Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
51
cialidade. Afinal, lembrando a revolução provoca- monstra que a questão da sociedade na Amazônia
da nesse conceito analítico pelos Araweté, pode- (já que ele é aplicado mais discretamente para os
se imaginar ter sido muito mais interessante tomar casos do Brasil Central ou do Alto Xingu) só pode
esse debate no corpo da coletânea a partir dessa ser devidamente apreendida se torcermos o pro-
reviravolta. Sobretudo porque a obra mesma de blema classicamente posto pela antropologia; lá,
Viveiros de Castro demonstra seu rendimento, e não nos vemos diante de uma reprodução de so-
porque o debate lhe é caro, no mínimo, desde ciedades, ou totalidades, mas de um contínuo tra-
quando conheceu os Araweté. Mas também por- balho de constituição de socialidades, eternamen-
que é este o movimento dos textos reunidos: te desfeitas para serem então refeitas.
partir de etnografias ou balanços da etnologia O valor constituinte da diferença é revelado
contemporânea da Amazônia para, então, rever também nos textos dedicados aos tupi-guarani.
conceitos correntes da antropologia. No Capítulo 3, tomando por base cartas e relatos
Para além da sua autonomia na origem, os de jesuítas, capuchinhos e viajantes, o autor inver-
textos entabulam um diálogo entre si. Poderíamos te a questão por eles posta, perguntando-se não
escolher dentre várias questões para mostrar esse por que os Tupinambá eram tão “inconstantes” em
diálogo. Exploremos essa revisão da cisão antro- sua conversão e no abandono dos “maus costu-
pológica de sociedade e cosmologia e do próprio mes”, mas, ao contrário, por que são tão constan-
conceito de sociedade. A complexidade encober- tes em sua inconstância. E sua resposta volta a
ta pela divisão entra em cena já no Capítulo 1. Ao abordar o valor da alteridade – essa inconstância,
explorar a classificação simbólica yawalapíti, o limitada, aliás, porque há coisas que são inegociá-
autor demonstra que os modificadores lingüísti- veis para os Tupinambá, é revelada como uma ne-
cos que a operam oferecem menos um diagrama cessidade do Outro ou, e aqui o autor remete a
tipológico da condição animal, vegetal, humana Lévi-Strauss,8 como uma abertura para o Outro. O
ou de espírito, e mais um modo de apreender o Capítulo 4, que trata dos Araweté por meio da fi-
mundo que jamais o divide em categorias estan- gura do matador e da fusão ritual de matador e ví-
ques. As condições de existência ganham no tima, remete à discussão do que seria o socius ara-
mundo yawalapíti um classificador cuja lógica weté, onde, emprestando outra formulação cara
exaustiva é destrinchada para mostrar que nenhu- ao autor, a sociologia está mais para um caso par-
ma delas escapa ou se destaca. ticular da cosmologia – ou onde não há cisão en-
O Capítulo 2, que se poderia dizer o mais tre a sociedade e as esferas cósmicas, mas, ao con-
sociológico de todos, trata de questões de classi- trário, é nas relações cosmológicas, nesse caso
ficações sociais – sistemas e tipos de parentesco, com os deuses canibais, que as relações sociais
constituição de coletividades – para ao final nos são vividas em seu modo forte.
fazer perceber que há algo mais por traz disso, a A noção de perspectivismo desenvolvida no
diferença constituinte que dá movimento e senti- Capítulo 7 retoma a questão: o que são relações
do a esses sistemas amazônicos. Trata-se do gran- sociais em um cenário ameríndio em que há mais
de aporte do conceito de afinidade potencial: ele sujeitos no mundo do que jamais poderíamos es-
não só remete a uma revisão do modelo geral da perar, ou em que animais e espíritos podem ocu-
troca e da aliança e, para os estudos de parentes- par legitimamente a posição de sujeitos? É impor-
co, do sistema dravidiano, modulando para a sua tante notar que, se os problemas são complexos,
existência amazônica a distinção entre consangüi- as propostas analíticas buscam sempre responder
nidade e afinidade, como permite compreender a a essa complexidade. Nesse caso, a resposta mais
estruturação dessas coletividades. No conjunto, simples, ou simplista – a de que esse é um mun-
tem um alcance maior, pois nos apresenta um do em que não se percebe a diferença de fato en-
mundo em que é a diferença, e não a semelhan- tre um humano e um animal, ou de um homem e
ça, o valor de base. Essa “intuição” é desenvolvi- um queixada –, é recusada em favor de uma ex-
da como modelo no Capítulo 8, no qual se de- ploração cuidadosa das condições de atualização-
RESENHAS 169
homem, ou -espírito, ou -animal. E aqui podemos Eduardo Viveiros de Castro nos diz que sua
vislumbrar a distinção que o autor oferece em seu intenção é “contribuir para a criação de uma lin-
inventário no prólogo de “regimes de personifica- guagem analítica à medida (à altura) dos mundos
ção e subjetivação”, fortemente relacionados, sem indígenas, o que significa dizer uma linguagem
dúvida. A questão é que um modo de subjetiva- analítica radicada nas linguagens que constituem
ção nem sempre é de personificação, e a Pessoa sinteticamente seus mundos. Sua elaboração en-
(humana, diríamos) indígena é literalmente fabri- volve forçosamente uma luta com os automatis-
cada e produzida, distinguindo-se em um meio de mos intelectuais de nossa tradição, e não por me-
subjetivação que de outro modo é indistinto. nos, e pelas mesmas razões, com os paradigmas
Mas, ao indagar o que significaria de fato di- descritivos e tipológicos produzidos pela antro-
zer que os animais são gente, o autor explora o es- pologia a partir de outros contextos sociocultu-
copo e a lógica dessa indistinção. Ao conceder aos rais” (p. 15). A inconstância da alma selvagem
animais uma existência cultural, o perspectivismo demonstra, como poucos, que é a partir dos
ameríndio não nega a diferença dos pontos de vis- mundos indígenas que os conceitos para se com-
ta. Afinal, ele não funda uma grande e única pers- preendê-los devem ser afiados e toma para si
pectiva reversível, mas uma confluência de pers-
esse embate em um mergulho de profundidade.
pectivas que têm em comum o substrato da
É por isso – pela coragem e pela competência ao
subjetividade. Os animais, assim como os humanos,
mergulhar – que podemos estar certos de, com
se vêem como humanos; isso não quer dizer, po-
Viveiros de Castro, estarmos cada vez mais perto
rém, que os animais vejam necessariamente os hu-
de fazer uma antropologia “à medida dos mun-
manos como animais, em uma perspectiva reversa,
dos indígenas”.
e as etnografias trazidas à discussão por Viveiros de
Jamais saberemos quão fiéis somos a esses
Castro mostram que os casos são muito mais com-
mundos, e, nesse sentido, quão à altura deles es-
plexos. A questão, para os ameríndios, é posta em
tamos, mas a obra de Viveiros de Castro (bom
termos do ponto de vista, da perspectiva, e não da
condição pétrea da humanidade. Ao contrário, ela estruturalista, diga-se de passagem) é digna da
é o denominador comum, e todo o trabalho exigi- maior aproximação que já conseguimos. Apre-
do é o de diferenciação, de personificação. senta-nos não apenas um exercício de afiação de
A humanidade é o denominador comum, a conceitos e modelos antropológicos, mas tam-
diferença é constitutiva, e a alteridade ganha, para bém de revisão dos automatismos intelectuais e
os ameríndios, as feições de afinidade, inimizade de dilatação de nossos termos para – sem aban-
e animalidade. Pensar a sociedade ameríndia é doná-los, porque, como lembra, não o podemos,
pensar a abertura ao Outro, é pensar o afim, o ini- mas sempre deles desconfiando – fazer jus à ri-
migo, o animal. Pensar as relações com a nature- queza desses outros mundos, nos quais, como
za é pensar a subjetivação, o ponto de vista. E lembra pelas palavras de Ítalo Calvino oferecidas
pensar o ponto de vista é pensar o canibalismo como epígrafe, a diferença da linguagem não
que os Araweté (ou os Tupinambá) revelam ser a está nas palavras, mas nas coisas.
aquisição de um ponto de vista outro. Enfim, pen-
sar essa abertura ao Outro é refletir sobre a “eco-
nomia simbólica da alteridade”. Chegando ao mo- NOTAS
delo etnológico proposto pelo autor, percebemos
que as revisões de dicotomias como socieda- 1 Roberto Cardoso de Oliveira, O trabalho do antro-
de/cosmologia e natureza/cultura se implicam mu- pólogo, São Paulo/Brasília, Paralelo 15/Editora da
tuamente, ao menos para o caso ameríndio, ou ao Unesp, 2000.
menos para uma etnologia “eduardiana” dos ame- 2 Manuela Carneiro da Cunha, Antropologia do Bra-
ríndios. Esse modelo amplia com os ameríndios a sil: mito, história, etnicidade, São Paulo, Brasilien-
fundação da Cultura, ampliando, com eles, a cul- se, 1986.
tura e a troca fundante. 3 Idem, p. 8.
170 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 51