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Essa conclusão implica, de uma parte, que não há ainda, e que não é seguro que
chegue a ser produzida no futuro, uma identidade comum a todos os povoadores
do espaço/tempo que chamamos não faz muito tempo de América Latina. Esta
possível identidade pode ser hoje, talvez, uma fina e delicada atmosfera subjetiva
comum a certos setores da população, por exemplo a seus eurocêntricos grupos
dominantes e às camadas médias educadas dentro do atual padrão de poder.
Primeiro, porque há, neste mesmo tempo, várias, muitas na verdade, identidades
históricas que agora lutam para serem reconhecidas, inclusive para se
reconstituírem em sua especificidade, especialmente as que formam o chamado
Movimento Indígena que, apesar de ser objeto de uma denominação comum, na
realidade é um universo heterogêneo de identidades.
Pereira: E na Bolívia?
Uma ampla parte da população que não se desindianizou foi vítima da "guerra suja"
entre o terrorismo de estado e o do Sendero Luminoso, entre 1980 e 2000.
Segundo o informe da Comissão da Verdade e Reconciliação, a maioria dos mais de
60 mil assassinados nesse período eram, precisamente, camponeses "indígenas".
Não faltam agora tentativas procedentes de alguns grupos da "ex-esquerda" para
formar um "movimento indígena" e até se montou por conta da "primeira dama" do
governo Toledo um maquinário burocrático, já acusado de corrupção fiscal, para
manipular alguns poucos e pragmáticos grupos com um discurso "originário".
Foi com elas que os trabalhadores e seus associdados nas classes médias chegaram
com Allende ao governo do Estado em 1971, mas foi também sua lealdade com
elas que facilitou sua derrota a um sangrento golpe militar em 1973. Sob o
Pinochetismo, levou-se a cabo uma contra-revolução. Uma ditadura sangrenta foi
imposta enquanto eram removidas e alteradas as bases sociais mais corroídas
deste Estado para adequá-las à neoliberalização do capitalismo, que foi
precisamente iniciado ali e nesse momento, e às necessidades da globalização, ou
seja, da reconcentração mundial do controle do trabalho e do Estado.
Mas isso produziu também uma nova sociedade capitalista nacional e seu
respectivo novo estado-nação.
Quijano: Essa condição é o que explica que o que ocorre hoje com o capitalismo
no Chile, mas não ocorrera na Bolívia, apesar de que também ali ditaduras militares
ferozmente represivas atuaram desde há mais tempo e durante os mesmos anos,
ou mais tarde na Argentina ou Uruguai. Também não ocorrera em um país como o
Peru, de longe melhor dotado em termos de recursos, mas cuja burguesia não
deixou de praticar a rapina desde o começo mesmo da República, em associação
com o capital imperialista.
Por isso hoje, como ocorre na Bolívia, a demanda das populações que,
precisamente, foram vítimas de Estados não-nacionais e não-democráticos não é
mais "nacionalismo" e mais Estado, mas sim, antes de tudo, outro Estado, ou seja,
des/colonializar esse Estado, que é a única forma de democratizá-lo. Mas se esse
processo chegar a ser vitorioso, o novo estado não poderá ser um Estado-nação ou
um Estado nacional, e sim um multinacional, ou melhor, internacional.
Nos demais países, processos que iam nessa direção foram derrotados, como no
Brasil desde o golpe de 1964 ou no Peru desde 1990. Na imposição global do
"neoliberalismo", ou seja, da reconcentração mundial do controle do trabalho e do
estado por parte das corporações globais e de seu Bloco Imperial Global, a erosão
da autonomia dos Estados menos democráticos e menos nacionais é contínua.
Desde essa perspectiva, foi um erro trágico, teórico, político e histórico, a proposta
da Terceira Internacional de que todos os países submetidos ao imperialismo
tiveram "burguesias nacionais" com as quais os dominados/explorados/reprimidos
tinham que fazer alianças porque supostamente havia um terreno comum de
interesses diante da dominação imperialista.
E mesmo com José Carlos Mariátegui (pensador peruano) insistindo que na América
Latina não havia fundamento histórico para nenhuma "burguesia nacional",
diferentemente de outras áreas, como na Ásia, por exemplo, a doutrina da
burguesia nacional e da aliança nacional dos trabalhadores com ela foi imposta
sobre a imensa maioria das "esquerdas" quando da sua morte.
Ninguém, em nenhum espaço dentro deste padrão de poder, poderia estar fora ou
livre dos conflitos, da exarcebação da crise e de suas violências. Ninguém,
portanto, deveria imaginar sequer que entre as crescentes perversões dos
dominadores/exploradores/repressores e as lutas de resistência de suas vítimas
pode ser neutro. E na medida em que os estudos e os debates sobre o alterado
mundo que a crise da colonialidade do poder produziu, também estão se
levantando outros horizontes históricos em direção aos quais encaminhar nossas
lutas.
Pereira: Por que o senhor crê que a "colonialidade do poder" tem uma relação
profunda com o atual padrão de poder?
Quijano: A Colonialidade não tem somente uma relação profunda com o padrão de
poder hoje mundialmente dominante. É o caráter central mesmo desse padrão de
poder. A associação entre o novo sistema de dominação social fundado na idéia de
"raça" e de um novo sistema de exploração do trabalho, que consiste na
combinação de todas as formas de exploração em uma única estrutura de produção
de mercadorias para o mercado mundial, sob a hegemonia do capital, ou seja,
formando em seu conjunto o capitalismo mundial, não seria possível de outro
modo.
Pereira: Como o senhor avalia o processo bolivariano conduzido por Hugo Chávez?
Qual o potencial dessa proposta, em termos de aglutinação de outras nações, por
meio de propostas como a Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba)?