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2007
Universidade de Aveiro
Universidade de Aveiro 2007
Departamento de Comunicação e Arte
Dedico este trabalho à minha mãe Isabel e à minha filha Francisca.
o júri
Presidente
Prof. Doutor Fernando Manuel dos Santos Ramos
Professor Catedrático da Universidade de Aveiro
Arguente
Prof. Doutora Gabriela Vasconcelos Pinheiro
Professora Auxiliar da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto
Coordenador do Mestrado
Prof. Doutor Paulo Bernardino das Neves Bastos
Professor Auxiliar da Universidade de Aveiro
Orientador do Mestrado
Prof. Doutor João António de Almeida Mota
Professor Auxiliar da Universidade de Aveiro
agradecimentos
Quero também agradecer a André Rangel, Bruno Baldaia, Carlos Bártolo, Henri-
que Figueiredo, Inês Mendes, Joana Pimentel, Prof. Doutora Rosa Oliveira, Tiago Restivo,
pelos preciosos contributos prestados durante todo este processo.
Gostava ainda de agradecer a Edgar Silva, João Leão, José Costa, Prof. Doutor
José Luís Azevedo, Pedro Oliveira, por toda a ajuda prestada durante todo este processo.
Agradeço por fim a Claúdia Ribau e a toda a minha família pelo amor e pela ami-
zade sempre demonstrados.
Palavras-chave
Resumo
Keywords
Abstract
This dissertation raises a set of questions related to the artist, the creative pro-
cess and the art object. Focusing on the artist’s sudio as the place of creation, this study
concludes that the studio is, in its essentials, the site of the art, a territory without boun-
daries, an amoral place. Moreover, this study made possible the production of a painting:
“The Artist’s Studio”(2007, acrylic on canvas, 280x120cm). A painting exhibited at the Au-
ditorium of the Departamento de Comunicação e Arte at Universidade de Aveiro on July
the 20th, 2007.
Índice
APRESENTAÇÃO 11
Objectivos 13
Metodologia 14
~1967 ~1979 26
~1980 ~1993 29
~1994 ~2006 31
Discursos críticos 34
O Objecto Desconstruído 35
O Objecto Habitado 35
O Espaço Habitado 37
O Atelier Habitado 38
Família 39
Fotografia 41
Fotógrafo 42
Corpo 45
Processo 47
Dualidade 49
Zero 50
Atelier 52
2 ELES (os ateliers e as obras) 63
O mundo de Alice 72
A Obra 85
texto de autor
O Atelier (síntese de ELE e conclusão) 93
Bibliografia 97
Lista de imagens 99
Anexo 103
10
Apresentação
Francisco Cardoso Lima, Serial B, 2005, robótica (protocolo de comunicação Max/MSP),
Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro e Instituto de Engenharia Electrónica e
Telemática da Universidade de Aveiro.
Francisco Cardoso Lima, À Tua Frente - site specific (com Tiago Restivo), 2005/2006, espe-
lho, metal, sensor ultra-som e micro-processador, 80x60x4cm, Departamento de Comunicação e Arte da
Universidade de Aveiro.
Francisco Cardoso Lima, O Gémeo, 2005, impressão s/ papel, 140x280cm, Fábrica da Ciên-
cia Viva, Aveiro.
11
“O Gémeo”). Em Laboratório de Experimentação e Criação Artística, disciplina iminen-
temente prática, tida como aglutinadora de todo o percurso reflexivo/prático, o último
trabalho apresentado, “The Artist’s Place” (fig. 1), surge como uma declaração dos campos
de interesse para este estudo, ancorada não tanto em afirmações ou conclusões, antes
apresentando um conjunto de inquietações: Que lugar é esse onde tudo se passa? É esse
o lugar da criação? O espaço da arte?
Francisco Cardoso Lima, O Gémeo (fotograma), 2005, vídeo, 7:55’’ @152x320 px, Departa-
mento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro
12
2 H. Almeida, Eu Estou Aqui, 2005
Objectivos
“Atelier - B. ART. Oficina para restauro de obras de arte ou onde trabalham os artistas plásti-
cos. Pode ser individual, para escultor ou pintor, ou conjuntamente de vários artistas formados ou jovens artistas
estudantes. Quando assim, terá a orientação de um ou vários mestres e tomará o nome de aula. O conjunto de
aulas agrupadas forma uma academia ou escola.” António-Lino in Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, 2º
volume, (Lisboa: Verbo, 1992), coluna 1720.
13
Não está em causa neste estudo, pelo menos directamente, a definição de arte
nem sequer a definição de artista ou de obra de arte. Antes, a reflexão sobre os meca-
nismos subjacentes ao acto criativo. Trata-se aqui dos factores internos, de vária ordem,
ligados ao sujeito (e à sua condição de artista), ligados ao processo de criação artística
(e ao atelier como metáfora desse lugar de criação) e ligados ao objecto artístico (à sua
materialidade/fisicalidade e à sua aura).
A pergunta essencial deste estudo é:
–Entender qual o lugar onde o criador exerce a possibilidade de ultrapassar os
limites da realidade.
Metodologia
14
o nexo, nem sempre são o bastante para avançar. E nas artes plásticas, como na ciência,
o rasgo está muitas vezes associado ao incompreensível. A tarefa dos investigadores, é,
também, construir a partir desse incerto. Priorizar as hipóteses para seleccionar assumin-
do esse risco inerente à fragilidade do investigador.
Aqui, no momento primordial, arte e ciência partilham a mesma realidade:
Pela complexidade da arte e do espaço artístico, pela sua própria natureza inde-
terminada, amplitude do seu campo de acção, pelo largo espectro de questões por ela
levantadas, pelo território de fronteiras permeáveis que se cruzam e sobrepõem em dife-
rentes momentos investigativos, por tudo isto, apresentam-se dois esquemas adaptados
(fig. A e B) que contextualizam os recursos metodológicos usados neste percurso:
Interacção
Investigação
Pensar Fazer
Fig. A
Objecto
J. Eduardo Carvalho, Metodologia do Trabalho Científico, (Lisboa: Escolar Editora, 2002), p. 77.
Adaptação simplificada do “V Epistemológico de Gowin”, depois de “O ‘V’ do conhecimen-
to” in J. Eduardo Carvalho, Metodologia do Trabalho Científico, (Lisboa: Escolar Editora, 2002), p. 102.
15
-Adaptação simplificada do esquema “Pensamento Divergente vs Pensamento
Convergente” que assenta na metáfora do funil10 (enquanto pensamento convergente)
ao qual lhe é acrescentado um outro funil invertido (enquanto pensamento divergente).
Pensamento Divergente
Pensamento Convergente
Fig. B
Aquilo que Darrel Rhea propõe acrescentar antes desse processo de refinamento
e ordenação (típico do pensamento convergente), é um momento de maior diversidade
e profundidade na análise das várias partes (típico do pensamento divergente). Assim,
quer aquilo que à partida é expectável, quer, essencialmente, aquilo que à partida pode
parecer fazer parte de um quadro exterior à investigação, estão, em ambos os casos, con-
vocados para a definição do grande quadro investigativo. E na criação artística, como na
investigação científica, parece ser esse o rasgo para um pensamento mais consistente,
origem para propostas mais significativas quer na determinação das questões essenciais
quer na definição dos percursos metodológicos. E durante este processo particular, a in-
17
como meta-obra singular). Noutro momento, foi a reflexão teórica que serviu a criação ar-
tística quer pela análise, quer pela síntese, quer pelo percurso reflexivo traçado no decor-
rer deste texto. Devedor do domínio reflexivo, “The Artist’s Studio” (fig. 60) é o ponto final
deste mestrado. E na dupla qualidade de ser, por um lado, objecto último deste mestrado
e, por outro lado, o objecto último da prática de atelier, “The Artist’s Studio” (fig. 60) afi-
gura-se como matéria prima para novas construções quer ao nível prático, quer ao nível
teórico. Pela sua natureza de objecto artístico e pela sua natureza de trabalho-tese, esta
obra arrastar consigo um vasto leque de interrogações e inquietações, própris dos mo-
tores-alavanca. Neste sentido, “The Artist’s Sutio” (fig. 60 -a obra sobre o atelier do artista)
parece funcionar como agente motriz de forma tão fulcral como funcionou “The Artist’s
Place” (fig. 1 -a obra sobre o lugar do artista): princípio ou causa primeira para avanços.
No início, aquando da escolha do tema e do caso (do leitmotiv que sempre pon-
tuou o estudo), aquando da escolha do atelier como grande tema aglutinador e da obra
“Eu Estou Aqui” (fig. 2) como referência de partida, usou-se uma abordagem metodológi-
ca essencialmente assente no pensamento divergente/convergente.
Posteriormente, em “ELA-A obra de Helena Almeida (mapa de momentos)”, (pp.
21-32), partindo de uma leitura do conjunto da sua produção, e recorrendo fundamental-
mente ao pensamento dedutivo, assinalam-se os principais momentos do seu percurso
artístico.
Ainda, no seguimento de uma leitura da obra de H. Almeida, naquilo que é inti-
tulado de “ELA-Discursos críticos” (pp. 33-54), durante as pesquisas elaboradas em docu-
mentação de e sobre a artista, prevaleceu uma abordagem analítica.
Posteriormente, no final deste 1º capítulo, em “ELA-Helena Almeida por outros e
por mim”, (pp. 54-61), foi elaborado um trabalho de síntese.
No início do 3º capítulo é apresentada a obra “The Artist’s Studio”, (fig. 60, p. 101),
18
enquanto acontecimento resultante da interacção dos campos teóricos e práticos, en-
quanto objecto de reflexão, seguida de dois textos, outras duas reflexões distintas.
Primeiro, em “This Is My Studio (ou o atelier como lugar de criação -pp. 89-94)”,
texto de Nuno Barros, foi feita uma abordagem iminentemente indutiva, do trabalho par-
ticular, observado em atelier, para o percurso do autor.
Depois, em “Esses (ela, eles, ele, eu e o outro -pp. 94-99)” fez-se um exercício crí-
tico sobre o próprio percurso investigativo (com particular ênfase no 2º capítulo e conta-
giado também pelo eixo prático), novamente numa atitude primeiro divergente/aberta,
(no elencar de um conjunto de tópicos) para, posteriormente, num trajecto convergente/
sintético, preparar o último capítulo deste trabalho.
Finalmente, no texto “ELE-O atelier”, (pp. 100, 101), e numa perspectiva de sínte-
se, a dissertação é concluída.
19
20
1
1 ELA (mapas, obras e discursos sobre Helena Almeida)
~1967 ~1979 26
~1980 ~1993 29
~1994 ~2006 31
Discursos críticos 34
O Objecto Desconstruído 35
O Objecto Habitado 35
O Espaço Habitado 37
O Atelier Habitado 38
Família 39
Fotografia 41
Fotógrafo 42
Corpo 45
Processo 47
Dualidade 49
Zero 50
Atelier 52
21
22
A Obra de Helena Almeida Mapa de Momentos
Aquilo que parece ser o primeiro grande momento do corpo de trabalho de He-
lena Almeida (fig. C) é balizado entre os finais da década de sessenta e os finais da década
de setenta. Cerca de doze anos que tem início com as primeiras exposições na Galeria
Buchholz (Lisboa, Portugal) e se prolonga até às primeiras exposições individuais fora de
Portugal (Berna, Suíça, França, Bélgica). Em 1977 participa na exposição colectiva “Alter-
nativa Zero” (Lisboa, Portugal)
O Outro Ruptura
2: A Herança
Fig. C
1967 1979 1980
24
O segundo grande momento do corpo de trabalho de Helena Almeida (fig. D)
situa-se entre os inícios da década de oitenta e os primeiros anos da década de noventa.
Nestes cerca de treze anos as exposições individuais e colectivas sucedem-se, dentro e
fora de Portugal. Expõe na Fundação Calouste Gulbenkian em 1983 e 1987. São duas ex-
posições marcantes no percurso da artista. Ainda, em 1982, representa Portugal na Bienal
de Veneza, comissariada por Ernesto de Sousa.
Ruptura O Eu Ruptura
1: Helena Almeida
Fig. D
1979 1980 1993 1994
Ruptura O Atelier
0: O Legado
Fig. E
1993 1994 2006
25
Mapa de Momentos 1º momento (~1967 ~1979) O Objecto
1934 1955 1967 1968 1969 1970 1971 1972 1973 1974 1975 1976 1977 1978 1979
Curso de Pintura
Lisboa
Escola de Belas-Artes de Lisboa
Pintura Habitada
Desenho Habitado
Sem Título
Mixed Media
Mixed Media
Ouve-me
Sente-me
Primavera
Mixed Media
Retrato de Família
Pintura Acrílica
Fig. F
Ambiente
Os discursos críticos sobre a obra de Helena Almeida parecem tornar claro a exis-
tência de um primeiro momento que decorre até aos finais da década de 60, como a pró-
pria artista afirmou em entrevista a María do Corral: “os anos sessenta são os do começo
do meu trabalho.” (H. Almeida 2000, 19). Ernesto de Sousa considera os anos de 1969/70
como o momento da passagem da obra da artista para a modernidade. Considera que a
partir de 1971 a problemática passa a ser distinta daquilo que desta forma se pode consi-
derar como trabalhos de uma primeira fase inicial, de um Primeiro Momento.
26
Ernesto de Sousa divide este nosso 1º momento em duas partes; uma até aos
finais dos anos 60:
Este momento pode ser dividido em duas fases distintas pela utilização privile-
giada de dois diferentes tipos de media. Por um lado a pintura, em suporte plano e a es-
cultura mixed media tridimensional. Por outro lado a fotografia como documento, como
registo de uma acção.
Estes dois momentos que E. de Sousa assinala como distintos parecem unir-se
num único momento, o momento em que o objecto é o centro das suas preocupações.
Desde as primeiras exposições até à entrada no negro, Helena Almeida declara o objecto
como motivo, centrando a sua atenção em torno de um conjunto de questões exteriores
a si enquanto criadora: os problemas da representação e particularmente os limites da
representação plástica encontraram no objecto artístico um campo de experimentação
prática e reflexiva. Estas questões, de resto, continuam a preocupar os artistas, sinal da
prevalência de um mesmo problema em constante mutação e aparentemente insolúvel.
Definir os limites da representação artística seria definir o próprio do objecto artístico
definindo também o conceito de arte.
Esse outro que não o ‘eu’, exterior ao artista, parece manifestar-se reactivamente,
numa posição dualista, “[como] um sonho com duas direcções” (H. Almeida 1978, s/p).
Contra a herança do objecto, contra o objecto artístico, ou contra a herança que
a história e a história de arte deixou para si (e deixa para todos), H. Almeida percorre neste
1º momento cerca de vinte anos questionando a obra de arte sem nunca a negar. O ate-
lier de Leopoldo de Almeida é também este objecto: o centro das suas preocupações, das
suas motivações, o centro do seu assunto.
“Não gostava que o meu pai tivesse que responder àquelas encomendas
todas. [...] Talvez por isso eu tenha sido tão radical na minha obra, como se ti-
“[E]ra uma espécie de destruição [...] Se calhar isto acontece com todos os
pintores, mas eu levei a cabo literalmente.”16
1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993
Negro Exterior
Negro Agudo
Negro Espesso
Ouve-me
Corte Secreto
Sente-me
Retrato de Família
Espaço Espesso
O Atelier
Ponto de Fuga
Frisos
Dias Quasi Tranquilos
Fig. G
Negro Agudo O Perdão
Durante os anos 80 e inícios dos anos 90, Helena Almeida percorre o 2 º momen-
to do seu percurso artístico. Sem a dualidade que atravessou todo o 1º momento, agora
é perante ela própria que a artista se reivindica, reivindicando também uma nova ordem
para as coisas. Os trabalhos, as obras, os objectos artísticos, a questão da representação e
29
dos seus limites físicos deixam de estar no centro dos interesses da artista.
A necessidade de radicalizar o seu discurso foi fundamental para uma nova abor-
dagem processual: uma nova crise para uma nova etapa. “Em vez de pintar passou a habi-
tar” (B. Vanderlinden 1998, p.36) e a ser ela própria elemento estrutural da sua obra. Cen-
trou-se sobre si, num movimento de interioridade, intra-trabalho, íntimo (e nesse sentido
intenso e entranhado em si própria), na procura do essencial, da coisa. Ela passou a ser
o tema dos objectos que criou, exposta virada do avesso num espaço ficcional. O negro,
esse avesso da pessoa, é também essa dentrioridade, essa intimidade, essa unidade.
“Viver o negro foi ainda uma experiência de expansão num espaço incon-
trolável e vivo. Foi como se o meu interior fugisse para as extremidades do meu
corpo e sem mais refúgio, saísse, ramificando-se e espalhando-se para um ex-
terior indeterminado.”18
17 ibid., p. 27.
18 H. Almeida (em 1982), Helena Almeida, (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,1982), s/p.
19 H. Almeida (em 1987), Helena Almeida - Dramatis Persona: Variações e fuga sobre um corpo,
(Porto: Fundação de Serralves, 1995), p. 76.
30
Mapa de Momentos 3º momento (~1994 ~2006) O Atelier
1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Sem Título
Saída Negra
Entrada Negra
Sem Título
Dentro de Mim
Desenho
Rodapé
A Experiência do Lugar
Voar
Fig. H
Seduzir
“Quis experimentar [...] essa zona vazia [...]. Numa espécie de penúltima
expressão.”22
Que zona vazia é esta? Poderá ser este o lugar da criação? Poderá ser o atelier de
H. Almeida entendido como metáfora da criação?
Depois da dualidade moral registada no 1º momento; depois da artista enquan-
to unidade, unidade essencial, registada no 2º momento; será este vazio, este zero abso-
luto, amoral, a grande questão levantada pela artista no 3º (e até agora último) momento
do seu percurso artístico?
22 H. Almeida (em 1994) in Helena Almeida - Dramatis Persona: Variações e fuga sobre um cor-
po, (Porto: Fundação de Serralves, 1995), p. 84.
32
parente de H. Almeida e, simultaneamente, mais intenso e mais desconcertante, justa-
mente pela simplicidade da sua transparência.
“Eu Estou Aqui” (2005), título da obra constituída como ponto de partida para
esta dissertação, foi traduzido para inglês como “I Am Here”. Esta tradução é particular-
mente feliz pela clara abertura causada pela ampliação do ‘estar’ em ‘ser’. “Eu Estou Aqui”
ou “I Am Here” pode ser lido como “Eu Sou Aqui”: este é o meu lugar. O atelier é o lugar
do artista.
E o que os une? Parece ser tão relevante o “Eu” do autor como o “Aqui” do lugar.
Autor/lugar, artista/atelier, parecem combinar-se numa só coisa. Parece ser este o traba-
lho da artista: transformar o “Eu” “Aqui” numa terceira coisa, numa outra coisa. Aquilo que
os une é a presença de um no outro.
E quem é o quê? Poderá o atelier ser a grande forma e a artista ser o seu fundo?
Poderá a artista ser o veículo do atelier enquanto objecto artístico, do atelier enquanto A
grande construção?
24 Alexandre Melo, Barbara Vanderlinden, Carlos Vidal, Delfim Sardo, Ernesto de Sousa, Fer-
nando Pernes, Helena Vasconcelos, Isabel Carlos, João Fernandes, José Augusto França, José Sousa Macha-
do, María do Corral, Maria Filomena Mónica, Miguel von Hafe Perez, Miguel Wandschneider, Óscar Faria,
Peggy Phelan, Rui Mário Gonçalves. (ver Bibliografia para referência completa)
25 Ernesto de Sousa (Lisboa, 1921-Lisboa, 1988) dedicou-se a um vasto leque de actividades
no campo das artes. A sua postura de espírito aberto, interventivo, polémico, pioneiro, tornou-o um marco
relevante na introdução das vanguardas em Portugal, encontrando no pós-modernismo a reafirmação da
liberdade de criação.
De forma multi-disciplinar, Ernesto de Sousa colocou as questões artísticas no centro dos seus
interesses: cinema, vídeo-arte, fotografia, teatro, performance, happening, artes visuais, arte popular, rá-
dio, crítica, ensaio. Envolveu-se também com diversos jornais e revistas: Plano Focal, Imagem, Seara Nova,
Vértice, Mundo Literário. Na Colóquio Artes (nº 31, Fevereiro de 1977) publica o texto “Helena Almeida e o
Vazio Habitado” sobre a obra da artista. Em 1982 escreve um longo texto sobre a artista para o catálogo da
exposição de Helena Almeida realizada na Fundação Calouste Gulbenkian.
34
O Objecto Desconstruído
Num primeiro momento o foco do seu trabalho centrava-se nos objectos artísti-
cos. As suas preocupações eram exteriores a si. H. Almeida questionou o objecto na sua
forma, na sua fisicalidade, apresentando uma encenação dos limites da pintura.
O Objecto Habitado
“Esta peça28 data de 1970, ano em que o olhar da artista reflectira o passado,
e descobrira bruscamente que a dialéctica do dentro e do fora podia corresponder
a ‘duas formas equivalentes de inércia’. Poderia dizer-se ainda, fulanizando um
pouco, que a pintora tinha descoberto que a destruição do quadro pictural tradi-
cional poderia só por si corresponder (e isso acontecia certamente já, em 1970) a
uma operação inútil, ultrapassada, inerte. O que interessaria então era destruir o
quadro familiar, ou melhor; destruir os termos em que se aborda o familiar.”29
27 ibid., s/p.
28 H. Almeida, A Família, 1970 (obra apresentada na exposição “Do vazio à Pró-Vocação”,
AICA-SNBA, 1972).
29 E. de Sousa in Helena Almeida, (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,1982), s/p.
36
O Espaço Habitado
Este parece ser o acontecimento mais marcante desta fase de trabalho da artista:
a re-descoberta (ou a re-invenção) de si própria a partir do negro (ou do luto).
Será que os “anti-quadros” (E. de Sousa 1982, s/p) de 1969/70, fora do centro,
30 E. de Sousa (em 1976) in Helena Almeida, (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,1982), s/p.
31 ibid., s/p.
37
estariam também fora das questões do grande quadro pictural tradicional, do grande
quadro familiar? Ou, como E. de Sousa antecipou dez anos antes, será que é nos anos 80
que o objecto deixa efectivamente o centro dos interesses da artista, passando, antes, ela
própria, a matéria de reflexão.
O Atelier Habitado
38
aspectos estruturantes quer sobre a obra plástica quer sobre a própria artista, objecto de
reflexão recorrente por parte da crítica de arte:
-a família (o seu marido e particularmente o seu pai, Leopoldo de Almeida32);
-a moral, a dualidade, os opostos;
-os suportes (o papel, a tela, o suporte fotográfico e videgráfico, a gravação áudio,
etc...) e os meios de expressão (o desenho, a pintura, a fotografia, o vídeo, o áudio, a perfor-
mance, etc...);
-o corpo, o espaço, e a relação entre ambos;
-o processo e o “zero”, numa leitura de conjunto e à posteriori.
Família
“Comecei por uma linguagem familiar, tinha que partir de alguma coisa
familiar [...]”33
Em meados dos anos 60, Helena Almeida sentia-se insatisfeita com os suportes
É contra a “obra-de-arte-que-encontra-justificação-em-si-própria-rival-de-Deus”
(E. de Sousa 1982, s/p) que a artista se manifesta. Nos trabalhos apresentados nas suas
primeiras exposições encontra-se essa tensão: o intuito de construir um quadro e o anseio
de desconstruir o familiar. A partir do legado cultural herdado, a partir do grande quadro
familiar, a artista levou a cabo a tarefa de questionamento e transgressão da função dos
elementos plásticos. Essas obras constituíram um exercício crítico sobre a pintura.
“A Helena Almeida vai então, nos finais dos anos 60, pôr em questão o es-
paço da pintura. Seja o espaço da pintura no sentido físico, seja o espaço da
34 H. Almeida (em 1976) in Helena Almeida, (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,1982), s/p.
35 R. M. Gonçalves in Helena Almeida, (Lisboa: Módulo-Centro Difusor de Arte, 1978), s/p.
40
pintura como espaço de representação.”36
Fotografia
43
9 H. Almeida, Espaço Espesso, 1982
Embora cada vez mais concreto, cada vez mais um local, é também cada vez mais
importante o lugar para o qual este espaço nos remete. O espaço físico é cada vez mais
metáfora de um território metafísico.
Para o espaço H. Almeida resgatou o lugar do atelier, que, de resto, na sua forma
ou no seu conteúdo, nunca esteve afastado da sua obra. Mas o corpo... que corpo é esse
que, também ele, sempre habitou os seus trabalhos?
44
10 H. Almeida, Dentro de Mim (pormenor), 1998
Corpo
45
espectáculo, estou a fazer um quadro” 41
“O meu mundo é o meu corpo, não sei como explicar isto melhor... qual é
o meu mundo... é difícil explicar com palavras. O meu mundo é o meu corpo, e
é o meu corpo dentro do meu atelier, e o meu corpo e o meu atelier são os meus
objectos de trabalho.”44
Processo
“[o processo como] a revelação dos paradoxos que constituem a história in-
terna, secreta, do acto pictórico.”46
45 H. Almeida in inTUS Helena Almeida, (Lisboa: Livraria Civilização Editora, 2005), p. 60.
46 M. F. Mónica in Helena Almeida - Dramatis Persona: Variações e fuga sobre um corpo, (Porto:
Fundação de Serralves, 1995), p. 22.
47
Particularmente desde os finais dos anos 70, o objecto artístico na sua fisicalida-
de apresentava-se cada vez mais afastado das preocupações e motivações de H. Almeida.
A artista fez coincidir o objecto de trabalho com ela própria, ela própria num lugar. A ten-
são, o caso, sempre procurados nos seus trabalhos, passou a ser a relação da artista (esse
corpo todo, vago, inexacto, de contornos indeterminados) com esse lugar (esse outro
plano, meio casa, meio atelier, meio espaço abstracto, o território da pintura).
Não mais empenhada em destruir uma realidade exterior a si, “grata e aliviada”
(H. Almeida 1982, s/p), a artista passa a construir a realidade a questionar, resultado do
acto de habitar, do processo de ser lá.
E será essa habitabilidade encontrada nas obras dos anos 80 a mesma que resi-
de, hoje e desde meados dos anos 90, no conjunto de trabalhos onde a relação artista/
atelier se impõe?
Será que o processo de H. Almeida é passar de lá para cá?
47 D. Sardo in Helena Almeida - Pés no chão, cabeça no céu, (Lisboa: Centro Cultural de Belém,
2004), p. 43.
48
Dualidade
49
Resolvida a questão moral do eu com os outros passou para a resolução do pro-
blema do eu, do eu para consigo. Nesse momento parecia resolvida a questão da he-
rança. Afastado o objecto artístico do centro das suas motivações, H. Almeida conquista
espaço para outras hipóteses. Encontrara-se consigo no seu trabalho.
“Olhando um dia para os meus quadros nos quais esta dialéctica do den-
tro e do fora era mais viva essas duas forças apareceram-me bruscamente como
duas formas equivalentes de inércia.”48
Zero
No início dos anos 80, aquando da entrada no ‘negro’, a ideia de zero como “re-
descoberta de si própria” (E. de Sousa 1982 , s/p) parece ser o início desse novo percurso. E
com a introdução do seu espaço de trabalho, do atelier, e particularmente a partir dos me-
ados dos anos 90, com a conquista do atelier enquanto “território de grau zero” (P. Phelan
2005, 82), estará agora H. Almeida perante não uma nova ordem, mas uma nova coisa.
“Há uns anos atrás, eu ainda estava presa ao plano da tela, à pintura: qual
a natureza da pintura e todas essas questões conceptuais. Isso acabou; passei a
estar sozinha no meio do meu atelier. Foi um salto noutra direcção.”49
49 H. Almeida in inTUS Helena Almeida, (Lisboa: Livraria Civilização Editora, 2005), p. 61.
51
Atelier
Funcionará o atelier de Helena Almeida como padrão, como modelo, como ori-
gem, para o seu trabalho e para si:
“Tornar-me num desenho: o meu corpo ser um desenho; eu ser o meu tra-
balho; eu ser o meu trabalho — era o que eu perseguia.”54
O que faz mover essa busca pelo absoluto no percurso de H. Almeida, do zero ao
todo, parece ser o atelier.
“Não tenho mais nada. Eu tenho-me. Não tenho mais nada e não vou fa-
zer muito mais do que isto. Eu não quero fazer muito mais do que isto. Eu estou
55 P. Phelan in inTUS Helena Almeida, (Lisboa: Livraria Civilização Editora, 2005), p. 82.
56 H. Almeida in Helena Almeida, (Milão: Electa, 1998) p. 56.
53
aqui. Aceitem a minha intensidade. Aceitem-me assim. Aceitem-me”57
Helena Almeida quer ser aceite. E depois de ser aceite? Terá Helena Almeida
encontrado (ou conquistado) o absoluto, procura constante no seu trabalho? Isto é ‘um’
fim?
Em relação ao amplo número de questões que foram sendo colocadas e parti-
cularmente em relação a esta última questão, assim como outros discursos que não o
artístico, também o discurso crítico, motivo de reflexão neste capítulo, parece mostrar
insuficiências na procura de respostas.
Neste caso, o atelier pode ser entendido como coisa re-criada, quer pela herança
que recebeu, quer pelo legado que está a construir.
Em Helena Almeida o atelier é terreno fértil.
A obra de Helena Almeida pode ser dividida em três momentos distintos: o Ob-
jecto, a Artista e o Atelier. Embora distintos, esses três momentos não são estanques.
Comunicam e partilham elementos comuns.
“Tela Rosa Para Vestir” (fig. 18) e “Tela Habitada” (fig. 19) estão separadas por
sete anos de diferença e expõem um conjunto de práticas recorrentes no seu 1º mo-
mento de trabalho, marcando de forma clara o discurso da artista nos anos 60 e 70. A
insatisfação para com os limites do campo pictórico herdado e o questionamento das
disciplinas tradicionais, levaram a autora a revestir o objecto artístico com um conjunto
de questões que colocaram em causa não apenas a fisicalidade da obra de arte. A von-
tade de desmontar o objecto artístico é também a vontade de desmontar a arte. É a
vontade de desorganizar para recomeçar outra construção, para transformar. O desenho
desconstruído e habitado de H. Almeida é a destruição do edifício clássico e a conquista
da liberdade de desenhar novas construções. Este é um traço transversal em todo o seu
percurso: o zero como motor para novas experiências, numa contínua procura do seu
lugar.
55
Cerca de 40 anos depois do 1º momento do seu percurso artístico, também hoje
H. Almeida expõe a vontade de combinar/unificar artista e objecto artístico. O desejo
de ser tela, a vontade de ser suporte, suporte para si própria, suporte e centro da sua
linguagem.
A Helena que veste a tela em 1969, a Helena que habita a tela em 1976, é a mes-
ma artista que em 2005 se passeia pelo seu atelier com os objectos do seu quotidiano
artístico ao colo.
Aqui, no 1º momento de trabalhos, como no 2º momento de trabalhos, e como
hoje, no 3º momento do seu percurso artístico, artista e obra fundem-se num só corpo.
H. Almeida parece combinar-se enquanto autora com os demais elementos que
povoam as suas imagens, e seu imaginário. Nas suas obras a artista ganha outro estatu-
to que não o de autora: concorre consigo própria para se transportar de criadora para
criatura. Ultrapassa-se a si própria no desejo de ser coisa autoral, no desejo de ser. E é-o
essa outra coisa do domínio do artístico.
A dualidade de ser uma coisa e outra, de estar em dois espaços, “de viver um
sonho em duas direcções” (H. Almeida 1978, s/p), encontra-se profundamente desenvol-
vida no 1º momento do seu percurso, particularmente durante a década de 70. A habi-
tabilidade da pintura, a habitabilidade do objecto artístico, contêm esse duplo espaço.
Um lado e outro. O lado de cá e o lado de lá. Uma coisa e o seu oposto. O verdadeiro e
o falso, moral, familiar, íntimo. A “Pintura Habitada” é esse espaço onde a artista vibra de
lado para lado. O objecto é a película que divide os dois espaços. O objecto é ainda o
seu centro.
Já antes de 1970 os trabalhos de H. Almeida pareciam reclamar para si outro
espaço que não o rectângulo bidimensional da tela. A própria tela parecia um espaço
exíguo para as experiências da artista e, a partir dos anos 70, os seus trabalhos ganham
um conjunto de títulos que assinalam bem as suas preocupações: “Pintura Habitada”,
1974; “Desenho Habitado”, 1975; “Tela Habitada”, 1976. Aquilo que se tornou objecto de
56
reflexão, aquilo que foi objecto de habitabilidade, foram os suportes tradicionais de re-
presentação. Aquilo que essa habitabilidade experimentou foram os limites desses su-
portes, enquanto suportes clássicos de representação.
Se até aos anos 70 a artista parecia manifestar-se ‘contra’ o quadro familiar, até
aos anos 80 a artista parecia manifestar-se ‘contra’ os limites da representação. Em am-
bos os casos a atitude parece ser reactiva, dualista, pró-objecto.
Durante a década de 80 deixa de ser importante destruir o suporte ou desmon-
tar os seus mecanismos internos. Deixa de ser importante reagir perante o médium. Pas-
sa a ser importante agir perante si.
O negro surge como luto para com o outro e como grande exorcismo para con-
sigo própria. Os trabalhos negros podem ser lidos como algo que alastra da artista vira-
da ao contrário, como representação do avesso de Helena Almeida, como o seu interior,
ela mesma, a artista, agora sem dentro e sem fora. Sem dualidades, apenas negro.
Elimina definitivamente a cor, fotografa o corpo inteiro, muda o tamanho e a
escala, modificando assim o registo imagético. Trata-se não de uma fotografia enquanto
registo/documento da sua relação com o objecto. A relação é agora com o espaço e a
fotografia/imagem reveste-se agora de fortíssimo carácter plástico.
Helena Almeida empenhou-se em destruir uma realidade exterior a si para, gra-
ta e aliviada, passar ela própria a construir a realidade a questionar. Depois do objecto
habitado, H. Almeida usa o espaço do seu corpo como o lugar da sua habitabilidade.
Sem dentro e sem fora, sem o lado de cá e o lado de lá, sem verdadeiro e sem falso, sem
dualidades e sem moralismos, a artista abandona o outro para se recolher nela própria.
Ainda assim, esse momento de luto e de solidão, esse caminho penoso, levou
a artista a radicalizar o seu discurso artístico permitindo-lhe, também assim, uma maior
liberdade.
Mais que uma desconstrutora de uma realidade exterior, H. Almeida passou a ser
ela mesma a construtora da realidade a questionar. Passou a ser ela própria quem estava
em causa nos seus trabalhos: não o objecto, sim o autor, não a obra, sim a artista. Este mo-
mento de crise pode ser lido como catalisador para outras vontades, para a vontade da
artista enquanto grande motivo, para o seu re-posicionamento perante si própria, para a
vontade do absoluto, para si enquanto elemento absoluto, centro, uno.
Depois deste período, lentamente, H. Almeida assume a imagem do seu atelier
na sua obra quer como suporte (“Entrada Negra”, 1995; “Sem Título”, 1996; ...), quer como
fundo (“Voar”, 2001; “Seduzir”, 2002; ...), quer como forma (“Rodapé”, 1999; “Sem Título”,
63 Fernando Pernes in Helena Almeida - Dramatis Persona: Variações e fuga sobre um corpo,
(Porto: Fundação de Serralves, 1995), p. 14.
58
2003; ...). O atelier, de diversas formas transversal no seu trabalho, ganhou agora um pa-
pel não só estruturante, como se tornou uma presença perceptível, visível, clara. Parece
ter passado a grande tema, a centro. O atelier, à vista, tornou-se manifesto.
Em “Dentro de Mim”, 2000 (fig. 22, 23) aquilo que se passa é justamente o atelier
e a artista. E passa-se concretamente pela superfície do espelho, espelho como grande
entrada para o mundo autoral. O atelier parece entrar por essa abertura para dentro da
artista. A artista parece deixar passar o atelier para o seu interior.
22 H. Almeida, 23 H. Almeida,
Dentro de Mim, 2000 Dentro de Mim, 2000
Nas suas primeiras exposições aquilo que a artista apresentava era uma encena-
ção dos limites da pintura. Nos últimos trabalhos a construção que H. Almeida revela pare-
ce coincidir com a própria autora. A artista parece apresentar-se a si própria, no espaço do
seu atelier, como a grande construção, sendo simultaneamente sujeito, artista e objecto.
Ela, obra e/ou motivo e o seu atelier motivo e/ou obra exibem-se como um gran-
de edifício, como um grande elemento plástico, como o seu novo/diferente grande qua-
dro pictural. Depois do objecto, externo, dual; e depois de si própria, dentrior, una; agora
o atelier, nem múltiplo nem uno: o zero, o todo.
Objecto-artista-atelier: guiada pelo processo, parece ter sido este o caminho de-
senhado pela artista.
O objecto: dualidade moral, moral enquanto um conjunto de regras conside-
radas como universalmente válidas, numa reacção contra o outro, dentro das regras do
outro, exterior a si.
A artista: unidade imoral, imoral não como desprovido de princípios de moral
mas sim no sentido de forçar e transgredir os princípios da moral vigente ao encontro da
sua verdade íntima, da sua micro-realidade, da sua interioridade.
O atelier: zero amoral, apartado, desinteressado e vazio da noção dos princípios
da moral. Trata-se de outra coisa, não do domínio do bem ou do mal, mas do domínio
da arte enquanto território vago, inconstante, incerto, indeterminado, não definido nem
preenchido. Do domínio da arte enquanto território não comprometido ou não ocupado.
Zero como vago enquanto disponível. Amoral como aberto enquanto livre.
“O artista ou o que queira chamar-lhe não tem nada que agradar, e muito
menos reproduzir aquilo que esperam dele”65
“Eu não quero elaborar teorias sobe o meu trabalho, não quero reduzi-lo
a palavras”67
O processo da moral à amoral leva Helena Almeida a transformar a herança num
legado. O atelier antes herdado é agora o atelier legado. O mesmo espaço físico foi re-
construído pela autora numa outra unidade temática. Num outro lugar de criação?
E a quem vai H. Almeida legar o seu atelier? Ou quem vai herdar o atelier de H.
Almeida? Esse mesmo espaço e esse outro lugar, esse outro território revestido de outros
sentidos, prontos para outras negações, para outras crises. Ou será o atelier legado por
Helena Almeida igual ao atelier herdado do seu pai, um mesmo território próprio para as
mesmas crises?
O mundo de Alice 72
63
64
O atelier de Helena + O atelier de Francisco
“Em pequena com cinco-seis anos, ia espreitar atrás dos quadros, das te-
las, para saber o que estava lá atrás, achava que devia haver qualquer coisa de
obscuro nas costas.”73
66
29 H. Almeida, Dentro de Mim (pormenor), 1998
-Por fim a conquista do atelier como o seu lugar, o seu mundo, a sua grande
construção.
30 H. Almeida, 31 H. Almeida,
Dentro de Mim (pormenor), 1998 A Experiência do Lugar II
(fotograma), 2004
67
arte: os seus mecanismos de representação, a sua fisicalidade, a sua finitude objectual.
No início dos anos 80 abandonou esses problemas centrando o foco da sua prática em si
própria inserida agora num espaço abstracto.
Helena Almeida centra a atenção no plano pictórico, na fina película que divide
dois espaços e salienta a tensão contida nesse território, apresentando ambos os lados. A
representação da artista “a pintar para a frente” (H. Almeida 1998, 48) parece ser a repre-
sentação da tensão do pincel sobre a fronteira de ambos os lados. Helena Almeida situa-
se num e noutro. Passa de lá para cá e de cá para lá.
68
numa dupla abertura para outra dimensão pela “(...) força da percepção de que o plano
da pintura admitia a sua violação como um dispositivo ainda seu” (D. Sardo 2004, p. 19) e
pelo próprio espaço deixado em aberto no plano pictórico.
“[É] como se qualquer coisa se tivesse aberto à minha frente (...) como um
outro espaço que se abre, literalmente, fisicamente, na superfície da tela.”76
76 H. Almeida in Helena Almeida - Pés no chão, cabeça no céu, (Lisboa: Centro Cultural de
Belém, 2004), p.19.
69
35 H. Almeida, Corte Secreto, 1981
Entre estes dois espaços (o espaço físico e o espaço metafísico) está uma fina
película plástica que divide duas realidades. Até aos ao início dos anos 80 o trabalho de
70
H. Almeida referência-se nessa película. Cá ou lá o espaço de trabalho da artista é o físico.
A partir dos anos 80 H. Almeida vai trabalhar nem cá nem lá: vai trabalhar além dessa pe-
lícula, vai trabalhar o lugar metafísico.
É da mesma boca que em 1980 tenta ultrapassar essa película que em 1983 sai
uma enorme mancha negra.
“Quando procuramos o nosso reflexo num espelho, mais que à nossa ima-
gem, procuramos algo. E desejamos encontrar algo. [...]
Num primeiro momento, esta instalação funciona pela identificação, por
parte do observador, do objecto apresentado como Um Espelho. Esse reconhe-
cimento arrasta consigo a construção de uma expectativa. Falamos aqui num
primeiro espaço, aquele que vai do sujeito até à superfície espelhada.
Num segundo momento, é pela quebra da expectativa construída à volta
71
do objecto que reconhece como Um Espelho, que o sujeito encontra O Espelho.
Com ele encontra outra dimensão, inusitada, extraordinária. Falamos aqui
num segundo espaço, aquele que vai para lá da superfície espelhada. [...] [em “À
Tua Frente”] as preocupações dividiram-se em 3 níveis:
-a superfície de reflexão, entendida como uma fina pele que comprime em
si dois territórios;
-o espaço físico que se encontra até à superfície de reflexão;
-o espaço meta-físico que se encontra para lá da superfície de reflexão.”77
O mundo de Alice
Aquilo que se passa com a Alice de L. Carroll79 no País das Maravilhas é em tudo
semelhante ao que se passa com H. Almeida no seu atelier. Ela, no país das maravilhas, ultra-
passa os limites do corpo, estica para um tamanho gigantesco e encolhe para um tamanho
mais pequeno que realmente o seu. E assim mais pequena entra por uma pequena porta
para um outro lugar. É a própria artista que se identifica com a Alice, quer na passagem para
o lado de lá, para o país das maravilhas, quer enquanto corpo ficcional:
39 J. Tenniel, (ilustração para “Alice no País das Maravilhas”, L. Carroll, 1865), 1866
Também como Alice, o mundo de Helena Almeida não é apenas o seu corpo. É o seu
corpo, casa de si própria, dentro do seu atelier, casa do seu corpo. E sobre esse lado de lá:
Nesse território da ordem e da desordem, da lógica e da ilógica, particularmente,
nesse territótio do non-sense, Carroll partilha com Helena um mesmo espaço, esse espaço
de liberdade.
“‘Afinal não estava a sonhar’, pensou, ‘a não ser... a não ser que todos faça-
mos parte do mesmo sonho.’”82
O texto “Der Bau” (“O Covil”, 1923-24) de Franz Kafka, escrito na primeira pessoa,
remete-nos para uma toca, um lugar por baixo da terra, de múltiplas conexões, orgânico.
Para Kafka, n“O Covil”, a sua criação, o seu objecto parece coincidir com a própria concep-
ção dessa toca. A toca, ela própria, essa ilha, enquanto construção, constitui-se como uma
desconstrução do lugar clássico.
“Em Kafka, a vida quase se confunde com a obra e a obra pouco mais é do
que a transposição da vida noutro registo - o metafísico. [...] Kafka tornou-se, de
forma irremediável, um mundo de reserva e de isolamento: uma ilha dentro da
família, que, por sua vez, era uma ilha dentro da comunidade judaica de Pra-
ga, comunidade que era uma ilha dentro da antiga capital da Boémia, capital
provinciana da carcomida monarquia austo-húngara. No meio desta série de
ilhas concêntricas, Kafka funcionará como a sua consciência, o seu juiz, o seu
acusador e o seu réu.”85
“[Kafka avança] para o interior de si mesmo.”86
82 Lewis Carroll (Charles Lutwidge Dodgson), Alice do Outro Lado do Espelho, (Lisboa: Relógio
D’Água Editores, 2007), p. 111.
83 Original de Lewis Carroll (Charles Lutwidge Dodgson) em 1865 “Alice’s Adventures in
Wonderland”.
84 Original de Lewis Carroll (Charles Lutwidge Dodgson) em 1871 “Through the Looking-
Glass, and What Alice Found There”.
85 M. Antunes in Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, 11º volume, (Lisboa: Verbo, 1992),
coluna 1014.
86 ibid.
74
doxal, e, tal como Kafka, também H. Almeida avança para essa ilha, para esse interior,
para o interior de si mesma. É esse espaço de múltiplas possibilidades, contradições, in-
coerências, que H. Almeida conquista com a entrada no negro, pós finais dos anos 70. É
esse espaço sem moral, sem razão, e simultaneamente um espaço de uma coisa e do seu
contrário, do verdadeiro e do falso, ou melhor, um espaço sem verdadeiro e sem falso.
E é esse espaço que interessa aqui enquanto grande construção. Como na toca
de Kafka, o atelier é também a sua construção. Construir um atelier como um espaço de
criação é também reclamar a possibilidade de absurdo para esse espaço. O universo abs-
tracto de Fontana (e o lugar onírico de Carroll) tornam-se no lugar absurdo de Kafka.
“Viver o negro foi ainda uma experiência de expansão num espaço incon-
trolável e vivo. Foi como se o meu interior fugisse para as extremidades do meu
corpo e sem mais refúgio, saísse, ramificando-se e espalhando-se para um ex-
terior indeterminado.”88
Será a toca o lugar do criador? Será a toca o atelier do artista? Será a construção
dessa toca o grande quadro, a coisa?
87 F. Kafka, O Covil, (Lisboa: Publicações Europa-América, 2ª edição, 1990), pp. 18, 46.
88 H. Almeida (em 1982) in Helena Almeida, (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1982), s/p.
75
40 F. Cardoso Lima, Her Brain (pormenor), 2002
Em “There is a hole in her brain where her mind shoud be” (fig. 40), este buraco
refere-se justamente àquilo que lá não se encontra. A outra coisa, ou melhor: a não-coisa.
76
43 F. Cardoso Lima, 44 F. Cardoso Lima, 45 F. Cardoso Lima,
Untitled, 2004 Untitled, 2004 Untitled, 2004
Também na série de trabalhos “The Hole” (F. Cardoso Lima 2004) aquilo que é
objecto de trabalho é a não-coisa. Essas manchas informes sobre fundos monocromá-
ticos (particularmente quando as manchas brancas se sobrepõem aos fundos também
brancos) tratam dessa ausência, desse espaço conquistado pela pintura para lá do visível,
tratam também dessa possibilidade.
Se “À Tua Frente” (fig. 38) trabalha a película que divide o lado de cá e o lado de lá,
“Her Brain” (fig. 40) trata daquilo que não está no lado de lá, a não-coisa no território além
físico. Como no território metafísico d”O Covil” kafkiano, também a série “The Hole” (fig.
41-45) conduz a parte nenhuma. E o que lá se encontra: o lugar onde esteve algo.
Ao corte secreto, recrutado para aqui pela mão de L. Fontana, cola-se o final cut
apontado por D. Lynch como a ferramenta de todas as possibilidades. Reclamar o final cut
para um cineasta é reclamar a liberdade criativa para a conquista do objecto artístico.
“No final, Cooper pode até conseguir o seu objectivo de unidade e totali-
dade, embora não no mundo classe média da cidade de Twin Peaks, mas nou-
tra zona abstracta que vai para além das definições (académicas).”92
“BOB, contudo, não se inscreve nesse tipo de sistema. Ele funciona de acor-
do com outro conjunto de códigos, um sistema que se esconde para além da
compreensão humana.”93
Em ambos os casos, como sempre, David Lynch parece recusar uma definição clara
para a realidade, antes, parece procurar essa outra coisa não real, essa meta-realidade:
90 D. Lynch in Catching the Big Fish: Meditation, Consciousness, and Creativity, (Nova Iorque, Tar-
cher, 2006), p. 59, (tradução livre de F. Cardoso Lima).
“If you do what you belive in and have a failure, that’s one thing: you can still live with yourself. But if
you don’t, it’s like dying twice. It’s very, very painful.”
91 ibid., (tradução livre de F. Cardoso Lima).
“I came from painting. And a painter has none of those worries. A painter paints a painting. No one
comes in and says, “You’va got to change that blue.”.
92 Andreas Blassmann in The Detective in Twin Peaks, (Freiburg University, 1999) <http://www.
thecityofabsurdity.com/papers/detective.html> @ 23.6.2007, (tradução livre de F. Cardoso Lima).
“In the end, Cooper might even reach his goal of unity and totality, although not in the middle
class world of Twin Peaks, but in another abstract zone that goes beyond (an academic) definition.”
93 ibid., (tradução livre de F. Cardoso Lima)
“BOB, however, does not fit into that kind of a system. He functions according to another sign sys-
tem, a system that lies beyond human understanding.”
78
significados. É melhor não saber muito sobre aquilo que as coisas são.’ (Lynch).”94
Na sequência em que Lil (apresentada de vermelho e com uma rosa azul pre-
gada no vestido) revela uma mensagem codificada numa espécie de dança, mais tarde
descodificada pelo receptor, percebemos a complexidade, ou a simplicidade, do discurso
criativo do realizador. Que vermelho é esse? Que azul é esse? Quem é Lil?
Existe em D. Lynch um território ambíguo, uma outra esfera que funciona de for-
ma diversa, que “não faz sentido de forma ordinária” (Blassmannm 1999, s/p). Um espaço
que não funciona de acordo com os princípios, nem morais, nem imorais. E os objectos
resultantes do trabalho de Lynch aparecem-nos assim: dissolutos, dispersos, descontí-
nuos e enigmáticos, assombrosos, misteriosos, incompreensíveis. A instabilidade do seu
trabalho é a de quem interrompe a coerência das coisas:
Também na série “Monsters” (F. Cardoso Lima 2002) aquilo que se revela reveste-
se de múltiplas leituras. Nos quadrados de 40cm as manchas vermelhas escorridas so-
brepõem-se em diversas camadas e apresentam-se invertidas. A palavra “monster” surge
num conjunto de trabalhos dessa série.
80
verso artístico): são a-reais. Assim, de outra forma ou de forma nenhuma (ou de qualquer
forma), o universo apresentado pretende ser amoral.
96 Que diz respeito à irrealidade, à não-realidade. “(...) o irreal será o inexistente. De uma ma-
neira geral, diz-se que é irreal o que é ilusório, negativo, incapaz de ser conhecido” G. Ribeiro in Enciclopédia
Luso-Brasileira de Cultura, 11º volume, (Lisboa: Verbo, 1992), coluna 8;
“Que não é ou não parece real; que está fora da realidade; imaginário, fantástico, ilusório.” in Dicioná-
rio de Morais, volume VI, (Lisboa: Editorial Concluência, 1954), p. 12.
Entenda-se aqui “irreal” como recusa da codificação do real, dentro dos parâmetros da razão.
97 Que diz respeito ao sobre-real, ao não-real: “1- Que denota estranheza, transgressão da ver-
dade sensível, da razão, ou que pertence ao domínio do sonho, da imaginação, do absurdo. 3- O que resulta
da interpretação da realidade à luz do sonho e dos processos psíquicos do inconsciente.” in Dicionário Houaiss
da Língua Portuguesa, tomo III, (Lisboa: Temas e Debates, 2003), p. 3425;
Que diz respeito ao Surrealismo (Sobrerrealismo): “[o Sobrerrealismo trata] o mundo exterior, de-
compondo-o e reaproveitando os elementos obtidos não segundo a lógica corrente, nem em obdiência às
convenções tradicionais, mas em plena liberdade, fundamentada na recusa à reflexão e capaz de ‘suscitar a
irrupção na vida do irracional, fora de qualquer sistematização e de qualquer codificação’ (M. Brion).” Ed. de
Jesus in Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, 17º volume, (Lisboa: Verbo, 1992), coluna 381.
Entenda-se aqui “surreal” como outra codificação do real, fora dos parâmetros da razão.
98 O prefixo “meta” na sua dupla significação: enquanto ‘mudança’ e enquanto ‘reflexão que
se centra sobre si mesma’. Assim, meta-realidade como outra (nem irreal, nem surreal) realidade. Que não
reage a... (sendo o oposto de, o discordante). Que não se sedia em... (sendo o sucedâneo de, o discrepante).
Meta-realidade como uma diferente (nem discordante, nem discrepante) realidade. Como uma disseme-
lhante realidade centrada em si mesma, sem exterior e sem interior.
Entenda-se aqui “meta-real” como o real não codificado (ou codificado individualmente: tantas reali-
dades quantos indivíduos). Para o caso, meta-real como espaço criativo.
81
Carroll, já noutro universo, constrói com Alice um modelo que contém em si um
reflexo da imagem do real. Transporta para o irreal a dicotomia verdadeiro/falso, bem/
mal. Conquista as possibilidades do irreal e usa-as como negação, como reacção ao real.
Kafka, no universo da toca, tem como seu material de trabalho a esfera do uno,
do eu, fora do âmbito do outro. Nesse lugar surreal Kafka trata o exterior como uma en-
tidade abstracta que serve para afirmar a construção do eu. Nessa sua construção, Ka-
fka age perante si reagindo perante o outro. Kafka constrói-se de forma precária porque
mantém uma relação com o exterior, com o outro.
Lynch, no universo do “Red Room”, constrói um território sem dentro nem fora,
para além da ideia de limite. É a materialização do meta-real, é a materialização da grande
abstracção, do não material, do não real, do ultra-real. D. Lynch desiste da possibilidade
do outro e da possibilidade do eu reclamando o todo, o princípio, a essência, o informe,
o vazio.
Nem irreal, nem surreal, ao criar um território de renúncia do real, Lynch está a
trabalhar no território do tudo, abrindo portas para o nada enquanto grande exercício de
liberdade.
O final cut por si reivindicado para o cineasta, para o criador, é a liberdade para
além da coisa. A liberdade para o a-real, para o a-moral.
82
3
3 ELE (o atelier e a obra)
A Obra 85
texto de autor
83
84
A Obra
Depois do trabalho “The Artist’s Place” (fig. 1, 59), encarado como declaração dos
campos de interesse para este estudo, “The Artist’s Studio” parece ser o único título pos-
sível para o trabalho a apresentar enquanto reflexão final sobre a interrogação: o atelier,
que lugar é esse onde tudo se passa?
Se “The Artist’s Place” pode ser encarado como a questão, então “The Artist’s Stu-
dio” pode ser encarado como a resposta. À questão: Qual lugar? O atelier! À questão: Qual
atelier? Este atelier:
85
60 F. Cardoso Lima, The Artist’s Studio, 2007
86
Esses (ela, eles, ele, eu e o outro)
O atelier
“The Artist’s Studio” (fig. 60) constitui-se como uma obra sobre o lugar do artista
(ver “The Artist’s Place” - fig. 1, 59). Esse lugar tido como objecto desta investigação é aqui
afirmado como o atelier e é sobre ele que recai a reflexão, é ele que se constitui o quadro
de estudo. Interessa agora destacar o trabalho “The Artist’s Studio” (fig. 60) desse lugar
primeiro de reflexão, afastá-lo do seu meio primeiro, retirá-lo do eu e trazê-lo para o ou-
tro. É esse outro olhar, ou esse olhar do outro, que agora se propõem.
87
O outro
63 F. Cardoso lima, O Gémeo, 2005 64 F. Cardoso lima, The Master Piece, 2005
A construção e o edifício
Como em Helena Almeida, também aqui parece haver a esperança de que algo
exista para além da fisicalidade do objecto. Também aqui, parece a procura do artista
tratar da metafisicalidade, tratar de algo para além do plano visível.
“Too Young To Die” (Porto, 2001 e Leiria, 2004) e “I Am Here” (Porto, 2005) são
títulos de três exposições individuais que podem, todos, formar um outro título, um gran-
de título, contendo uma outra leitura, ou uma leitura complementar aos objectos nelas
88
expostos. A leitura de um texto que não está escrito na tela. Existe uma/alguma grande
história a ser contada? Existe um/algum grande edifício a ser construído pelo artista?
No percurso, pelo processo, algo está a ser construído.
Será o atelier a grande construção?
Parece, como parece em Helena Almeida, ser o atelier a grande construção.
65 H. Almeida, 66 H. Almeida,
A Casa, 1979 Eu Estou Aqui, 2005
Serão estas manchas duas portas? Será a mancha azul uma porta para uma casa,
para o corpo da artista como a sua casa, a sua grande construção? Será a mancha verme-
lha uma porta para um atelier, para a artista como o seu atelier, a sua grande construção?
Ou serão estas manchas a mesma porta? Será esta porta como a porta de Alice (fig. 39)
que, enquanto porta, é simultaneamente chave?
A ilha
Tal como H. Almeida, a construção de Cardoso Lima pode ser a ilha kafkiana no
duplo sentido de, por um lado, se destacar do exterior e, por outro, se unir internamente.
Mas é justamente por existir um duplo sentido dentro/fora (eu/outro) que a ilha, essa,
mais se identifica com o território lynchiano.
O quarto
O território construído pelo artista em “The Artist’s Studio” parece, assim, estar
ao lado do quarto vermelho de D. Lynch. É aí que F. Cardoso Lima constrói o seu próprio
quarto. Micro-realidade sua para a sua micro-liberdade, afinal, toda a liberdade.
Enquanto artista, o seu quarto (que pode também ser a sua ilha ou a sua casa ou
89
o seu edifício) só pode estar dentro do atelier. Fora do atelier, no outro espaço, qualquer
uma destas construções passam a ser a construção do outro, exterior a si.
E aquilo que parece ser extraordinário é o momento primeiro, é a construção
desse lugar antes do artista o abandonar, é a ocupação desse território antes dele ficar
vago para o outro. Porque existe um momento em que o arista abandona o edifício, por-
que existe um momento em que a ilha fica deserta, porque existe um momento em que
o quarto está vazio. Porque existe um momento em que o artista vaga a obra. É este o
momento do outro.
O território
Em “The Artist’s Place”, este outro observador é rapidamente colocado em cena.
O personagem representado como artista/autor transforma-se em espectador/observa-
dor. O espaço antes pertencente ao artista, até ao justo momento em que o trabalho se
afasta do atelier, é o espaço do espectador, no momento em que a obra é apresentada. E
trocando as personagens o espaço mantém-se.
O eu criador e o outro espectador: esses, estão no mesmo espaço. E parece ser
o que aqui interessa: o território para o qual a obra parece remeter. Que espaço? Que
Lugar? Que território?
90
O diálogo e o monólogo
Helena Almeida em “Voar” (fig. 67), em “Seduzir” (fig. 68) ou em “Eu Estou Aqui”
(fig. 69):
é sempre uma mesma mão direita que segura um mesmo vestido preto.
Cardoso Lima no conjunto de textos usados desde 2002 na composição das obras:
91
mais que o pretexto. Estas são cenas de uma só personagem, de um só criador. Estas são
cenas em que só fala um actor. É uma voz vinda de si próprio e dirigida a si mesmo.
O artista
Nestas obras falta alguém, ou convoca-se o espectador para ocupar o lugar vago
do outro, para ser o outro -papel que de resto é seu. Convida-se o espectador para ser
o único, para entrar, ou, usando a metáfora de Fontana, pede-se ao espectador o rasgo
para ultrapassar a película plástica e, já além físico, entrar nesse território do pictórico: do
diálogo ao monólogo.
Ou esta obra é sobre todo o artista. Ou esta obra é sobre todo o atelier.
92
O Atelier (síntese de ELE e Conclusão)
Como na série “Eu Estou Aqui” (fig. 2, 69) de Helena Almeida: nem artista nem
atelier, nada (ou tudo) enquanto objecto artístico:
Como no “Red Room” (fig. 55, 78) de David Lynch: o atelier amoral, livre, tudo (ou
nada) enquanto objecto artístico:
93
Almeida (e da sua divisão em três diferentes momentos); depois do rasgo de Fontana
(enquanto corte secreto entre dois territórios); depois de três hipóteses para três univer-
sos (no território metafísico do objecto artístico); depois de uma hipótese (“The Artist’s
Studio”, fig. 60) para o atelier do artista; volta-se ao início.
94
95
96
Bibliografia
Livros
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98
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Revistas
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DVDs
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• Faria, Óscar, A Segunda Casa, documentário, 2005.
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Lista de imagens
99
8 Helena Almeida, Desenho Habitado, 1975,
fotografia p/b (c/ desenho e colagem de fio de crina), 62x73cm
9 Helena Almeida, Espaço Espesso, 1982, fotografia p/b s/tela, 285x131cm
10 Helena Almeida, Dentro de Mim, 1998,
três fotografias p/b (c/ tinta acrílica azul), 70x100cm cada
11 Helena Almeida, Sem Título, 1995, sete fotografias p/b, 131,5x185cm cada
12 Helena Almeida, Voar, 2001,
quatro fotografias em tons de azul, 130,5x185,5cm cada
13 Helena Almeida, Saida Negra, 1995, cinco fotografias p/b, 71x48cm cada
14 Helena Almeida, Estudo Para Um Enriquecimento Interior, 1977-78,
seis fotografias p/b (c/ tinta acrílica azul), 51,5x39,5cm cada
15 Helena Almeida, Sem Título, 1994-95,
vinte fotografias p/b (c/ tinta acrílica vermelha), 220x110cm
16 Helena Almeida, Seduzir, 2002, fotografia p/b (c/ tinta acrílica vermelha), 120x83cm
17 Helena Almeida, Sem Título, 2003, duas fotografias p/b, 129,5x134,5cm cada
18 Helena Almeida, Tela Rosa para Vestir,1969, fotografia p/b, 81,6x71,6cm
19 Helena Almeida, Tela Habitada, 1976, fotografia p/b, 202,5x127,5cm
20 Helena Almeida, Pintura Habitada, 1975,
três fotografias p/b (c/ tinta acrílica azul), 50x60cm cada
21 Helena Almeida, Ponto de Fuga,1982, fotografia p/b, 214,5x130,5cm
22 Helena Almeida, Dentro de Mim, 2000, fotografia p/b, 103x72cm
23 Helena Almeida, Dentro de Mim, 2000, fotografia p/b, 103x82,6cm
24 Helena Almeida, Sem Título, 2003, duas fotografias p/b, 129,5x134,5cm cada
25 Helena Almeida, Sem Título, 1969, acrílico s/ tela, 130x97cm
26 Helena Almeida, Sem Título, 1968, acrílico s/ tela e madeira, 130x97cm
27 Helena Almeida, A Casa, 1982, fotografia p/b, 259x130,8cm
28 Helena Almeida, O Perdão, 1993, fotografia p/b (c/ tinta acrílica branca), 80x64cm
29 Helena Almeida, Dentro de Mim, 1998,
três fotografias p/b (c/ tinta acrílica azul), 70x100cm cada
30 Helena Almeida, Dentro de Mim, 1998, três fotografias p/b, 95x74cm cada
31 Helena Almeida, A Experiência do Lugar II (fotograma), 2004
32 Helena Almeida, Pintura Habitada, 1976,
sete fotografias p/b (c/ tinta acrílica azul), 46x40cm cada
33 Lucio Fontana, Concetto Spaziale - Attesa, 1964-65, têmpera s/ tela, 146x114,5cm
34 Helena Almeida, Sente-me, 1979,
quatro fotografias p/b (c/ tinta acrílica azul), 62,5x54cm cada
35 Helena Almeida, Corte Secreto, 1981, fotografia p/b s/ tela, 300x128cm
100
36 Helena Almeida, Ouve-me (fotograma), 1979-80
37 Helena Almeida, Dias Quasi Tranquilos, 1983, fotografia p/b, 80x62cm
38 Francisco Cardoso Lima e T. Restivo, À Tua Frente (vista geral da instalação), 2006
39 John Tenniel, (ilustração para “Alice no País das Maravilhas”, L. Carroll, 1865), 1866
40 Francisco Cardoso Lima, Her Brain, 2002,
acrílico s/ tela, 200x960cm (8x 200x120cm)
41 Francisco Cardoso Lima, The Hole, 2004, acrílico s/ tela, 80x80cm
42 Francisco Cardoso Lima, Untitled, 2004, acrílico s/ tela, 80x80cm
43 Francisco Cardoso Lima, Untitled, 2004, acrílico s/ tela, 80x80cm
44 Francisco Cardoso Lima, Untitled, 2004, acrílico s/ tela, 80x80cm
45 Francisco Cardoso Lima, Untitled, 2004, acrílico s/ tela, 80x80cm
46-52 David Lynch, Twin Peaks - Fire Walk With Me (fotogramas), 1992
53-54 David Lynch, Twin Peaks - Fire Walk With Me (fotogramas), 1992
56 Francisco Cardoso Lima, Monster, 2002, acrílico s/ tela, 40x40cm
57 Francisco Cardoso Lima, Monster, 2002, acrílico s/ tela, 40x40cm
58 Francisco Cardoso Lima, Monster, 2002, acrílico s/ tela, 40x40cm
59 Francisco Cardoso Lima, The Artist’s Place, 2006, acrílico s/ tela, 120x960cm
60 Francisco Cardoso Lima, The Artist’s Studio, 2007, acrílico s/ tela, 280x120cm
61 Francisco Cardoso lima, Os Gémeos, 2005, fotografia p/b, 140x280cm
62 Francisco Cardoso lima, Os Gémeos, 2005,
fotografia p/b, 20x30cm (prova de autor)
63 Francisco Cardoso lima, O Gémeo, 2005, fotografia cor, 140x280cm
64 Francisco Cardoso lima, The Master Piece, 2005,
fotografia cor, 20x30 (prova de autor)
65 Helena Almeida, A Casa, 1979, fotografia p/b (c/ tinta acrílica azul), 73x92cm
66 Helena Almeida, Eu Estou Aqui, 2005,
fotografia p/b (c/ tinta acrílica vermelha), 125x100cm
67 Helena Almeida, Voar, 2001, duas fotografias em tons de azul, 204,5x104,5cm cada
68 Helena Almeida, Seduzir, 2002,
fotografia p/b (c/ tinta acrílica vermelha), 199,5x129,5cm
69 Helena Almeida, Eu Estou Aqui, 2005 195x90cm
70 Francisco Cardoso Lima, She Lives, 2003, acrílico s/ tela, 160x120cm
71 Francisco Cardoso Lima, She Lives, 2002, acrílico s/ tela, 160x120cm
72 Francisco Cardoso Lima, The Man (In The Bag With The Book),
2004, acrílico s/ papel, 240x140cm
73 Francisco Cardoso Lima, The Woman (And The Chair),
2005, acrílico s/ tela, 160x120cm
101
74 Francisco Cardoso Lima, My House, 2002, acrílico s/ tela, 80x120cm
75 Helena Almeida, Eu Estou Aqui, 2005, fotografia p/b, 125x90cm
76 Helena Almeida, Eu Estou Aqui, 2005, fotografia p/b, 125x90cm
77 Helana Almeida, Eu Estou Aqui, 2005, fotografia p/b, 125x90cm
78 David Lynch, Twin Peaks - Fire Walk With Me (fotograma), 1992
102
Anexo
99 Artista plástico e Mestre com dissertação de mestrado em Arte e Comunicação: Sei exac-
tamente o que faço e no entanto faço-o : arte programática, subjectividade e estratégias de desautorização no
processo criativo, (Porto: Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, 2006).
103
Nesta pintura de Francisco Cardoso Lima (FCL) (fig. A1) podemos admirar um
auto-retrato do artista que se apresenta frontalmente inserido num espaço ambíguo, um
espaço povoado de pintura e de linguagens que nos são estranhas, um espaço do artista,
o atelier do artista.
Nesta pintura vemos o artista no seu atelier. Não um qualquer atelier, não o atelier
onde FCL pinta, mas o atelier que FCL apresenta como o seu.
A reflexão que FCL aqui nos apresenta, resulta da relação particular que o artista
desenvolve com um espaço de arte, um espaço que não é físico, um espaço de possibilida-
de infinita, um espaço de potência.
Mas se isto é tudo aquilo que se pode ver, nem sempre foi assim. Tive o privilégio
de conhecer os estudos para esta obra onde o artista apresentava na sua t-shirt o Touro
Osborne100, património cultural e artístico espanhol101.
O Touro de Osborne surge no atelier de FCL numa t-shirt que o artista usa fre-
100 Empresa ligada ao comércio de bebidas fundada nos finais do século XVIII
por Thomas Osborne Mann, cujo símbolo é constituído pela silhueta de um touro: <http://www.osborne.
es/toro/home.cfm?previo1=historia> @ 21.6.2007.
101 Em Dezembro de 1997, as mais de 90 silhuetas do Touro de Osborne espanhadas por
Espanha foram declaradas pelo Supremo Tribunal Espanhol património cultural e artístico: “[a silhueta do
Touro de Osborne] superou o seu sentido publicitário inicial e integrou-se na paisagem devendo assim pre-
valecer, como causa que justifica a sua conservação, o interesse estético ou cultural, que o colectivo lhe atri-
buiu.” in <http://www.elmundo.es/elmundo/2007/01/23/comunicacion/1169557115.html> @ 21.6.2007
(tradução livre de Nuno Barros)
“ha superado su inicial sentido publicitario y se ha integrado en el paisaje y debe prevalecer, como
causa que justifica su conservación, el interés estético o cultural, que la colectividad le ha atribuido”
104
quentemente nesse espaço de trabalho e, nesses estudos, essa t-shirt surgia como um
espaço-outro, uma linguagem-outra da pintura. Aí, o Touro de Osborne, como silhueta
negra, enquadrando-se como possível elemento da linguagem estética de FCL, era um
elemento de múltiplas leituras que variavam entre a dimensão política e social (um mani-
festo artístico comprometido com uma realidade cultural: a tourada), fazendo deste traba-
lho uma pintura de intervenção, uma arte contextualizada por uma realidade local, ibérica
(não querendo eu analisar a eventual questão de um artista português se apresentar ves-
tindo um símbolo do património cultural e artístico espanhol) e a dimensão simbólica de
um antigo ícone pagão que representa a virilidade, a força criadora, a potência da nature-
za, conceitos tão caros à arte, transportando o conteúdo deste trabalho para o domínio da
filosofia e da antropologia, talvez.
O uso de uma t-shirt como veículo de um tal símbolo, capaz destes (e de outros)
conteúdos, insere-se numa estratégia de utilização de elementos da linguagem Pop, uma
estratégia que é (parece ser) recorrente na obra de FCL e que um observador menos aten-
to poderia confundir com a utilização da estética Pop de um modo assumido (como um
fim). De facto, a utilização descomprometida de uma t-shirt como bandeira irresponsável
de uma causa assemelha-se a um recurso da estética Pop, permitindo a afirmação categó-
rica de qualquer slogan, por mais drástico ou radical que seja, mantendo-se sempre uma
atitude frívola e banal, despreocupada, feliz.
105
social, assim, a arte funde-se com essa incerteza de princípios, constantemente ultrapas-
sados, violados. No atelier substitui-se o indivíduo, com a sua história, a sua moralidade,
pelo artista.
Num acto soberano, autoritário, FCL afirma a intransigência, a liberdade de dis-
pensar a incongruência (o artístico?) e confronta-me, enquanto observador, com a anula-
ção da silhueta do touro. A t-shirt emudece surgindo ela própria como uma outra silhueta.
A silhueta do touro, um símbolo pleno de significados e conotações que ocupava o espa-
ço-outro criado por FCL na sua pintura é anulada, e o autor surge com o poder de suprimir
a incongruência que contextualiza o humano, transportando a criação, o acto artístico,
para uma realização divina, transcendente.
É, então, por uma vontade de depuração que FCL nos apresenta esta tela de sín-
tese, vazia de interpretações múltiplas, retratando o fenómeno artístico de um modo di-
recto através dos seus intervenientes: o artista e o seu atelier, ambos identificados como
um espaço de arte numa reflexão sobre a evolução do seu processo artístico. Uma reflexão
de como FCL experimenta e pensa a arte – This Is My Studio.
106
A4 F. Cardoso Lima, The Woman With The Bag
(And The Cock And The Mirror), 2004
107
A5 F. Cardoso Lima, Untitled, 2005
108
O artista surge como um símbolo de si próprio, significante e significado. Mas um
(a unidade) indivíduo, um sujeito é-o sempre, e apenas, em confronto com um contexto,
um universo que o cerca. FCL surge retratado, neste políptico, como uma entidade fecha-
da em si própria, independente, mas inserido num atelier, num espaço de arte, cercado
por uma pintura. E esse outro elemento deste políptico denuncia a falência do conceito do
artista como conteúdo de si próprio.
É esta mesma tese, a ideia de que estas duas entidades (artista e atelier) não exis-
tem independentes mas, ao contrário, concorrem para afirmar a arte como um acto livre
que se reflecte na estrutura deste políptico. As várias telas que o compõem não são au-
tónomas e resultam num conjunto mais rico de significado que a mera justaposição das
suas partes.
Este políptico apresenta-nos não só a dialéctica da arte, mas também a sua reso-
lução. Os intervenientes do fenómeno artístico, o artista e o atelier conjugados definem
um outro lugar, o lugar onde a acção se produz, um campo de potência.
Tal como a arte, o atelier é por definição um acto livre, um acto puro, absoluto.102*
* Este texto foi escrito depois de uma conversa entre Nuno Barros e Francisco Cardoso Lima.
A conversa aconteceu no atelier de Cardoso Lima perante a obra “The Artist’s Studio” (F. Cardoso Lima, 2007)
e respectivos estudos.
109
Lista de imagens (do texto em anexo)
110
111