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Teologia velha e nova

Augustus Nicodemus, colunista da Seu Mundo online, confronta teólogos e pastores que
acreditam que teologia boa é só aquela que está sendo feita agora

Tenho sempre me deparado com pastores e teólogos que acreditam que teologia boa é
só aquela que está sendo feita agora. Recentemente encontrei mais um desses. Chamou-
me de fundamentalista porque eu acredito que existe teologia certa e teologia errada, e
porque incluo na primeira categoria os antigos credos cristãos e as confissões
reformadas. Ensinou-me com aquela pachorra típica de quem é iluminado e se depara
com um pobre fundamentalista obscurantista e tapado, que "a teologia é apenas um
construto humano, limitado, provisório, subjetivo, que tem que ser feito por cada
geração, pois não atende mais as necessidades da próxima".

Era óbvio que eu estava diante, mais uma vez, daquela cena hilária em que o relativista
declara com toda autoridade e convicção que "não existe verdade absoluta, tudo é
relativo".

Vamos supor, ainda que por um momento, que esses teólogos - nem sei em que
categoria enquadrá-los, pois nem liberais eles são (os liberais de verdade acreditavam
em certo e errado) - estejam certos. Que cada geração entende Deus, a Bíblia e as
grandes verdades do Cristianismo de uma maneira totalmente diferente de outra geração
e de pessoas de outra cultura, a ponto de não podermos adotar as suas reflexões
teológicas como verdadeiras e válidas para a nossa geração.

Se levada às últimas conseqüências, essa perspectiva sobre a teologia criaria uma série
de problemas, inclusive para os que a defendem. A começar pelo fato que cada nova
geração teria de definir, de novo, o que é o Cristianismo. Explico. O Cristianismo,
enquanto religião, foi definido e os seus limites estabelecidos durante os primeiros
séculos depois de Cristo, quando os primeiros cristãos foram confrontados com
explicações diferentes, contraditórias e alternativas da mensagem de Jesus e dos
apóstolos, como o montanismo, as idéias de Marcião, os gnósticos, os docetistas e os
ebionitas, para mencionar alguns.

Os grandes credos ecumênicos da Cristandade estabelecidos nas gerações posteriores


nos deram de forma sintetizada a doutrina de Cristo, da Trindade, entre outras, as quais
o Cristianismo histórico adota até hoje. A seguir o que esse pastor estava me dizendo,
teríamos de jogar tudo isso fora e recomeçar, refazer, redefinir o Cristianismo a partir da
nossa própria situação.

A segunda dificuldade é que essa perspectiva acaba pegando mal para seus próprios
defensores. Pergunto: o que eles têm descoberto e oferecido mais recentemente que seja
novo acerca do ser e das obras de Deus, da pessoa de Cristo e de sua morte e
ressurreição? Quando não caem nas antigas heresias, repetem simplesmente o que já foi
dito por outros em tempos passados. A "nova perspectiva sobre Paulo" não deixa de ser
uma antiga perspectiva sobre o judaísmo. A nova "busca do Jesus histórico" não tem
conseguido oferecer nenhuma reconstrução do Jesus da história que esteja em harmonia
com o quadro dele que temos nos evangelhos. A teologia relacional não consegue ir
adiante do Deus sociniano, que também desconhecia o futuro.

A terceira dificuldade é que essa perspectiva realmente acaba com a distinção entre
teologia certa e teologia errada e anistia todas as heresias já surgidas na história da
Igreja. Vamos tomar, por exemplo, a área de soteriologia, que trata da questão da
salvação do homem. A doutrina de que o homem é justificado pela fé somente, sem as
obras ou méritos humanos, foi estabelecida cedo na Igreja cristã e reafirmada na
Reforma protestante. Depois de tantos séculos, nossos teólogos progressistas (ainda não
gosto desse rótulo, vou acabar achando outro) têm algo de novo para nos dizer sobre
esse ponto? Os que tentaram, caíram nas antigas heresias soteriológicas já discutidas e
refutadas ad nauseam pelos Pais da Igreja e pelos Reformadores.

Não me entendam mal. Eu também acredito que a teologia é um construto humano, e


como tal, imperfeito, incompleto e certamente relativo. Estou longe de adotar para com
a teologia reformada uma postura similar àquela que considera a tradição aristotélica-
tomista como a filosofia e/ou teologia "perene". Eu também considero que a teologia é
fruto da reflexão humana e, portanto, sempre sujeita às vulnerabilidades de nossa
natureza humana decaída. Mas não ao ponto de não poder refletir com uma medida de
veracidade e fidelidade a revelação de Deus nas Escrituras. O problema com essa
postura relativista é que ela desistiu completamente da verdade. É agnóstica. Eu creio
que a teologia, se feita "levando cativo todo pensamento à obediência de Cristo" (2Co
10.5), se for fiel à revelação bíblica, produzirá sínteses confiáveis que podem servir de
referencial para as igrejas de todas as gerações, conforme, aliás, as confissões
reformadas elaboradas nos sec. XVI e XVII vêm fazendo há alguns séculos.

Mas, os teólogos relativistas acreditam em que? Em tudo e, portanto, em nada. Eles


tentam manter tudo fluido, em permanente devir, sempre abertos para todas as
possibilidades. Mas, nesse caso, não teriam que, forçados pela própria lógica, de aceitar
também a teologia conservadora como uma teologia legítima? Mas é aqui que a lógica
relativista se quebra. Pois para eles, todas as opiniões estão corretas - menos aquela dos
conservadores.

Um amigo meu que é teólogo me disse outro dia numa conversa, "a verdade é absoluta,
mas minha percepção dela é sempre relativa". Até hoje estou intrigado com essa
declaração. Eu o conheço o suficiente para saber que ele não é relativista. Sou obrigado
a reconhecer, por força do conhecimento da minha própria limitação e subjetividade,
que ele está certo quanto à relatividade da nossa percepção teológica. Mas, por outro
lado, reluto em aceitar as conseqüências plenas dessa declaração. Primeiro, como
podemos falar de verdade absoluta, se é que sempre temos uma percepção relativa dela?
Se existe verdade absoluta, não seria teoricamente possível conhecê-la como tal?
Segundo, porque embora pareça humildade, admitir o caráter sempre relativo da nossa
percepção implica em admitir que ninguém tem a verdade, o que acaba com a
possibilidade do certo e do errado, do verdadeiro e do falso como conceitos públicos,
transformando cada indivíduo, ao final, no referencial último dessas coisas. Será que
não poderíamos dizer que nós, mesmo enviesados por nossos pressupostos e
preconceitos (horizontes), ainda somos capazes, em virtude na nossa humanidade básica
compartilhada com as pessoas de todas as épocas - para não mencionar a graça comum
e a ação do Espírito Santo -, de perceber a verdade da mesma forma que outras pessoas
a perceberam em outros tempos e em outros lugares?

Aqui as palavras de Anthony Thiselton são pertinentes:


"O que será da ética cristã se adotarmos uma perspectiva relativista da natureza
humana? Se a experiência da dor, do sofrimento e da cura no mundo antigo não tem
qualquer continuidade com qualquer conceito moderno, o que poderemos dizer acerca
do amor, auto-sacrifício, santidade, fé, pecado, rebelião, etc.? Ninguém num
departamento de línguas clássicas, literatura ou filosofia de uma universidade aceitaria
as implicações de um relativismo tão radical. Nada poderíamos aprender sobre a vida, o
pensamento, ou ética, dos escritores que viveram em culturas antigas. Com certeza,
nenhum estudioso, se pressionado com essas implicações, defenderia até o fim esse tipo
de relativismo."

Uma última dificuldade que desejo mencionar é que essa visão, se levada às últimas
conseqüências, acaba nos privando da Bíblia. Vejamos. Quem defende essa visão (há
exceções, eu sei) geralmente tem dificuldades em aceitar que as Escrituras do Antigo
Testamento e Novo Testamento foram dadas por inspiração divina e são, portanto,
infalíveis. Nessa lógica, as Escrituras são apenas a reflexão teológica de Israel e da
Igreja cristã primitiva. Consideremos as cartas de Paulo. Elas são a teologia do apóstolo,
resultado da aplicação que ele fazia das boas novas às situações novas das igrejas
nascentes no mundo helênico. Para ser coerente, quem defende que toda teologia é
relativa, imperfeita e subjetiva, e que é válida somente dentro dos limites da cultura e da
geração em que foi produzida, não poderia aceitar para hoje a teologia de Paulo, a de
Pedro, a de João, a de Isaías. Teria de rejeitar as Escrituras como um todo, pois elas são
a teologia de Israel e da Igreja, elaboradas em uma época e em uma cultura
completamente diferente da nossa.

Para dizer a verdade, há quem faça isso mesmo. Os antigos liberais faziam. Para eles, a
Bíblia nada mais era que a teologia (ultrapassada) dos seus autores. O Cristianismo se
reduzia a valores éticos e morais, que eram as únicas coisas permanentes nesse mundo.
Eu admiro e respeito os antigos liberais. Os de hoje, precisariam assumir o discurso
relativista e levá-lo às últimas conseqüências. Pode ser que não conseguiriam
absolutamente nada com isso, como acho que não vão conseguir. Mas, pelo menos,
teriam o meu respeito - se é que isso vale alguma coisa.

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