naturalidade dos pais: __________________
Residência cidade: _________________________ Bairro: ______________________
Antecedentes criminais: _________________________________________________
Advogado: ____________________________________________Dativo: __________
Outros: _______________________________________________________________

___ Vítima ___Acusado

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Theophilos Rifiotis; Andresa B. Ventura & Gabriela R. Cardoso. Reflexões...

Nome: _________________________________________ Idade: ______ Sexo: _____


Estado civil: ______________________ Escolaridade:__________________________
Profissão:____________________________ Pertença étnica:____________________
Naturalidade: _____________________ Naturalidade dos pais: __________________
Residência cidade: _________________________ Bairro: ______________________
Antecedentes criminais: _________________________________________________
Advogado: ___________________________________________Dativo: __________
Outros: _______________________________________________________________

ABSTRACT: This paper discusses the methodology used in the study of the flow
of Criminal Justice in cases of homicide, based on the survey of literature and
critical review of the methodology employed in research conducted on criminal
homicide trial in the metropolitan region of Florianópolis (SC) between 2000
and 2004.

KEYWORDS: Flow of Justice, Homicide, Methodology.

Recebido em setembro de 2010. Aceito em outubro de 2010.

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Povos indígenas e cidadania: inscrições
constitucionais como marcadores sociais da
diferença na América Latina

Jane Felipe Beltrão1


Assis da Costa Oliveira2

Universidade Federal do Pará

RESUMO: Argentina, Brasil, Bolívia, Paraguai e Uruguai modificaram suas nor-


mas nacionais ao ratificarem tratados internacionais, pressionados pelo crescente
protagonismo indígena na América Latina, desde os anos 1970 do século pas-
sado. Contudo, nem sempre a noção de cidadania adotada incluiu o reconheci-
mento do direito à diferença como legítima garantia de igualdade de condições
pela equivalência, dificultando a constituição de novos campos sociais e políticos
que permitam aos povos indígenas ser cidadão pleno sem deixar de ser quem são. As
inscrições constitucionais ainda são pautadas pelo formalismo que parece produ-
zir mais um dos muitos marcadores sociais da diferença, sem considerar a prática
plural, embora assegure direitos à pluralidade. Entretanto, o efeito da Constitui-
ção da Bolívia, deixa explícita não apenas a possibilidade do pluralismo jurídico,
mas aponta a existência de reais condições para a construção de um Estado plural
que contemple os marcadores sociais a sério.

PALAVRAS-CHAVE: cidadania(s), marcadores sociais, direitos étnicos, direitos


constitucionais.

Cidadania indígena: espaço de ins/constituição de marcadores sociais

Nas últimas décadas, Argentina, Brasil, Bolívia, Paraguai e Uruguai mo-

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Jane Felipe Beltrão & Assis da Costa Oliveira. Povos indígenas e cidadania:...

dificaram as normas nacionais para inclusão de instrumentos jurídicos in-


ternacionais de reconhecimento à diversidade cultural, pressionados que
foram pelo protagonismo indígena que vem crescendo no continente,
desde os anos 1970 do século passado. 3
A luta pela ins/constituição cidadã dos povos indígenas implica na
inscrição de marcadores sociais da diferença como conceitos jurídicos
impressos na legislação, sobretudo no plano constitucional, que revelam
maneiras de se apresentar e representar o discurso sobre a diversidade cul-
tural, definindo as condições de possibilidade para utilização dos direitos
para a emancipação ou violação às coletividades indígenas.
Isto porque, nem sempre a noção de cidadania adotada inclui o reconheci-
mento do direito de diferenciação legítimo que garanta a igualdade de condi-
ções constituinte de novos campos sociais e políticos que permitam aos povos
indígenas ser cidadão pleno sem deixar de ser membro igualmente pleno de
suas respectivas sociedades. A situação é particularmente difícil quanto mais
nos aproximamos do limite das fronteiras nacionais que se tornam imperti-
nentes e comprometem a livre autonomia dos povos indígenas.
A cidadania, enquanto conjunto de direitos legitimados por determinada
comunidade política, quando compreendida pelos valores liberais do nacio-
nalismo – de direitos e deveres comuns a determinados indivíduos que par-
tilham (supostamente) os mesmos símbolos e valores nacionais – e soberania
estatal – de apropriação do tempo e do território aos ditames do poder central
do Estado, fruto da reivindicação da soberania como instrumento de unifica-
ção do tempo-espaço e controle sobre os distintos grupos sociais – encontra
limitações que não favorecem aos povos indígenas e que terminam, por vezes,
produzindo a emergência de conflitos entre indígenas e não-indígenas em face
de interpretações que comprometem os direitos coletivos dos povos indígenas.
Entretanto, a recém aprovada constituição boliviana, em contrapon-
to com as constituições argentina, brasileira, paraguaia e uruguaia, deixa

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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.

explícita não apenas a possibilidade do pluralismo jurídico, mas indica


como tornar possível a existência de fato de um estado plural, onde a ins-
crição dos marcadores sociais da cidadania seja estruturada pela efetiva in-
clusão de vozes que jamais foram ouvidas, não como dissonantes, mas tão
importantes quanto àquelas que sempre estiveram presente, o que acaba
por garantir a revitalização da própria noção de cidadania, ou melhor, das
cidadanias que possam coexistir num mesmo espaço político-territorial.
O trabalho se propõe a analisar a noção de cidadania presente nas
cartas nacionais dos cinco estados latino-americanos verificando os espa-
ços de sintonia e de conflito com a livre determinação tão necessária nos
limites à fronteira, pois os territórios indígenas tradicionalmente desco-
nhecem as linhas geopolíticas deste ou daquele estado nacional.

Constitucionalismo multicultural latino-americano e cidadania dupla

Em pouco mais de dez anos, a América Latina viu surgir no cenário


político-institucional dos estados nacionais a inclusão de reivindicações
dos povos indígenas em normas constitucionais, cerne do movimento de
constitucionalismo multicultural. (Gregor Barié, 2003)
Desde a segunda metade da década de 80 do século passado, (1) a con-
juntura proporcionada pelos processos de redemocratização dos países
em contextos de ditadura militar ou guerra civil, (2) a ampliação da par-
ticipação política e (3) o recrudescimento das condições socioeconômicas
ante o advento do pacto neoliberal, possibilitaram o desenvolvimento
de sujeitos sociais como fonte de legitimação do locus sociopolítico e da
constituição emergente de direitos às identidades coletivas por meio de
ações estratégicas que encontraram no espaço público estatal e, mais es-
pecificamente, nas normas constitucionais, palco privilegiado para reco-
nhecimento de novos aportes à cidadania e reinvenção da cultura política.

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Jane Felipe Beltrão & Assis da Costa Oliveira. Povos indígenas e cidadania:...

Com os povos indígenas não foi diferente. O avanço organizacional via


formação dos movimentos e organizações indígenas, bem como a instrumen-
talização de tratados internacionais de direitos humanos – Convenção 169/
OIT (1989) e Declaração das Nações Unidas sobre Povos Indígenas (2007), em
especial – pressionaram o silêncio colonialista de algumas constituições lati-
no-americanas frente à histórica exclusão do direito à diferença sob égide do
discurso de afirmação do pluralismo jurídico, autonomia e sustentabilidade,
centrados no direito ao exercício diferenciado dos direitos que encontrou na
ideia de “cidadania multicultural” (Santos, 2003; Yrigoyen Fajado, 2009) o
espaço de luta pela articulação e potencialização mútua do reconhecimento
e da redistribuição; da crítica ao caráter etnocêntrico da cidadania liberal e
soberania política estatal; da superação formal do princípio da tutela pela ins-
trumentalização local, nacional e internacional da categoria “indígena” como
identidade política simbólica que articula, visibiliza e acentua as identidades
étnicas de fato (Luciano, 2006) e o pan-indigenismo.
Assim, uma nova forma de entender e operacionalizar os direitos dos po-
vos indígenas emerge com a promulgação da constituição guatemalteca, em
1986, considerada a primeira constituição multicultural latino-americana. 4
Desde então, 16 dos 20 estados nacionais latino-americanos revisaram
ou promulgaram constituições com base no imperativo do nacionalismo
multiculturalista.5 Por óbvio, a amplitude de normatização dos direitos in-
dígenas varia conforme o contexto, relacionado não somente a participação
de lideranças, movimentos e organizações indígenas nas assembleias consti-
tuintes, mas também a composição ideológica dos legisladores nacionais e
mediação das pressões de empresas (nacionais e multinacionais), sociedades
civis, agências de cooperação (ONG’s, igrejas, universidades) e organizações
internacionais e regionais (como as Nações Unidas e o Banco Mundial).
Para os objetivos do trabalho, nos deteremos na análise da constitu-
cionalização dos direitos coletivos dos povos indígenas em quatro países

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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.

latino-americanos (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) a fim de com-


preender os novos elementos da cidadania multicultural (Quadro1).

Quadro 1. Povos indígenas, direitos coletivos e constituições

Constituições Direitos coletivos dos povos indígenas

Preexistência étnica e cultural, respeito à identidade, educação bilíngue e


intercultural, personalidade jurídica, posse e propriedade comunitária de
ARGENTINA terras tradicionalmente ocupadas e participação na gestão dos recursos na-
turais (Art. 75, inc. 17). Promulgação de leis que protejam a identidade e
pluralidade cultural (Art. 75, inc. 19).

Educação em nível de ensino fundamental de caráter bilíngue e intercultu-


ral aos povos indígenas (Art. 210, §2º). Protege manifestações das culturas
indígenas (Art. 215, §1°). Reconhece aos povos indígenas a organização
social, costumes, línguas e direitos originários sobre terras que tradicional-
BRASIL
mente ocupam (Art. 231, caput). Direito a consulta aos povos indígenas
para autorização de aproveitamento de recursos hídricos, energéticos e mi-
nerais situados em seus territórios (Art. 231, §3º). Capacidade civil plena e
legitimidade ativa individual e coletiva para ingressar em juízo. (Art. 232).

Personalidade jurídica coletiva aos povos indígenas (arts. 38 e 63). Reco-


nhece preexistência histórica (Art. 62). Garante direito dos povos indígenas
a desenvolver suas identidades étnicas na livre determinação de seus siste-
mas de organização política, social, econômica, cultural e religiosa (Art.
PARAGUAI 63). Reconhece expressamente competência territorial da jurisdição indí-
gena (arts. 63 e 65). Declara propriedade comunitária dos povos indígenas
às terras (Art. 64). Determina educação bilíngue e intercultural (arts. 66 e
77). Autodefinição como país pluricultural e bilíngue (Art. 140). Língua
guarani como idioma oficial (Art. 140).

URUGUAI Não contém.

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Jane Felipe Beltrão & Assis da Costa Oliveira. Povos indígenas e cidadania:...

Para Raquel Yrigoyen Fajardo (2006), a incorporação das reivin-


dicações indígenas nas constituições nacionais latino-americanas via
discurso do multiculturalismo e ratificação de tratados internacionais
possibilitou: a) reconhecimento do caráter pluricultural do Estado e
da nação por meio da implementação do direito à identidade étnica e
cultural; b) reconhecimento da igual dignidade das culturas, rompen-
do com a superioridade institucional da cultura ocidental; c) afirma-
ção dos povos indígenas como sujeitos políticos com direito à auto-
nomia e autodeterminação do controle de suas instituições políticas,
culturais, sociais e econômicas; d) reconhecimento de diversas formas
de participação, consultas e representação direta dos povos indígenas;
e) reconhecimento do Direito (consuetudinário) indígena e jurisdição
especial.
A cidadania plena dos povos indígenas estaria, em tese, efetivada pela
reunião de garantias constitucionais de proteção e promoção da diversi-
dade cultural, autonomia política e pluralismo jurídico.
No entanto, o potencial emancipatório da cidadania é limitado
(Quadro 2) ou, por vezes, desconsiderado, diante de dilemas jurídi-
cos, políticos, econômicos e sociais que sinalizam o fato das relações
coloniais internas de cada país situarem-se menos pelo contexto do
pós-colonialismo – no qual as constituições seriam bandeiras de luta
e vanguardas retóricas – do que pela emergência do neocolonialismo,
no sentido de transfiguração de velhos embates.

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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.

Quadro 2. Das limitações dos direitos coletivos indígenas

Constituições Limitações aos direitos coletivos dos povos indígenas


Governo federal sustenta o culto católico apostólico romano (Art. 2º) e
fomenta a imigração europeia (Art. 25). Todo cidadão argentino está obri-
ARGENTINA gado a armar-se em defesa da Pátria e da Constituição (Art. 21). Delega
ao Congresso Nacional o reconhecimento dos direitos coletivos dos povos
indígenas (Art. 75, caput).

Língua portuguesa como idioma oficial (Art. 13). União legisla privati-
vamente sobre populações indígenas (Art. 22, XIV). Congresso Nacional
possui competência exclusiva para autorizar, em terras indígenas, a explo-
ração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de rique-
BRASIL
zas minerais (Art. 49, XVI). Aos juízes federais compete processar e julgar
disputas sobre direitos indígenas (Art. 109, XI). Função institucional do
Ministério Público de defender judicialmente os direitos e interesses das
populações indígenas (Art. 129, V).

Direito de aplicar livremente normas consuetudinárias para regulação da


convivência interna sempre que elas não atentem contra os direitos funda-
mentais estabelecidos na Constituição (Art. 63). Reconhece-se o protago-
PARAGUAI nismo da Igreja Católica na formação histórica e cultural da Nação (Art.
82). Em nenhum caso o interesse de particulares primará sobre o interesse
geral (Art. 128). Função institucional do Ministério Público de promover
ação penal pública para defesa dos direitos dos povos indígenas (Art. 268).

A soberania em toda sua plenitude existe radicalmente na Nação, a quem


compete direito exclusivo de estabelecer suas leis (Art. 4º). Todas as pessoas
são iguais perante a lei, não reconhecendo outra distinção entre elas senão
URUGUAI
de talentos ou virtudes (Art. 8º). Toda riqueza artística ou histórica do país,
seja quem for seu dono, constitui tesouro cultural da Nação e estará sobre
salvaguarda do Estado (Art. 34).

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Jane Felipe Beltrão & Assis da Costa Oliveira. Povos indígenas e cidadania:...

A medida de superioridade normativa das cartas constitucionais não faz


da vanguarda retórica ponto de relação unilateral com a sociedade. Mais do
que conformar a sociedade, as constituições são conformadas por elas. Os
textos normativos expressam os embates ideológicos que permeiam a con-
vivência em sociedades que se pensam democráticas e pós-coloniais.
Said (2007), ao analisar a construção europeia (Ocidental) da imagem
do Oriente pela formação discursiva do orientalismo, como sistema de
conhecimento sobre o Oriente, destinado a filtrá-lo na consciência oci-
dental, entende o orientalismo como instituição produzida e manejada
em continuidades significativas presentes tanto no imperialismo britânico
e francês quanto no (neo)imperialismo americano do pós-guerra.
Urge considerar o colonialismo como instituindo e orientando conti-
nuidades significativas para além de qualquer retórica de superação pós-
colonial. Ao mesmo tempo, não se pode desprezar o potencial transfor-
mador dos instrumentos jurídicos do multiculturalismo pós-coloniais
ligados à afirmação da cidadania dos povos indígenas, pois carregam força
normativa suficiente para introduzir novos aportes às relações sociais e
institucionais, apesar do caráter liberal.
O desafio, no entanto, é o de ver o invisível do poder como visibili-
dade encharcada em relações que encontram na linguagem jurídica das
constituições nacionais pontos de embates, permanências e mudanças
– em suma, de limites e possibilidades. Parafraseando Bhabha (1998),
o que se interroga não é simplesmente a imagem que as constituições
analisadas plasmam sobre os povos ou sobre os direitos coletivos indí-
genas, mas o lugar discursivo e disciplinar de onde as questões jurídicas
são estratégica e institucionalmente colocadas de modo a representar a
alteridade da “identidade nacional” e a partir do qual frutificam espaços
de confrontação e contradição das afirmações emancipatórias dos marca-
dores sociais da cidadania diferenciada frente ao colonialismo interno das

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sociedades latino-americanas (confrontação) e das próprias cartas consti-


tucionais (contradição).
Entende-se por “contradição” a ambiguidade e polifonia ideológica da
consagração normativo-constitucional da alteridade dos povos indígenas.
De forma geral, as constituições analisadas apresentam restrições ao reco-
nhecimento integral da diversidade cultural, seja porque condicionam o
controle de mandatos jurídicos a determinadas instituições públicas sem
possibilidade de participação de organizações e lideranças indígenas; ou
porque não igualam o status das culturas diferenciadas ao da cultura “na-
cional” (Marés, 2009), subsistindo outorga de direitos para manutenção
das culturas diferenciadas, mas não para confrontar a hegemonia cultural
do nacional nos diferentes espaços sociais; e, ainda, pelo emprego de con-
ceitos jurídicos – todos os sublinhados anteriormente (Quadro 2) – cuja
definição dos sentidos reclama tradução intercultural, pois as disputas de
significação implicam na delimitação da amplitude do direito à diferença.
É uma espécie de plural subtraído!
Por outro lado, a “confrontação” representa os efeitos da aplicabilidade
concreta – em decisões judiciais, políticas públicas e relações sociais – da
tensão sociocultural e ideológica da presença dos povos indígenas como
sujeitos coletivos diferenciados inseridos em sociedades democráticas e
pós-coloniais, nas quais a diversidade ainda é majoritariamente pensada
como desigualdade. Quanto à “confrontação”, a principal consequência
está na criminalização das práticas judiciais dos povos indígenas (Yri-
goyen Fajardo, 1999 e 2000), ou seja, o enfoque colonial e moderno da
exclusividade estatal da função jurisdicional penaliza (a) os procedimen-
tos das culturas jurídicas indígenas de administração de fatos definidos
como delituosos e passíveis de punições locais ou (b) a mera existência
de jurisdição indígena em qualquer âmbito jurídico por entender que as
autoridades indígenas usurpam as competências legais.6

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Em todo caso, o que está em jogo é a não superação concreta da hierar-


quização entre nacionalidade e etnicidade frente à permanência da noção
de cidadania liberal (limitada e etnocêntrica) assentada na vinculação ao
estado-nação graças à representação imaginária (Hall, 1998) de direitos,
deveres e valores comuns/compartilhados (democracia liberal), além da
temporalidade e territorialização da cidadania a herança histórica de de-
terminada sociedade particular com território sob comando exclusivo do
poder central estatal (soberania política).
O embate entre as definições político-ideológicas de cidadania pro-
duz conflitos permanentes entre (1) direitos individuais e direitos coleti-
vos, (2) soberania política estatal e autonomia dos povos indígenas, e (3)
graus assimétricos de reconhecimento normativo dos marcadores sociais
da diferença, em especial àqueles constituintes da livre determinação dos
povos indígenas.7

Bolívia e a proposta da América plural: transição paradigmática à ci-


dadania plena

A melhor definição para contextualizar o que representa o novo para-


digma constitucional boliviano é a reflexão formulada por Gregor Barié:
“¿Aportará Bolívia uma segunda generación de derechos indígenas?” (2008,
p. 51, grifos no original.)
Não poderia ser uma afirmação, porque o caráter experimental e para-
digmático dos direitos constitucionais garantidos necessita de tempo para
serem avaliados e, sobretudo, materializados. Mas ousar experimentar é
fundamental, especialmente considerando o autoritarismo vigente na Bo-
lívia até bem pouco tempo.
Porém, não resta dúvida que a confluência de acontecimentos históri-
cos ocorridos na Bolívia no século passado e, de forma mais intensa, nas

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duas últimas décadas, possibilitaram situação política largamente favorá-


vel aos povos indígenas e a chamada “refundação” do Estado.
O fato do país possuir 70% da população se autoidentificando com
povos originários indígenas8 é questão político-demográfica importante
porque é entre eles que se localiza a maioria dos pobres do país. (Moreno
& Aguirre, 2007) Ou seja, a desigualdade socioeconômica na Bolívia está
historicamente relacionada ao aspecto étnico.
Isto decorre, em parte, pelo modo como se constituiu a nacionalidade
boliviana. O processo de independência e fundação do Estado boliviano,
e de todos os países da América Latina (exceto o Brasil), provocou rompi-
mento político com Espanha, ao mesmo tempo em que gerou condições
para emergência de elite local que incorporou e difundiu os princípios
da tradição jurídica hispânica, marcada pelo idealismo abstrato jusnatu-
ralista, formalismo dogmático-positivista e retórica liberal-individualista.
(Wolkmer, 2008)
Por isso, na Bolívia a identificação nacional foi sempre problemática.
A construção do nacionalismo boliviano foi, em grande medida, projeto
do Estado, no sentido de ter sido liderada e objetivada apenas pela elite
local constituída de minoria branca europeia de origem espanhola que
possuía a propriedade das terras e minas da região. Os povos indígenas,
além de terem sido excluídos da condução do processo, sofreram a impo-
sição de valores etnocentricamente travestidos de “comuns”9 e negação de
direitos coletivos.10
A promulgação da Constituição de 1994 representa nova inclusão da
especificidade sociocultural dos povos indígenas e enquadramento do
país no contexto regional do constitucionalismo multicultural. Na Carta,
os direitos coletivos dos povos indígenas estavam alocados, principalmen-
te, no artigo 171, o qual reconhecia formalmente diversidade cultural,
autonomia política e pluralismo jurídico.

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No entanto, a estabilização da economia nacional com adoção da


doutrina neoliberal por seguidos governos provocou recrudescimento das
condições de vida da sociedade boliviana, especialmente dos povos indí-
genas, e ineficácia das normas constitucionais.
A partir do ano 2000, diversos protestos e manifestações indígenas-
populares contrários aos processos de privatização dos recursos naturais e
reivindicando reformas estruturais no Estado – inaugurados na Guerra da
Água em Cochabamba em abril de 2000 e acirrados na Guerra do Gás em
outubro de 2003 (Agenda de Outubro) – culminaram na transformação
dos movimentos indígena e campesino em núcleos articuladores de ações
políticas cujo reflexo maior ocorreu com eleição do primeiro presidente
indígena da América Latina: Evo Morales, em 2005.
Para alcançar a maioria dos votos no pleito de 2005, Evo Morales estabe-
leceu três compromissos ou pactos governamentais: a) convocar referendo
vinculante sobre o uso e destino dos recursos energéticos; b) reformar a Lei
dos Hidrocarbonetos (petróleo) de 1996, para restabelecer a soberania na-
cional sobre fontes energéticas; c) convocar Assembleia Constituinte para
avançar na refundação do Estado boliviano. (Moreno & Aguirre, 2007).
Em agosto de 2006 tem início a Assembleia Constituinte boliviana
para estruturação da Nueva Constitución Política del Estado (NCPE), pro-
mulgada em janeiro de 2009.
Ao estabelecer no primeiro artigo constitucional que “... Bolívia se
constituye en un Estado Unitário Social de Derecho Plurinacional Co-
munitario...”, (Bolívia, 2009) o paradigma constitucional boliviano inova
no cenário político-institucional latino-americano ao afirmar categorica-
mente a fundação do Estado autodenominado plurinacional.
Para Santos (2007), a ideia de plurinacionalidade propõe a resigni-
ficação comunitária do conceito de nação liberal para superar a relação
assimétrica entre estado, nação e etnicidade.

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Sabemos que os Estados modernos inventaram o discurso da represen-


tação nacional para suplantar hierarquicamente as diversas etnicidades exis-
tentes no território, de modo a fortalecer a soberania política para legitima-
ção da unificação territorial e universalização do status da cidadania.
O que está em jogo é a relação bilateral e igualitária entre estado e
nação, e relação unilateral e discriminatória destas para com as etnici-
dades. No bojo, está sedimentada a ideologia de que somente é possível
existir uma nação para cada Estado, porque seu papel é justamente o de
legitimar e validar o colonialismo sociopolítico mascarado na cidadania e
soberania estatal.
Todavia, Santos (2007) afirma que a plurinacionalidade obriga a refun-
dação do Estado moderno porque combina diferentes conceitos de nação
dentro de um mesmo Estado. A radicalidade do discurso plurinacional está
em reconhecer as identidades étnicas originárias como nacionalidades, igua-
lando-as juridicamente ao maximizar o valor da diversidade cultural como
princípio transversalizado nas e estruturador das normas constitucionais.
A conversão das etnias em nacionalidades faz parte da reivindicação
política dos povos indígenas localizados no atual Estado boliviano – e em
tantos outros estados da América Latina, mas salvo a Bolívia os demais
estão em dívida com os povos indígenas. O pronunciamento adotado por
lideranças indígenas no Encuentro Continental de Pueblos y Nacionalidades
Indígenas del Abya Yala11 (La Paz, Bolívia – outubro de 2006) possibilita
compressão da negação estratégica do pertencimento étnico:

[a]tualmente a Constituição Política do Estado Boliviano afirma que é


multiétnica. Não somos Etnias. Somos Nações, Povos, Nacionalidades,
queremos um Estado Plurinacional, que assim conste na nova Consti-
tuição da Bolívia. Todos os países de Abya Yala devemos reconstruir um
Estado Plurinacional. (Almeida, 2009, p. 73)

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Logo, a nação passa a ser instrumentalizada como identidade política


simbólica para articular, visibilizar e acentuar juridicamente as identidades
étnicas de fato, do mesmo modo, como ocorreu com o “ser indígena”. Por
outro lado, isto significa a ruptura da relação entre Estado e nação no sin-
gular, porque agora não somente as normas constitucionais reconhecem a
existência de diferentes nações pré-existentes a própria formação do Estado,
como também o fortalecimento do Estado passa a depender da ampliação
da participação e do empoderamento dos povos étnica-culturalmente dife-
renciados, o que provoca a entronização no Estado plurinacional boliviano
das diferentes maneiras étnicas de significar política, economia, juridicida-
de, sexualidade, religiosidade e cultura12 – marcas de questionamento às
tradições do nacionalismo etnocêntrico liberal em todos os âmbitos sociais,
inscritos em 89 das 410 normas constitucionais bolivianas.
A radicalidade da proposta plurinacional boliviana representa a inscri-
ção normativa dos marcadores sociais da diferença pela lógica do protago-
nismo político e livre determinação, combinados com os valores relativos
ao pluralismo jurídico, à participação social, à autonomia e à sustentabili-
dade, o que, de certo, reordena as correlações de força e as possibilidades
de efetiva inclusão social das coletividades indígenas.
O Estado passa a ser o guarda-chuva furado das diferentes formas
de nações, porque se propõem a valorizá-las, respeitando suas autono-
mias e autodeterminações impossíveis de serem questionadas ou sofrer
interferências do próprio Estado, sob pena de infração aos preceitos
constitucionais.
A gramática organizacional que disciplina a formação do Estado plu-
rinacional boliviano é a democracia plural sublinhada, na feliz expressão
de Santos (2005), como demodiversidade. Isto porque Bolívia afirma a
primazia da democracia sobre os nacionais (Tapia, 2007) e da democra-
cia participativa sobre a democracia representativa para impedir qualquer

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forma de monopólio político, operacionalizar novas considerações sobre


institucionalidade e territorialidade, e, por fim, legitimar diferentes práti-
cas culturais de procedimentos, normatização e deliberação democrática
– as denominadas democracias comunitárias, alçadas ao status de sistemas
de governos, conjuntamente com as democracias participativa e represen-
tativa (Art. 11, NCPE).
Para Santos (2007), a proposta democrática e plurinacional do Esta-
do boliviano derivam da recepção dos conceitos de interculturalidade13
e pós-colonialismo. O primeiro, para acentuar que a cultura política de-
mocrática só é possível tendo em vista a maneira específica de cada nacio-
nalidade organizar sua plurinacionalidade, é dizer, a convivência plurina-
cional marcada pela constituição identitária em intercâmbios culturais.
O segundo, como reconhecimento institucional de que o colonialismo
não terminou na independência e que entre a independência e o pós-
colonialismo a nova constituição funciona como “terceiro termo” para
reivindicar o momento de transição (e não superação) paradigmática que
faz da memória das injustiças históricas o fundamento ético-político para
a atuação pró-ativa estatal no enfrentamento das desigualdades e discri-
minações, em suma, na consagração da igualdade material.14
A nova institucionalidade boliviana pauta-se na descentralização plu-
rinacional das competências político-administrativas aptas a fortalecer o
poder local e interculturalização dos poderes do Estado.
Em primeiro lugar, o poder legislativo torna-se bicameral, composto
de câmara dos deputados e representantes departamentais. Na Câmara,
dos 130 membros, metade deve ser eleita por circunscrições uninominais
– votação universal, direta e secreta – e a outra parte por circunscrições
plurinominais – por meio de listas – com separação de vagas para parla-
mentares oriundos dos povos indígenas por meio da criação da circuns-
crição especial (Arts. 146 e 147, NCPE).

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Em segundo lugar, a jurisdição plurinacional boliviana sustenta-se no


princípio do pluralismo jurídico e interculturalidade (Art.178, I, NCPE).
Assim, não somente reconhece a autonomia da jurisdição indígena de
exercer sua soberania dentro do território contemplado via competências
pessoal, material e territorial, (Art. 191, II, NCPE) como também a igua-
la à jurisdição ordinária (Art. 179, I e II, NCPE). Por outro lado, garante
composição plural – inclusão de juízes originários de povos indígenas
– nos órgãos da jurisdição ordinária, agroambiental, eleitoral e, principal-
mente, no Tribunal Constitucional Plurinacional, órgão máximo da es-
trutura judiciária boliviana (Art. 187, Art. 197, Art. 206, NCPE) – onde
também são resolvidos os conflitos de competência entre as diferentes
jurisdições, inclusive a indígena (Art. 202, 11, NCPE).
Em terceiro lugar, significa a reordenação da organização territorial do
país de modo a dividi-la em quatro esferas: departamental (equivalente aos
estados federados no Brasil), provincial, municipal e indígena (Art. 269,
NCPE). Cada esfera possui autonomia política para promover eleições di-
retas dos governantes, administração dos recursos econômicos e naturais,
além de exercer faculdades legislativas e executivas, entre outras (Art. 272,
NCPE). Nos âmbitos departamental, provincial e municipal há garantias
constitucionais direcionadas a assegurar a participação de representantes
dos povos indígenas nas instâncias deliberativas (Art. 278, I e II, Art. 283,
I e Art. 284, II, NCPE). Por outro lado, a autonomia indígena originá-
ria campesina é conceituada constitucionalmente como autogoverno, no
sentido de exercício da livre determinação das nações e povos indígenas
(Art. 289, NCPE) em relação à forma de governabilidade de territórios, de
acordo com normas, instituições, autoridades e procedimentos próprios,
formalmente disciplinados em estatutos autônomos (Art. 292, NCPE)
contendo, ainda, as diretrizes da gestão local do desenvolvimento econômi-
co, social, organizativo e cultural (Art. 304, 2, NCPE), além da prevalência

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da jurisdição indígena para aplicação da justiça e resolução de conflitos no


respectivo âmbito territorial (Art. 304, 8, NCPE).
Por isso, a organização territorial do país encontra na livre determina-
ção dos povos indígenas parâmetro de democratização das autonomias
(no plural), dinamicidade da compartimentação do espaço e reordenação
dos marcadores sociais.
Por este prisma, é possível pensar a possibilidade de recepção de fluxos
migratórios de povos indígenas como medida de diversificação da noção
de territorialidade. Se a identidade nacional boliviana tem que (aprender
a) conviver com múltiplas nacionalidades étnicas locais, também há de se
considerar a convivência plurinacional com identidades étnicas transnacio-
nais – cujos membros vivem em territórios localizados em diferentes países.
O respeito à livre determinação democrática dos povos indígenas é o
primeiro passo para o diálogo com os grupos étnicos. Neste caso, cabe
ressaltar o reconhecimento de várias cosmovisões dos povos indígenas
como princípios étnico-morais da sociedade plural (Art. 8º, NCPE) e pa-
trimônio étnico que forma parte da expressão e identidade do Estado
(Art. 100, I, NCPE), o que parece sinalizar tanto ruptura entre tradução e
direitos quanto a possibilidade de maximização da inscrição constitucio-
nal das coletividades indígenas pela recepção das cosmovisões como topos
hermenêuticos que conformam a interpretação do ordenamento jurídico
(Streck, 2007) do Estado plurinacional.
O que é diferente e não pode ser traduzido (cosmovisões) ainda sim
precisa ser reconhecido e assegurado normativamente – os limites da tra-
dução não coincidem com os limites da garantia de direitos, sobretudo
porque se deslocam da necessidade impreterível do diálogo para iden-
tificação de campo comum de reivindicações para a validade êmica das
cosmovisões como patrimônios étnicos que expressam a diversidade prin-
cipiológica do Estado.

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Ora, se assim o for, há de se considerar três coisas: a) respeito à inte-


gralidade cultural das cosmovisões, pois elas estabelecem o sentido orga-
nizacional de cada povo indígena, é dizer, o modo como pensam o e agem
no mundo; b) as cosmovisões só possuem validade se operacionalizadas
de maneira relacional a outras cosmovisões internas, como no caso do
povo Guarani onde Teko Kavi (Vida Boa) não pode ser pensada sem con-
sideração ao mito Ivi Maraei (Terra sem Males), sob pena de invalidar a
hermenêutica; c) compreender a repercussão na hermenêutica jurídica da
consideração das cosmovisões como princípios ético-morais, o que im-
plica na disputa pelo paradigma principiológico a ser aplicado, pois pode
representar tanto a busca pelo sentido oculto das normas (paradigma
positivista) ou posição de que os princípios são nas normas (paradigma
neopositivista) – ao considerar a interpretação como ato de dar sentido,
portanto, de criar o texto normativo – quanto, e este é o desafio, produzir
tradução intercultural da própria definição de princípio ético-moral de
maneira a garantir a autonomia hermenêutica dos povos indígenas para
indicarem “como” e “em que medida” suas cosmovisões aplicam-se no
ordenamento jurídico do Estado plurinacional boliviano.
Se não podemos concordar com o paradigma positivista pela redu-
ção valorativa empreendida a função dos princípios na conformação das
normas, e não temos parâmetros práticos para saber qual a dimensão da
tradução intercultural dos paradigmas principiológicos, o certo é que se
nos posicionamos em defesa do paradigma neopositivista dos princípios
temos que levar em conta a definição, já clássica, de Alexy de que “... los
principios son normas que ordenam que algo sea realizado em la mayor
medida posible, dentro de las posibilidades jurídicas y reales existentes.
Por lo tanto, los princípios son mandatos de optimización...” (1997, p. 86)
A partir disso, há que apontar a condição dos princípios de valores
fundamentais que governam a aplicabilidade da Constituição para o al-

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cance de respostas adequadas e contextualizadas com os fatos, de modo a


refletir sobre a possibilidade de reordenação hermenêutica da constitui-
ção boliviana, devido consideração principiológica das cosmovisões indí-
genas, com consequências, por exemplo, na definição de território indí-
gena, tendo em vista a filtragem constitucional do princípio ético-moral
Ivi Maraei (Terra sem Males) do povo Guarani, cujo horizonte mítico é o
de lugar privilegiado, indestrutível, onde a terra produz por si mesma seus
frutos e onde não há morte, (Carvalho, 2006) dando sentido às práticas
migratórias deste povo, pois a terra que buscam é a que serve de base eco-
lógica da esperança de ascender à imortalidade sem passar pela morte, a
digna recompensa para aqueles que em vida juntaram méritos suficientes.
Logo, se o horizonte mítico de Ivi Maraei (Terra sem Males) sinaliza a
condição fronteiriça e migratória do povo Guarani como medida de re-
presentação cultural do território, sua positivação com status de princípio
constitucional pode significar a garantia jurídica para reconhecimento da
dinamicidade autônoma da cidadania transnacional Guarani.
A consideração, enquanto princípio, de marcadores sociais que estru-
turam a lógica organizacional e cultural dos povos indígenas sinaliza nova
condição para o tratamento das diferenças culturais pelo Estado, garan-
tindo, não apenas o reconhecimento normativo, mas sobretudo a inscri-
ção principiológica que possibilita, por assim dizer, o acolhimento das
demais normas constitucionais ou infraconstitucionais, pois os princípios
constitucionais representam a própria condição de existência das cartas
magnas e, de maneira mais ampla, dos estados.
Sem dúvida, os embates continuarão a ser travados pela positivação
e materialização da cidadania diferenciada dos povos indígenas em toda
América Latina, mas o caminho aberto pelo Estado plurinacional boli-
viano indica possíveis rumos para a transformação de outras cartas cons-
titucionais com o objetivo de reduzir as contradições/confrontações na

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polifonia ideológica da recepção da diversidade cultural pelas sociedades


que se pensam democráticas e pós-coloniais. Não há inclusão e respeito
sem reconhecimento da diversidade cultural, ela é o princípio estrutura-
dor do pluralismo.

(De)Marcando as diferenças no social

Quais os fundamentos da livre determinação que conflitam ou não


conflitam com a noção de cidadania nos estados nacionais, mesmo que as
constituições se afirmem plurais? Em que medida os colonialismos (exter-
no e interno) modificaram as noções de identidade e cidadania, e cerram
as possibilidades de viver num estado plural? Quais as estratégias de luta
dos povos indígenas para manter suas identidades e autonomias?
As interrogações aplicam-se à Bolívia que vive a transição e aos demais
estados que apesar dos inscritos ou não-inscritos constitucionais deverão
adaptar-se aos novos tempos. Afinal, o movimento indígena aqui e alhu-
res se articula e, com sabedoria, vai se instalando e produzindo mudanças,
pequenas é verdade, mas juntas podem compor um cenário que ensine,
aos demais, o que é ser cidadão pleno!
Todavia, a condição de cidadania plena não se restringe aos povos in-
dígenas, existem outros grupos vulnerabilizados que enfrentam o mesmo
desafio (ou dilema), para garantir a constitucionalização ou efetivação ju-
rídica das reivindicações políticas ainda que a tradução normativa destas
careça, muitas vezes, da compreensão e possibilidade de utilização satisfa-
tória, ou, ao menos, coerente com o exercício do protagonismo e da livre
determinação.
É preciso trabalhar, por exemplo, como os marcadores sociais da di-
ferença são definidos e como influenciam as definições e os conceitos
jurídicos impressos na legislação que regula a situação de comunidades

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remanescentes de quilombos, populações ribeirinhas, camponesas ou ex-


trativistas, entre outros, condicionando o próprio espaço de disputa clas-
sificatória e de amplitude dos direitos, reordenando ou não os polos de
hegemonia e as formas de in/exclusão social.
Sobretudo, os direitos e a cidadania diferenciada inscritos nas cartas
constitucionais encontram paradoxos que recuperam, na mesma medida
que abolem, valores etnocêntricos que acabam por definir o reconheci-
mento estatal da plurietnicidade como reconhecimento em conflito, ou seja,
condição sociojurídica manejada por grupos de interesse antagônicos cuja
inscrição constitucional é, apenas, a fotografia ampliada, muitas vezes,
tornada invisível, do conflito pelo grau de reconhecimento da diversidade
cultural.
O reconhecimento em conflito se faz presente na Carta argentina quan-
do mesmo admitindo a preexistência étnica e cultural que compreende: o
respeito à identidade; a educação bilíngue e intercultural; a personalidade
jurídica; a posse e a propriedade comunitária de terras tradicionalmente
ocupadas; e participação na gestão dos recursos naturais (Art. 75, inc.
17); impõe limites ao sustentar o culto católico apostólico romano (Art.
2º); ao fomentar a imigração europeia (Art. 25); ao obrigar os cidadãos
argentinos a armar-se em defesa da Pátria e da Constituição (Art. 21);
encerrando o golpe, delega ao Congresso Nacional o reconhecimento dos
direitos coletivos dos povos indígenas (Art. 75, caput).
Os conceitos adotados nas cartas constitucionais são oriundos de ou-
tros campos que não o Direito, especialmente porque, em muitos casos,
trabalhados por equipes multidisciplinares quando da elaboração dos do-
cumentos internacionais, mas internamente quem elabora as constitui-
ções são os representantes eleitos para as assembleias constituintes e que
não podemos reconhecer como especialistas, portanto a compreensão é
diferenciada e ao lado de proposições avançadas, é possível ver a manu-

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tenção de proposições pouco atuais, vazadas em tradições coloniais que


referem como únicas a lei, o rei, e a fé que, evidentemente, não abrigam
os novos direitos.
Exemplo do que se afirma, está na Constituição do Uruguai, na qual
a soberania é inscrita em toda sua plenitude como existindo radicalmente
na Nação, a quem compete direito exclusivo de estabelecer leis (Art. 4º).
Todas as pessoas são iguais perante a lei, não reconhecendo outra distinção
entre elas senão de talentos ou virtudes (Art. 8º). E toda riqueza artística
ou histórica do país, seja quem for seu dono, constitui tesouro cultural da
Nação e estará sobre salvaguarda do Estado (Art. 34). Não há espaço para
a diferença!
No caso do Brasil, as conquistas do movimento indígena parecem
esvair-se quando mesmo assegurando a educação em nível de ensino
fundamental de caráter bilíngue e intercultural aos povos indígenas (Art.
210, §2º); protegendo as manifestações das culturas indígenas (Art. 215,
§1°); reconhecendo aos povos indígenas a organização social, costumes,
línguas e direitos originários sobre terras que tradicionalmente ocupam
(Art. 231, caput); indicando a possibilidade de consultá-los sobre a au-
torização de aproveitamento de recursos hídricos, energéticos e minerais
situados em seus territórios (Art. 231, §3º); e admitindo a capacidade ci-
vil plena e legitimidade ativa individual e coletiva para ingressar em juízo.
(Art. 232); mantém a língua portuguesa como idioma oficial (Art. 13);
permite à União legislar privativamente sobre populações indígenas (Art.
22, XIV); atribui competência ao Congresso Nacional para autorizar, em
terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e
a pesquisa e lavra de riquezas minerais (Art. 49, XVI) e deixa aos juízes
federais a competência de processar e julgar disputas sobre direitos indí-
genas (Art. 109, XI) e atribui institucionalmente ao Ministério Público a
defesa judicial de direitos e interesses dos povos indígenas (Art. 129, V).

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No caso brasileiro, como em outros, subjaz a noção de incapacidade


dos povos indígenas, ignorando o protagonismo de alguns grupos e lide-
ranças que não se enquadram na moldura da proteção. É inclusive o caso
do ativismo indígena durante a constituinte, muitas conquistas podem
ser creditadas aos povos indígenas, incansáveis na defesa de seus direitos.
No Paraguai, os povos indígenas possuem personalidade jurídica cole-
tiva (arts. 38 e 63); têm reconhecida a preexistência histórica (Art. 62) e
o direito a desenvolver suas identidades étnicas na livre determinação de
seus sistemas de organização política, social, econômica, cultural e religio-
sa (Art. 63); reconhece expressamente a competência territorial da juris-
dição indígena (arts. 63 e 65); declara propriedade comunitária às terras
indígenas (Art. 64); determina educação bilíngue e intercultural (arts. 66
e 77), além de definir-se como país pluricultural e bilíngue (Art. 140),
pois a língua guarani é idioma oficial (Art. 140). A despeito das garantias,
é possível aplicar livremente normas consuetudinárias para regulação da
convivência interna sempre que elas não atentem contra os direitos fun-
damentais (leia-se hegemônico) estabelecidos na Constituição (Art. 63).
Por outro lado tolhe a liberdade religiosa ao reconhecer o protagonismo
da Igreja Católica na formação histórica e cultural da Nação (Art. 82).
E vai além, pois em nenhum caso interesse de particulares (povos indí-
genas?) primará sobre o interesse geral (Art. 128). Função institucional
do Ministério Público de promover ação penal pública para defesa dos
direitos dos povos indígenas (Art. 268).
O reconhecimento em conflito dificulta a interação, pois o entendimento
dos demandantes por direitos diferenciados, em quaisquer querelas, entra
em desacordo com os operadores do direito dependendo da leitura her-
menêutica utilizada. A definição de cultura presente em vários momentos
nos textos analisados é tão somente um “comportamento congelado” que
apesar de apontar o presente, tem os olhos no passado.

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É Manuel Moreira que traz à cena latino-americana considerações


para refletir, sobre a importância da cultura na articulação de direitos à
diferença, diz ele:

[l]a “cultura” como categoría operativa dentro del derecho deverá resta-
belecer El marco que defina La fluidez legal necessária para garantizar
los derechos de los grupos minoritários , los pueblos originários y toda
forma de alteridad rescatada a um plano de igualdad.” (2008, p. 480)

Por isso, é preciso compreender os marcadores sociais da diferença ins-


critos nas cartas constitucionais como instrumentos de luta e, ao mesmo
tempo, enquanto o próprio espaço de luta, política e hermenêutica, para
definição e aplicação material, o que, sem dúvida, significa pré-delimitar,
ainda que não limitar, as possibilidades de construção de um futuro em
que o exercício do protagonismo político, da livre determinação e da par-
ticipação social dos povos indígenas e outros grupos vulnerabilizados, seja
condição sine qua non para a legitimidade estatal e respeito à diferença.

Notas

1 Antropóloga e historiadora, professora junto à Universidade Federal do Pará (UFPA). Pesqui-


sadora do CNPq.
2 Advogado, mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da
UFPA e docente da mesma Instituição junto à Faculdade de Etnodesenvolvimento no Cam-
pus de Altamira.
3 A ideia original do trabalho foi apresentada à mesa redonda Antropologia do Direito e Marcadores
Sociais da Diferença durante o Iº ENADIR – Encontro de Antropologia do Direito, realizada nos
dias 20 e 21 de agosto de 2009, nas dependências do Conjunto Didático de Filosofia e Ciências
Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São
Paulo (USP), campus da capital, promovido pelo Núcleo de Antropologia do Direito (NADIR).

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4 Sobre a constitucionalização dos direitos internacionais dos povos indígenas e a incorporação


no direito interno dos estados das garantias jurídicas internacionais, relativas aos povos indí-
genas, e as diversas implicações em sociedades consideradas multiculturais, consultar: Anaya,
2005; Marés, 2009; e Stavenhagen, 2008.
5 De acordo com Gregor Barié (2003) os países centro-americanos e sul-americanos que pos-
suem normas constitucionais específicas para assegurar direitos coletivos dos povos indígenas
são: Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala,
Guiana, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru e Venezuela. Por outro lado,
os que não a possuem são: Belize, Chile, Suriname e Uruguai. Apesar da distância temporal
para com o presente ano (2009), os dados continuam válidos, com o acréscimo de que o
Chile, em março de 2009, ratificou a Convenção 169 da OIT.
6 Em contextos diferentes, Jane Felipe Beltrão (2008) e Manuel Moreira (2005) têm analisado
situações em que o não-reconhecimento do pluralismo jurídico pela justiça estatal representou
a criminalização dos procedimentos jurisdicionais diferenciados desenvolvidos para resolução
de conflitos locais entre indígenas (Moreira, 2005) ou entre indígenas e não-indígenas (Beltrão,
2008), o que desencadeou conflitos de competência e ação direta de “insubordinação” dos povos
indígenas contra a legitimidade do direito estatal por meio de estratégias de resistência.
7 Cabe lembrar que o exercício do direito de livre determinação compreende dois níveis de
ação: (1) autonomia e autogoverno nas questões relacionadas com assuntos internos e locais;
e (2) participação direta nas instituições da sociedade nacional.
8 Dados obtidos a partir de Andrade Tapia (2008) referentes a estimativas elaboradas pelo Ins-
tituto de Indigenismo Interamericano em 2006. Isabel Moreno e Mariano Aguirre informam,
no entanto, que “... segun el Censo Nacional de Población y Vivienda del año 2001, el último
estudio global disponible, el 62 por ciento de los ciudadanos mayores de 15 años se auto
identifica com pueblos originários...” (2007, p.3).
9 Chegando, na década de 70 do século passado, a intentar-se eliminação das diferenças entre
povos indígenas e sociedade nacional por meio da proibição, via decreto, do uso do termo
“índio”, “... obligando a todo el mundo a ser ‘campesino’...” (Andrade Tapia, 2008, p. 81).
10 De acordo com Cletus Barié, a primeira menção aos povos indígenas ocorreu no texto da
Constituição boliviana de 1938 – a primeira constituição foi a Carta de 1826 – “... cuando se
les reconoció a las ‘comunidades indígenas’ el derecho a contar con una legislación específica
y a ser instruído em instituiciones educativas, de acuerdo com sus características regionales y

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Jane Felipe Beltrão & Assis da Costa Oliveira. Povos indígenas e cidadania:...

culturales.” (2003, p. 148) Posteriormente, a Carta Magna de 1967 passou a denominar os


povos indígenas por organizações sindicais campesinas.
11 De acordo com Lúcio Flávio Almeida (2009), “Abya Yala” designa o continente “americano”
ou “ameríndio” antes da chegada dos europeus.
12 Na Constituição boliviana, a transversalização da diversidade cultural encontra respaldo em nor-
mas relativas ao sistema de governo (Art. 11, NCPE), família (Art. 19, II, NCPE), direitos funda-
mentais (arts. 21e 26, NCPE), saúde (arts. 35, II e 42, I, NCPE), seguridade social (Art. 45, II e
V, NCPE), trabalho (Art. 51, III, NCPE), criança e adolescente (Art. 58, NCPE), educação (arts.
78, I, II; 80, II; 91, I e II; 95, I e II, NCPE), cultura (Arts. 98; 99; 100; 101, NCPE), comunicação
social (Art. 107, NCPE), garantias judiciais (Art. 115, II; 119, I; 120, NCPE), economia (Arts.
306, III; 307; 311, I; 313, I; 319, I; 337, II, NCPE), meio ambiente e recursos naturais (Arts. 349,
II; 352; 353; 385, II; 388; 391; 392, NCPE), além dos âmbitos abordados mais adiante no artigo.
13 Interculturalidade afirmada talvez de modo a confrontar e superar os limites dos discursos
e das práticas multiculturalistas. Para informações sobre as diferenças teóricas e políticas
entre multiculturalismo e interculturalidade conferir: Tubino Arias-Schereiber (2001) e Luna
Pineda (s.d.).
14 Entendemos igualdade material por misto de justiça social e reconhecimento identitário. Esta-
mos, assim, em acordo com Flavia Piovesan, para quem a igualdade material “... correspondente
ao ideal de justiça social e distributiva (igualdade orientada pelo critério socioeconômico)... [e]
ao ideal de justiça como reconhecimento de identidades (igualdade orientada pelos critérios
gênero, orientação sexual, idade, raça, etnia e demais critérios.” (Piovesan, 2005, p. 47)

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ABSTRACT: Argentina, Brazil, Bolivia, Paraguay and Uruguay have changed


their national constitutions to ratify international treaties, which were pressured
by the growing indigenous autonomy in Latin America since the 70s of last cen-
tury. However, not all adopted a notion of citizenship that includes recognition
of the right to difference as legitimate to ensure equal conditions for equivalence,
making new social and political fields to allow indigenous people to hold full
citizenship without ceasing to be who they are. The constitutional registrations are
still guided by a formalism that seems to produce one of many social markers of
difference, without considering the plural practice, while ensuring rights to plu-
rality. On the other hand, the effect of the Constitution of Bolivia, not only makes
explicit the possibility of legal pluralism, but points to the existence of real con-
ditions for the construction of a plural state, addressing social markers seriously.

KEYWORDS: Citizenship(s), Social Markers, Ethnic Rights, Constitutions Rights.

Recebido em fevereiro de 2010. Aceito em julho de 2010.

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Os Pretos do Carmo diante do possível, porém
improvável: Uma análise sobre o processo de
reconhecimento de direitos territoriais

Deborah Stucchi
Procuradoria da República no Estado de São Paulo

Rebeca Campos Ferreira1

Universidade de São Paulo


RESUMO: As demandas inauguradas após a publicação do Art. 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal, relacionadas
ao reconhecimento dos direitos territoriais de comunidades remanescentes de
quilombos, representam oportunidade para refletir a respeito da emergência de
novas categorias de sujeito de direitos e seus efeitos socioculturais e políticos, em
várias escalas de aproximação, para os grupos em questão. Desde a sua publica-
ção, em 1988, até o momento, 21 anos depois, tem-se refletido pouco a respeito
dos impactos dos processos de reconhecimento sobre o cotidiano dos grupos
beneficiados.
O objetivo deste texto é partir do conjunto de referências obtidas no âmbito
dos estudos antropológicos realizados no Carmo – bairro negro localizado no
município de São Roque, interior de São Paulo – para discutir como as exi-
gências impostas pela regulamentação deste direito, formalizadas nas normas
internas de órgãos públicos responsáveis pela execução da política de identifi-
cação e reinterpretadas nas falas e práticas de funcionários, técnicos ou buro-
cratas, fixam determinados limites que se sobrepõem às formas de organização,
representação e decisão próprias desses grupos.

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PALAVRAS-CHAVE: comunidades remanescentes de quilombos, laudos an-


tropológicos, direitos sociais, políticas de reconhecimento, identidade.

Introdução

Decorridos 21 anos desde a publicação do Artigo 68 do ADCT, tem-se


mostrado cada vez mais necessário refletir a respeito dos impactos dos
processos de reconhecimento sobre o cotidiano daqueles grupos sociais
identificados como remanescentes de quilombos, beneficiados pela política
de reconhecimento dos direitos territoriais e culturais.2
As exigências da regulamentação, formalizadas na normatização
interna dos órgãos responsáveis pela execução da política de identifi-
cação, estabelecem limites que se impõem às formas de organização,
representação e decisão peculiares a esses grupos. Com a necessidade
de aprofundamento da compreensão das regras estabelecidas, de cujo
atendimento depende o acesso aos direitos, abrem-se espaços para a
atuação de agentes intermediários, detentores de conhecimentos e de
modos de operação específicos, com a tarefa de torná-las inteligíveis
àqueles grupos.
A instauração de processos de reconhecimento está frequentemente
relacionada com a emergência de agentes que se tornam cada vez mais
presentes conforme avança a visibilidade dos grupos. Sejam eles vincu-
lados à igreja, às universidades ou ao terceiro setor, atuam em várias di-
reções, com objetivos e estratégias próprios, dirigidos ou não a estabele-
cer o reconhecimento como meta. Além dos intermediários, incluem-se
outros agentes de pressão ou apoio assentados na política local, regional
e nacional, que se somam aos titulares, formais ou não, dos interesses
fundiários, estes que se sentem ameaçados pelas demandas apresentadas
pelos quilombos.

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Como resultado da análise preliminar de dados etnográficos coleta-


dos por meio de observação direta, de fontes documentais e de depoi-
mentos recolhidos em entrevistas estruturadas e abertas, no curso do
estudo antropológico realizado sobre o Bairro do Carmo, município
de São Roque, no âmbito de procedimento administrativo em curso
junto a Procuradoria da República no município de Sorocaba, revela-se
a ocorrência de impactos decorrentes da atuação desses agentes nos pro-
cessos de reconhecimento sobre os grupos beneficiados, sendo o confli-
to sua característica marcante. É no contexto desses conflitos e impactos
que o antropólogo é chamado a produzir os estudos obrigatórios aos
processos de reconhecimento.
Expor as ambiguidades da relação entre pesquisadores e sujeitos pes-
quisados, as possibilidades da pesquisa, os desdobramentos éticos desse
tipo de trabalho confrontados com as imposições formais é o objetivo
deste texto, que também se destina a refletir sobre os papéis do antropó-
logo diante das políticas de reconhecimento no Brasil.

O Papel do Ministério Público Federal no Acesso a Direitos

O Ministério Público Federal está colocado no campo do reco-


nhecimento dos direitos territoriais de populações afro-descendentes
como órgão de fiscalização do cumprimento de atribuições relativas
ao reconhecimento, à titulação de terras e à execução de políticas pú-
blicas por outros órgãos e setores da administração pública, como a
Fundação Palmares, o INCRA, os Institutos de Terra dos estados e as
prefeituras. A atuação do órgão está voltada a acompanhar a execu-
ção de medidas destinadas a assegurar acesso aos direitos territoriais,
como a instauração dos procedimentos de identificação, a realização
dos estudos necessários ao reconhecimento que irão revelar territórios

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de ocupação histórica e aqueles contemporaneamente reivindicados


pelo grupo, as publicações de atos administrativos e a titulação das
terras propriamente dita.
Em que pese os contornos precisos desse papel, em situações espe-
cíficas, o Ministério Público Federal tem assumido para si a elaboração
de determinados estudos antropológicos em profundidade – que podem
coincidir, no todo ou em parte, com os objetivos daqueles realizados pe-
los órgãos responsáveis pela titulação - com o fim de instruir sua atuação
judicial e extrajudicial. Uma dessas situações ocorre no estado de São
Paulo, com relação ao caso da comunidade rural negra do Carmo. Pelas
especificidades do contexto em que está colocada, essa situação foi aco-
lhida pela Procuradoria da República no município de Sorocaba com o
referendo da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público
Federal, com o objetivo de se produzir laudo antropológico que descre-
vesse a situação atual do grupo, bem como deslindasse o processo de ocu-
pação e de redução territorial ocorrido ao longo de dois séculos.
Esse laudo teria a atribuição de apresentar o Carmo contemporâneo,
sua organização enquanto grupo diferenciado constituído em base à iden-
tidade em uma abordagem de caráter etnográfico. Na época das decisões,
avaliou-se que seria oportuno realizar os estudos necessários no âmbito
mesmo do Ministério Público Federal já que a Fundação ITESP possuía
quadro reduzido de profissionais e pouco depois passou a produzir os
“relatórios técnico-científicos” por antropólogos contratados por períodos
de três meses em pregões realizados pela internet.
Por parte da Fundação Cultural Palmares, outro estudo realizado an-
teriormente havia justificado a publicação de ato administrativo de reco-
nhecimento por interesse cultural de uma área aproximada de 16 hectares.
Ainda, na época, não estavam definidas as atribuições do INCRA quanto
ao processo de titulação das comunidades remanescentes de quilombo e,

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posteriormente, quando já definidas, a atuação do órgão em São Paulo


não chegou a ser destacada por sua agilidade.
Considerando que a atuação do Ministério Público Federal não se
substitui à dos órgãos com atribuição executiva, a decisão de produzir
o laudo internamente foi baseada na cautela de agir judicial ou extraju-
dicialmente, inclusive frente aos órgãos executivos, em base à orientação
prévia, segundo uma perspectiva antropológica.

O Carmo Negro: sua origem e o histórico de conflitos

O bairro do Carmo localiza-se na Estância Turística de São Roque, a


70 quilômetros de São Paulo. Dista aproximadamente 25 quilômetros
do centro urbano de São Roque e possui três vias de acesso principais: a
estrada do Carmo, a estrada do Caetê e a estrada do Vinho, recentemente
pavimentadas pela prefeitura. Estruturado ao redor da capela de Nossa
Senhora do Carmo, o bairro possui quase 700 moradores, segundo esti-
mativas da própria comunidade confirmadas por censo antropológico. As
suas 175 residências distribuem-se por 11 ruas não pavimentadas, exceto
pequeno trecho da rua principal, denominada Nossa Senhora do Carmo.
O bairro é constituído por grupos familiares intensamente relacionados
entre si por laços de consanguinidade e de afinidade, bem como por obri-
gações recíprocas definidas por relações de compadrio e de vizinhança.
A vida social é regrada pelo calendário religioso, esfera de onde também
provém a base da identidade do grupo.
Sendo as relações de parentesco e de compadrio traços marcantes da
organização social do Carmo, é por meio da vida religiosa que ocorre
a atualização que perpassa todas as relações, consanguíneas e afins, de
maneira a conferir sentido à existência, a orientar a vida no Carmo e a
extrapolar a própria ocupação atual do território. Ressalte-se a relevância

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da família e do parentesco como a unidade central deste grupo e como


base da sua vida social.
O calendário religioso é regido pela intensiva circulação de santos que
também coloca em movimento as relações entre as famílias e entre as pes-
soas tomadas individualmente, estabelecendo integração entre as unida-
des constituintes da formação social comunitária. Como afirma Bandeira,
também no Carmo pode-se pensar a associação do conjunto de santos
ao conjunto das famílias locais como constitutiva de relações de caráter
social e simbólico:

O culto do santo de casa realiza interesses religiosos determinados pela


lógica da produção simbólica da família no plano do sagrado. (...) desse
modo, o culto de cada santo das famílias refaz, no plano do sagrado, a
instituição familiar, como foco das relações entre indivíduo e sociedade
e entre sociedade e cultura. “Posse” de um santo determina a realização
de relações sociais, econômicas, etc., entre uma família e outras famílias
da comunidade. Consequentemente ressalta o caráter ao mesmo tempo
estruturante e estruturado das relações entre a família e a comunidade
(BANDEIRA, 1988, p. 210).

A relação estabelecida entre os indivíduos, suas famílias e os santos


tem sido amplamente discutida pela sua relevância no âmbito da cons-
trução identitária destes grupos. Nessa dinâmica, algumas hipóteses são
postas: a primeira indica que os santos absorveram sentidos e papéis a
partir de imagens e objetos usados nas religiões bantos tradicionais (Melo
& Souza, 2002). Ou ainda, atenderiam estes santos à proteção daqueles
indivíduos e famílias, que dado o seu isolamento social, estão abando-
nados a sua própria fé (Bastide, 1971). Desse modo, lhes são acoplados
significados que fogem às pregações do catolicismo oficial. As fronteiras

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entre a religião e a magia tendem a ser pouco definidas, servindo ambas


como construtos ou reforços da identidade social – permitem integração
e fornecem meios para pensar a realidade e se projetar nela, com a pecu-
liaridade de constituir uma memória social perpassada pelo sagrado, que
levam a esse plano, também o território e o parentesco.
Em suma, o calendário religioso anual fixo do Carmo apresenta 15
procissões,3 seis festas,4 quatro rezas de terço definidas,5 e cinco novenas.6
Além dessas, pode haver outras sem datas pré-definidas. Há duas excur-
sões ao Santuário de Aparecida do Norte,7 e quatro romarias.8 Aciona-se
assim um circuito de romarias, festas, novenas e procissões, envolvendo
santos, prescrições e obrigações, que colocam em relação os moradores
entre si e parentes que não residem no bairro. O calendário religioso é
seguido com rigor, havendo sanções quanto à participação adequada em
determinados eventos.9
A maioria dos atuais moradores do Carmo descende dos escravos de
Nossa Senhora do Carmo, que pertenciam à Província Carmelita Flumi-
nense, proprietária de uma fazenda com 2175 alqueires de extensão, exis-
tente desde o século XVIII, que servia à criação de animais e ao plantio
de diversas culturas, atividades responsáveis pelo abastecimento dos con-
ventos da ordem. Não havia convento instalado no local e os religiosos a
administravam a partir de São Paulo, o que permitiu a relativa autonomia
em que viviam os escravos da Santa. A área da fazenda era ocupada por
escravos, que nela cultivavam não somente para servir à ordem, mas tam-
bém para o sustento de suas famílias além de inserir-se no mercado local.
Todavia, as leis imperiais instituídas a partir da década de 1850 asfi-
xiaram as ordens religiosas, impedindo o ingresso de novos frades. A Pro-
víncia Carmelitana Fluminense e outras ordens religiosas no Brasil foram
submetidas à autoridade de visitadores apostólicos e suas atividades ad-
ministrativas controladas por relatórios ministeriais. Desse modo, a Pro-

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víncia Carmelitana Fluminense sofreu drástica redução em seu quadro


administrativo, tendo restado poucos religiosos para preservar vasto patri-
mônio, que sofreu baixas importantes na entrada e circulação de capital.
Os arrendamentos de propriedades rurais e de escravos foram a prin-
cipal alternativa adotada para administrar os bens, por longos períodos.
Nesse contexto, os escravos e as terras da Fazenda do Carmo, à semelhan-
ça do que ocorrera em outras propriedades da Ordem, foram arrendados
a proprietário de terras do vale do Paraíba, por meio de contrato que
vigoraria por 20 anos, a partir de 1866.
Na memória dos moradores, a origem do grupo é narrada a partir
da ida das famílias, juntamente com a Santa, a Bananal para pagar uma
dívida contraída pela própria Nossa Senhora do Carmo, de quem eram
servos. Ao retornar com a dívida quitada, tiveram acesso, com liberdade,
às terras que já ocupavam. Portanto, a prestação de serviços no Bananal
representou a compra das terras da Santa, que seriam preservadas pelos
negros na condição de devotos. Ao retornar, puderam fazer uso das terras,
como anteriormente ocorria, porém sem quaisquer influências da Or-
dem, que se encontrava em processo de reestruturação de seu quadro ad-
ministrativo, agora sob o Brasil Republicano. De fato, com o pagamento
da dívida da Santa, os pretos do Carmo puderam obter as terras na con-
dição de livres, conforme narram.
Depois de reorganizada administrativamente, a ordem religiosa passa,
na década de 1900, a cobrar valores referentes ao aluguel pela ocupação
das terras, passando os ex-escravos da Santa à condição de arrendatários,
enquanto continuavam a ocupar a quase totalidade da área da fazenda.
No contexto da imigração estrangeira e da valorização das terras da cidade
de São Roque, ainda hoje conhecida como a terra do vinho e da alcacho-
fra, a Província Carmelitana Fluminense, empenhada em vender aquelas
terras, separadas em lotes, a grandes proprietários e, tendo em vista que a

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presença dos negros era empecilho ao propósito, ajuizara ações de Força


Velha Espoliativa a partir do ano de 1912. Suas pressões seguiram-se pela
década, até que, em 1919, convocou judicialmente aqueles ex-escravos e
seus descendentes para propor acordo de compra ou despejo.
Antes e após a abolição, bem como durante as décadas anteriores aos
contratos de compra venda impostos, em 1919, pela Província Carme-
litana Fluminense e celebrados com os descendentes de escravos, quan-
do se estimava a existência também de ‘700 almas’, os negros ocupavam
aproximadamente 1900 alqueires de terras, equivalentes a uma área de
4.598 hectares.
Após dois séculos de presença escrava e de décadas de permanência dos
seus descendentes ocupando praticamente toda a extensão da Fazenda do
Carmo em base ao trabalho familiar, para efeito da celebração dos contra-
tos de compra e venda com a Província Carmelitana Fluminense, a área
ocupada por cada família foi reduzida à quarta parte. A maioria foi des-
pejada, migrando para municípios próximos ou continuou a ocupar áreas
em família independentemente dos respectivos títulos de propriedade.
Os lotes titulados aos negros foram demarcados nas faixas marginais
da Fazenda, após a obrigação de abandonar outras benfeitorias existentes
e os cultivos estabelecidos em outras áreas, o que reestruturou definitiva-
mente a ocupação das Terras da Santa. Desse modo, grande área fora ‘li-
berada’ para venda aos interessados, o que se dera principalmente a partir
da década de 1920. Assim, segundo a lógica da quarta parte e no contexto
das iniciativas de liberação de áreas para comercialização das terras, o
total de 384,5 alqueires, equivalente a 930,49 hectares, foi efetivamente
titulado aos descendentes de escravos em 1919, extensão de terras que
fora mantida até 1932.
Da década de 1930 em diante quando houve sucessivo, contínuo e
violento processo de expropriação das terras dos pretos do Carmo, revela-

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do pelo registro das disputas judiciais e pelo noticiário escrito da época,


realizada por meio de compras por valores subdimensionados, à base de
troca por outras glebas localizadas em regiões mais distantes, por gêneros
alimentícios ou por pequenos animais de criação doméstica, pela simples
apropriação de áreas por meio da expansão das cercas, as terras de negros
foram abarcadas pelos fazendeiros vizinhos confrontantes ou entregues
em pagamento de honorários aos advogados constituídos na defesa dos
descendentes de escravos. A Província Carmelitana Fluminense deixa o
cenário na década de 1930, após a divisão definitiva da fazenda em 1932,
processo que já insere nas terras da Santa os novos proprietários, em sua
maioria advogados, que detinha, ao todo, 1.005 alqueires de terras.
Grande parte das terras foi comprada por fazendeiros confrontantes,
dentre os quais se destacam Antônio e Joaquim Xavier de Lima, proprie-
tários da vizinha Fazenda Icaraí, conhecida na época pela volumosa pro-
dução leiteira onde aqueles ex-escravos e descendentes trabalharam por
longo período. A família Xavier de Lima, cujos membros eram tratados
por ‘nhonhô’ e ‘nhanhá’ e a quem as crianças negras eram ensinadas a pedir
louvado em sinal de respeito, mantinha estreitos laços de compadrio com
os pretos do Carmo e, nas décadas de 1930 e seguintes, representaram a
maior ameaça à manutenção das terras da Santa.
Negociações que levaram a trocas favorecidas pelas subordinações de
patronagem e pelas vinculações do compadrio – comprometendo indiví-
duos em relações assimétricas de poder – ou ainda meras ações de expro-
priação marcam as décadas que se seguem no século XX, estabelecidas
em base a transações formais e informais que, gradativamente, reduziram
drasticamente a área ocupada por aqueles descendentes de escravos.
Advogados locais, alguns dos quais constituídos anos antes visando à
defesa dos negros nos processos judiciais fundiários, transformaram-se
nos detentores da maior parte da área no interior das Terras da Santa, as

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negociaram no decorrer do tempo com outros proprietários, que passa-


ram a ocupar as valorizadas terras da região.
A pressão pela liberação das áreas continua até a década de 1970,
quando se estabelecem os novos interesses imobiliários motivados pela
implantação de condomínios fechados de alto padrão na região. A essa
altura quase todas as antigas áreas dos descendentes de escravos estavam
em mãos de grandes proprietários, apenas restando o pequeno quinhão
da Santa, com extensão de três alqueires, um modesto patrimônio com-
posto pela Capela de Nossa Senhora do Carmo rodeada por conjunto de
casinhas, resguardado desde 1932, quando titulado em favor da Igreja.
Nesse momento, relatam os moradores, ainda houve a tentativa frustra-
da de abarcamento dos limites da pequena vila aos domínios da área que
formaria o condomínio vizinho que recebe o emblemático nome de Patri-
mônio do Carmo. Na década de 1970 esse novo ator inserido no cenário,
após negociação realizada com fazendeiro, denominado pelos moradores de
a firma, compra porção significativa de terras na área de entorno da capela.
O bairro do Carmo, então, encontrava-se cercado, de um lado, pela
Fazenda Icaraí e, de outro, pelo novo empreendimento, o condomínio
de alto padrão que atualmente representa significativa fonte de renda aos
descendentes de escravos da Santa. O residencial consolida-se na déca-
da de 1980, estabelecido em meio a crescentes pressões contra as terras
ocupadas pelos moradores negros. Relatos atuais indicam que, mesmo
o patrimônio restante da Santa, com seus diminutos três alqueires para
onde confluíram todos moradores que resistiram no Carmo, foi alvo dos
tratores enviados para deitar abaixo as casas. No entanto, a demolição
deveria abater somente as casas. Nas propagandas da época destinadas a
anunciar os lotes, a Capela do Carmo seria divulgada como atrativo cul-
tural e bem de valor histórico integrante do Condomínio Patrimônio do
Carmo disponível ao desfrute dos novos proprietários.

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O abandono a que foi relegado pelas sucessivas administrações locais,


determinante para a evasão de grande número de antigos ocupantes, bem
como as contínuas pressões pela posse das terras, transformaram o bairro
do Carmo num local habitado por maioria negra empobrecida, situa-
do em meio aos luxuosos vizinhos, em uma área de intensa especulação
imobiliária. Na antiga Fazenda Icaraí, localizada a poucos metros do bair-
ro, recentemente vendida a um grupo coreano, será implantado o maior
complexo turístico destinado à pratica do golfe da América Latina.
Em meio às iniciativas voltadas a fomentar o turismo na cidade, o bairro
negro do Carmo é apresentado pela prefeitura como uma ‘comunidade re-
manescente de quilombo’, indicada no guia da cidade como parte do roteiro
turístico. Apesar disso, a prefeitura, que manteve, por mais de um ano, pa-
ralisadas as obras de implantação do sistema de tratamento de água e esgo-
to, quando procurada, não soube informar sequer o número de habitantes
do local. A informação sobre a quantidade de moradores – aproximada-
mente 700 pessoas - é oriunda de levantamento realizado pelas próprias
moradoras, confirmado por meio da etnografia, somando o total de 672
moradores. Como resultado dos processos de expropriação aqui indicados,
praticamente a mesma população estimada no início do século XX ocupa,
atualmente, 16 hectares oficialmente declarados, equivalentes a pouco mais
de 6 alqueires, o que representa área 300 vezes menor do que a efetivamente
ocupada em 1900 e 58 vezes menor do que a titulada em 1919 em nome
dos descendentes de escravos de Nossa Senhora do Carmo.

Novos Campos de Atuação e os Agentes Intermediários

No final da década de 1990 desponta no cenário já apaziguado de


perdas territoriais e dispersão dos moradores um autorreferido “represen-
tante dos moradores do Carmo”, informando ao Ministério Público Federal

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e aos órgãos fundiários federal e estadual a existência do Quilombo do


Carmo. Instituído presidente de entidade civil fundada com o objetivo de
defender os “interesses quilombolas”, esse dito representante passou a co-
mercializar terrenos com compradores não vinculados aos descendentes
de escravos da Santa, situados em domínios então titulados.
A ele, a quem é atribuída descendência de antiga família local, por li-
nha materna, e a sua parceira nos atos promovidos, ex-moradora do Car-
mo, criada como filha adotiva por casal de descendentes de escravos, foi
associada uma série de atos ilícitos, como falsificação de documentos, fal-
sidade ideológica e turbação de propriedade, entre outros. Sua atuação no
negócio de invasão de terras e de venda clandestina de lotes pertencentes
à antiga Fazenda do Carmo, por meio da entidade que presidiu, ocorreu
de maneira completamente independente da participação dos moradores
negros do bairro do Carmo, que não o conheciam já que ele nunca havia
residido na localidade. A mais absoluta maioria dos moradores do bairro
não se associou à entidade, não participou dos atos de invasão e nunca o
reconheceu como seu representante, nem a ele como um de seus mem-
bros em que pese a descendência.
Se o resultado foi, por um lado, o cumprimento de pena de reclusão pelos
dois ativistas, por outro lado, a notícia da existência de comunidade rema-
nescente de quilombo do bairro do Carmo em São Roque foi disseminada,
determinando-se a instauração de procedimentos administrativos junto ao
Ministério Público Federal e à Fundação Cultural Palmares. Nesse contexto
de conflitos fundiários, violência e de representatividade discutível, já que os
moradores do bairro nunca tinham ouvido falar de seu próprio autodenomi-
nado representante, o Ministério Público Federal chega ao lugar.
A primeira tarefa do Ministério Público Federal foi, buscando isolar as
condutas temerárias, as meias-verdades e a apropriação dos fragmentos da
história do Carmo pelo suposto representante, identificar a existência de

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um direito. O Ministério Público Federal encontra, de um lado, o conjun-


to de moradores extremamente atemorizado e identificando as ilegalidades
cometidas anteriormente com a própria luta pelos direitos territoriais e, de
outro lado, os direitos territoriais prestes a se tornar inexequíveis já que as
áreas disponíveis no entorno da vila – parte das antigas áreas de ocupação
dos descendentes de escravos – estão reservadas à implantação de lotea-
mento destinado a ampliar o condomínio fechado construído na década de
1970. Na ausência de uma associação que os representasse, a interlocução é
persistentemente tentada e finalmente efetivada com um grupo de mulhe-
res de forte atuação religiosa, estendida para a área de assistência social, após
intenso esforço de mapeamento da situação.10
Não há dúvidas de que as questões de interesse político e econômi-
co que impactaram diretamente o modo pelo qual a comunidade se re-
conhece e se reproduz, a partir do dispositivo constitucional, passam a
representar instrumento de luta política efetiva. Embora tais questões
sempre tivessem sido parte do cenário local, a partir de agora, os filhos da
Santa passam a combater no mesmo panorama sob novas condições, ago-
ra como sujeitos e atores, portadores de direitos diferenciados. Durante
longos períodos, nos séculos XVIII e XIX, os pretos do Carmo presentes
no cenário político e econômico local, embora cativos, mantinham-se em
regime de administração própria. A figura do escravo-feitor os poupava
da presença do senhor e das violências habituais dos grandes latifúndios.
Os atores da política local já reconheciam na presença desses negros, em-
bora longínqua em relação à sede, uma ameaça à ordem pública, recla-
mando providências contra a sua desobediência a determinações supe-
riores, contra a perambulação de bandos de escravos pelas áreas urbanas,
contra o acolhimento de pretos fujões pertencentes a outras propriedades
e contra a autonomia econômica que atrapalhava muitos negócios pelos
preços competitivos que praticavam, tudo por estarem livre da figura de

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um senhor que os controlasse permanente e eficientemente. No novo


cenário, os sujeitos, antes temidos e perseguidos, tratados como invaso-
res nas próprias terras, reaparecem como novos atores plenos de direitos,
moldados pela valoração positiva das políticas de Estado, executadas pela
sua burocracia e por seus procedimentos formais.
Com a necessidade de aprofundamento da compreensão das intrinca-
das regras estabelecidas como pré-requisito do reconhecimento e de cujo
atendimento depende o acesso e a garantia de direitos, abrem-se novos
campos para a atuação de agentes intermediários detentores de habilida-
des específicas, que acenam com múltiplas possibilidades, entre as quais
a de tornar as regras inteligíveis, de estabelecer interlocução qualificada
com os órgãos oficiais em linguagem própria e inacessível à maioria, en-
fim de viabilizar o caminho de acesso aos direitos.
É certo que a instauração de processos de reconhecimento de grupos
específicos está diretamente relacionada com a emergência da interven-
ção e da atuação de inúmeros novos agentes que se tornam cada vez mais
presentes conforme avança a visibilidade oficial desses grupos. Sejam esses
agentes vinculados à igreja, às universidades, ao terceiro setor ou indi-
víduos mais escolarizados egressos dos próprios grupos, eles atuam em
várias direções, com objetivos e estratégias próprios, dirigidos ou não a
estabelecer o reconhecimento como meta.
Além desses agentes, nos processos de reconhecimento de remanes-
centes de comunidades de quilombo, estão incluídos outros grupos de
pressão ou apoio representados pela política local – como prefeitos e ve-
readores – regional e nacional – como deputados estaduais, federais e
líderes partidários – que se somam ou contrariam os interesses fundiários
dos setores econômicos ameaçados pelas novas demandas.
Por um lado, os grupos politicamente mais articulados conseguem
atrair assessoria capaz de não somente traduzir internamente o conjunto

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de regras, mas também de preparar as chamadas lideranças a serem trei-


nadas para dialogar e interagir com os agentes institucionais atuantes lo-
calmente e com as demais autoridades representantes dos órgãos públicos
executivos, legislativos e fiscalizadores, bem assim o poder judiciário, fa-
zendo frente à série de novas necessidades inauguradas com a visibilidade,
como atendimento a pesquisadores e à imprensa.
Por outro lado, aqueles outros grupos que não detém o nível de visibi-
lidade e de articulação política exigida no registro jurídico, ou vitimados
pelo medo, como resultado direto ou indireto da história de silenciamen-
tos diante de violências sofridas, permanecem alheios à assessoria qualifi-
cada e correm o risco de ser excluídos do processo de reconhecimento ou
ficar à mercê da atuação temerária de emissários com interesses ambíguos
ou frontalmente contrários aos direitos a serem resguardados. Ambas as
experiências têm produzido seus impactos internamente aos grupos. O
alheamento da linguagem formal, o domínio precário dos códigos e dos
registros institucionais presentes no contexto oficial podem significar a
alienação do próprio acesso ao direito.
Tem sido consenso disseminado entre os profissionais do direito e
da própria antropologia que a demanda por direitos territoriais, para ser
levada a termo seja, antes de tudo, apresentada pelos próprios sujeitos.
Entretanto, é preciso distanciar-se criticamente desse consenso, de modo
que sejam levados em conta os processos de sujeição política e simbólica
tornados efetivos ao longo de décadas e que resultam no ocultamento de
agendas reivindicatórias.
Revela-se importante, pois, que o antropólogo envolvido em pesquisas
com esses grupos, situado dentro e fora dos órgãos de execução ou fiscali-
zação da implantação desses direitos, comprometa-se a identificar as ambi-
guidades e a atuar visando à adequada administração das temporalidades
próprias dos processos de reconhecimento. Os processos de reconhecimen-

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to são compostos pelo tempo comprimido em que se espera a elaboração


dos estudos antropológicos e da indicação do eventual território a ser rei-
vindicado e pelo tempo estendido, comprometido com período em que se
aguarda a efetivação do direito territorial por meio da titulação. Entre um e
outro se situa o tempo de apropriação dos significados positivos representa-
dos pelos novos direitos, de construção da agenda reivindicatória e de con-
solidação da demanda, que não é idêntico para todos os grupos e é coerente
com os contextos próprios. É um tempo que muitos grupos aprendem que
é direito ter direitos, sobretudo, que não é crime lutar por seu território.

A Construção Social e a Regulamentação Jurídica da Identidade

O bairro do Carmo, composto por devotos filhos da Santa, revela uma


série de peculiaridades às quais o preceito constitucional pode não abarcar
no processo que leva à sua aplicação. A atribuição da identidade qui-
lombola a determinado grupo e os direitos fundiários que dela decorrem
levam ao redimensionamento e à ressemantização do próprio conceito
de quilombo, mas também redimensionam os conceitos de identidade,
etnicidade e territorialidade.
No momento em que o Estado reconhece um grupo como remanes-
cente de quilombo fixa uma identidade política, administrativa e legal, e
ainda identidade social, que remete a uma identificação étnica, enquanto
veículo de obtenção de direitos diferenciados. Desse modo, o artigo 68
do ADCT/CF-88 institui um novo sujeito social e político, etnicamen-
te diferenciado a partir dos direitos instituídos por meio do dispositivo
mencionado. Tal disposição do Estado em institucionalizar a categoria

evidencia a tentativa de reconhecimento formal de uma transformação


social considerada como incompleta. A institucionalização incide sobre

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resíduos e sobrevivências, revelando as distorções sociais de um processo


de abolição da escravatura limitado, parcial (Almeida, 1997, p. 125).

A contrapartida necessária é levar em conta a variedade de situações


de ocupação de terras por grupos remanescentes, para além da noção de
fuga, resistência e negação do sistema escravocrata. Este novo sujeito é
criado no contexto de lutas sociais que fazem da norma constitucional o
seu instrumento, com a conversão simbólica do conceito de quilombo,
que é transformado e ganha funções políticas de luta pela terra dada de-
terminada característica étnica. A categoria jurídica remanescente de qui-
lombo é criada, instituindo-se a coletividade enquanto sujeito de direitos
fundiários e culturais (Arruti, 2003). Na medida em que a condição de
remanescente de quilombo abarca elementos de identidade e sentimento
de pertença a um grupo e a terras determinadas, entram no debate consi-
derações acerca da etnicidade e territorialidade.
A aplicação do artigo 68 gera demandas específicas frente à comu-
nidade que dele fará uso – a complexidade então é pautada na oposi-
ção entre e generalidade da lei e a peculiaridade do caso, que envolve
uma gama de abordagens delicadas e dotadas da especificidade que
formou e foi responsável pela manutenção desse grupo até o presen-
te, numa trajetória marcada pelo conflito e pela exclusão. Desde a
Constituição de 1988 esse quadro pode ser revertido na possibilida-
de de direitos. Assiste-se internamente ao grupo uma reestruturação
caracterizada pelo papel relevante desempenhado pelo antropólogo,
em uma relação em que a reivindicação e até mesmo a possibilidade
de continuidade do grupo colocam-se no horizonte. Trata-se do mo-
mento em que a lei, dada sua generalidade ou a expedição do título
de propriedade nem sempre podem abarcar. O preceito constitucio-
nal cria novas figuras legais, novos sujeitos de direito que penetram

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o direito positivo, “através dessas rachaduras hermenêuticas que são os


direitos difusos” (Arruti, 1997, p. 01).
Ressemantizar o conceito de quilombo faz-se então necessário para
discernir critérios de identificação das comunidades remanescentes, tanto
no plano conceitual quanto no normativo, ao agir em universos de refe-
rência distintos, quais sejam o da análise científica e de intervenção e o da
interpretação jurídica. O debate insere-se, portanto no âmbito da regu-
lamentação jurídica da identidade, com a criação de novos sujeitos, com
os quais o antropólogo desenvolve relações diretas em campo conflituoso,
do qual passa a ser parte.
A emergência dos remanescentes pode ainda ser tomada no sentido
dos rearranjos classificatórios, segundo a lógica da produção de unidades
genéricas de intervenção e controle social, ao custo de uma redução da al-
teridade das populações submetidas à categorização (Arruti, 1997). Além
de o campo se caracterizar pelo conflito, o próprio processo de nomeação
de um grupo como remanescente é conflituoso, produzindo uma série
de mudanças internas, em suas relações externas, seja com populações
vizinhas, poderes locais ou aparelhos do estado, bem como entre seus
membros, com acomodações, disputas, conflitos, alteração de significa-
dos, reelaboração da memória e modificação do status de seus pares.
Paralelamente, assiste-se ao processo de descoberta de novos direitos
por parte da comunidade e assim as fronteiras – porosas – e as situações
– marcadas pelo conflito – engendram uma mudança de consistência.
Os arranjos internos do grupo passam por modificações orientadas no
sentido político e são pautadas na reformulação da memória e das tra-
dições. Aqui o antropólogo desenvolve seu trabalho na encruzilhada dos
redimensionamentos conceituais frente às particularidades do grupo e aos
conflitos políticos e fundiários. É, portanto, uma situação de reinvenção
cultural que contribui para conferir importância normativa, afetiva e va-

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lorativa às identidades, criando condições de possibilidade para o surgi-


mento ou para a intensificação de sentimentos de unidade e de pertenci-
mento, bem como de destinos compartilhados.
A comunidade tomada como sujeito de direito coletivo institui-se como
categoria específica, engendrando novos tipos de relações sociais. A con-
dição de remanescente abarca elementos de identidade e sentimentos de
pertença a um grupo e a terras determinadas, assim incluem-se no debate
as considerações acerca da etnicidade e territorialidade. Etnicidade tomada
no sentido de forma de organização social pautada na atribuição categorial
classificatória de indivíduos em função de sua origem suposta, esta que se
valida na interação social pela ativação de signos culturais socialmente dife-
renciadores (Poutignat & Streiff-Fenart, 1997).
A noção de territorialidade, que é também perpassada na aplicação do
artigo 68 converge para a delimitação de território étnico determinado,
cognominado terras de preto, terras de santo, mucambos. Denominações
que significam territórios específicos e extrapolam a própria expressão
e as classificações atribuídas pelo Estado, na medida em que englobam
singularidades, contendo os modos particulares de utilização de recursos
naturais e as grades de acesso à terra.
As terras de preto, de origem variada, são tomadas como domínios
entregues ou adquiridos por escravos, com ou sem formalização jurídica.
No caso das terras de santo, o que se tem são responsabilidades simbó-
licas dos membros do grupo com divindades, sendo as relações travadas
diretamente com caráter contratual. As divindades são as proprietárias do
local enquanto os primeiros as servem, de formas diversas, e preservam o
seu patrimônio (Almeida, 1995). Nessa perspectiva, o Carmo seria terra
de preto enquanto origem e ascendência escrava, porém é terra de santo en-
quanto construção da identidade do grupo. Essas relações vão, portanto,
além do mero registro formal de terras, englobando dimensão simbólica

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que deve ser levada em conta porquanto inserida na gama de singulari-


dades do grupo.
A realidade de comunidades remanescentes de quilombo insere-se em
campo geralmente conflituoso que abarca interesses fundiários e políti-
cos, um campo com diversos atores e múltiplos interesses, sendo ainda
relevante e fundamental na e para a atuação do antropólogo considerar as
singularidades de cada uma dessas comunidades, enquanto grupo social
repleto de características próprias e particularidades.
Portanto, o reconhecimento de comunidades nos termos do artigo
68 implica em transformações e negociações, bem como readaptações,
em diversos âmbitos, que alteram as relações internas e os significados,
impactando tanto a percepção dos grupos sobre si mesmos, quanto a per-
cepção de agentes exteriores face aos mesmos, em um campo perpassado
pelo conflito, no qual o antropólogo exerce papel fundamental no novo
horizonte que se abre perante a comunidade. A identificação e o reco-
nhecimento oficial são, portanto, partes de um processo mais amplo de
produção de nova rede de relações, produção de novos sujeitos políticos,
produção de revisão histórica e sociológica, somando-se ainda a amplia-
ção da hermenêutica jurídica (Arruti, 2003).
A comunidade enquanto sujeito de direito coletivo institui-se como
categoria especifica, engendrando novos tipos de relações sociais, criando-
se novos sentimentos de unidade sociocultural de onde provém sua força
política, que cresce junto com a força social e com os direitos que adquire
e concretiza. A posse da terra é, portanto, repertório de expressões pecu-
liares que se distinguem das disposições jurídico-formais de propriedade
e de titulação, evidenciando territorialidades carregadas de especificida-
des que fogem à estrutura simplesmente agrária de organização fundiária.
O Carmo corporifica a questão, revelando-se como território especifico,
de preto e de santo, com elementos que se sobrepõem e interpenetram

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simbolicamente, construído historicamente e legitimado por um siste-


ma de relações sociais intrínseco, pautado na religião, responsável pela
manutenção da unidade do grupo ao longo da trajetória de expropria-
ções e conflitos. Ainda que, como resultado da disputa pelas terras, a área
ocupada pelos negros tenha sido reduzida em 99,72%, essas referências
constitutivas ainda hoje marcam o seu cotidiano.
Expressa-se assim a emergência múltiplas formas de propriedade, cada
qual portadora da complexidade que lhe é específica, em franca oposi-
ção à homogeneização imposta pelos procedimentos administrativos do
Estado. As identidades construídas historicamente passam então por um
processo de reformulação, que as direciona no sentido político, passando
então a um momento de construção política, onde o território é recurso
e técnica dessa dimensão, com o pano de fundo da identidade. A iden-
tidade é construída em correlação com o território; e essa relação cria e
informa o direito à terra.
O reconhecimento e a titulação de terras a grupos remanescentes de
quilombos inserem-se na confluência do presente e do passado, visto que
supõem a existência contemporânea de um conjunto de pessoas que com-
partilham origem, noções comuns de pertença e relações sociais atualiza-
das em base a um território que foi histórica e socialmente construído.
O direito prescrito pelo artigo 68 insere-se no contexto dos direitos
para igualdade racial, coletivos e sociais, fundiários e étnicos. Tendo que
o sujeito de direitos é a coletividade, opõe-se a rigidez do artigo com as
singularidades próprias do grupo, formado por indivíduos que comparti-
lham o território, mas não formam um bloco indiferenciado.
O direito garantido pelo dispositivo constitucional remete à identida-
de e traz à tona o debate acerca da sua aplicação, permeado pelas ordens
mencionadas que um único artigo engloba. Além da questão identitária,
observa-se, com o reconhecimento, a criação de novos sujeitos políticos e

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sociais. Todavia, “remanescente de quilombo” trata-se de categoria jurídica,


por vezes posta à distância do cotidiano das comunidades. O bairro do
Carmo não foge às dificuldades indicadas no momento da aplicação do
Art.68, cabendo ao antropólogo inserir-se nesse campo conflituoso que
está a perpassar internamente a comunidade e seus membros frente aos
demais agentes do cenário do reconhecimento.
Os direitos territoriais garantidos pelo artigo 68 do ADCT guardam tam-
bém relação íntima com direitos culturais dessas comunidades. Em que pese
o foco local no Carmo, as reflexões acerca da configuração fundiária, dos
critérios de acesso e uso da terra e da legitimação da propriedade deveriam
estar presentes ao longo do processo de reconhecimento de outros grupos, de
modo a conferir proteção contra o movimento de homogeneização tensiona-
do pela interpretação estreita do arcabouço das regras, da prevalência do for-
malismo e pela atuação restrita de agentes do Estado, que tendem a dificultar
a aproximação do olhar revelador sobre cada situação peculiar.

Os Novos Papéis do Antropólogo frente às Políticas de Reconheci-


mento: espaços de inteligibilidade para a construção de demanda no
decorrer do processo.

Nesse campo, a contribuição do antropólogo ao reconhecimento ofi-


cial de remanescente de quilombo nos termos do artigo 68 do ADCT é
parte do debate acerca da regulamentação jurídica das identidades, cons-
truído no campo que envolve diversos direitos, atores e interesses, situa-
ções históricas e conflitos. A territorialidade negra constatada não implica
necessariamente conexão com as demandas da comunidade no sentido
da titulação – a importância da pesquisa antropológica nesse processo é
bastante discutida pela literatura específica em casos onde a demanda é
clara (Leite, 2004).

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Todavia, a comunidade do Carmo apresenta a situação em que se cons-


tata a existência da demanda pelo direito, constituída por vias improváveis,
tortuosas e estendidas no tempo.11 Durante a pesquisa antropológica reali-
zada visando à elaboração do laudo, o papel dos pesquisadores foi impor-
tante na construção da percepção do grupo enquanto portador de direito.
A chave de todo o processo residiu em muitos momentos antecedentes à
titulação, tomada aqui como o seu futuro ponto culminante. Assentou-se,
sobretudo, na relação direta entre os pesquisadores e os sujeitos, corpori-
ficadas durante a realização dos diagnósticos, a elaboração e o registro das
entrevistas, as longas conversas sobre santos e famílias, sobre o passado e o
futuro, as fotografias consentidas, as intermináveis reuniões onde se revela-
vam parentescos e segredos, acompanhadas por bolos e refrescos.
Não seria exagero afirmar que parte da construção da demanda esteve
ligada à construção da confiança mútua que permitiu acesso e análise
das muitas cartografias disponíveis, das histórias pessoais, dos conflitos
familiares, bem como a emergência de tensões, violências e vergonhas
quase esquecidas no passado, permitindo as interpretações que apenas o
distanciamento do método é capaz de fazer emergir num texto pericial
construído com o objetivo e os cuidados de atingir a finalidade esperada.
As perícias antropológicas inserem-se em quadros complexos, amplos
campos de interlocução do qual fazem parte vários agentes e interesses,
bem como diversos profissionais. É ainda um campo cheio de expectati-
vas quanto ao trabalho do antropólogo, por parte da comunidade – o an-
tropólogo ali representa a possibilidade de acesso a direitos que são ainda
novidades para muitas comunidades, que se organizam para pleiteá-los, e
é ainda visto como alguém capaz solucionar os conflitos. O profissional
chamado a realizar os laudos, além inserir-se nesse campo conflituoso, é
parte da nova dinâmica de organização da comunidade voltada ao reco-
nhecimento como remanescente de quilombo por parte do Estado.

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O trabalho do antropólogo, realizado no âmbito do reconhecimento


de comunidades remanescentes de quilombos, tem ampla abrangência.
O processo de elaboração do laudo na relação e na inserção com os mem-
bros do grupo carrega para dentro de si dúvidas e questionamentos, as
novas descobertas e os conflitos que as delineiam. Desse modo, a im-
portância do laudo, tomado habitualmente por agentes públicos como
simples peça técnica, deve ser revista face à grande responsabilidade que
carrega em razão dos desdobramentos que pode desencadear já em sua
fase de elaboração.
O laudo, como peça a ser incorporada aos processos de titulação, não
é o portador dos atestados de identidade,12 tampouco determina aqueles
que usufruirão direitos, mas é documento produzido por profissional que
deve estar ciente de que os seus escritos não representam tão somente mais
uma leitura ou uma interpretação sobre fatos no interior de um quadro
teórico-metodológico. É o meio pelo qual se produzem elementos que
permitem a elaboração de um julgamento (Leite, 2004; Santos, 2004),
ou ainda, conforme dito por Aracy Lopes da Silva (USP), o antropólogo
quando assume a elaboração de um laudo assume outras posições, de
cientista e trabalhador acadêmico, de pesquisador de campo, de militante
e de representante de uma profissão não regulamentada, que produz co-
nhecimento não aplicado, mas aplicável, cuja eficácia na função de forne-
cer material de prova depende do seu rigor em termos acadêmicos.
O papel do antropólogo como profissional é também repensado por-
que perpassado por uma série de questões éticas e de outras tensões, sendo
carregado de responsabilidades frente ao grupo que estuda. Dado tratar-se
de um direito coletivo há ainda outros tantos pontos que podem ser des-
tacados, considerando as relações internas ao grupo. O sujeito do direito é
o grupo, tomado como a somatória de vários indivíduos dentro do todo,
como bloco categorizado em “comunidade remanescente de quilombo”. In-

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divíduos que compartilham espaços e crenças, mas não necessariamente


compartilham modos unívocos de pensar, representam tendência, não
unanimidade absoluta. Fatos que devem ser observados e trabalhados pela
sensibilidade do antropólogo13 em campo, mas que para o preceito cons-
titucional e para o título de propriedade que dele resulta não existem, pois
esses grupos e indivíduos são tomados como ideal e abstratamente unos.

Notas

1 Deborah Stucchi é Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas,


UNICAMP e analista de Antropologia/Perita da Procuradoria da República no Estado de
São Paulo. Rebeca Campos Ferreira é Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antro-
pologia Social da Universidade de São Paulo, USP e foi estagiária em Antropologia da Procu-
radoria da República no Estado de São Paulo, entre 2008 e 2010.
2 Trabalho apresentado no I Encontro Nacional de Antropologia do Direito, Universidade de
São Paulo, agosto de 2009 e aceito no Seminário Panorama Quilombola, Pontifícia Univer-
sidade Católica do Rio de Janeiro, novembro de 2009.
3 Merecem ser destacadas as procissões anuais: ‘pagã’ de N.Sra.das Brotas (02/02), Sexta Feira
Santa, Santo Expedito (19/04), Santo Antonio (13/06), ‘pagã’ de S. João (24/06), Sagrado
Coração de Jesus (15/07), N.Sra.do Carmo (16/07), dia da grande festa de N.Sra.do Carmo
(domingo posterior a 16/07), S.Elias (20/07), ‘pagã’ de N.Sra.das Brotas (21/09), N.Sra.
do Rosário (07/10), ‘pagã’ de N.Sra.Aparecida (12/10), procissão ‘pagã’ das Almas (Finados,
02/11), N.Sra.da Conceição (08/12), e procissão do Menino Jesus (25/12).
4 S.Bento (março), Santa Cruz (maio), Santo Antonio (junho), N.Sra.do Carmo (julho), N.Sra.
do Rosário (outubro), N.Sra.da Conceição (dezembro). Além da festa de S. Gonçalo.
5 S.Bento (março), S.Pedro (junho), N.Sra.do Rosário (outubro), N.Sra.da Conceição (dezembro).
6 Santo Expedito (abril), N.Sra. do Carmo (julho), N.Sra.Aparecida (outubro), Finados
(novembro), do Menino Jesus (dezembro).
7 Em março e setembro de todos os anos, de três a cinco ônibus saem da comunidade na sexta-feira
em direção ao Santuário de N.Sra.Aparecida, retornando no domingo. Há um roteiro das ativi-

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dades religiosas e locais sagrados de visitação durante o final de semana, tradicionalmente seguido
pelos moradores.
8 Duas romarias saem do bairro, em outubro ao Santuário de N.Sra.Aparecida e em novembro
a Pirapora do Bom Jesus. E duas romarias chegam ao bairro, uma vinda de Canguera, que
traz N.Sra.das Graças, em 16 de julho, e outra de grande porte, organizada por descendentes
de escravos da Santa que não residem no bairro, no dia da grande festa de N.Sra.do Carmo.
Nesta última chegam Santa Edwiges, Santa Teresinha e Santa Rita.
9 Tal como no caso da novena das Almas, em novembro, onde se diz que aquele que comparecer
ao primeiro dia da reza está obrigado a comparecer a todos os demais, ou as almas o seguirão.
Ainda, na festa de São Gonçalo, aquele que dança a primeira volta ao terreiro deverá participar
até o final ou terá dores nas pernas nos dias seguintes.
10 Um ano após a conclusão do laudo antropológico, os órgãos estadual e federal responsáveis
pelo reconhecimento e titulação das terras não haviam adotado medidas previstas pela regula-
mentação normativa. A Procuradoria da República em Sorocaba, em agosto de 2010, ajuizou
a Ação Civil Pública nº 0007250-19.2010.403.6110, em que requer que o INCRA seja con-
denado à apresentação de cronograma “relacionado à identificação e eventual reconhecimento de
direitos constitucionais da comunidade quilombola do Carmo e de seu efetivo cumprimento”
11 Parte dos conflitos prevalentes no campo é explicitada na forma incisiva pela qual os atuais
proprietários da maior parte das terras da antiga Fazenda do Carmo têm revelado sua discor-
dância em relação aos procedimentos visando ao reconhecimento. Independentemente do
direito ao contraditório que, no caso, se realizaria por intermédio de antropólogo contratado
para a contraposição do laudo, os proprietários exercem intensa pressão junto à Instituição
para desqualificar a pesquisa. Requerem informações administrativas, em princípio, públi-
cas – diárias para os deslocamentos ao campo, afastamentos legais e relatórios internos de
atividades – além de acesso a dados de pesquisa, como anotações de campo, entrevistas e
identificação dos informantes. Tais acessos, se disponibilizados, violariam o código de ética do
antropólogo no que diz respeito ao dever de preservar informações confidenciais, à garantia de
intimidade dos informantes e de que a colaboração prestada não seja utilizada com o intuito
de prejudicar o grupo.
12 Segundo a Carta de Ponta das Canas (2000), “os relatórios de identificação étnica não têm
caráter de atestado, devendo ser elaborados como diagnoses das situações sociais investigadas,
que orientem e balizem as intervenções governamentais na aplicação dos direitos constitu-

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cionais”. A reflexão sobre essa premissa foi elaborada por diversos autores, destacando-
se as considerações de Ilka Boaventura Leite (2002, 2005 e 2008) e Eliane Cantarino
O’Dwyer (2002 e 2008).
13 A sensibilidade antropológica pode ser entendida como forma de compreensão para analisar
os modos de expressão de indivíduos e grupos envolvidos nos processos de reconhecimento
de direitos territoriais. A respeito ver Geertz (1978 e 1998).

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ABSTRACT: Demands opened after the publication of the Article 68 of the Tran-
sitional Constitutional Provisions Act related to the recognition of territorial rights
to remainders of quilombo communities, represent an opportunity to reflect on the
emergence of new categories of legal subjects and their cultural and political effects on
various scales of approach to these groups. Since its publication in 1988 until now, 21
years later, has been reflected little about the impacts of the processes of recognition
on the daily life of the groups benefit. Based on anthropological study conducted in
Carmo, black neighborhood in São Roque, interior of São Paulo, our objective is to
discuss how the requirements imposed by this law, formalized in the internal rules
of government agencies responsible for implementing the policy of identifying and
reinterpreted in the words and practices of officials, technicians and bureaucrats, set
certain boundaries that overlap with the forms of organization, representation and
decision specific to these groups.

KEYWORDS: Remainders of quilombo communities, anthropological reports,


social rights, politics of recognition, identity

Recebido em março de 2010. Aceito em agosto de 2010.

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Resenhas

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CABAÇO, José Luis. Moçambique: identidade, colonialismo e
libertação, São Paulo, Editora UNESP, 2009, pp. 359.

A invenção de Moçambique
Sandro M. de Almeida-Santos
Doutorando em Antropologia Social (DAN/UnB)

O ponto central da tese de doutorado de José Luis Cabaço, defendida


no PPGAS da Universidade de São Paulo em 2007 e premiada pela AN-
POCS em 2008, é demonstrar a construção de uma identidade nacio-
nal moçambicana em oposição à autoridade de Portugal. A formação de
Moçambique é lida a partir de um prisma materialista histórico. O autor
apresenta uma história de longo prazo cobrindo desde a primeira pre-
sença portuguesa na região (1498) até a conquista da independência em
1975. Ele concede maior dedicação aos acontecimentos posteriores à cha-
mada “ocupação efetiva”, a partir dos anos 1890, que lhe permitem expor
com clareza as dicotomias do regime colonial: “civilizados” x “indígenas”;
“portugueses” x “africanos”; “brancos x negros”.
A “poética do contraste”1 é explorada por Cabaço como elemento fun-
dador da sociedade moçambicana no século XX. Reflexões sobre “a essên-
cia dualista da sociedade colonial” (Cabaço, 2009, p. 27) acompanham
todo o livro. Seu argumento, de cunho nacionalista, é que o desconten-
tamento duradouro e generalizado com a estrutura do regime colonial,
na cidade e no campo, possibilitou a emergência de uma identidade
moçambicana sem as divisões entre “brancos” e “negros”, “civilizados”
e “indígenas”. Sob a liderança da Frente de Libertação de Moçambique

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(FRELIMO), uma nova nação, um “homem novo”, estaria nascendo nos


anos 1970. Organizado cronologicamente, o livro é, sem dúvidas, uma
rica fonte de dados para aqueles interessados na história social/cultural do
colonialismo e dos movimentos pró-independência em África.
José Luis de Oliveira Cabaço nasceu em Moçambique e foi participante
ativo das mobilizações pela independência de seu país. Um grande mérito de
sua tese é justamente oriundo da sua condição de sujeito engajado com as lutas
de libertação, o que lhe permite intimidade com muitos dos fatos narrados.
Ele, branco, filho de uma elite que se distanciava formalmente/juridicamente
da maioria de negros, empenhou sua vida em defesa de transformações po-
líticas e sociais em sua terra natal. Como militante, conhece bem as mazelas
provocadas pela colonização portuguesa e, como antropólogo, soube descrever
habilmente o processo de construção de Moçambique enquanto Estado.
O modelo de organização social português, bem como a religião e a
filosofia europeias foram difundidos na porção de terra localizada ao su-
deste do continente africano, submetendo pela negociação e/ou pela força,
pouco a pouco, diferentes comunidades africanas, hindus e muçulmanas
do litoral e do interior. O autor comenta que os primeiros colonos em
Moçambique foram responsáveis pelo estabelecimento de um modelo de
relações de poder inspirado no feudalismo português, casando-se com mu-
lheres de linhagens africanas (idem, p. 57). Mas até finais do século XIX, a
presença lusa era tímida no território. Os pioneiros sequer são considerados
os primeiros heróis nacionais. Os “portugueses-africanos”, mestiços, esta-
vam muito mais para “africanos” do que “portugueses” aos olhos de Lisboa.
Cabaço argumenta que os brancos da terra, como eram classificados no
tempo da “ocupação efetiva”, em virtude de sua desqualificação técnica,
foram preteridos para exercer o alto escalão da administração e das empre-
sas coloniais. Começava a se delinear com maior contundência a oposição
entre colonizadores e colonizados (pp. 122-123)

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Os primeiros heróis nacionais de Moçambique fazem parte da geração


de colonos responsável pela ocupação militar portuguesa. São heróis lu-
síadas, conquistadores. Em 1895, após anos de guerras contra lideranças
locais (makonde, swahili, makua, etc.), Moçambique é institucionalizado
como apêndice de Portugal. A celebrada “Geração de 95”, de Antônio
Enes, protagonista da “ocupação efetiva”, ainda que defendesse a descen-
tralização administrativa, legislativa e econômica do governo colonial, era
fiel à autoridade da metrópole (p. 70).
Cabaço discute o lugar da antropologia na empresa colonial argu-
mentando que, àquela época, o colonialismo português se sustentava fi-
losoficamente na influência do evolucionismo francês, segundo o qual os
“selvagens” podiam/deviam ser educados para adquirir a “civilização”. Tal
concepção justificava, segundo o autor, uma “missão civilizatória”, que
organizava a sociedade colonial segundo a distinção entre “civilizados” e
“indígenas” (p. 83s.). A categoria de “indígenas” era ainda ramificada en-
tre “assimilados” e “não assimilados”. “Civilizados” eram os sujeitos bran-
cos, de educação europeia. “Indígenas” eram os negros nascidos no local.
“Assimilados”, a princípio, eram aqueles negros que se formavam nas es-
colas missionárias, sabiam falar o português e podiam ser aproveitados no
comércio, nas fábricas ou mesmo nos afazeres domésticos (p. 104).
A política de assimilação, no entanto, era limitada pela baixa capaci-
dade de penetração portuguesa no interior, culminando em um arranjo
político-administrativo mais próximo ao modelo de “governo indireto”
praticado pelos ingleses em suas colônias, em detrimento do modelo
francês. Os territórios ocupados por populações “não-assimiladas” fo-
ram chamados de “circunscrições indígenas”, administradas por “régulos”
(lideranças “assimiladas” legitimadas pelo governo colonial) e “tribunais
tradicionais” com autonomia para resolução de conflitos localizados (p.
57ss.). Grandes porções de terra foram concedidas a empresas multina-

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cionais (anglo-portuguesas na maioria), chamadas Companhias Majestá-


ticas, as quais possuíam amplos poderes administrativos, entre eles exclu-
sividade na exploração da mão de obra e das matérias-primas (p. 68ss.).
A autoridade portuguesa esteve distante de Moçambique até que a im-
plantação do Estado Novo de Portugal (1926) repercutisse na província: a
ditadura capitaneada por Antônio Salazar, que durou mais de 40 anos, levou
para as extensões de seu Império Ultramarino um corpo burocrático muito
mais presente no cotidiano dos cidadãos. Uma nova leva de lusitanos foi esti-
mulada a migrar para exercer empregos públicos. As cidades cresceram. Após
os anos 30, a segmentação entre populações distintas por seu estatuto jurídico
foi acentuada. A separação formal entre “civilizados” e “indígenas” foi exposta
na prática em virtude da intensificação do convívio (p. 104ss.).
Em uma leitura materialista histórica não poderia faltar o conflito de
classes. Cabaço conta que a urbanização trouxe consigo o aumento do
contingente de “indígenas” (assimilados e não assimilados) nas cidades,
que passaram a residir nas periferias; movimento que ele qualificou como
a formação de grupos sociais “periurbanos”. A separação “civilizado” e
“indígena”, no contexto capitalista urbano, é traduzida por Cabaço na
divisão entre “capital” e “trabalho” (p.139s).
O autor traz como ilustração da separação entre brancos e negros, o
episódio de sua aproximação com um “criado” da sua família, o “indígena
assimilado” Rafael Arcanjo. Certo dia, eles foram ao estádio de futebol,
torciam pelo mesmo clube, mas foram obrigados a sentar separadamente
nas arquibancadas. O processo de conquistar a confiança de Rafael parece
não ter sido fácil. O jovem “assimilado” era fechado e arredio, comporta-
mento comum ao sujeito oficialmente marginalizado pela cor de sua pele
e por sua origem familiar. A confiança veio paralelamente a uma demons-
tração de respeito. Rafael foi preso regressando da escola, à noite, fora do
horário de circulação permitido aos “indígenas”. Levado à delegacia, foi

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posto a realizar trabalhos de limpeza. Quando Cabaço lá chegou e se de-


parou com a cena, criticou veementemente os guardas e ordenou a soltura
do homem (pp.133-138).
A atitude foi tão surpreendente que Rafael Arcanjo criou a categoria
de “branco diferente” (p.138) para se referir ao jovem José Luis Cabaço.

“Você se recorda que, quando falava ao polícia, se referia a mim como


‘este senhor’? Sempre os brancos me trataram por ‘rapaz’! Nunca um
branco me tratara por ‘senhor’ e isto nunca mais esqueci.”(p. 138)

E Moçambique contava com outros “brancos diferentes”! Em Portugal, os


chamados “liberais” eram adversários políticos do regime de Salazar. Na colô-
nia, os oposicionistas brancos da ditadura lusitana levantaram a bandeira da
segregação racial e abriram novos canais de comunicações com lideranças “as-
similadas” que habitavam a periferia das cidades. O domínio português em
Moçambique foi perdendo o fôlego pouco a pouco a partir dos anos 1950.
O autor dedica um capítulo às “Reformas luso-tropicais”, inspiradas
nas teorias de Gilberto Freyre; um último suspiro do poder salazarista,
que recorre à antiga ideia de “missão civilizatória” lusíada para justifi-
car a relutância portuguesa em abandonar o colonialismo. Em 1961, o
estatuto de “assimilado” deixa de existir. Os tribunais “tradicionais” são
extintos – todos devem se submeter à justiça nacional. A partir de então,
os nascidos em solo moçambicano são considerados cidadãos de Portugal.
Cabaço demonstra que a concessão de cidadania portuguesa e o apelo ao
lusotropicalismo, contudo, não foram suficientes para aplacar os ânimos
pró-independência. Acompanhando a tese, enquanto Salazar patrocinava
excursões de Freyre às colônias portuguesas para teorizar sobre os aspectos
positivos da “civilização lusotropical” e da miscigenação, os africanos que
tiveram a oportunidade de estudar na Europa, por lá conheceram o socia-

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lismo e se engajaram na rede internacional dos movimentos de indepen-


dência, pois eles conheciam bem os aspectos negativos do colonialismo.
Eduardo Mondlane, mentor do projeto nacionalista moçambicano, fazia
parte deste grupo (p. 152ss.).
Foram quase 20 anos de conflito armado, muitas mortes e prisões. De
acordo com Cabaço, enquanto nas cidades os africanos letrados habitan-
tes dos subúrbios se aliaram aos brancos liberais, no campo, o trabalho
forçado nas culturas de rendimento e a ingerência dos agentes oficiais
do governo colonial nos assuntos das comunidades criaram condições
para a mobilização das populações insatisfeitas. Muitos dos que foram
à Europa estudar atuaram como ideólogos do movimento nacionalista e
embaixadores da causa libertária. A FRELIMO, sob a liderança de negros
e brancos de educação europeia, atuava no recrutamento dos desconten-
tes, urbanos e rurais, tendo em vista a construção de uma nacionalidade
moçambicana, afirmada oficialmente com a conquista da independência
em 1975 (p. 243ss.).
A agenda política da FRELIMO pretendia eliminar as “tribos” para
dar espaço à “nação” (p. 280ss.), mas a invenção de um Estado-nação não
eliminou as antigas relações entre as linhagens africanas, e, neste ponto, a
pesquisa deixa algo a desejar. Qual a contribuição das tradições africanas
para a história social de Moçambique, para a identidade, para a liber-
tação? As relações complexas entre a população de origem africana e as
chamadas “autoridades tradicionais”2, bem como as relações entre essas
“autoridades tradicionais” e as “autoridades coloniais” foram exploradas
superficialmente. O olhar macroscópico para um “Moçambique” pode
ter inibido, em nosso autor, a visão de microscópicos “moçambiques”.
Algumas passagens no livro permitem entender que os povos africanos
são tidos por populações passivas, que apenas observaram sua “cultura”
ser aniquilada pelo colonizador branco.

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Segundo o autor, à época da “ocupação efetiva”, a pulverização do poder


provocada pela queda do Império de Gaza estimulou “elementos centrífu-
gos nas sociedades dominadas, que logicamente, lhes inibiram a dinâmica
interna e a capacidade de resposta política e cultural à consolidação do
poder estrangeiro” (p. 76). No entanto, outras pesquisas recentes defendem
que, apesar de todos os pesares oriundos do contato violento, as rearticu-
lações das relações de poder locais e as transformações dos costumes não
ocorreram de forma tão “lógica” e merecem ser estudadas mais de perto (ver
Bowen, 2000; Florêncio, 2005; Negrão, 1995; Pitcher, 1998).
O descontentamento com relação à autoridade de Portugal, conforme a
tese demonstra, serviu para suspender conjunturalmente a “poética dos con-
trastes” no seio do território moçambicano face à existência de um opositor
em comum, a pesada lei portuguesa. A FRELIMO alçou Samora Machel à
presidência, um sujeito de ancestralidade africana educado em escola cristã.
Em outros tempos: um “indígena assimilado”. Mas a história de Moçambi-
que, após a independência, não foi a história da construção de uma sociedade
igualitária e democrática, como pretendiam as lideranças do novo Estado.
O autor avalia que as políticas socialistas não foram capazes de romper radi-
calmente com a “sociedade colonial” nem tampouco consolidar a tal “iden-
tidade nacional” em contexto de tamanha fragmentação. Os percalços do
governo pós-independência, no entanto, não retiram o brilho desta pesquisa
muito bem documentada e temperada pelo envolvimento pessoal do autor.

Notas

1 Tomo emprestado o termo empregado pelos Comaroff para designar o processo de distinções
e congelamento de identidades estereotipadas em alteridades hierarquicamente classificadas,
que caracterizou o colonialismo europeu no continente africano (ver Comaroff & Comaroff,
1997, p. 26).
2 Entendendo autoridade tradicional como a liderança político-espiritual legitimada por sua

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capacidade de intermediar entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos (Florêncio, 2005,
p.15).

Referências Bibliográficas

BOWEN, Merle
2000 The State against the Peasantry: Rural Struggles in Colonial and Postcolonial Mozambi-
que, Charlottesville and London, University of Virginia Press.

COMAROFF, Jean & COMAROFF, John


1997 Of Revelations and Revolutions: Christianity, Colonialism, and Consciousness in South
Africa v 2, Chicago, The University of Chicago Press.

FLORÊNCIO, Fernando
2005 Ao encontro dos mambos: autoridades tradicionais vaNdau e Estado em Moçambique,
Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais.

NEGRÃO, José
1995 One Hundred Years of African Rural Family Economy: the Zambezi Delta in Retrospec-
tive Analysis, Lund, Lunds Universitet Reprocentralen.

PITCHER, Anne
1998 “Disruption without Transformation: Agrarian Relations and Livelihoods in Nampula
Province.”, Journal of Southern African Studies, vol. 24, issue 1, pp. 115-141

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SÁEZ, Oscar Calavia. Os caminhos de Santiago e outros ensaios
sobre o paganismo. Rio de Janeiro: Book-Link, 2007, pp. 248.

Fernando Giobellina Brumana


Universidade de Cádiz

El tema central de este trabajo es la dinámica secular de un cristianismo au-


tónomo – si no opuesto - al de Roma: Santiago – los Santiagos -, el Camino
– los caminos - que a su ciudad llevan, la multiplicidad laberíntica que uno
y otro atesoran. El propio hecho de que Santiago sea el único santo católico
cuyo nombre haya encarnado el ‘san’, indica des­de un comienzo que esta-
mos ante un significante muy cargado, pleno de polisemia, un significante
dispuesto para diversas sintaxis que de él se sirvan. Es al despliegue de tales
redes de significaciones a lo que Calavia dedica este libro.
Un sepulcro donde yace, escondido, un mago condenado – Priscilia-
no, obispo hereje del siglo IV-, un Santiago mayor y otro menor, un San-
tiago matamoros de ‘cierra España’ (el grito de guerra del ejército español)
y el Santiago de una España abierta a los peregrinos de toda Europa, un
Santiago yaciente y un Santiago viajero, peregrino también él, un Santia-
go de los conquistadores de América y un Santiago de los conquistados
indios para quienes el propio caballo se torna hermano gemelo del santo,
retomando así el ciclo mesoamericano de los Gemelos (“El Santiago ame-
ricano es un Santiago definitivamente perdido en un laberinto de espejos”
[p.94]). Y más. Veamos algunos de estos avatares.
Hay un Santiago emblema de la estructura, patrono de España, de sus
ejércitos, de su corona. Como sombra suya, en paradójica contraposición,

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hay otro que es la razón o el pretexto de la vida marginal de millares


y millares de peregrinos que abandonan la estructura de sus quehaceres
profanos, de su convivencia ordenada en familias y villas, para sumergirse
a veces durante años en el no lugar por excelencia, el camino, deslizarse al
estado liminar de communitas, mezclarse los honestos labriegos y artesa-
nos con bandidos, con mercachifles, con el propio Santo vuelto peregri-
no. Se trataba, queda claro, de una devoción extravagante – pocas veces
mejor dicho -, con un lugar comparable, dice el autor (p. 63), al de los
cultos iniciáticos de la Antiguedad clásica. Paralelismo que el autor tam-
bién señala (p. 150) entre el gremio de los albañiles a quienes se debían
los puentes, los templos, las hospederías, etc., las obras que hacían posible
la peregrinación y que se alimentaban de ella, y las sectas que llevaban a
cabo tales cultos. Los albañiles del Camino eran una categoría diferente
de la de los constructores comunes; poseían, entre otras cosas, una eru-
dición de la que los segundos carecían además de una versión propia de
cristianismo, con un Dios arquitecto universal; tenían una libertad crea-
tiva que no se sometía a reglas externas. Los esoterismos posteriores, hasta
los actuales, han visto en estos albañiles los portadores de una sabiduría
secreta que se revelaba en los millares de signos desplegados en un templo.
El siglo XVI acabó con esta autonomía; la planificación de toda obra pro-
venía de un poder cada vez mas centralizado: “Si fuese poca la vigilancia
de la Iglesia, las cofradías de constructores ven que su metáfora central
– el cosmos como arquitectura - es despojada por otra cofradía esotérica
que comenzaba a controlarlo todo: el Estado” (p.163).
La peregrinación era una anti-estruc­tura in­quie­tante no sólo en lo
simbólico, ya que amenazaba con la sangría demográfica a algunos po-
blados para ame­nazar a otros con la invasión de extraños. Las autoridades
civiles y religiosas no fueron ciegas ante es­te peligro y, en mayor o menor
medida durante los siglos que ha durado el fenómeno, combatieron la

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peregrinación. Llegó un momento en el que la crítica erudita puso en


du­da la propia meta de los caminantes: el Apóstol nunca había pisado
tierra española; la tum­ba en la que se pensaba que yacía era, por lo tanto,
un engaño. Pero tumba había, ¿a quién albergaba en­tonces? A comienzos
del siglo XX, un historiador eclesiástico apuntó al Prisciliano que se men-
cionaba al principio: “Compostela puede ser, entonces, un monumento
de la expiación o de la venganza. Tal vez, la Iglesia cristiana purgue allí
su pri­mer fratricidio, venerando como príncipe de los santos al primer
hereje condenado” (p. 17).
Paradojas borgeanas aparte, la impostura supuesta explica la etimolo-
gía que un hagiógrafo medieval, el más importante entre ellos, proponía
para ‘Santiago’: suplantador. Suplantador, habría que entender, de un he-
chicero. Ahora bien, la relación con las prácticas místicas transgresoras
de Santiago, ni empieza ni termina aquí. Ya el Santiago hebreo tuvo que
habérselas con hechiceros aliados a los demonios; a unos los sedujo y con­
virtió, a otros dejó en la impotencia. Alguna versión lo hace morir por la
espada –un nuevo Herodes es el mandatario-, y hay otra que lo envía ya
muerto a España para encontrar en su camino a una bruja (Lupa, es decir
‘loba’) también con demoníacos aliados, quien termina, tras diversos su-
cedidos prodigiosos, tornándose cristiana y transformando su palacio en
templo y sepulcro del santo.
La transgresión de la figura estudiada se revela también en el lugar que
ocupaba su santuario, Compostela, frente a los otros destinos principales
de peregrinación para los devotos cristianos: Roma y Jerusalén; mien-
tras que estos últimos basaban su atracción en la ortodoxia evangélica,
“Compostela consiguió imponer una sacralidad que vivía por completo al
margen del evangelio, apoyada en textos apócrifos” (p. 62). Para el centro
del poder religioso de la Iglesia Católica, la legitimidad de Santo y de San-
tuario era nula. “En el Vaticano, el Santiago español nunca sería más que

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una tradición de España, un país irremediablemente ‘popular’” (p. 89).


Esa subalternidad, esta propia invisibilidad a los ojos del Centro, per-
mitió que Santiago no sólo resumiese devociones cristianas contrapues-
tas, sino también que abriese un espacio sincrético con los musul­manes,
los grandes enemigos del cristianismo has­ta el cisma protestante. En la
periferia de la ciudad de Granada, a fines del siglo XIV, cien años después
de que los cristianos expulsasen a los moros, se descubrió un túmulo que
guardaba viejas osamentas humanas junto a unas extrañas cintas y plan-
chas de plomo con inscripciones que pronto se supo árabes. Los textos
que – supuestamente - fueron poco a poco apareciendo mostraron, ante
todo, que allí había sido martirizado un discípulo de Santiago; los plomos
referían, entonces, a las enseñanzas del Apóstol retomadas por su alumno.
Son muchas y complejas las andanzas de estos textos, sus presuntas tra-
ducciones, la imaginable escritura apócrifa a varias manos que alimentó
a los des­­cu­bri­mientos; Calavia las resume de una manera irresumible.
En pocas páginas vemos como una aventura religiosa se funde con otra
política; política que ha tenido continuidad hasta hace no mucho tiempo:

“Las profecías de los Plomos parecen hechas para sugerir una alianza en-
tre el cristianismo español y el islamismo contra la Europa protestante.
Un disparate, sin duda, pero también es verdad que la historia que ocur-
re de hecho siempre trata de manera demasiado arrogante a aquella que
podría haber ocurrido. En los años 70, inicio de la reintegración política
(de España) en el continente, el aroma africano de los Plomos seducía a
algunos espíritus poco convencidos de la felicidad europea.” (p. 111).

Una parte final del libro, complemento de los desarrollos sobre San-
tiago, encara un par de asuntos vinculados al fin del paganismo. Primero,
las dos tentaciones opuestas en la construcción de la mitología sobre la

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relación entre el poder romano y los primeros cristianos: la que finalmen-


te venció, que la muestra como una continua masacre que forjó tantos
santos mártires; la que muestra a Roma como favoreciendo secretamen-
te la nueva religión, única esperanza de supervivencia del Imperio. Tal
contradicción, profeta vs. emperador, es una de las manifestaciones de un
cisma permanente en el cristianismo “que separa una especie de secta neo-
judaica y una especie de iglesia neo-romana” (p.185).
Otra cuestión es la continuidad entre el cristianismo y el paganismo,
oculta por la insistencia en la brutalidad con que los paganos habría repri-
mido la nueva fe; “los mártires cristianos han muerto (…) por la victoria
de una religión nueva que con el tiempo acabaría celebrando los mismos
festejos de la antigua” (p. 209). Esta contaminación está en las bases de
la crítica protestante que denuncia a Roma como idólatra y propone un
regreso, no al primer cristianismo, sino a la oposición global entre una
religiosidad y otra, presente en su nacimiento; la realidad sincrética del
cristianismo se veía así puesta en juicio por una ideología de la pureza
(religiosidad popular vs. control erudito).

*
“Os caminhos de Santigo” está construido con una escritura seductora e
irónica, de una densidad fluida en la que la erudición no obstaculiza la lectura.
Calavia ha tenido el buen juicio de no abrumar su tex­to con notas a pie de
página; las referencias bibliográficas aparecen tras cada capítulo en pequeños
apéndices que brindan un panorama histórico de la literatura con la que el au-
tor ha trabajado. Esa forma ajena a los usos académicos es uno de los signos que
da al libro un cierto aire amateurístico del que advierte el autor.
Y tal autor para tal tema; Calavia, en su calidad de figura carnal y
no de símbolo, es también polisémico, o mejor, todo-terreno: español

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abrasileñado ha tiempo, fabulador de novelas, investigador de campo en


un cementerio brasileño y entre indios fronterizos y ambiguos. Este libro
condensa, prolonga y culmina varios trabajos anteriores suyos, y apunta,
como todos sus textos, al reconocimiento de la vida salvaje de los sím-
bolos, al rastreo de los vericuetos inesperados, incontrolables, por donde
ésta se desdobla.

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ABU-LUGHOD, Lila. Dramas of Nationhood: the politics
of television in Egypt, Chicago/Londres: The University
of Chicago Press, 2005, pp. 319.

Raphael Bispo
Museu Nacional - UFRJ

Desde o final dos anos 1970, Lila Abu-Lughod realiza trabalhos de cam-
po no Egito, dedicando-se a estudar os seus diferentes grupos sociais, com
um grande destaque para as mulheres do país. Suas primeiras incursões de
pesquisa na região foram feitas numa tribo de beduínos conhecida pelo
nome de Awlad ‘Ali, com quem ela conviveu durante mais de dez anos
junto a uma grande família pertencente ao grupo. Veiled Sentiments e Wri-
ting Women’s Worlds são duas influentes monografias fruto dessa investida
etnográfica inicial, que conseguem sintetizar reflexões sobre o estatuto das
emoções no campo antropológico e as críticas contemporâneas que eclo-
diram na disciplina a partir de correntes teóricas comumente conhecidas
por meio de rótulos como feminista, pós-colonialista e pós-moderna.
Dramas of Nationhood é uma contribuição etnográfica recente da auto-
ra, preocupada com os dilemas contemporâneos pelos quais passa o Egito,
que se refletem nas experiências cotidianas de seus cidadãos. Se outrora Abu-
Lughod investigou uma manifestação cultural popular e bastante tradicional
entre as mulheres de Awlad ‘Ali – as poesias de amor por elas enunciadas, cuja
lógica de expressão estaria ligada a uma ideologia de dominação aos homens
locais – em seus trabalhos mais recentes a atenção se volta para a análise da
disseminação dos meios de comunicação pelo território egípcio, logo, aquilo
que poderíamos classificar por meio de um termo recorrente como “cultu-

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ra de massa”. Para a infelicidade das pessoas mais velhas da tribo beduína,


as jovens que ela acompanhou todo amadurecimento já não se dedicavam
como suas mães à arte de aprender a criar ricas poesias amorosas. Elas agora
gostavam de escutar as grandes bandas de música do momento por meio das
rádios cujos sinais eram transmitidos para o norte do país diretamente do
Cairo, a capital do Egito, além de passarem horas acompanhando os dramas
melodramáticos transmitidos pela poucas televisões da região. Mais do que
apenas um conflito de gerações, a autora percebe nas mudanças comporta-
mentais incentivadas pelos meios de comunicação uma interferência do Es-
tado nas dinâmicas culturais do Egito, principalmente através da tentativa de
assimilar os grupos mais desfavorecidos socialmente a uma configuração de
Estado-nação já bastante arraigada nos centros urbanos do país. A tese central
de Dramas of Nationhood, portanto, é analisar como a televisão se constrói
como um poderoso instrumento para a produção de uma cultura nacional
no Egito, transformando-se numa instituição de relevância no horizonte das
dinâmicas de poder e dominação do país, capaz de estimular uma sensação
de pertencimento à nação egípcia. Afirma a autora: “Television may be one
of the richest and most intriguing technologies of nation building in Egypt,
because it works at both the cultural and sociopolitical levels, and it weaves its
magics through pleasures and sub-liminal framings” (p. 9).
O capítulo 1 do livro de Abu-Lughod procura esclarecer essa ideia-chave
de pensar a televisão em termos de um projeto de constituição da nação
egípcia. Em países que deixaram de ser colônias ao longo da segunda me-
tade do século XX, os meios de comunicação assumiram propósitos polí-
tico-sociais específicos, indo além das funções rotineiramente associadas a
eles como a de entreter e incitar o consumo. A televisão egípcia possui um
forte controle do estado, que procura constituir cidadãos por meio de uma
programação educativa voltada para uma espécie de pedagogia civilizatória
das pessoas mais pobres e tidas como “atrasadas” e “inferiores”, tais como

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os camponeses e os moradores das áreas periféricas dos centros urbanos,


que precisariam ser modernizados e “incluídos” no “novo país” que está se
desenvolvendo. Os seriados transmitidos pela TV – melodramas de curta
duração, estruturalmente diferentes das soap operas americanas e das tele-
novelas latinas – contam estórias cujos personagens são construídos como
modelos a serem seguidos pelos telespectadores, principalmente os de ca-
madas populares, o “público-alvo” dessas produções.
Todavia, como fazer uma etnografia de relação de um país com os media,
um objeto de estudo complexo e tão vasto? Abu-Lughod defende uma recon-
figuração dos modelos clássicos de pesquisa de campo na antropologia, que
sempre se moveu em boa medida tendo como preocupação o exame de uma
rede de significações concentrada numa dinâmica espaço-temporal de vívida
fronteira, comprometida com um “localismo” no qual as grandes narrativas
da cultura de massa tendem a não se enquadrar. A sua proposta, inspirada no
conceito de “multi-sited research imaginary” de George Marcus, não deixa de
lado o engajamento do pesquisador com o dia a dia dos sujeitos e as dinâmicas
microscópicas de investigação. Abu-Lughod assistiu televisão com egípcios a
fim de perceber a maneira como os seriados televisivos são reconfigurados em
suas dinâmicas cotidianas. Entretanto, ela defende a necessidade da pesquisa
etnográfica sobre a difundida televisão no país a partir de variados pontos de
investigação, múltiplos campos de pesquisa em que o antropólogo se propõe a
revelar os limites e conexões existentes entre eles. Dessa maneira, ela pesquisa
as relações dos indivíduos com os seriados televisivos num pequeno povoado
de camponeses ao norte do Egito e junto a empregadas domésticas da periferia
do Cairo. Ela também privilegia os discursos das classes médias e da intelligent-
sia do país a partir dos debates públicos engendrados nas páginas dos jornais.
Por fim, articula a esses campos analíticos as impressões dos responsáveis pela
produção dos programas, como diretores, roteiristas, burocratas do estado e
até mesmo os atores dos melodramas. Abu-Lughod esclarece o que é o Egito

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na contemporaneidade e o papel da televisão nesse processo a partir de uma


variedade de contextos etnográficos, articulados entre si com o propósito de
jogar luz sobre amplos e dispersos conceitos como “nação” e “televisão”.
A preocupação metodológica da autora acerca dos fenômenos da co-
municação de massa é tão candente no livro, que ela persiste em pensar
ao longo do capítulo 2 estratégias etnográficas de como abordar antro-
pologicamente a questão. Os “estudos culturais”, que tradicionalmente
têm se voltado para os fenômenos dos meios de comunicação, negligen-
ciam a dinâmica cotidiana e a relação que os sujeitos estabelecem com
a televisão. Defendendo a pertinência do conceito de “descrição densa”
proposto por Clifford Geertz, Abu-Lughod busca privilegiar os ricos e va-
riados contextos culturais em que os telespectadores estão inseridos, a fim
de construir uma etnografia dos momentâneos eventos em que os media
emergem no dia a dia dos sujeitos. A televisão ocupa um pequeno espaço
nas vidas dos indivíduos, mas seus debates e mensagens se estendem para
além do momento de se assistir televisão. Logo, é preciso não ser restrito
às interações que ocorrem na sala de estar, diante da tevê, para compre-
ender os sentidos adquiridos pelos melodramas no cotidiano das pessoas.
É possível percebermos um exemplo dessas proposições metodológicas
quando Abu-Lughod compara duas visões de mundo de mulheres com traje-
tórias de vida diferenciadas, tendo como mote um seriado televisivo. A femi-
nista autora de Mothers in the House of Love formula um discurso típico dos
grupos letrados e de camadas médias, defendendo o fim do “obscurantismo”
e da “alienação” supostamente ainda persistentes na vida das mulheres mais
pobres do país. A visão desenvolvimentista da autora se reflete num seriado
repleto de referências à necessidade de dedicação aos estudos e a valorização
do trabalho feminino. Todavia, Zaynab – uma pobre empregada doméstica
da periferia do Cairo – assiste aos melodramas com desconfiança, distancian-
do-se das personagens tidas como liberais por meio de um discurso morali-

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zador. Ela condena o afastamento das mulheres de seus lares e a demora em


se casarem. As mensagens que os seriados procuram transmitir aos telespec-
tadores, nos mostra Abu-Lughod, não são neutras e estanques, sendo elas
constantemente interpretadas e reavaliadas pelos sujeitos sociais, consumi-
das localmente de variadas maneiras possíveis. Cabe a uma “descrição densa”
perceber os diferentes sentidos adquiridos pelas mensagens dos seriados e, se
possível, partindo de múltiplos campos de investigação empírica.
Os capítulos 3 e 4 se dedicam a esmiuçar a convivência de camponeses
e mulheres pobres do Egito com as mensagens modernizantes exibidas
pelas séries televisivas. São esses dois grupos sociais os principais alvos das
proclamadas reformas estatais, cujo objetivo final é eliminar o analfabetis-
mo, coibindo comportamentos tidos como “atrasados” e “não-civilizados”
de tais grupos, além de estimular um apreço em pertencer à nação egíp-
cia. Abu-Lughod identifica uma ambiguidade na maneira como os indi-
víduos de segmentos populares recebem os seriados. Primeiramente, eles
apreciam essas produções por mostrarem personagens interessados em ir
à escola e possuírem uma vida financeira autônoma, principalmente as fi-
guras femininas. Educação transformou-se num valor para os camponeses
e mulheres mais pobres da cidade, e a televisão é vista como uma fonte de
conhecimento. Entretanto, existe uma retórica de frustração e desencanto
por parte dos telespectadores no momento em que se veem impossibilita-
dos de seguirem adiante com os planos propagados nos seriados. Os valo-
res sustentados pelos personagens televisivos não encontram bases estru-
turais nas ações políticas e econômicas do Egito. Isso acaba por provocar
consequências negativas para a autoimagem das classes populares, diante
da sensação de impossibilidade de atingir seus ideais, tanto estimulados
pela televisão. Samira foi uma jovem egípcia que se viu frustrada diante
das inúmeras oportunidades de trabalho que perdia, mesmo sendo edu-
cada em bons colégios, como as personagens dos seriados que adorava.

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Para ela, ver tevê significou durante muito tempo acreditar na mudança
de suas condições de vida, principalmente por meio de um auxílio do
estado. “But because these media forms associate moral judgments with
educated and enlightened figures of authority, they establish dependence
as the proper mode of relations between the disempowered and the state
or the educated classes” (p. 100).
Se por um momento Abu-Lughod identifica uma influência do Es-
tado na programação televisiva do país – que pode parecer de uma certa
maneira como algo um tanto autoritário e doutrinador – por outro ela
complexifica tal ingerência ao constatar as reformulações que eclodem
nas esferas subjetivas dos telespectadores. Os melodramas popularizam
uma forma de narrativa bastante distinta da qual os egípcios estão acos-
tumados, extremamente sentimentalizada e estimuladora de vivências
cotidianas mais individualistas, isto é, menos centradas nas dinâmicas
de parentesco e nas relações comunitárias dos sujeitos. Os melodramas
televisivos são tecnologias para a produção de novos selves, são estímulos
a sensibilidades que comumente associamos à modernidade da cultura
ocidental, “for staging interiorities (through heightened emotionalism)
and thus constructing and encouraging the individuality of ordinary pe-
ople” (p. 113). O capítulo 5 apresenta a maneira como os seriados televi-
sivos, repletos de personagens “donos de si” e empenhados em satisfazer
seus ideais, promovem uma “educação de sentimentos” (p. 118) entre os
segmentos populares. Eles trazem para a lógica de suas rotinas a possibi-
lidade de constituírem uma vida mais sentimentalizada, reforçando uma
sensação de personalidade rica em experiências emotivas, além de enfa-
tizar a preeminência de si sobre os demais sujeitos ao seu redor. A autora
verifica também o quanto os seriados estimulam a dramatização da vida
dos sujeitos. Isso porque muitas mulheres por ela entrevistadas constroem
narrativas de seus cotidianos em que as fórmulas clássicas do melodrama,

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como o maniqueísmo e a valorização do sofrimento, emergem como pa-


râmetros do ato de falar sobre si.
A emergência de um ethos individualista, principalmente entre os seg-
mentos mais ricos e letrados – os responsáveis pelas produções televisivas
– acaba incitando em muitos egípcios um reforço de suas identidades reli-
giosas, contrapondo-se ao secularismo valorizado pelos seriados televisivos
“modernos”. Os capítulos 6 e 7 se detêm na análise dos melodramas que
constroem o “bom islamismo” dos grupos cultos e educados em oposição
ao “mau islamismo”, promovido pelos cidadãos “violentos” e “bárbaros”,
que resultaria na formação de grupos extremistas e na perpetuação do obs-
curantismo e atraso do país. Abu-Lughod percebe em tais debates uma
profícua maneira de estimular o sentimento de pertencimento à nação do
Egito nos telespectadores, afirmando uma identidade nacional cuja autenti-
cidade não afasta completamente a experiência religiosa dos sujeitos popu-
lares, mas, ao mesmo tempo, a reformula em torno de um cosmopolitismo
de orientação ocidental. Se a televisão é uma tecnologia de produção de
selves, percebemos por meio dessas reações que isso não ocorre de maneira
harmônica, pelo contrário, existe uma forte tensão entre os estilos de vida
promulgados pelos seriados – em que o Islã é o “outro”, inimigo da nação
– e as tradições arraigadas nos segmentos populares do país. A luta contra
o extremismo religioso ofende uma parcela considerável de telespectadores
praticantes da religião, que se veem instigados a reforçar seus interesses no
islamismo por meio de práticas e instrumentos que demonstrem explicita-
mente suas filiações, como o uso do véu.
Por fim, cabe ainda destacar que esta “multi-sited research imaginary”
culmina com uma análise da relação entre a constituição de uma identidade
nacional egípcia e as novas formas de consumo estimuladas pelos meios de
comunicação. Essa abordagem é feita por Abu-Lughod a partir da combi-
nação de duas vertentes de reflexão. Primeiramente, ela se concentra nas

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contradições suscitadas pelas propagandas televisivas na vida cotidiana dos


grupos populares. Eles não estariam imunes aos desejos consumistas esti-
mulados pelo desfile de produtos industrializados e que “facilitam a vida”
na televisão, pelo contrário, sempre que suas rendas permitem inúmeros
bens são comprados. Todavia, esses produtos são sempre confrontados com
visões de mundo que condenam o consumismo desenfreado, “the evil eye”
(p. 216), ao mesmo tempo em que persistem formas mais tradicionais de
obtenção de meios de subsistência, como a troca e o cultivo caseiro.
As ambiguidades com relação ao consumo persistem na relação que tais
grupos mais desfavorecidos estabelecem com os atores dos seriados da tevê.
As estrelas são por eles adoradas e têm suas vidas particulares sempre em
foco. Porém, tanto nos programas quanto na vida real, elas levam um estilo
de vida que apenas uma pequena minoria seria capaz de possuir, já que
roupas caras e festas de grande prestígio não fazem parte do cotidiano de
boa parte dos egípcios, principalmente os que não vivem na capital. Porém,
se por um lado essa sensação de não pertencimento ao círculo consumista
pode gerar sensações de frustração, Abu-Lughod nos mostra o quanto esse
estilo de vida não condiz com as moralidades das pessoas mais pobres, que
abertamente condenam o “mundo artístico” e procuram se afastar dos dra-
mas de separação, traição e alcoolismo que as celebridades vivenciam em
seus cotidianos. A intimidade que a população do Egito passou a vivenciar
com os atores é sempre matizada por meio de um afastamento proposital,
indicativo de que aquele mundo televisivo não diz respeito ainda a ela, da
mesma forma que a sensação de pertencimento ao Estado-nação do Egi-
to ainda não se fez da maneira imediata como gostariam as autoridades.
“Television, in other words, is considered a world unto itself, with its own
rhythms, standards, and conventions. It need not bleed fully into daily life,
even if is an intimate part of it” (p. 241), conclui a autora.

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FRANGELLA, Simone M. Corpos urbanos errantes: uma etnografia
da corporalidade de moradores de rua em São Paulo. São Paulo:
Anablume, Fapesp, 2009, pp. 361.

Taniele Rui
Doutoranda PPGAS/Unicamp

“Um corpo tem de ocupar um lugar no espaço”, diz a famosa lei da física
que, proferida por Raimundo Sobrinho, morador de rua na avenida Pe-
droso de Moraes e alçada à epígrafe do livro da antropóloga Simone Fran-
gella, passa a ter o estatuto de nos desafiar a olhar como etnograficamente
corpo e cidade podem se relacionar. Defendida como tese de doutorado
em 2004, a instigante problemática de pesquisa investiga a construção
da corporalidade de moradores de rua – homens e mulheres – adultos
na cidade de São Paulo, e o modo como esta situação de habitar as ruas
nessa faixa etária os faz experenciar a geografia urbana de forma bastante
particular. Inspirada pelas reflexões de Michel de Certeau, a tese central
de Frangella é a de que no momento mesmo em que parecem inclinados a
permanecer reclusos em seus limites de sujeira, de marginalidade e de não
posse, os moradores de rua acabam por construir uma retórica pedestre
resistente que só pode ser entendida em relação a ideologias políticas e
econômicas oficiais de ordenação do espaço.
Interessada na origem histórica dessa categoria e nas imagens que ela
evoca, a antropóloga apreende moradores de rua como um segmento so-
cial particular no espaço urbano, “uma categoria que, em função de inúme-
ras e diversas trajetórias de desvinculação social e econômica, passa a habitar
‘cantos’ da cidade impensáveis ao planejamento urbanístico e ao imaginário

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coletivo dos citadinos” (p. 16). Figura presente desde a criação do mundo
urbano ocidental – a tal ponto que não é possível pensar em uma cidade
sem moradores de rua – esse segmento se contrapõe cotidianamente às
estratégias econômicas e políticas que ideologizam as urbes contemporâ-
neas, mais notadamente as metrópoles. Por meio de seus próprios passos,
defende a autora, o morador de rua está sempre resistindo material e
simbolicamente à sua extinção na cidade.
Ao invés de adotar termos “politicamente corretos” para definir esta
condição, a autora opta por mostrar como também esses termos – sans-
abri, homeless, sem-teto, população em situação de rua – são, a partir da dé-
cada de 1970, frutos da gradual adequação da realidade desse segmento à
noção de exclusão social, representando uma espécie de categoria abstra-
ta de reagrupamento das populações que, em diversas épocas históricas,
sempre se situaram à margem do sistema de organização social, isto é, fora
do sistema de produção e de consumo padronizados. Com isto, ela mos-
tra também que, na experiência contemporânea, as categorias homeless ou
em situação de rua funcionam como um termo cuja ressonância política
é menos excludente e mais homogeneizadora. Sob essa nomeação, con-
tudo, estão configurações muito distintas: o andarilho em deslocamento
contínuo, o mendigo, os “loucos de rua” e, ainda, desempregados que
vivem temporariamente nas ruas e frequentam albergues. Embora a for-
mulação de uma categoria política promova maiores possibilidades de
sua inserção social e/ou a atenuação da condenação de sua imagem, ela
não elimina a movimentação errante como um modo de vida de parte
desse segmento. E nisto reside um dos maiores paradoxos enfrentados ao
longo da pesquisa: se, de um lado, a errância que os constitui escapa às
políticas sociais assistenciais, por outro, ela é impulsionada por políticas
urbanas excludentes e controladoras da funcionalidade do espaço. Ainda
é importante dizer que não se trata, obviamente, do único segmento que

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vive o circuito nômade na cidade, mas sim que ele possui a especificidade
de subverter, de forma radical, o sentido homogeneizador do espaço da
rua, ao condensar neste a dimensão pública e privada de sua vida.
Antes de adentrar propriamente na etnografia da corporalidade dessa
categoria, que é simultaneamente social e individual, a autora ainda nos
convida a rever imagens sobre os moradores de rua projetadas no cinema
(primeiro capítulo), onde também ali possuem um estatuto ambíguo:
os moradores de rua parecem ver aquilo que não é percebido ao mesmo
tempo em que são a representação do sujo, do poluído e do poluidor;
como se o sofrimento e o isolamento associados a esse mundo os tornasse
portadores de sabedoria sobre a vida, sobre a dor e a veracidade dos va-
lores e sentimentos, exemplos de redenção e provadores da moral social.
Pela condição em que vivem, tornam-se por excelência os contadores de
histórias nunca vistas, testemunhas dos crimes na rua, de negociações
ilícitas, de aventuras estranhas pelo espaço urbano, sendo também os ve-
ículos dessa poluição e potencial instrumento de práticas contraventoras,
onde se destaca a imagem da abjeção. Essas duas imagens conformam,
assim, um universo ambíguo, onde a possibilidade de redenção social e
moral pelo sofrimento extremo convive com um processo contínuo de
desmoralização e de desumanização.
As imagens cinematográficas têm ainda a vantagem de salientar uma
característica muito relevante dessa experiência de morar nas ruas: o tem-
po, que gradualmente entrelaça processos de perda e despojamento com
aderências contínuas às condições irregulares e escassas da rua, com a
reformulação criativa de signos do espaço urbano e de interações sociais,
e com o estigma que se torna o traço distintivo de sua condição. Ou seja,
o que revela sua particularidade é que o momento vivenciado na rua re-
vela um processo de profunda deslocalização e uma sujeição gradual, em
muitos casos permanente, à vulnerabilidade física, psicológica, material

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e simbólica. Nesse sentido, o estar na rua provoca, sobretudo, reflexões


sobre os limites da experiência humana.
Desprovidos de bens materiais, sem casa, absolutamente fora das práticas
de consumo, envelhecendo na rua, o corpo é o único suporte que lhes resta
e que lhes é irredutível. Nesse sentido, a trajetória do morador de rua é emi-
nentemente corporal: o corpo traz a visibilidade dos processos que marcam a
homogeneização política desta categoria e as suas distintas formas de se rela-
cionar com o espaço urbano; é sobre ele que se projetam as contínuas e suces-
sivas intervenções e manifestações de violência que atualizam cotidianamente
as tentativas de exclusão desse segmento; mas é também a partir do corpo
que surgem as possibilidades de resistência do morador de rua à exclusão.
Em acordo com teorias mais recentes acerca do estatuto do corpo na pesquisa
social, Frangella apreende este como uma atividade simultaneamente física,
simbólica, política e social, que se constrói na relação com outros corpos e na
interface com a dimensão espacial e social das ruas da cidade.
É no deslocamento pelo centro da cidade que os habitantes de rua afir-
mam a sua existência, expressam sua subjetividade, criam possibilidades
de agência, ainda que sob a marca do estigma, da subtração e da deficiên-
cia. E se para apreender a corporalidade dos moradores de rua é preciso
entendê-la na interface desse corpo com o espaço urbano, também a rua
não pode ser considerada um mero logradouro. Ao longo do livro, ela
emerge como um espaço urbano sobre o qual se constroem um conjun-
to de ações que atribuem sentidos múltiplos e divergentes de lugar e de
pertencimento. Portanto, tornar-se um morador de rua significa também
alterar o espaço urbano e ser alterado por ele. Como se vê – e como tam-
bém aponta Maria Filomena Gregori na apresentação do livro – não há
aqui qualquer alusão a uma identidade fixa, estanque e irredutível, mas a
uma condição individual e social que, em muitos casos temporária, tam-
bém pode marcar um envelhecimento na rua.

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A pesquisa etnográfica foi realizada em vários cenários distintos: no


Refeitório Penaforte Mendes, localizado no bairro da Bela Vista, no cen-
tro de São Paulo, no bairro do Brás, mais notadamente na Praça Metrô
Brás. Cada um desses cenários possibilitou à autora apreender distintos
aspectos dessa corporalidade. Entidades de acolhimento e serviços vol-
tados a essa população também receberam atenção descritiva e analítica
(capítulo 2), na medida em que elas acabam por constituir esse universo:
são fonte de recursos e oportunidades no deslocamento do habitante de
rua; minimizam sua condição de sofrimento e são, em muitos momentos,
mediadores de relações de conflitos entre eles e os agentes que promovem
sua expulsão dos lugares, ou entre eles e a opinião pública.
Todo o restante do argumento (capítulos 3, 4 e 5) é a etnografia dessa
corporalidade, a meu ver, a principal contribuição do livro, uma vez que
nos revela empiricamente a ambiguidade, a agência e ao mesmo tempo os
condicionamentos aos quais estes corpos estão submetidos. E não por acaso
essa etnografia se inicia pelos pés: a marca mais evidente da situação de rua,
da exposição corporal e da subtração material e social que caracteriza suas
vidas. As distintas formas pelas quais os pés se apresentam, vai mostrando
a antropóloga, moldam-se à heterogeneidade da circulação na rua, criando
uma sutil diversidade, constituída de acordo com um grau de sujeira e com
a facilidade ou dificuldade de acesso a sapatos. Nesta dinâmica, há uma
distinção entre ter pés limpos e pés sujos e outra entre usar sapatos fecha-
dos e usar chinelos ou estar descalço. Os chinelos são apresentados como a
fronteira entre a nudez absoluta dos pés e o asfalto e, consequentemente, o
último elemento da exposição de sua realidade “sem-nada”.
Também a pele é um instrumento relevante para decifrar a linguagem
dos embates que cercam os moradores de rua, na medida em que a sujeira
torna-se o seu atributo corporal mais destacável; o forte cheiro que exala
de seu corpo é, ao mesmo tempo, motivador de vergonha e forma de

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isolamento, signo de abjeção e veículo de proteção. É ainda no espaço da


rua que os moradores têm que gerenciar a redução das dimensões pública
e privada de sua vida. Levando em conta que tal espaço não é formatado,
na urbanidade contemporânea, para a exposição e realização de práticas
do mundo privado, a construção desse último no universo do morador
de rua depende de forma inequívoca da corporalidade dos sujeitos que o
habitam. Assim, práticas de asseio diário e formas de sexualidade e inti-
midade também entram no rol da descrição de Frangella. Meninas e mu-
lheres que permanecem nas ruas aparecem enfrentando cotidianamente o
caráter masculino que reveste este mundo da itinerância na cidade.
Os materiais descartáveis, de um lado, fonte de renda, podem ser tam-
bém a extensão deste corpo: os materiais com que se cobrem acabam por
mimetizá-los aos outros restos urbanos, criando uma invisibilidade que,
por sua vez, provoca situações contraditórias. Casos extremos como o de
Ricardo que dormia enrolado em jornal e papelão na calçada e que foi
confundido com lixo urbano, tendo seu corpo esmagado por um cami-
nhão que recolhia lixo, são tirados do jornal e trazidos pela autora para
corroborar não só o argumento, mas também a “realidade” de uma lógica
circular que tem como força motriz central a tentativa de sua eliminação.
As ações interventoras da limpeza pública ou policial também são
apresentadas como projetando cenas de humilhação às quais este seg-
mento não tem outra alternativa a não ser se submeter, sob pena de
agressão. O mesmo ocorre com serviços oferecidos nas ruas, que exi-
gem a submissão a uma lógica disciplinadora e de “reintegração so-
cial”, o que supõe a limitação de seu comportamento nesses espaços.
Nesse sentido, a comida passa a ser um dos eixos centrais em torno
dos quais o circuito nas ruas se constrói. A ausência de garantias mí-
nimas de alimentação diária estimula fundamentalmente os trajetos
de moradores de rua e costura suas circulações pela cidade, além de

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implicar uma dependência constante da rede de atendimento, que é,


para muitos, o seu único recurso para se alimentar. A comida também
funciona como uma troca material e simbólica entre entidades assis-
tenciais, em sua maioria de natureza religiosa, e população de rua:
oferece-se comida em troca de pregação religiosa.
Por fim, a violência e a agressividade se destacam no cotidiano desse
segmento e torna evidente de forma extrema a vulnerabilidade corporal
no espaço da rua. A autora aborda a agressão corporal, sempre iminente,
efetuada sobre os moradores de rua, particularmente à noite. O dormir
na rua, diz ela, exprime o mais alto grau de vulnerabilidade corporal des-
te segmento. Nesse caso em específico, uma prática especial de violência
chama a atenção: o atear fogo nos habitantes de rua. Com seu efeito
rápido, irreversível, doloroso e extensivo ao corpo todo, o fogo provoca
o risco iminente da mutilação e da morte. É a tentativa de consumição
desta única coisa que resta a quem vive nas ruas: o corpo.
Na heterogeneidade que constitui essas experiências, um fator escapa
à malha institucional, assim como burla os procedimentos repressivos: a
identificação gradual do indivíduo com a dinâmica intermitente e frag-
mentária da rua acaba por jogá-los em um tempo circular, disruptivo e
aprisionador, que nubla as possibilidades reais de saída do circuito urba-
no que lhe foi imposto. Nesse sentido, o alcance limitado da política de
assistência deve-se muito ao conjunto de perdas que conduz a trajetória
do morador de rua e à impossibilidade de cobrir as suas expectativas de
mudança econômica, social e afetiva. Ironicamente, é esse mesmo pro-
cesso que vincula o habitante de rua à cidade, trazendo-o para uma espa-
cialização diferenciada na geografia urbana, enganadora das intervenções
urbanísticas e pouco absorvida pela dinâmica do poder público. Aqui
reside talvez não o maior problema analítico do livro, mas talvez o maior
problema prático e político que ele comporta – é quando a trajetória

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corporal e a circulação errante ganham o seu caráter mais cruel e, parado-


xalmente, constitutivo: o da irreversibilidade.
Frangella defende ainda a ideia de que a movimentação necessária de
resistência à extinção, a errância, não é, contudo, um movimento refle-
xivo, trata-se, antes, de uma resposta contingencial às políticas de invi-
sibilidade que são dolorosamente imputadas aos moradores de rua nessa
interação radical, física, subjetiva e simbólica com a cidade. Porém, sus-
tentar esta resistência corporal não é uma tarefa nada fácil, na medida
em que se trata de uma corporalidade que reside no avesso daquilo
que o imaginário urbano cria e formata. Como afirma enfaticamente a
autora, não se trata de discutir condições de vida. É evidente o grau de
enfrentamento dessa população decorrente dos embates cotidianos com
o “público”. Todavia, diz ela, uma vez na rua, não se mantêm passivos.
Mesmo não subvertendo a sua condição de pauperização e opressão,
conseguem resistir com seus próprios passos, andando, criando novas
territorialidades e codificação à sua extinção.
Diante do exposto, creio que fica claro o vigor analítico do livro, assim
como a sua refinada capacidade de observação e descrição acerca de uma
situação que, inerente à ideia de cidade, pode receber tratamentos político,
assistencial e teórico os mais distintos. Vivendo no limite da experiência hu-
mana, invertendo de forma radical as nossas noções de público, de privado
e de propriedade, os moradores de rua, tal como apresentados por Simone
Frangella, nos convidam ainda a refletir acerca daquilo que Marcel Mauss
chamou de técnicas corporais, os modos pelos quais cada sociedade serve-se
dos seus corpos. Ao entrar em contato com essa etnografia questionamos
também as nossas formas de cuidado corporal e de asseio diário, as nossas
andanças pela cidade, assim como nos relembramos (o que só as boas antro-
pologias conseguem fazer) que as atividades cotidianas de comer, dormir, se
abrigar e fazer sexo estão muito longe de ter o status de “naturais”.

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Entrevista

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As cidades da antropologia:
Entrevista com Michel Agier

Janaína Damasceno
Isabela Oliveira
Natália Helou Fazzioni
Guilhermo André Aderaldo
Heitor Frúgoli Jr.1

Universidade de São Paulo

A trajetória de pesquisas de Michel Agier – professor e pesquisador na École des


Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), coordenador de pesquisas no Ins-
titut de Recherche pour le Développement (IRD) e ex-diretor do Centre d’Études
Africaines (Ceaf/ EHESS), todos sediados em Paris – ����������������������
configurou-se inicial-
mente na realização de etnografias em cidades africanas como Lomé (Togo) e
Douala (Camarões) (Agier, 1983, 1999). Tais pesquisas são marcadas pelo seu
interesse por situações urbanas que propiciam, segundo ele, um entendimento
mais profundo acerca de aspectos que talvez não se apreenda senão na cidade.2
Isso ocorre porque os contextos citadinos são tomados como espaços relacio-
nais onde se produzem fenômenos significativos e invenções culturais inéditas
e não apenas justaposição de culturas (Agier, 2006, pp. 138-140).
Seu relacionamento com o Brasil remonta a uma etnografia realizada em
Salvador3 entre 1990 e 1996, que resultou no livro Anthropologie du Carnaval
(2000)4 e ajudou a compor outra publicação referencial no campo da antro-
pologia da cidade5, L’invention de la ville (1999).
Nessa época, Agier estabeleceu várias interlocuções com autores brasileiros,

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As cidades da antropologia: Entrevista com Michel Agier

inicialmente no campo da sociologia, em torno de temas como o operariado


urbano sob a ótica de trajetórias empregatícias, do espaço citadino, da famí-
lia e do status social (Agier, 1990 e Agier, Castro & Guimarães, 1995). Esse
trabalho se desdobrou, a partir de um olhar etnográfico mais detido na vida
cotidiana e nas múltiplas facetas socioculturais do bairro soteropolitano da
Liberdade, em diálogos fecundos com a antropologia urbana brasileira. Isso
fica evidente no enfoque dado aos processos de subjetivação na pesquisa sobre
o bloco afro Ilê Aiyê, surgido naquele bairro e um dos responsáveis, segundo
o autor, pela “africanização” do carnaval de Salvador. Nesse âmbito, dispensou
atenção especial às relações de parentesco e gênero (Agier, 1990), à construção
de lugares e redes por parte daqueles que “fazem a cidade” (Agier, 1998) e às
redes pautadas pela globalização acelerada de situações locais (Agier, 2001).
Tal itinerário prosseguiu, posteriormente, pelo contexto latino-america-
no, em Tumaco e em Cali, na Colômbia, onde o autor teve suas primeiras
experiências etnográficas com deslocamentos forçados ocorridos na região,
após 1997, oriundos do agravamento dos conflitos armados e geopolíticos
naquele país (Agier, 1999). Essa temática ganhou significativo relevo em seus
estudos posteriores, com a multiplicação de pesquisas sobre campos de refu-
giados (Agier, 2008a). Tais pesquisas têm renovado os enfoques do autor so-
bre a criação de novos contextos urbanos em situações vulneráveis e adversas,
levando-o a outras formas de compreensão sobre novas modalidades de “fazer
a cidade” (Agier, 2008b).
Novas dimensões políticas e metodológicas se abriram, a partir das pes-
quisas mais recentes sobre os campos de refugiados, dada a possibilidade de
observação dos espaços humanitários – fisicamente configurados nos assenta-
mentos do ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados)
–, responsáveis pelo controle de certos fluxos populacionais e pela consequen-
te divisão entre pessoas “com direitos” e outras “sem direito a ter direitos”.
Nesse sentido, o autor se questiona a respeito de como devemos compreender

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as novas territorialidades surgidas destes impasses (Agier, 2008a).


Um dos fios condutores dessas abordagens diz respeito à necessidade de
evitarmos uma compreensão idealizada ou ocidentalizada de cidade, por
meio de um diálogo crítico com as Escolas de Chicago e de Manchester,
responsáveis, ainda que por caminhos distintos, por uma série de práticas pio-
neiras de etnografia urbana.6 Cabe migrar da pergunta sobre se “a cidade faz
ou não sociedade” para aquela sobre como “(...) as situações, as ações fazem
a cidade”, onde o foco são efetivamente as relações. (Agier, 2008, pp. 20-21).
Mais detalhes dessa trajetória podem ser vistos na entrevista que Michel
Agier gentilmente nos cedeu no dia 18 de agosto de 2010, na manhã que
precedeu sua conferência “Da etnografia urbana à antropologia da cidade:
introdução às situações africanas e latino-americanas”, na Sexta do Mês –
evento mensal organizado pelos estudantes do PPGAS/ USP.7
O encontro ocorreu pouco mais de um mês após o término da Copa do
Mundo de Futebol, realizada na África do Sul. Como o futebol é um espaço
importante na construção da etnografia de Agier em Salvador, a entrevista
aproveitou o mote para iniciar tratando de sua participação nas partidas de
futebol conhecidas como “babas”.
Assim, ele comenta sobre sua aproximação com o Brasil ainda no período
em que realizava pesquisas no Togo, sua inserção em campo na capital baiana, a
pesquisa com o bloco afro Ilê Aiyê, com populações deslocadas na Colômbia e
em campos de refugiados no Quênia e em outros países africanos. Fala, ainda,
sobre as especificidades de etnografar diferentes contextos urbanos em cidades
da Europa, América Latina e África, e sua mais recente aproximação com um
campo que sempre lhe esteve relativamente próximo: a cidade de Paris.

Janaína Damasceno: Eu tenho uma primeira pergunta: depois do “Baba


do Negão”,8 você aprendeu a jogar futebol?

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As cidades da antropologia: Entrevista com Michel Agier

(risos) Não melhorei, não! (risos) Eu vi que meu tempo já tinha passado! Eu
fui um bom meio de campo, é verdade, mas...

Heitor Frúgoli Jr.: (...) mas ter sido chamado de [Michel] Platini 9 não
ajudou muito!

(Risos) Hoje não faz mais sentido! Mas quando cheguei à Bahia e disse que
me chamava Michel, todo mundo dizia “Platini”, “Platini”! Mas agora o pes-
soal não diz mais Platini, preferem o Zidane!10

Heitor Frúgoli Jr.: De toda forma, qual a importância do “Baba do Ne-


gão” para você entender um conjunto de relações que ocorria ali [no bair-
ro da Liberdade, na Bahia]?

Quando se fala sobre sociabilidade de bairro, para não ser demasiadamente


abstrato nessa temática, é preciso ver na prática onde isso se realiza. Uma das
maneiras é ver como se formam essas turmas. Além de gostar de futebol, o
trabalho foi tentar entender como se compõe “socialidade” com essa socia-
bilidade. Quer dizer, como surgem relações boas ou ruins, e a partir de que
estrutura, ou não estrutura, elas se desenvolvem. A ideia mais geral no trabalho
dentro do bairro da Liberdade foi de mapear que relações um antropólogo
pode descrever nessa sociabilidade toda. E a forma imediata dessa sociabili-
dade, além da casa, eram aquelas turmas. Havia muitas palavras para tentar
dizer isso e eram todas formas de encontro, intercâmbio de formas sociais, que
tinham a ver com o familiar, o parentesco. Eram um alargamento desse pa-
rentesco. Interessou-me muito também, nessa temática das turmas, o uso que
se fazia da linguagem familiar: o tio de consideração, o pai de consideração.

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Quando você torna familiar algo que não é, quando você aproxima as pessoas
e decide quem tem um laço próximo de você, você o cria ou o reforça usando
uma terminologia, por exemplo, do parentesco simbólico ou do parentesco es-
piritual como o apadrinhamento católico ou a família de santo no candomblé.
No final das contas, havia uma complexidade de um universo social ao qual
chamei de familiarismo, uma forma familiar de viver o espaço urbano. Então,
de certa forma, o “Baba do Negão” era uma família, nesse sentido.

Isabela Oliveira: Em L’invention de la ville, você etnografa partidas de


futebol em Salvador para tratar de redes de sociabilidade. No seu caso,
quais foram as redes que você acessou para chegar ao Brasil, não apenas
em termos teóricos, de leituras sobre o país, mas também de pessoas, de
pesquisadores? Neste sentido, como você chega até o Brasil e ao bairro
da Liberdade?

A pesquisa para chegar ao Brasil e ao bairro da Liberdade surgiu de um interes-


se que eu tinha a partir da África, quando eu estava no Togo, da leitura de Pier-
re Verger e vendo que havia um laço interessante, enigmático e problemático
para mim, que vai da chamada “Costa dos Escravos”, no atual Golfo da Gui-
né, até a Bahia de Todos os Santos, e a escrita de Pierre Verger é muito especial,
foi isso que deu a ideia geral, um elo transatlântico. Por isso meu interesse pelo
Brasil foi primeiro pela África no Brasil. E, por outro lado, institucionalmente
eu estava num instituto francês de pesquisa que trabalha com países do Sul,
em cooperação. Então fizemos um convênio com a Universidade Federal da
Bahia, juntamente com Nádia Araújo Guimarães, que estava na UFBA na-
quela época. E me envolvendo nesses programas com mobilidade social, em
volta da industrialização de Salvador, entrei pelo lado urbano, dizendo que ia
pesquisar a mudança social através dos bairros, da vida urbana dos trabalha-

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As cidades da antropologia: Entrevista com Michel Agier

dores, das famílias trabalhadoras envolvidas nessa mudança social. Então, me


falaram sobre o bairro da Liberdade como o primeiro bairro negro da América
Latina, que era para eu fazer essa pesquisa lá. Eu fui morar na Liberdade e co-
mecei essa pesquisa dessa maneira. Foram essas as redes institucionais para che-
gar ao Brasil. Para chegar à Liberdade, foi através de um estudante que tinha
família e a família que tinha um primo, um primo que tinha uma prima que
morava na Liberdade. Comecei assim a chegar e depois morei lá, aluguei uma
casa. Alguns colegas da universidade me disseram: “Que chique, um francês
na Liberdade!” Eu achava normal. E foi assim, morando lá e fazendo amizade,
jogando futebol, que tem um lado engraçado, mas tem também o lado da
participação, menos desportivo e mais participação. A parte mais importante,
a partir daí, foi o trabalho com o Ilê Aiyê, que me deu um envolvimento e
engajamento maior e mais importante com isso. Isso foi o mais complicado e
também o mais interessante em termos da relação, de como chegar lá. Porque
o Ilê Aiyê era conhecido como sendo um grupo que não quer brancos, mas
eu me dei conta de que os brancos que eles não queriam eram os brancos da
Bahia. O ponto crítico são as relações raciais na Bahia daquela época; o que
eles faziam era um modo de dizer: “Queremos um espaço fora das relações
raciais da Bahia”, foi isso que as pessoas chamavam de “racismo ao avesso”. Eu
entendi que quando eles diziam “não queremos brancos”, eles não queriam
as relações raciais da Bahia. Eu entendia essa postura e não era contra ela. Aí
tivemos uma espécie de contrato. Eu sabia que eles queriam fazer o acervo do
Ilê Aiyê, e disse: “Se vocês quiserem, eu faço para vocês.” Aí eles me deixaram
entrar e acompanhar, não me disfarçar de negro, mas acompanhar o trabalho
e ir a qualquer lugar que necessitasse, ir até às pessoas, poder entrevistar. E nos
entendemos assim. Fizemos formalmente uma reunião, que depois a gente
esqueceu, mas eu acho que foi importante termos essa reunião como reco-
nhecimento recíproco: eu reconhecendo a autoridade do Ilê sobre este espaço
e eles reconhecendo minha profissão de pesquisador. E fizemos uma espécie

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de acordo, porque você pode entrar e dizer que vai entregar um trabalho de
tal maneira depois. E assim foi feito. Mas depois se esqueceu que havíamos
feito um contrato, um acordo. Esse passo foi a entrada, o reconhecimento
recíproco. Eu acho isso importante. Infelizmente até agora, por vários mo-
tivos, não foi publicado em português o livro “A antropologia do carnaval”
(Agier, 2000). Espero que não façam como com o Donald Pierson (1945) e
levem anos para traduzir! Eu entreguei o relatório da pesquisa, que se chama
O Mundo Negro, ao pessoal do Ilê Aiyê, um relatório que dá conta do material
que eu levantei. Fiz um trabalho com 350 letras de samba, um trabalho com
o arquivo do pessoal inscrito no Ilê Aiyê, inclusive fazendo estatísticas sobre
residência, emprego, essas coisas todas. Tem o resultado das entrevistas que eu
fiz, as anotações, os eventos e tal. E depois com isso fiz um trabalho mais refle-
xivo, crítico do que é a produção cultural do mundo negro dentro do espaço
do carnaval. Então por vários motivos, até agora [o livro] não existe no Brasil,
mas virou um livro importante para os estudantes franceses interessados pelo
carnaval em geral, sendo considerado um modelo de estudo de caso do car-
naval. É muito importante para mim, é óbvio, que saia esse livro agora sobre
antropologia urbana11 aqui no Brasil, mas o livro sobre o carnaval da Bahia era
para ser antes de tudo em português, para o pessoal do Brasil e da Bahia.

Guilhermo Aderaldo: Ainda sobre essa questão do Ilê Aiyê, você conta
como acabou realizando parte de seu trabalho de campo na biblioteca
da UFBA, dado que a descoberta de uma série de redes de atores distintos
no processo de formação do grupo o fez compreender o modo pelo qual a
memória é solicitada seletivamente. Esse parece ser o caso da mãe de santo
negra presente na formação do grupo junto a um engenheiro europeu,
entre outros agentes, e que anos depois teve seu papel ressaltado ao mesmo
tempo em que os demais foram esquecidos. Neste sentido, como é possível

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As cidades da antropologia: Entrevista com Michel Agier

pensar o contexto urbano quando operamos nessas diversas escalas, num


contexto que é ao mesmo tempo local e global?

Foi muito interessante! Primeiro, realmente eu terminei na biblioteca do


CEAO [Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA] para entender como
o pessoal escolheu o nome de Ilê Aiyê. Acho uma reviravolta quando você
encontra a você mesmo ou seu próprio mundo no meio do seu objeto de
pesquisa! Essa objetivação ou intelectualidade da busca de identidade faz todo
um caminho. Assim, hoje em dia, frente a essas construções identitárias, a an-
tropologia ou vai dizer de maneira afirmativa, que não é minha – “O Ilê Aiyê é
a pura tradição africana no Brasil! Ou na Bahia!” – ou vai dizer sob uma forma
problemática e compreensiva: “Mas como o pessoal inventou esse nome?” Aí
vai começar a buscar nos lugares reais onde isso aconteceu, nas relações sociais
reais onde isso se transmitiu. Enfim, eu acho que tudo é construção, porque
você constrói uma identidade que tem um marco referencial. Nesse momento
o pessoal tinha necessidade de dizer: “Estamos ligados a essa cultura que está
se construindo, que é uma cultura dos negros, escolhemos o Ilê (a casa) Aiyê
que é a réplica do Orum”.12 Eu digo isso e eles mesmos dizem melhor do que
eu. Quer dizer, essa intelectualização de Ilê Aiyê, porque o mundo material
tem relação com o mundo espiritual dos Orixás, que é a cultura dos negros,
isso é a construção. Então isso não é minha interpretação, é um dado objetivo
do campo e eu quero entender como isso foi produzido. Eu acho que tradição
sempre se inventa, e que identidade se constrói, porque tradição é o resultado
de um trabalho que se faz com o passado. Porque há o esquecimento, há coisas
que a gente vai buscar no passado porque fazem sentido hoje em dia. Então,
estamos sempre inventando! A ideia de invenção da tradição é um pleonasmo.
Sempre é uma construção a partir de um passado amplo. Nesse sentido – com
toda a simpatia que eu tenho pela mãe de santo [Dona Hilda], que é a mãe de
Vovô, presidente do Ilê Aiyê, que eu conheço muito bem, que eu gosto –, por

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que se rememora ela e não também aquele europeu de quem até se esqueceu o
nome? Enquanto naquele momento, quando se falava com cada um, parecia
que ele tinha sido um cara muito importante para o grupo, engenheiro do
polo petroquímico, amigo de Apolônio e de Vovô. Foi ele que deu o livro e dis-
se: “Você vai lá no dicionário iorubá/ português, que você vai encontrar [o sig-
nificado de Ilê Aiyê].” Eu me pergunto: isso corresponde a alguma invenção de
um marco, de um símbolo, que faz com que haja mais sentido em se reconhe-
cer a mãe de santo, que é a mãe espiritual desse grupo, como marco referencial
da memória, do que dizer que uma rede de amigos, no meio dos quais havia
um engenheiro europeu do polo petroquímico e meninos que trabalhavam no
polo petroquímico da Bahia, que foram barrados na sua trajetória profissional
no polo por motivo de racismo e que essa raiva social, existente naquele mo-
mento na Bahia, junto a uma forte mobilidade social, se traduziu no espaço
do carnaval com todos esses recursos? Então, isso foi minha interpretação de
uma construção cultural. Uma joia em termos de pesquisa. Uma joia de in-
venção cultural, para desfazer, desmontar, entender como foram inventando,
criando essa inovação cultural. Obviamente que estamos no contexto urbano
do bairro da Liberdade, uma das mais antigas favelas de Salvador que se tornou
um bairro reconhecido hoje em dia, um bairro negro onde houve muita mo-
bilidade social. Mas um contexto também globalizado à medida que naquele
momento, os moradores do bairro da Liberdade estavam mais envolvidos em
contextos maiores, justamente por serem da Liberdade, que não era a favela
mais pobre das favelas. Você é mais globalizado quando mora num bairro com
forte mobilidade social, do que quando mora na favela mais pobre e desco-
nectada. O bairro da Liberdade, enquanto contexto urbano, já tinha muitas
conexões com a cultura global, mundial. Por isso, por exemplo, que as buscas
de temas de carnaval realizadas durante muitos anos, sobre os países africanos
ou sobre negros nos Estados Unidos, sempre contaram com recursos globali-
zados. É assim que eu participei no ano em que a Costa do Marfim foi o tema

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As cidades da antropologia: Entrevista com Michel Agier

do carnaval. Eu fiz a “pesquisa tema” do Ilê Aiyê aquele ano. Enfim, quero
dizer que o desenvolvimento do grupo vai além do próprio contexto urbano.

Janaína Damasceno: Mas o seu trabalho sobre “africanização” da Bahia


e sobre a ideia de neotradicionalismo foi bastante polêmico entre o movi-
mento negro. Houve uma repercussão um tanto negativa do artigo “Dis-
túrbios identitários em tempos de globalização” (2001). Por que a ideia
de invenção da tradição lhes pareceu tão forçada e ofensiva?

Eu tive duas críticas. Uma foi realmente demais: era o francês que amou os ne-
gros(!), porque foi lá e não fez críticas para dizer que o Ilê Aiyê era racista, por
exemplo. Mas é que eu acho muito compreensível a atitude deles [Ilê Aiyê],
eu acho tão lógica! Então, essa foi uma crítica mais ou menos interessante...
E a outra é interessante. Inclusive eu tive mais problemas no Rio do que em
Salvador por dizer que o Ilê Aiyê é o movimento culturalmente mais mestiço
que há no Brasil. É uma mestiçagem cultural. É um movimento negro, mas é
uma mestiçagem cultural. E eu continuo dizendo que é uma fantástica riqueza
cultural! A riqueza é essa mistura toda que estamos vendo! Quem se tranca e se
fecha vai para um empobrecimento cultural. Pode não ser “politicamente cor-
reto” no sentido do movimento negro, digamos mais “duro”, mas eu acho que
isso é importante porque eu não acredito no fechamento da cultura, no fecha-
mento artificial das identidades, mesmo que seja forçado, mesmo que se diga:
“Vamos fechar nossa identidade, controlar para ter algo puro, etc.”, ela nunca
se fecha, ela está sempre aberta. O exemplo da França hoje em dia é muito
interessante, porque temos um governo que quer fechar as fronteiras, fechar
a identidade nacional, e na verdade, a sociologia da França é completamente
diferente do que o governo está dizendo. Você olha a sociedade francesa real,
ela está de fato muito mestiçada, com famílias mistas que já incluíram pes-

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soas vindas ou descendendo de África ou do Maghreb. E aquele discurso do


governo termina se chocando com todo mundo. Mesmo pessoas que podem
ser politicamente de centro, de direita, ou mesmo pessoas que podem dizer:
“Tem mesmo muitos estrangeiros aqui”, mas na família tem um primo, uma
sobrinha, o que quer que seja, que é casado, que vive com alguém que vem da
África. Então, as famílias já são bastante avançadas na abertura da identidade,
da mestiçagem na vida real. E você tem um discurso político do governo para
fechar a identidade. Então, há um desencontro importante. Eu acho que isso
é verdade para qualquer movimento identitário, seja de um governo, seja de
um grupo. Em certo momento, politicamente, alguns movimentos querem
afirmar uma identidade, mas na verdade eles querem um reconhecimento,
o que é diferente. E eles querem afirmar uma identidade e acham que não se
deve dizer como se construiu a cultura dessa identidade. Por isso que no artigo
da Mana que você mencionou, eu chamei essas culturas de culturas identi-
tárias algo que está se fazendo, em vez de falar de identidade cultural como
se fosse um fato feito, simplesmente herdado. Você afirma a identidade de
uma cultura, enquanto todas as culturas são produtos mestiços, em transfor-
mação. E quanto mais misturados, há mais trocas, mais riquezas e inovações
dessa cultura. No Rio, um pessoal me chamou de racista, porque eu dizia que
o movimento negro era culturalmente mestiço. Ali nos confrontamos com
outra questão, que é finalmente uma questão política: o reconhecimento de
um segmento social que está confrontado à exclusão racial, a formas de mar-
ginalização social e ao não reconhecimento político. Mas a superposição entre
a cultura e o reconhecimento político produz essas afirmações de identidade,
algo “cristalizado” ou fixado que eu não compartilho. Eu as tomo como objeto
de investigação, mas eu não compartilho com isso.

Janaína Damasceno: Mas qual deve ser a posição do antropólogo quando


há esse impasse com o movimento social?

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As cidades da antropologia: Entrevista com Michel Agier

Nós não devemos fugir da discussão, mas ao mesmo tempo é complicado


você sempre estar na posição de “dizer verdades”. É complicado porque,
como cidadão, posso querer dizer verdades como qualquer um e isso não é
tanto o trabalho ou a competência do pesquisador. Além do mais, nas “ver-
dades” em competição no espaço público não há muita escolha, geralmente é
sim ou não, branco ou negro, falta complexidade e nuances. A competência
do cientista social é a de explicar a complexidade de uma situação. Você ex-
plica a complexidade da coisa, você tenta socializar a experiência que tem ao
descrever e atravessar essa complexidade. Eu acho que o antropólogo se situa
sempre numa fronteira. No limite. Ele precisa implicar-se pessoalmente mas
precisa navegar também, se deslocar nos espaços sociais, sempre se colocando
na posição fronteiriça para poder objetivar. É algo sempre desconfortável,
mas é a condição da produção de um saber ao mesmo tempo subjetivo e obje-
tivo, de dentro e de fora, é essa a força da antropologia e não se deve perdê-la.
Mesmo Lévi-Strauss, que não era um grande pesquisador de campo, explica
muito bem, na “Introdução à obra de Marcel Mauss”, essa necessidade de
estar ao mesmo tempo um pouco por dentro e um pouco por fora.

Guilhermo Aderaldo: Você fala que esses novos agentes que informam os
pesquisadores muitas vezes são jovens altamente “conectados”, em muitos
casos, com boa escolaridade. E junto com esses jovens há também um cir-
cuito de mediadores entre o local e o global, de tal forma que a tendência
é que nesse espaço social de circulação, aquilo que você produz enquanto
pesquisador também seja lido e “utilizado” pelo “nativo”. Como lidar
com essa dimensão da pesquisa?

Acho que no final, talvez seja importante relatar os seus deslocamentos. Phi-
lippe Bourgois fez isso muito bem em outro domínio. Em Le crack à New

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York, Bourgois (1995) conta como ele entrou, com quem se relacionou e
como avançou cada dia na pesquisa. Acho que talvez seja uma das maneiras
de fazer. De contar o cada dia de sua pesquisa, como você vai avançando. O
que eu diria, porque eu acho isso, esse relato um pouco demorado é tentar
dar conta de todos os lugares que você percorreu durante sua pesquisa. E dar
conta dessas tentativas de objetivar sempre o objeto da pesquisa. Acho que
o objeto da pesquisa não existe. Você está sempre construindo o objeto, se
colocando na fronteira. E talvez, no final, a maior objetividade seja a maior
subjetividade. Quer dizer, você conta você mesmo sua trajetória de tentar
objetivar alguma coisa. E na questão do Ilê Aiyê, por exemplo, da cultura
negra, é muito óbvio porque você passa seu tempo a desconstruir, objetivar,
desconstruir e vai vendo pessoas que dão um reflexo, às vezes, essencialista
da identidade. Ou seja, quando você tem um reflexo essencialista, você tem
que desconstruir, objetivar e pensar em que contexto se faz isso. Aí o próprio
contexto dá outra camada de interpretação. E você tem que reobjetivar cada
vez e isso não tem fim.

Isabela Oliveira: A partir da sua experiência de pesquisa, quais as especi-


ficidades de se fazer uma antropologia urbana, ou mesmo uma antropo-
logia da cidade, num contexto africano e num contexto latino-americano.
Há mais aproximações ou distanciamentos?

A priori tem muita diferença. Há uma urbanização enorme, megalópolis na


América Latina, e um desprovimento no contexto africano. Mas eu acho que
minha perspectiva começou na África, depois na América Latina, e esse ano
na Europa, num trabalho com acampamentos de migrantes ditos “clandesti-
nos” na Grécia, na Itália e na França.
Eu parto da situação de desnudamento, de um certo vazio. É isso que eu cha-

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mei de cidade nua (Agier, 1999). São aglomerações, pessoas que se juntam,
mas não têm nada. O modelo, digamos, é o acampamento de deslocados,
pessoas que estão juntas sem nada. O que acontece? Acontece que tem uma
duração que começa, e relações começam, famílias se formam, constroem-
se casas. Você pode observar um processo que vai fazendo aos poucos uma
cidade. Então, para mim, você encontra esse processo em todos os lugares do
mundo, é o processo da cidade, que eu chamei do “fazer cidade”. Mesmo nas
megalópoles você encontra um lugar marginalizado. E é necessário descentrar
o olhar para os lugares onde começam os processos que vão formando algo
que a gente, depois, chama de cidade. Quando você está na extrema mate-
rialidade, você está numa situação onde parece que tudo já foi feito. É como
diz Marx, o trabalho morto. Você não vê o trabalho que já está feito. Parece
que isso é a naturalidade da cidade. Referindo-se à Escola de Chicago, por
exemplo, para Park isso é o habitat natural do homem civilizado. Parece que o
habitat natural da cidade é aquela grande coisa, grandes prédios, carros, ruas,
barulho... E você não vê o processo que fez isso. Então, partindo da África,
digamos, e daqueles pequenos bairros, como aquele bairro de estrangeiros no
Togo que eu estudei faz tempo, podemos dizer que sempre se repete o mesmo
processo: o pessoal chega negociando como comerciante estrangeiro, ambu-
lante, etc., chega de um outro lugar e as pessoas da cidade dizem para eles:
“Fiquem aí!” O espaço se torna o acampamento dos estrangeiros, chamado
“zongo” na língua haoussa. E se amplifica assim, depois de anos e décadas,
se torna um polo urbano importante. E o acampamento pode se tornar um
gueto, se torna muitas coisas. Mas você vê assim o processo. Então, para mim,
de fato, se parece muito diferente o que a gente chama de cidade na África,
na América Latina e na Europa. Mesmo assim, a cidade que a gente vê e pela
qual se interessa enquanto antropólogo e não enquanto sociólogo, arquiteto,
urbanista, o que quer que seja... Enquanto antropólogo você se pergunta:
qual é o processo de invenção desse espaço? Então, é interessante tomar essas

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situações de maneira descentrada, onde a coisa não está feita ainda, está se
fazendo, e é interessante acompanhar e recompor o processo que fez isso. Por
isso eu me interesso por espaços aparentemente marginais, acampamentos,
formação de guetos. Trata-se de entender o processo de formação de um es-
paço que depois de décadas vai se chamar de cidade.

Janaína Damasceno: É possível considerar a relação da antropologia e


dos processos traumáticos na constituição das cidades? Eu gostaria de sa-
ber se de algum modo isso faz sentido: pensar a cidade a partir de uma ou
um conjunto de experiências traumáticas em seu processo de constituição.

Eu tive contato com esse conceito de trauma trabalhando na questão das


guerras, violência e deslocamento de pessoas. No trauma, você tem que ver
a diversidade de efeitos sobre as pessoas de um mesmo evento, que a gente
chama de traumático, de uma guerra, um massacre, em função dos recursos
que essas pessoas têm. Tomar o trauma nesse sentido do sujeito do trauma
me parece mais complexo e, portanto, tendo mais possibilidades de análise.
Tomar o trauma enquanto evento que marca um corte, acho que é importan-
te. Creio que muitas cidades se formaram pelas guerras, por exemplo. Muitas
cidades nasceram como acampamentos. Muitas cidades nasceram com um
grupo armado que se colocou em algum lugar. Quer dizer, tem um evento
violento que está na fundação de um espaço ou de uma cidade. Nesse senti-
do, aceito a ideia de trauma. Mas eu temo muito os efeitos analíticos de uma
superemoção ligada à dor que há na ideia de trauma. Acredito na ideia de
um evento fundador, de uma violência fundadora, de algo que marca uma
ruptura com o estado normal das coisas, um estado anterior. Essa ruptura
toma forma de uma violência, de um deslocamento de uma população, por
exemplo, ou de uma guerra, e funda algo novo.

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Heitor Frúgoli Jr.: Seu interesse pela questão dos refugiados começou com
sua pesquisa na Colômbia? Você poderia contar um pouco do que viu lá
que o ajudou a configurar essa ideia?

Tem a ver. A especificidade de migrações, que não eram exatamente migra-


ções, mas deslocamento de populações dentro de um contexto violento. No
início, o programa de pesquisa que a gente tinha na Colômbia nasceu no
Brasil, na Bahia! Eram colegas colombianos que tinham vindo como visitan-
tes na UFBA, enquanto eu estava fazendo esse projeto que depois se chamou
A Cor da Bahia, sobre relações raciais e cultura negra na Bahia. E o pessoal
queria duplicar isso na Colômbia. Na Colômbia também tem população ne-
gra do Pacífico, tem movimento negro e queriam fazer essa pesquisa. Então
a gente fez esse projeto sobre migrações da população afro-colombiana do
litoral do Pacífico para as grandes cidades, como Cali. Mas quando a gente
fez essa pesquisa, entre 1997 e 1999, estava em plena retomada do conflito
interno, um desenvolvimento importante das FARC e muita violência, muita
guerra interna. Era uma fase importante de deslocamentos de, como cha-
mam lá, desplazados. E muitos desplazados que chegavam em cidades maiores,
Medellín, Bogotá e Cali. Em Cali há um bairro que é um duplo da cidade,
que se chama Agua Blanca, que tem 500, 600 mil pessoas. É um lugar onde
tem pessoas mais pobres, negras, migrantes etc. E era o lugar também onde
chegavam os desplazados. Então, dentro desse contexto, falei com os colegas:
“Isso não é migrante! Isso não é migração!” Isso é algo que tem a ver com um
certo trauma. E a primeira coisa que me tocou foi a ideia de como você di-
ferencia uma migração de um deslocamento forçado de população. É muito
pelo trauma que as pessoas lhe contam que viveram, a violência da partida, a
violência que eles próprios viveram ou presenciaram. Começou assim, com
uma reflexão de como se vive essa violência, o que é um deslocamento força-
do e de como as pessoas vivem com aquele trauma de ter passado por fases da

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biografia muito violentas e o que eles fazem com isso depois. Como eles con-
tam isso, testemunham isso. Foi assim que começou esse interesse. Voltando
depois de lá, me parecia óbvia a questão de se perguntar: será melhor ter um
acampamento ou nada? Melhor ter um lugar de proteção ou se espalhar na
cidade? Como as pessoas fazem para viver nesse contexto violento? Foi assim
que eu fiz todas essas pesquisas durante anos sobre os campos de refugiados
na África, a partir dessa pergunta, que é, ou parece ser, a mesma pergunta
das organizações internacionais, que são da proteção, mas no final das contas
termino dizendo que “no camps!” O pior é o encerramento das pessoas! Claro
que a proteção é necessária, mas os campos na África e agora na Europa e em
muitos lugares são, antes de tudo, uma maneira de se organizar uma gestão
de pessoas que você não quer integrar. É uma forma de governo indireto e
distante que garante o afastamento das pessoas indesejáveis (Agier, 2008).

Guilhermo Aderaldo: Essa é uma ideia de gestão que parece combinar


muito bem com a questão da cidade moderna, à medida que essa cidade
é sempre vinculada a uma imagem de civilização. Qual é a contribuição
da “antropologia da cidade” para uma discussão mais ampla da própria
antropologia?

Bom, primeiro, o urbano está se tornando algo, não generalizado, mas muito
importante. Então é difícil não estar num ambiente urbano. Qualquer pessoa
que a gente pesquise, todas têm a ver com o contexto urbano. E de outra
forma, eu diria, que os contextos urbanos, os processos urbanos, eles expe-
rimentam de maneira muito explícita os processos sociais, em geral. Hibri-
dação, mestiçagem, fundação de lugares, relação de identidade e alteridade,
etnicidade, todas as problemáticas que a antropologia tem são mais agudas,
fortes e explícitas em contextos urbanos. Porque o próprio contexto urbano é

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As cidades da antropologia: Entrevista com Michel Agier

o encontro, eventualmente o conflito, o encontro com o outro. Por exemplo,


a questão das fronteiras. Podemos tratar das fronteiras de identidade, que é
uma questão maior na antropologia, a partir dessa fragmentação do urbano
nas grandes metrópoles como São Paulo, Los Angeles e outras grandes cida-
des do Oriente Médio, que vêm privatizando e criando fronteiras dentro do
espaço urbano, através do uso de polícias privadas, de ruas com segurança
privada etc. Há, no contexto urbano, toda uma matéria prima para se pensar
e pesquisar sobre a questão da fronteira e, portanto, da identidade. Isso é
central na problemática antropológica.

Guilhermo Aderaldo: No livro Culturas Híbridas, de Nestor Canclini


(1997), ele cita uma experiência que viveu em Tijuana, no México, quan-
do pediu para que algumas pessoas fotografassem elementos significativos
da cidade na perspectiva delas. E a imensa maioria das fotos tiradas por
essas pessoas continha elementos de fronteira. Isso é muito significativo
nesse sentido, não é?

Para dizer o si, se mostra o limite do si para o outro. A substância nunca


se encontra. O que você pode descrever são os limites e as fronteiras. Lévi-
Strauss afirma que a identidade é um foco virtual, ao qual a gente sempre se
refere sem nunca encontrá-lo. E tudo o que a gente pode descrever, enquanto
antropólogo, é o limite, a fronteira, a diferença, o encontro com o outro.

Janaína Damasceno: Quando você se refere aos campos de refugiados,


fala de um certo “limbo” de cidadania e acaba por refletir sobre o que
chama de “governo dos indesejáveis”. Como você vê esta questão, inclusive
na Europa?

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A questão da não-cidadania do refugiado refere-se, antes de tudo, à falta do


Estado. São pessoas [para quem] faltou o Estado social, o Estado político, o
Estado que protege, o Estado que representa. Eles fugiram, foram expulsos
ou saíram por se sentirem ameaçados, abandonados, ou o que quer que seja, e
eles estão num certo momento do percurso em que não há uma relação do in-
divíduo com o Estado. Então, há um problema de cidadania no sentido mais
violento do Sem-Estado, do qual Hannah Arendt já tinha falado à propósito
dos indivíduos refugiados, e de certa forma o campo cria o limite físico da não
cidadania. As organizações internacionais e as ONGs não tratam de cidadãos,
elas tratam de vítimas ou de pessoas perigosas, mas é o mesmo trato, às vezes
as vítimas podem ser pessoas vistas também como perigosas. Não é nenhuma
crítica dizer que não há cidadania. É uma constatação, é a própria base do
sistema. Torna-se uma questão política quando isso se generaliza, quando isso
se expande e dura. Hoje em dia, há pelo menos mil campos de refugiados ou
desplazados no mundo. Pelo menos doze milhões de pessoas que estão con-
finadas em campos. Além disso, você tem 250, 300 zonas de espera, zonas
de transição, centros de retenção, centros de detenção para estrangeiros, estes
últimos na Europa. E não conto nisso os que têm os EUA na fronteira com
o México. Mas só falando no Oriente Médio, África, Ásia, Europa, você tem
essa quantidade. Então quer dizer que esse espaço do não cidadão, o espaço
da pessoa sem relação com o estado nacional é algo que se torna um dos
modos de ser no mundo, na mundialização de hoje em dia. E a minha refle-
xão vai em direção ao que eu chamo de governo dos indesejáveis, um governo
humanitário e policiado das pessoas que não têm relação com o Estado, um
governo sem cidadãos. E isso é um modo de gestão política que está se de-
senvolvendo no mundo. Não é puramente uma questão econômica, é uma
questão política que consiste em criar espaços fora dos espaços “normais”, na
extraterritorialidade. E, hoje em dia, esses espaços têm essa forma em que se
desenvolvem campos, mais ou menos fechados, pois há várias modalidades

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[de campos de refugiados] fechados ou não fechados. E essas pessoas não têm
escolha, a não ser sobreviver nesses espaços. E se tomamos as situações euro-
peias (talvez ali se possa comparar com algumas situações latino-americanas)
de subúrbios afastados, onde se encontram os estrangeiros ou os filhos dos
estrangeiros que foram colocados e mantidos nesses espaços à parte, ali temos
esses espaços outros, como disse Foucault, que eu retomo através da ideia das
novas heterotopias, dos novos espaços outros que se criam e que se parecem
no mundo. Como algo em que você pode observar a escala global, não só a
escala nacional. E a gente precisa tomar a escala global, mundializar o olhar
sobre um país. Então, é assim que eu vejo a questão dos estrangeiros na Eu-
ropa, um corredor de exílio,13 como eles chamam. O corredor de exílio é esse
espaço à parte, um corredor de onde as pessoas migrantes não saem, sendo ali
estigmatizadas como estrangeiras indesejáveis.

Isabela Oliveira: Há pouco você se referiu à chamada Escola de Chicago


para falar da ideia da cidade como habitat natural do homem civiliza-
do. E muitas leituras sobre a tradição dessa Escola advêm exatamente da
França. Por que o interesse da França de pensar historicamente a Escola
de Chicago, por exemplo, ou de retomar uma leitura de uma escola anglo-
saxã como a Escola de Manchester?

Eu acho que isso se inicia mais ou menos no período em que eu era estudan-
te. Era o período da crise da antropologia dita marxista, o período da críti-
ca ao estruturalismo e então uma releitura ou leitura de tradições chamadas
anglo-saxãs na França, no início de 1980. Eu teria que lembrar exatamente as
datas de tradução e apresentação que Isaac Joseph faz da Escola de Chicago,
acho que foi no final de 1970 e início de 1980.14 E a tradução por [Pierre]
Bourdieu, de Erving Goffman, La Mise en scène de la vie quotidienne (1973),

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que é do mesmo contexto. É o começo do interesse na França pela história da


Escola de Chicago e pela Escola de Manchester, que acho muito importante.
Eu acho que isso corresponde a um momento de uma certa crise, de uma
retomada crítica das grandes teorias objetivistas, seja a estruturalista, que é
herdeira de Lévi-Strauss, ou a linguística estrutural, ou a antropologia econô-
mica marxista. Você tem um momento onde se critica essas teorias globais do
mundo e os pesquisadores se voltam para as interações do campo, para ob-
servar as relações sociais, a funcionalidade das relações sociais, e sobretudo as
subjetividades. Então, o retorno a um certo empirismo passa pela descoberta
da primeira Escola de Chicago – Park, Burgess etc. – e para o interacionismo
– Goffman. A fascinação de Bourdieu pelo trabalho de Goffman é estranha
porque Bourdieu é daquela sociologia “dura”, muito estrutural naquele mo-
mento. Então é uma espécie de busca pós-estrutural: “Mas o que é a prática
mesmo?” “Por que as relações são assim e não de outra maneira?” Saindo das
grandes teorias gerais, macro etc. E o interesse pela abordagem situacional da
Escola de Manchester é interessante porque nos anos 1950, George Balan-
dier, por exemplo, trabalhou com a ideia da “situação colonial” e criticou a
etnologia africanista, dizendo: “Não são povos primitivos, não são indígenas.
São colonizados!” Essa é a grande diferença com a etnologia africanista fran-
cesa dos anos 1950. E criou o conceito de situação colonial exatamente no
momento em que Gluckman, Mitchell e outros da Escola de Manchester es-
tavam realizando a análise situacional, ou seja, descrevendo casos e entenden-
do esses casos através de uma análise contextual. Isso no final dos anos 1940,
início dos anos 1950. Mas naquele momento isso não fez uma contra corren-
te ao estruturalismo. Porque não se podia competir com essa representação
do mundo todo para qual abria o estruturalismo. E os antropólogos marxistas
que foram importantes nos anos 1960 criticavam o estruturalismo, dizendo
que ele não era politizado, que não se interessava pelo substrato econômico, e
por outro lado criticavam a Escola de Manchester dizendo que era funciona-

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lista. E só depois dessas críticas é que se voltou a ter esse interesse pela Escola
de Chicago e pela Escola de Manchester – que vêm da mesma necessidade,
da força do empirismo, da importância do empirismo. Ou, talvez, para se
entender melhor, havia uma busca sobre o sentido das relações sociais. Aque-
las pequenas relações sociais que a gente pode observar, não aquelas grandes
construções. Mas está havendo não só na França, mas na Europa em geral,
estudos sobre a história da Escola de Manchester, tem esses três livros15 que
saíram em inglês que indicam a importância da África na Escola de Manches-
ter. E, na França, depois do primeiro trabalho de tradução de Isaac Joseph,
têm sido realizados estudos sobre a história da Escola de Chicago.

Janaína Damasceno: Todo o seu trabalho é bastante devedor de uma an-


tropologia das situações. Você chegou a traduzir A Dança Kalela de Clyde
Mitchell.

Sim. Eu traduzi The Kalela Dance (Mitchell, 1956) para o francês, porque eu
acho que é um modelo da etnografia política de uma situação. Eu me inspi-
rei muito nisso para trabalhar com carnaval, primeiro porque tem todo um
trabalho de saber descrever uma situação, que não é um evento, mas algo que
você recompõe na escrita, através de várias observações, você termina fazendo
a sua descrição, a melhor possível, e de certa forma é mais fácil fazer uma
descrição sistemática quando trata-se de um ritual como é o caso da dança do
Kalela. Depois Mitchell constrói a análise dessa situação e o que os trabalhos
de Gluckman ou de Mitchell mostram é que você pode mobilizar todos os
recursos da interpretação histórica, contextual nacional, contextual interna-
cional, tudo se mobiliza dentro de uma situação dada e você pode medir os
efeitos de um elemento no outro elemento de contexto. Por exemplo, eu
acho interessante saber se outro contexto, lugar, configuração social é mais ou

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menos mundializado, pois não somos iguais na mundialização. E para isso o


interessante é poder fazer uma análise de situações, de rituais, de eventos que
lhe permitem medir o peso de cada elemento de um contexto, então esse é
um dos recursos da análise situacional. Outro recurso é o da dificuldade dos
limites dentro do mundo urbano, do mundo de hoje: já que nós criticamos
os limites tribais, étnicos, aldeia, qual o limite de minha unidade de base? Há
um texto em francês que é excelente, “L’Empirisme Irréductible” de Olivier
Schwartz (1993), que trata de todas as maneiras de se apreender a base empí-
rica de qualquer investigação. Mas qual é o limite da unidade empírica de re-
ferência, se estamos na crítica de todas as abordagens etnológicas stricto sensu,
as da etnia? Será que o bairro é um bom limite para investigar, ou a casa, ou
o quarteirão – essas perguntas que nós sempre temos. Olivier Schwartz trata
muito disso e para mim a análise situacional permite responder isso sem se
prende la tête, sem quebrar demais a cabeça.

Natália Fazzioni: Eu gostaria que o senhor falasse um pouco mais sobre


a sua preferência por uma etnografia dos espaços que chama de “margi-
nais” no contexto urbano. E também saber se essa reflexão se deve a uma
relação próxima com as Escolas de Manchester e de Chicago, já que ambas
estão pensando nesse contexto: a primeira a partir dos estudos coloniais e
a outra, a partir dos estudos urbanos, dos estudos de violência e de desvio.

Eu teria que retomar minha biografia para ver se isso tem realmente a ver com
a Escola de Chicago ou com a Escola de Manchester! Interessar-me por espa-
ços ditos marginais, pelo desnudamento, é como uma aposta metodológica.
É porque aí você vê melhor os processos, senão você acaba repetindo o que os
outros estão fazendo. Quando eu comecei a pesquisar, briguei com geógrafos,
sociólogos etc., eu dizia: “O urbano não me interessa, tudo me interessa, não

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é o urbano. Eu não faço antropologia urbana, eu faço antropologia em qual-


quer lugar, não me interessa saber se é urbano ou não urbano, por exemplo.
Eu quero entender os processos sociais.” Isso porque os geógrafos urbanos,
sociólogos urbanos, urbanistas, arquitetos têm o objeto já definido pela ma-
terialidade, pela cartografia ou pelas fronteiras. Uma vez, eu fiz um pequeno
texto sobre a cartografia. Quando eu comecei a pesquisar na Bahia, eu botei
na minha parede um mapa de Salvador e botei mil coisas sobre esse mapa!
Aqui tem isso, aqui tem cheiro, aqui tem uma igreja, aqui tem mais negros,
aqui tem mais brancos e logo comecei a entender o que era essa cidade, mas
se eu fosse aí nesse momento traçar os limites dos bairros, por exemplo, não
teria sentido. Eu tinha feito uma cartografia das regiões morais, como dizem
na Escola de Chicago, que não era o mesmo mapa daqueles cartógrafos. Por-
que no final eu julguei que não precisava mais do mapa, porque eu podia me
articular na cidade, eu não me perdia mais, eu sabia onde estava. E o cartó-
grafo nos dá a ideia de que ele está mostrando a realidade, enquanto ele está
mostrando uma representação da realidade. É certo que essa verdade dada da
cidade pelas outras competências que trabalham com a cidade é interessan-
te. Mas o que é que o antropólogo faz? Vai reproduzir isso tudo? Faz muito
tempo, Richard Fox (1977) propôs uma “antropologia urbana” que era algo
como pesquisar sobre a identidade cultural da cidade, mas se você não discute
o processo que faz isso, para que adianta? Você não discute os limites de seu
mapa, mas quando fala culturalmente da cidade, chama o antropólogo. Isso
é muito frequente: utilizar a antropologia como suplemento cultural. Não, o
que me interessa é o que eu posso fazer, dizer sobre aquele processo que fez
com que, num certo momento, aqueles limites se fizessem, aquelas fronteiras
se fizessem, aquele espaço se criasse. É por isso que se vai em espaços que estão
nas heterotopias ou o que chamamos ban-lieu,16 o lugar do limite. E observa-se
o que vai entrar ou vai sair nesse espaço de fronteira. O que também faz com
que esse espaço termine existindo ou não existindo – porque ocorre também

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que campos de refugiados podem ser arrasados, bem como acampamentos


informais podem desaparecer –, porque há uma precariedade da realidade
que você sempre maneja nesses espaços que talvez não vão continuar a existir.
Isso é o que é interessante no plano metodológico, é o processo, a gênese que
você pode observar.

Guilhermo Aderaldo: Ainda sobre os campos de refugiados, como foi fazer


etnografia nesses espaços? Como foi a relação com as ONGs, com os agen-
tes humanitários, com as pessoas que estavam ali?

Quando eu decidi que precisava pesquisar em campos de refugiados, fui me


aproximar do ACNUR [Alto Comissariado das Nações Unidas para os Re-
fugiados] para ter as autorizações e negociar algumas coisas, o que foi muito
complicado. Durou mais de um ano para tentar negociar, eu fazia um pro-
jeto que eles queriam, mas enfim, terminei não me entendendo com o AC-
NUR. Entendi depois o porquê. É uma dessas grandes máquinas poderosas
que quer controlar tudo. E através do Centro de Estudos Africanos, onde
eu estava, eu me dei conta que existia um colega que fazia parte do Médecins
Sans Frontières, Médicos Sem Fronteiras (MSF), do conselho de administra-
ção, e ele me fez o contato com esse pessoal. Fui apresentar a minha proposta
de trabalho ao presidente da MSF, que a achou muito interessante. Agora
digo isso, porque depois de muitos anos eu escrevi coisas muito críticas ao
sistema humanitário e às ONGs, mas naquele momento eu estava realmente
fascinado pela sua potência. Ele achou muito interessante a minha proposta
de pesquisar campos de refugiados, como funcionam, quais são as relações
de poder, tudo. O MSF é conhecido por ser muito crítico e autocrítico,
então gostam de pesquisadores, tem um centro de pesquisas dentro do MSF
também, mas o que eu lembro muito bem é que naquele momento, Jean

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Hervé Bradol, o presidente do MSF-França, me mostrou com o dedo o


mapa do mundo e disse: “Escolhe!” (risos) E então, conversamos sobre qual
era o melhor lugar para entender os campos de refugiados e terminamos
pensando que seriam os campos de Dadaab no Quênia, porque já eram
uns campos velhos e poderiam dar possibilidades de pesquisas tranquilas e
interessantes em termos de substrato social. Então me puseram em relação
com o pessoal do MSF-Bélgica, porque nesse campo era o MSF-Bélgica
que fazia a intervenção. E foi aí que fiz o contato e fui passar dois meses
primeiro lá no Quênia com refugiados somalis, depois comecei a trabalhar
com o MSF. Apresentei meu trabalho com pessoas que iam fazer interven-
ções humanitárias, comecei a discutir, a construir uma crítica dos campos
também, o pessoal começou a se interessar por isso e terminei sendo eleito
como membro do conselho de administração do MSF. Isso foi interessante
e complicado, ou não tão complicado, não sei. Em certo momento, eu me
envolvi como pessoa, não como pesquisador, mas como militante nas dispu-
tas, no dia a dia dessa organização e passei seis anos como eleito no conselho
de administração. Foi uma experiência extraordinária, foi disso que eu tirei
uma crítica, não das pessoas, não de tal ou tal organização, mas do sistema
de poder que eu chamo de governo humanitário, que é uma das potências
que existem no mundo, junto com a ONU. Há umas seis ou sete organiza-
ções internacionais, entre elas o MSF, algumas delas que têm mais fundos,
mais dinheiro que o ACNUR, por exemplo. Daí o poder da OXFAM, da
MSF, da CARE. Essas organizações têm uma potência financeira e um po-
der político muito grande. Então circulei no meio do mundo humanitário
e ao mesmo tempo nos campos de refugiados, onde eu entrava com e como
um membro do MSF. Eu era um branco e todos os brancos nos campos de
refugiados são consideradas “UN”, como as pessoas dizem... “UN”, ou seja,
das Nações Unidas, e isso foi interessante porque você pode brigar na França
ou nos Estados Unidos dizendo que o MSF é muito diferente da OXFAM,

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que a OXFAM é muito diferente da CARE, que a CARE é muito diferen-


te da Cruz Vermelha, mas para os refugiados nos campos tudo é UN. Os
poderosos dos campos, seja o pessoal das organizações humanitárias, seja o
pessoal da organização, é tudo “UN”.

Heitor Frúgoli Jr.: Paris não é uma cidade que você pesquisa, já que você
elegeu outros campos. Mas eu gostaria de saber do seu olhar de antropó-
logo sobre Paris. Que ideias você tem quando você observa essa cidade?

Eu não sou parisiense, eu digo isso porque passei muito tempo da minha
vida pessoal e profissional não querendo ir para Paris. Fui para Paris porque
era o lugar mais inclusivo no mundo, quer dizer, para circular pelo mundo
como eu faço, era mais simples morar em Paris, do que em Montpellier ou
Marseille. Paris é a mais cidade-mundo que nós temos na França. Bem, eu
não faço pesquisa em Paris, mas terminei uma pesquisa agora com acam-
pamentos de “clandestinos” na Europa e o final da pesquisa terminou pra-
ticamente na porta da minha casa, porque no Canal Saint-Martin (um dos
canais que dá no Rio Sena) há imigrantes afegãos sem-teto que colocam
barracas no canal e isso fica a 100 metros do meu apartamento. O campo
está na minha casa! Esse é um trabalho que fizemos com uma fotógrafa
[Sara Prestianni], que vai sair no início de 2011. É um trabalho sobre a
ideia de refúgio chamado “ ‘Je me suis réfugié là!’ Bords de routes en exil”. Ele
foi realizado na Grécia, em Roma, em Calais no norte da França e em Paris.
Há um outro trabalho que estou coordenando, com uma ex-doutoranda
que agora é professora, uma colega e uma jornalista, que se chama “Refú-
gios em Paris” e que tenta entender dentro daquela cidade, daquela grande
cidade, a presença de espaços de interstício, onde você tem pessoas que
procuram aquele tipo de refúgio. Tem um caso conhecido pelos parisienses

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que é dos afegãos que moraram durante muitos anos no Parque Villemin
[no décimo arrondissement de Paris] e que foram tirados pela polícia no ano
passado, mas que ficaram lá durante um bom tempo, e a reação das pessoas
do bairro, uns contra e outros fazendo uma associação para dar apoio. Um
outro trabalho é sobre a vida familiar, pessoal, íntima, dos sans abris, quer
dizer de pessoas que vivem na rua, enfim há também um outro trabalho
sobre situações e lugares que existem em Paris e que talvez as pessoas não
saibam, como, por exemplo, as barracas que as pessoas constroem embaixo
das pontes (assim como em São Paulo). Isso também tem em Paris, em ter-
renos vazios, onde constroem-se cabanas e as pessoas que se instalam nelas
são geralmente imigrantes, mas também ciganos romenos ou turcos. Por
último, há um estudo dos squats, ocupações de apartamentos e imóveis por
africanos. Então o propósito desse projeto é explicar que ter esses tipos de
refúgio em Paris é também uma maneira de Paris estar no mundo, é uma
forma da mundialização urbana. A partir dali, podemos retomar o projeto
político que foi levado um tempo por Derrida (1997), aquele da cidade-
refúgio, quando explicava que hoje em dia estamos a esperar da cidade
aquilo que o Estado se recusa a dar, que é a hospitalidade. Por esse caminho
começo a me interessar sim por Paris!

Notas

1 Janaína Damasceno, Isabela Oliveira e Guilhermo André Aderaldo são Doutorandos em Antropo-
logia Social na USP, Natália Helou Fazzioni é Mestranda no mesmo programa e Heitor Frúgoli Jr.
é Professor do Departamento de Antropologia/ USP.
2 “C’est vrai qu’il y a des choses qu’on apprend dans l’enquête urbaine qu’on n’apprend peut-être pas
ailleurs, et notamment cette idée de ce qui fait la ville” (Agier, 2006, p.138).
3 Numa entrevista recente, sua cidade preferida: “Je crois pouvoir dire sans hésitation que ma ville
préférée, c’est Salvador de Bahia“. [...] “J’y ai vécu cette très belle expérience d’arriver en pleine
conscience dans une ville que je ne connaissais pas, fascinante par son chaos” [...] “Je crois que c’est

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vraiment à Salvador que j’ai commencé à aimer les villes” (Agier, jan.-fev./2010, p. 80).
4 Infelizmente ainda não traduzido para o português.
5 Para um quadro a respeito da consolidação dessa área na França, ver Gutwirth (2008).
6 Sobre o tema da etnografia urbana, ver Cordeiro (2010), Magnani (2009) e Frúgoli Jr. (2007).
7 Ainda participaram da mesa os professores Heitor Frúgoli Jr. e José Guilherme Magnani e o douto-
rando Guilhermo André Aderaldo. A Sexta do Mês é um evento realizado com apoio do Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social e do Departamento de Antropologia da USP. Os auto-
res gostariam, também, de agradecer à colaboração da professora Patricia Birman (UERJ) pela
vinda de Michel Agier à Universidade de São Paulo.
8 “O termo “baba” é utilizado na Bahia como uma referência às partidas amadoras de futebol. “Baba
do Negão” é o nome de um grupo de jogadores do bairro da Liberdade (Salvador), onde Agier
iniciou sua etnografia. A oportunidade de ingresso na “turma” lhe deu a possibilidade de observar
detidamente uma série de práticas de sociabilidade que iam desde vínculos pessoais e profissionais
até relações de fundo clientelista (Agier, 1999, pp. 101-113 e 2001).
9 Michel Platini (França, 1955) é considerado um dos maiores jogadores da história do futebol
francês; atuou na seleção ao longo dos anos 1980.
10 Zinédine Zidane (França, 1972), de origem argelina, é também visto como um dos melhores joga-
dores da história do futebol francês, tendo jogado na seleção que conquistou a Copa do Mundo,
em 1998, e o vice-campeonato, em 2006.
11 O autor refere-se à Antropologia da cidade; lugares, situações, movimentos, tradução em língua por-
tuguesa de Esquisses d’une anthropologie de la ville. Lieux, situations, mouvements (Agier, 2009), no
prelo pela Editora Terceiro Nome. O livro foi traduzido para o português por Graça Cordeiro,
professora e pesquisadora do ISCTE/Lisboa.
12 Orum pode ser entendido como o “mundo celeste” e Aiyê como “mundo material”. O Ilê Aiyê
seria, portanto, a representação material do mundo celeste.
13 É o título do último livro de Michel Agier publicado em francês, Le couloir des exilés. Être étranger
dans un monde commun (2011).
14 Joseph organizou no final dos anos 1970, junto a Grafmeyer (1979), uma coletânea com traduções
para o francês de textos clássicos de Park, Burgess, McKenzie, Wirth, entre outros.
15 Rogers e Vertovec, 1995; Schumaker, 2001; Evens e Handelman, 2006.
16 Banlieue é pensada aqui não apenas como subúrbio, mas também como “ban-lieu”, lugar de con-
finamento do banido (“lieu de confinement du banni”) (Agier, 2009, p. 13).

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Bibliografia

AGIER, M.
1983 Commerce et sociabilité. Les négociants soudanais du quartier Zongo de Lomé, Paris,
IRD.
1990 “O sexo da pobreza. Homens, mulheres e famílias numa ‘avenida’ em Salvador da
Bahia”, Tempo Social, nº 2, vol. 2, pp. 35-60.
1990 “Espaço urbano, família e status social: o novo operariado baiano nos seus bairros”,
Caderno CRH, nº 13, pp. 39-62.
1998 “Lugares e redes: as mediações da cultura urbana”, in NIEMEYER, A. M. &
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2000 Anthropologie du carnaval, La ville, la fête et l’Afrique à Bahia, Marseille, Ed. Paren-
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2001 “Distúrbios identitários em tempos de globalização”, Mana, nº 2, vol. 7, pp. 7-33.
2006 “O humanitário como terreno de pesquisa” (Entrevista concedida a Susana Durão),
Sociologia - problemas e práticas, nº 50, pp. 133-150.
2008a Gérer les indésirables. Des camps de réfugiés au gouvernement humanitaire, Paris,
Flammarion, (tradução inglesa: 2011 Managing the Undesirables. Refugee Camps and
Humanitarian Government, Cambridge: Polity Press).
2008b “O ‘acampamento’, a cidade e o começo da política”, in CORDEIRO, G. &
VIDAL, F. (orgs.), A rua. Espaço, tempo, sociabilidade, Lisboa, Livros Horizonte, pp.
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2009 Esquisses d’une anthropologie de la ville. Lieux, situations, mouvements, Louvain-la-
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2010 “L’invite Michel Agier (idées em débats)”, (Entrevista concedida a Thierry Paquot).
Urbanisme – villes, societés, cultures, nº 370, pp. 71-80 (Dossier Petits riens urbains).
2011 Le couloir des exilés. Être étranger dans un monde commun, Bellecombe-en-Bauges,
Éditions du Croquant.

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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.

AGIER, M.; CASTRO, N. A.; GUIMARÃES, A. S.


1995 Imagens e identidades do trabalho, São Paulo, Hucitec/ L’Institut Français de Recherche
Scientifique pour le Développement en Coopération.

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1995 En quête de respect. Le crack à New York, Paris, Seuil.

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1997 Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade, São Paulo, EDUSP.

CORDEIRO, G.
2010 “As cidades fazem-se por dentro: desafios de etnografia urbana”, Cidades, comunidades
e territórios, nº 20/ 21, pp. 111-121.

DERRIDA J.
1997 Cosmopolites de tous les pays, encore un effort! Paris, Galilée. 

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2006 The Manchester School: Practice and Ethnographic Praxis in Anthropology, Oxford, Ber-
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1977 Urban Anthropology. Cities in their Cultural Settings, New Jersey, Prentice-Hall.

FRÚGOLI JR., H.
2007 Sociabilidade urbana, Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

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1973. La mise en scène de la vie quotidienne, Paris, Minuit.

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1979 L’école de Chicago. Naissance d’une écologie urbaine, Paris, Editions du Champ Urbain.

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As cidades da antropologia: Entrevista com Michel Agier

GUTWIRTH, J.
2008 L’anthropologie urbaine en France. Un regard rétrospectif. Disponível em: <http://halshs.
archives-ouvertes.fr/halshs-00267536/fr/>, acesso em: 10/10/2010.

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2009 “Etnografia urbana”, in FORTUNA, C. & LEITE, R. P. (orgs.), Plural de cidade:
novos léxicos urbanos, Coimbra, Almedina, pp. 101-113.

MITCHELL, C.
1956 The Kalela Dance: Aspects of Social Relationships among Urban Africans in Northern
Rhodesia, Manchester, Manchester University Press.

PIERSON, D.
1945 Brancos e pretos na Bahia: estudo de contato racial, São Paulo, Editora Nacional.

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1995 The Urban Context. Ethnicity, Social Networks and Situational Analysis, Oxford,
Washington, Berg Publishers.

SCHUMAKER, L.
2001 Africanizing Anthropology: Fieldwork, Networks, and the Making of Cultural Knowledge
in Central Africa, Durhan, Duke University Press.

SCHWARTZ, O.
1993 “L’Empirisme irréductible” (Postface), in ANDERSON, N., Le Hobo. Sociologie du
Sans-Abri, Paris, Nathan, pp. 265-308

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A Comissão Editorial da Revista de Antropologia agradece
a colaboração dos pareceristas ad hoc em 2010

Adriana Gracia Piscitelli (UNICAMP)


Agenor José Teixeira Pinto Farias (PUC-SP)
Ana Claudia Cruz da Silva (UFF)
Ana Claudia Duarte Rocha Marques (USP)
Ana Lúcia Marques Camargo Ferraz (UFF)
Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer (USP)
Ana Paula da Silva (USP)
Anna Paula Uziel (UERJ)
Antonio Jacó Brand (UCDB)
Beatriz Perrone-Moisés (USP)
Carla Barros (PUC-Rio)
Carmen Suzana Tornquist (UDESC)
Ciméa Barbato Bevilaqua (UFPR)
Cristina Neme (OPESP)
Cristina Patriota de Moura (UnB)
Derek Pardue (Washington University)
Dominique Tilkin Gallois (USP)
Edlaine Campos Gomes (CEBRAP/UNIRIO)
Emerson Alessandro Giumbelli (UFRGS)
Érica Renata de Souza (PUC-Campinas)
Fabiano Gontijo (UFPI)
Fernanda Arêas Peixoto (USP)
Fernando Giobelina Brumana (Universidade de Cádiz)
Gabriel Coutinho Barbosa (UFSC)
Heitor Frúgoli Jr. (USP)
Íris Kantor (USP)
Isadora Lins França (UNICAMP)
João Batista de Jesus Félix (UFTO)
John Cowart Dawsey (USP)
John Monteiro (UNICAMP)
John Collins (City University of New York)

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José Carlos Rodrigues (PUC-RIO)
Julio Assis Simões (USP)
Kabengele Munanga (USP)
Leopoldo Waizbort (USP)
Lorenzo Macagno (UFPR)
Lux Boelitz Vidal (USP)
Marcos Chor Mayo (FIOCRUZ)
Marcos Cesar Alvarez (USP)
Marcos Lanna (UFSCar)
Marcos Pereira Rufino (UNIFESP)
Maria Luiza Heilborn (UERJ)
Maria Rosário Carvalho (UFBA)
Mariana Cavalcanti (FGV)
Mariana Monteiro (UNESP)
Mariza Peirano (UnB)
Martha Celia Ramirez-Gálvez (UNICAMP)
Marta Rosa Amoroso (USP)
Miriam Furtado Hartung (UFSC)
Myriam Lins de Barros (UFRJ)
Oscar Calavia Saez (UFSC)
Paula Renata Miraglia (ICPC)
Paula Montero (USP)
Pedro Nascimento (UFAL)
Peter Fry (UFRJ)
Regina Facchini (UNICAMP)
Roberto Kant de Lima (UFF)
Roger Sansi (University of London)
Rosane Manhães Prado (UERJ)
Rubens da Silva (UFJF)
Scott Correl Head (UFSC)
Simone Grilo Diniz (USP)
Sonia Weidner Maluf (UFSC)
Soraya Fleischer (UnB)
Theophilos Rifiotis (UFSC)
Ugo Maia (UFSE)
Verena Stolcke (Universidade Autônoma de Barcelona)

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INSTRUÇÕES PARA COLABORADORES

Para a publicação de artigos, resenhas e traduções, a Revista receberá, em qualquer


época do ano, contribuições nacionais e internacionais que estejam em concordância
com o formato e perfil definidos por sua linha editorial. Os artigos – sobre temas, re-
sultados de pesquisas e modelos teórico-metodológicos próprios da Antropologia em
suas diversas áreas e interfaces com disciplinas afins – serão submetidos à avaliação de
pareceristas externos.

1. Quanto aos artigos:


· Devem conter aproximadamente 10 mil palavras, incluindo notas e bibliografia (fonte
tamanho 12, espaço 1,5 e processador de texto Word) e serem encaminhados para o
e-mail <revant@usp. br>, contendo resumo (entre 100 e 150 palavras) palavras-chave e
título em português e em inglês.
· Os originais serão submetidos à avaliação de dois relatores. A partir desses pareceres,
a Comissão Editorial julgará a viabilidade de sua publicação. Os nomes dos relatores
permanecerão em sigilo, omitindo-se também os nomes dos autores perante os relatores.
· As notas devem ser numeradas em ordem crescente e digitadas no final do texto. As
menções a autores, no decorrer do texto, devem ser citadas: (sobrenome do autor, data)
ou (sobrenome do autor, data, página). Ex.: (Montero, 1983) ou (Montero, 1983, p.
245). Diferentes títulos do mesmo autor, publicados no mesmo ano, serão identificados
por uma letra depois da data. Ex.: (Lévi-Strauss, 1967a), (Lévi-Strauss, 1967b).
· A bibliografia deve ser apresentada no final do texto, obedecendo ao seguinte padrão:
a) no caso de livro: sobrenome (em caixa alta), nome do autor; ano de publicação,
título do livro em itálico, local, editora, edição. Ex.:
DA MATTA, Roberto
1976 Um mundo dividido: a estrutura social dos índios apinayé, Petrópolis, Vozes.
b) no caso de coletânea: sobrenome (em caixa alta), nome do autor; ano de publi-
cação, título do texto entre aspas, in sobrenome (em caixa alta), nome do organizador
(org.), título do livro em itálico, local, editora, página inicial-página final. Ex.:
VIDAL, Lux

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1992 “Pintura corporal e arte gráfica entre os Kaiapó-Xicrin do Cateté”, in VI-
DAL, L. (org.), Grafismo indígena: estudos de antropologia estética, São Paulo,
Studio Nobel/Fapesp/Edusp, pp. 143-89.
c) no caso de artigo: sobrenome (em caixa alta), nome do autor; ano de publicação,
título do artigo entre aspas, título do periódico em itálico, local, número do periódico:
página inicial-página final. Ex.:
MARCUS, George
1991 “Identidades passadas, presentes e emergentes: requisitos para etnografias
sobre a modernidade, no final do século XX a nível mundial”, Revista de
Antropologia, São Paulo, vol. 34: 197-221.
d) no caso de tese acadêmica: sobrenome (em caixa alta), nome do autor; ano de
publicação, título da tese em itálico, local, dissertação (mestrado) ou tese (doutorado),
instituição, número de páginas.
Ex.: ANTERO, M.
1993 Identidades negras no Brasil contemporâneo, São Paulo, dissertação, USP, 150 pp.

2. Quanto às resenhas:

As resenhas críticas e informativas devem ter no máximo 6 laudas.


3. Os artigos devem ser enviados para:
Revista de Antropologia
Departamento de Antropologia – USP
e-mail: revant@usp.br.

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