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O fado é uma prática musical e poética urbana, amplamente difundida pelos media e

pelos circuitos transnacionais de produção musical, cujos principais contextos de


memória continuam a ser os espaços relacionais face-a-face das casas de fado, das
tascas e restaurantes, assim como das Sociedades Recreativas e de eventos como A
Grande Noite do Fado. Foi nesse contexto que se iniciaram fadistas com grande projeção
no século XXI, como Camané, Raquel Tavares ou Ricardo Ribeiro. Nesses lugares, um
fadista (feminino ou masculino) canta acompanhado pela(s) a(s) guitarra(s)
portuguesa(s) de seis ordens duplas de cordas metálicas, viola(s) (designação émica da
guitarra clássica de seis cordas simples) e por vezes pela viola baixo (de 4 cordas). Apesar
de os textos melódico e poético serem previamente compostos, o papel do fadista na
interpretação do fado é crucial, distinguindo-se a sua performance pelo seu modo de
estilar (designação émica da improvisação melódica individual) e de dividir o texto
(alteração do ritmo das palavras, com pausas, suspensões, respirações). Os contracantos
da guitarra reforçam o papel central do fadista, que nas grandes salas de espetáculo se
coloca à frente do grupo instrumental. As guitarradas, fados exclusivamente
instrumentais, pontuam uma performance de fado. Guitarristas como Armandinho
(1891-1946) compuseram fados e criaram variações que foram difundidas pela indústria
fonográfica, integrando hoje o repertório do fado. De igual modo, performances de
grandes fadistas como Alfredo Marceneiro ou Amália Rodrigues, que foram
imortalizados pelas tecnologias de gravação e reprodução sonora, são referências
incontornáveis na iniciação de jovens fadistas nesta prática. Os passos seguintes passam
pela definição de uma interpretação personalizada, um repertório próprio de fados, com
composições escritas especialmente para si, e por vezes pela composição de músicas ou
letras de fado.
A estrutura poética e musical distingue os tipos principais do fado. No fado-fado
(também designado clássico, castiço, rigoroso, ou tradicional), considerado mais antigo,
a melodia varia ligeiramente a cada nova estrofe, segundo uma forma bipartida, num
esquema harmónico I-V, como no fado Mouraria (em tonalidade maior) ou no fado
menor (em tonalidade menor), publicados em fontes oitocentistas ou do início do século
XX. Sobre os padrões melódico-rítmicos destes e de outros fados estróficos, os fadistas
constroem diferentes interpretações e compõe-se novos poemas. Já o fado canção, com
refrão e coplas, é uma variante provavelmente desenvolvida a partir da introdução do
fado no teatro de revista, em finais do século XIX (ver Castelo-Branco 1998). Nos anos
1960 o fado canção sofreu novos desenvolvimentos, integrando, não sem contestação,
poesia culta e harmonias complexas, por acção da fadista Amália Rodrigues e do
compositor Alain Oulman, exemplo que passou a ser seguido por outros fadistas,
nomeadamente Carlos do Carmo. A partir dos anos 1990, pela voz de grandes
profissionais como Mísia, Cristina Branco, Paulo de Bragança ou Mariza, o fado entrou
nos circuitos da World Music e foram desenvolvidas novas interpretações no âmbito do
chamado ‘novo fado’.

Fado vadio: breve nota sobre uma noite de fados


São 8.30 da noite. Num pequeno letreiro da Rua dos Remédios do bairro lisboeta de
Alfama lê-se fado vadio, a designação émica do fado espontâneo. O espaço é intimista e
já há grupos de pessoas sentadas a jantar. Destaca-se no lado esquerdo uma guitarra
portuguesa e uma viola penduradas na parede, por cima de duas cadeiras desocupadas.
Nas paredes sobrepõem-se fotografias de fadistas que aqui cantaram. Sentei-me numa das
duas mesas livres. A ementa oferece caldo verde, chouriço assado, bacalhau. .... e diversas
opções de vinho. Cerca das 21 horas chegam os instrumentistas, afinam os instrumentos.
O fadista João Carlos informa que a guitarra e a viola vão tocar. Desligam-se luzes e
inicia-se a noite de fados com variações (instrumental). Batem-se palmas, João Carlos
coloca-se atrás dos instrumentistas e juntos performam o “Fado das Tamanquinhas”, o
“Embuçado” e “Trigueirinha”. Reacendem-se luzes e faz-se um intervalo. Cerca de meia
hora depois, Ana Sofia Varela, uma dos fadistas que conversam ao fundo da sala na única
das 12 mesas onde não se janta, aproxima-se dos guitarristas e combina com eles os fados
que vai cantar. Enfatizando a tensão emocional dos textos com a voz e a géstica das mãos
e cabeça, canta os fados: “Abre as janelas ao vento”, “Ai, Maria”, “Maria Lisboa”.
Reacendem-se luzes e o fadista João Carlos dirige-se às mesas para vender o seu CD “O
fado sem segredos”. Retorna a performance do fado, agora com um novo fadista amador
cuja voz e postura lembra o grande Alfredo Marceneiro. Ao longo da noite de fados,
entram (e saem) fadistas, cumprimentam-se e conversam na mesa do fundo, e alternam a
cantar fado até as restantes mesas ficarem vazias.

Histórias do fado
As primeiras referências ao fado datam dos anos 1830-40. Situam-no nas tabernas,
bordeis, nos retiros (casas de pasto) dos bairros lisboetas e da periferia da cidade, nas
esperas de touros. Maria Severa Onofriana (1820-1846), a fadista mítica que funda a
origem do fado nas casas de prostituição dos bairros portuários da cidade de Lisboa,
cantava e tocava fado. O seu romance com o conde de Vimioso ilustra a presença do
fado nos meios boémios da aristocracia e alta burguesia e foi imortalizado em operetas,
revistas e inclusive no primeiro filme sonoro do realizador Leitão de Barros, intitulado A
Severa, de 1931. Já as primeiras publicações de fados (acompanhamento para piano e
poesia) datam da segunda metade do século XIX, destacando-se o Álbum de músicas
Nacionais de João Ribas, de 1858[1860] e o Cancioneiro de Músicas Populares de César
das Neves e Gualdino de Campos (1893, 1895 e 1898). Na segunda metade do século
XIX, o fado aparece documentado no centro-norte do país (Ribas 1858/1860), tendo no
contexto estudantil da universidade de Coimbra adquirido desenvolvimentos
particulares com a canção de Coimbra. Estas publicações revelam a expansão dos
contextos performativos e o alargamento social do fado aos sectores da burguesia.
Datam deste período os primeiros argumentos sobre as origens do fado (ver Nery 2011).
No século seguinte publicações periódicas como O Fado, conquistam um número
crescente de leitores aficionados. É a partir desses anos que se radicaliza a discussão em
torno do fado como canção nacional.
As primeiras gravações de fado em discos de 78 r.p.m. foram realizadas para a The
Gramophone Company por William Sinkler Darby, na cidade do Porto. Darby gravou o
conceituado guitarrista Reynaldo Varela e o fadista Souza (Losa 2013). Nesses anos, o
fado abordava não só os temas acima referidos, como narrava os factos do quotidiano,
ao mesmo tempo que servia de crítica social e de intervenção sindical e política,
dimensões travadas mais tarde pela censura no período da ditadura do Estado Novo
(1926-1974), pelo impacto da carteira profissional imposta por esse regime e pelo efeito
de eventos como “A Grande Noite do Fado”, que desde 1953 se realizou no Coliseu dos
Recreios em Lisboa.
A reprodução mecânica imortalizou as interpretações dos guitarristas Reynaldo Varela
(1867-1940) e Armandinho (1891-1946) e dos fadistas Alfredo Marceneiro (1891-1982)
e Amália Rodrigues (1920-1999), entre tantos outros. O fadista Alfredo Marceneiro é
uma das referências do século XX, tendo composto ele próprio fados que interpretou
com uma vocalidade muito própria (a alcunha ‘marceneiro’ deve-se à sua profissão).
“Estranha forma de vida”, um fado muito presente no repertório de fadistas, com
poema de Amália Rodrigues, foi composto por Alfredo Marceneiro. Mas a referência
incontestada do fado é, nos dias de hoje, a fadista Amália Rodrigues, ela própria autora
de poemas e também actriz de teatro, cinema e televisão (Nery 2010a). As suas
interpretações de fados como “Povo que lavas no rio” (música do “Fado Vitória”, com
poema em sextilhas de redondilha maior, da autoria de Pedro Homem de Mello) que se
distinguem pelas qualidades vocais, expressividade e constante recriação, conquistaram
os públicos das mais prestigiadas salas de espectáculo. O modo como se apresentava
em palco - quase sempre com xaile e longos vestidos pretos - transformou-se num ícone
do próprio fado (Nery 2010b).
A partir das últimas décadas do século XX, a audição dos registos dos grandes fadistas é
um recurso importante no processo de aprendizagem de fado, complementado sempre
que possível com a peregrinação aos contextos de memória. É este o trajeto de fadistas
emigrantes portugueses que iniciam as suas carreiras fora de Portugal.
No fado (o termo significa destino, sorte, fortuna) predominam no século XXI temas
como a saudade, destino, infortúnio, amor e ciúme. Desde 2011, o fado é Património
Imaterial da Humanidade.

Maria do Rosário Pestana


“Fado”
SAGE International Encyclopedia of Music and Culture

Bibliography
Brito, Joaquim Pais de (coord.). 1994. Fado Vozes e Sombras. Lisboa: Museu nacional
de Etnologia
Castelo-Branco, Salwa. 1997. Voix du Portugal. Paris: Cité de La Musique/Actes Sud.
Elliot, Richard. 2016. Fado and the Palce of Longing. Loss, Memory and the City.
London and New Yoork: Routledge.
Grey, Lila Ellen. 2013. Resounding Fado. Affective politics and urban life.Durham and
London: Duke University Press.
Losa, Leonor. 2013. Machinas Fallantes. A música gravada em Portugal no início do
século XX. Lisboa: Tinta-da-China.
Nery, Rui Vieira. 2010. “Fado” and “Amália Rodrigues”. Enciclopédia da Música em
Portugal no Século XX, coord. Salwa Castelo-Branco, pp. 433-453 and 1132-38. Linda-a-
Velha: Círculo de Leitores.
Nery, Rui. 2012. A history of portuguese fado. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da
Moeda.
Nery, Rui Vieira. 2010a. “Fado”. Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX,
coord. Salwa Castelo-Branco, pp. 433-453. Linda-a-Velha: Círculo de Leitores.
Nery, Rui. 2010b. Pensar Amália. Lisboa: Tugaland.
Discography
Alfredo Marceneiro - The Fabulous Marceneiro. Columbia/ Valentim de Carvalho,
1961.
Amália Rodrigues - O melhor da Amália: Estranha forma de vida. 2 CD, EMI-Valentim
de Carvalho, 1995 [1965, 1985].
Armandinho – As sessões HMV de 1928-1929, Arquivos do Fado IV, CD Interstate
Music, Heritage HTCD 25 and Tradisom, 1994.

Sites
Fado Museum (http://www.museudofado.pt/)
Digital Sound Archive (http://arquivosonoro.museudofado.pt/)
(http://www.rtp.pt/arquivo/index.php?article=2352&tm=21&visual=4)

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