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Sobre a autoatenção

Eduardo Menendez
(Extraído de artigo científico disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232003000100014)
[entre colchetes e notas de rodapé são comentários didáticos do professor]

A autoatenção constitui uma das atividades básicas do processo saúde-


doença-atenção, sendo a atividade nuclear e sintetizadora desenvolvida pelos
grupos sociais a respeito desse processo. Autoatenção é uma atividade
constante, mesmo que intermitente, desenvolvida pelos próprios sujeitos e seus
grupos de forma autônoma ou utilizando como referência secundária ou
decisiva outras formas de cuidado. Autoatenção pode ser parte das ações
desenvolvidas pelas outras formas de atenção (inclusive o cuidado médico),
uma vez que é uma etapa necessária para a implementação das mesmas.
Autoatenção se refere às representações e práticas que a população
utiliza ao nível do sujeito e de seu grupo social para diagnosticar, explicar,
entender, controlar, facilitar, assegurar, curar, solucionar, prevenir ou resolver
os problemas que afetam a sua saúde em termos reais ou imaginários, sem
intervenção central, diretiva e intencional de curadores profissionais, mesmo
que estes possam ser a referência para a atividade de autoatenção; de tal
maneira que a autoatenção envolve decidir sobre a autoprescrição e o uso de
um tratamento de forma autônoma ou independente. Digamos que o
autoatenção refere-se a representações e práticas que abordam assuntos dos
sujeitos e seus grupos a respeito de seus adoecimentos, incluindo ações
induzidas, prescritas ou propostas pelos curadores de diferentes formas de
atenção, mas que em função de cada processo específico, das condições sociais
ou situações dos sujeitos se configura que uma parte desse processo de
prescrição e uso se autonomize, ao menos em termos de autonomia relativa.
A autoatenção pode ser pensada em dois níveis, um amplo e outro
restrito. O primeiro nível refere-se a todas as formas de autoatenção
necessárias para garantir a reprodução biossocial de indivíduos e grupos em
nível dos microgrupos e especialmente do contexto familiar. Formas que são
utilizadas a partir dos objetivos e normas estabelecidas pela própria cultura do
grupo. A partir dessa perspectiva pode-se incluir não só o cuidado e prevenção
de adoecimentos, mas as atividades de preparação e distribuição de alimentos,
cuidado com o meio ambiente e com o corpo, obtenção e uso da água, etc. São
parte da autoatenção o aprendizado da relação com a morte, nos diferentes
termos prescritos em cada cultura, que podem incluir o cuidado do sujeito em
estado terminal, auxiliar o sujeito a morrer, e o posterior manejo do corpo em
função do sistema de crenças.
[Em um segundo nível, mais restrito], a autoatenção é muitas vezes
confundida ou exclusivamente identificada pela biomedicina como
automedicação, ou seja, com a decisão mais ou menos autônoma de usar
certos medicamentos para tratar alguns problemas de saúde sem a intervenção
direta e/ou imediata do médico ou de profissional da saúde habilitado. A
automedicação é apenas uma parte da autoatenção, e reduzir a autoatenção a
automedicação é apenas um efeito da hegemonia do conhecimento biomédico,
como veremos. Em consequência deve ser enfatizado que a automedicação não
se refere apenas à decisão de usar certos tipos de medicamentos desenvolvidos
pela indústria farmacêutica, mas o uso de todas as substâncias (chás de ervas,
álcool, garrafadas etc), e para alguns autores atividades de diferentes tipos
(cataplasmas, ventosas, massagens, etc.), que são utilizados pelos sujeitos e
microgrupos com relativa autonomia para atuar em seus adoecimentos ou para
estimular certos comportamentos.
Outro termo usado frequentemente como equivalência de autoatenção é
o de "autocuidado" desenvolvido a partir da biomedicina, do conceito de estilo
de vida, entendido geralmente por ações tomadas por indivíduos para prevenir
o desenvolvimento de certas condições e para promover aspectos positivos da
saúde ou mesmo tratar doenças crônicas. O uso desta idéia no setor saúde é
marcadamente individualista e diferente da idéia de autoatenção, cujo caráter
é, basicamente, do grupo social; mas o importante a considerar aqui é que o
conceito de autocuidado é um variante da autoatenção conduzida através de
determinadas ideologias não só técnicas, mas também sociais.
Consequentemente atividades de automedicação e autocuidado são parte do
processo de autoatenção, mas não são equivalentes; a autoatenção é um
conceito e processo mais amplo e inclusivo.
Para alguns autores autocuidado teria implicações basicamente
preventivas ou potenciais da saúde em termos da chamada "saúde positiva" e
autoatenção refere-se a ações do tipo assistenciais; enquanto que para nós,
tanto o autocuidado como a autoatenção podem desenvolver ambos os tipos de
atividades. A diferença é que a primeira tem ênfase no indivíduo – estimulado
por políticas de autocuidado -, enquanto que o conceito de autoatenção refere-
se mais amplamente ao conceito de saúde vista na coletividade, relações sociais
e seus aspectos culturais, bem como contextualizado no modo de vida coletivo
do grupo social a que o individuo pertence. Para esses autores autocuidado
seria um estilo de vida (individual) que possibilitaria reduzir ou eliminar
comportamentos de risco em relação a fumar, consumir uso excessivo de álcool
ou comer carne vermelha em quantidades exageradas (ou fazer uma dieta
específica, por exemplo, no caso de um diabético, em que terapêutica se
confunde com reduzir riscos), mas essa concepção de autocuidado e estilo de
vida muitas vezes excluem na prática as condições de vida que tornam
possíveis que as atividades de autocuidado e estilos de vida fracassem ou não
sejam exitosas (Menendez, 1998).
A partir da biomedicina, geralmente, há críticas e objeções em relação à
autoatenção quase exclusivamente em termos de automedicação. O pessoal da
saúde (profissionais de saúde) considera quase por unanimidade que a
automedicação é negativa ou perniciosa; que é o produto da falta de educação
ou ignorância, e tende a identificá-la como um comportamento dos mais baixos
estratos sociais ou leigos em geral. Essa avaliação geralmente surge a partir da
experiência clínica ou institucional e de uma tradição oral, bem como da posição
do setor institucional da saúde contra a automedicação, mas não se refere a
pesquisas sistemáticas na literatura sobre os pontos negativos e benéficos da
automedicação. Na América Latina temos muito poucas pesquisas sobre essa
temática.
Em geral, a biomedicina e o setor saúde têm apontado somente os
efeitos negativos da automedicação, denunciando o seu uso recorrente e seu
papel no desenvolvimento de resistência aos efeito de alguns medicamentos,
nos vetores de determinadas condições ou consequências cancerígenas - ou não
- devido ao uso indiscriminado de substâncias como o cloranfenicol [antibiótico
muito usado décadas atrás, e muito tóxico]. Enquanto a crítica da
automedicação é relativamente antiga, a mesma tem aumentado nas últimas
décadas, já que teria aumentado a automedicação com drogas, e uma porção
das mesmas teriam consequências mais graves do que os medicamentos mais
antigos, em função de características "mais agressivas" de substâncias
presentes nas fórmulas, da especificidade do fármaco e do uso cada vez mais
indiscriminado.
Mas para além da veracidade desses questionamentos biomédicos quero
enfatizar a visão unilateral negativa da biomedicina com relação a
automedicação, assim como a noção de que ela tem aumentado. Isto contrasta
com as muitas atividades de autoatenção que tem impulsionado o setor da
saúde. Para nós, a biomedicina tem desenvolvido uma relação contraditória
escotomizante no processo de autoatenção, uma vez que por um lado a
questiona em termos da automedicação, e por outro promove constantemente
atividades de autocuidado e outras formas de autoatenção.
A análise desses processos envolve primeiramente esclarecer alguns
aspectos do processo de autoatenção. Consideramos a autoatenção um
processo constante e estrutural embora em contínuo processo de modificação.
O caráter estrutural de autoatenção implica que a mesma se estabeleça como
um processo necessário em todas as culturas através das ações de pequenos
grupos para ajudar a garantir o processo biossocial de reprodução. Todos os
pequenos grupos, e em particular o grupo doméstico, são caracterizados pela
frequência, recorrência e continuidade de episódios de doenças, problemas de
saúde e danos que afetam a saúde de um ou mais membros destes
microgrupos. A maioria desses episódios são leves, agudos e transitórios,
podendo ser solucionados ou pelo menos aliviados através de ações dos
membros do próprio grupo. Junto com estas condições sempre houve doenças
crônicas. Para que estas últimas não resultem em morte prematura, exige-se
que o sujeito e seu microgrupo tenham uma postura ativa no processo de
cuidado, já que sobretudo para algumas doenças o processo de autoatenção é
decisivo.
O núcleo da existência e continuidade da autoatenção refere-se à
frequência de adoecimentos agudos de muitos diferentes tipos, a existência e
aumento das enfermidades crônicas físicas e mentais, a busca de estimulações
com diferentes objetivos, de tal maneira que toda sociedade necessita
desenvolver saberes específicos ao nível dos grupos onde aparecem estes
padecimentos e ou objetivos, estabelecendo inclusive uma divisão de trabalho
especialmente no grupo familiar, onde a mulher no seu papel de esposa/mãe é
encarregada do processo saúde-enfermidade-atenção (s/e/a) dos membros do
grupo. A mulher nesse papel será a encarregada de diagnosticar a doença,
estabelecer uma avaliação da gravidade ou suavidade da mesma. Irá ter
alguma noção da evolução da doença, bem como muitas vezes uma noção da
várias doenças específicas. Será ela que implementará os primeiros
tratamentos, bem como decidirá por conta própria ou de acordo com outros
membros dos grupos familiares se a doença exige atenção, que pode iniciar
com uma consulta com as pessoas em seu espaço social imediato, e continuar
para outros tipos de curadores que se considera mais adequado em cada caso,
cuja consulta dependerá dos recursos do grupo tanto econômico como cultural,
infraestrutura e serviços existentes (Menéndez, 1982; 1984; 1990b; 1992;
1994). Para evitar equívocos, relembro que descrevo a fenomenologia de
autoatenção para dentro do grupo doméstico, segundo o qual em todos os
contextos culturais a autoatenção dos adoecimentos se desenvolve basicamente
através da mulher em seu papel de esposa/mãe, sem considerar qualquer
perpetuação dessa situação, mas ressaltar que isso é o que encontramos nas
sociedades atuais.
Autoatenção é quase sempre a primeira atividade realizada no
microgrupo que detecta a doença, e essa atividade não inclui inicialmente
qualquer curador profissional, mesmo que inicialmente pode consultar alguns
membros dos espaços familiares e sociais imediato, mas que não
desempenham nenhuma atividade como curador profissional [ou reconhecido
como curador socialmente, mesmo que não profissionalizado].
É a partir do que acontece na autoatenção e consequentemente na
evolução da doença, assim como em função das condições sociais e culturais,
que o sujeito e seu microgrupo decidem consultar ou não curadores
profissionais [ou não profissionalizados] de uma das formas de atenção que
reconheçam e aceitem. A decisão de ir um curador profissional [ou não] e uma
parte das atividades realizadas após consulta com ele são também parte do
processo de autoatenção. Após a primeira consulta pode-se decidir em marcar
outra consulta com outro curador da mesma ou de outra forma de atenção -
essa decisão, assim como o que acontece após a consulta também faz parte
deste processo.
A decisão de consultar curadores profissionais [ou não
profissionalizados] ocorre desde determinado saber e experiência que vão
influenciar no tratamento e na relação profissional/paciente. O sujeito e seu
grupo podem consultar com um ou mais curadores e serviços, mas sempre a
partir de um núcleo de autoatenção. Por isso a autoatenção não deve ser
pensada como um ato que os sujeitos e grupos desenvolvem isolada e
autonomamente, mas sim como um processo transacional entre esses e as
diferentes formas de atenção que operam como suas referências. Mas ainda
será o sujeito e seu grupo os que, através do caminho percorrido pelo doente,
irão articular a partir das características de cada grupo e cada adoecimento as
diferentes formas de atenção, porém em função da experiência. É o processo de
autoatenção que articula as formas existentes de atenção, mais além de que
estas tenham interações diretas entre si. A maioria das formas de atenção,
incluindo a biomedicina, muitas vezes ignoram o itinerário terapêutico do dente,
que articula diferentes formas de atenção e sistemas médicos com o objetivo de
dar uma solução para os seus problemas.
A gravidade ou o agravamento de uma doença, a complexidade da
mesma, a necessidade de tecnologias sofisticadas, a existência ou não de
cobertura de diferentes formas de cuidado ou adesão a um sistema de
segurança social irão afetar o tipo de cuidados e autoatenção desenvolvida.
Um aspecto decisivo é que a autoatenção implica a ação mais
racional, em termos culturais e contextuais, de estratégia de
sobrevivência e inclusive de custo-benefício, não só econômico, mas de
tempo por parte do grupo, na medida que assumamos em toda sua
envergadura a significação que tem a frequência e a recorrência dos diferentes
tipos de adoecimentos que ameaçam real ou imaginariamente os sujeitos e
microgrupos, para a vida cotidiana.
[...] Quando falamos de adoecimentos estamos nos referindo a uma
grande variedade de problemas que vai desde dores de cabeça episódicas,
dores musculares leves, febre, resfriados ou picadas, dores da alma, estados de
tristeza, ansiedades, tristezas prolongada ou momentânea. Toda uma série de
transformações, dores acidentes ou relações sociais operam durante parte do
dia ou semana em alguns de nós. Em relação a estes adoecimentos, você não
pode fazer nada, ou apenas falar com outra pessoa, deixando o curso de tempo
resolvê-lo, o que também faz parte das ações de autoatenção. Todos estes
adoecimentos são abordados e resolvidos através de autoatenção, a menos que
seja uma continuidade de uma doença que preocupe o sujeito e seu grupo.
Devemos lembrar que na primeira infância algumas doenças gastrointestinais e
respiratórias agudas, bem como algumas condições populares e tradicionais são
constantes, e também tendem a ser atendidas no interior do grupo, e só passa
a uma consulta com um curador quando se atinge determinado nível de
gravidade estabelecido pelo próprio grupo.
Mas o autocuidado e automedicação não se referem apenas à
intervenção em padeceres [adoecimentos], mas também dizem respeito a
aplicação de tratamentos, uso de substâncias ou atividades que, de acordo com
aqueles que os utilizam, possibilitariam um melhor desempenho esportivo,
sexual ou de trabalho. São substâncias e ações que não só possibilitariam sair
da angustia, depressão ou dor, mas permitiriam certos rendimentos e prazeres.
A partir desta perspectiva, as diferentes formas de vício podem ser
considerados como parte do processo de auto-atenção (Menéndez, 1982;
1990b; Romani e Comelles, 1991; Szasz, 1979a; 1979b). Mais ainda, toda uma
séria de ações são impulsionadas especialmente nos últimos anos, relacionadas
com o desenvolvimento de certas atividades e estilo de vida, pare tentar obter
certos benefícios físicos e mentais através de correr todas as manhãs ou todas
as tardes - dado que à noite eles se tornaram perigosos - , ir ao ginásio ao
meio-dia, beber de três a quatro litros de água diários, praticar ioga ou
executar determinadas exercícios.
A autoatenção não se refere apenas ao consumo autônomo de
aspirinas, antibióticos ou psicotrópicos como remédios, mas refere-se ao uso de
anabolizantes, infusão (“chá”) de boldo e beber bebida alcoólica em
determinadas situações. Será a intencionalidade com que se utiliza qualquer
destas substâncias o que lhes dá o carater de automedicação.
Há toda uma série de processos sociais, econômicos e ideológicos que
tem impulsado determinadas formas de autoatenão nas sociedades atuais.
Geralmente se aceita que o desenvolvimento da indústria químico/farmacêutica
e a publicidade têm que ver centralmente com esta tendência ao consumo de
determinados produtos. Também se tem assinalado que o desenvolvimento de
determinadas ideologias em busca de uma saúde e juventude mais o menos
permanente, ou de certos equilíbrios psicofísicos ligados ou não a concepções
religiosas e/ou consumistas tem impulsado determinadas formas de
autoatencão e automedicação. Mas também toda una serie de grupos
organizados a partir de um padecimento (Alcoólicos Anónimos, Neuróticos
Anónimos, Clubes de Diabéticos, etc.) ou desenvolvidos a partir de reivindicar
sua identidade diferencial (movimento feminista, movimento gay) tem
impulsionado processos e técnicas de autoatenção, de tal maneira que devemos
reconhecer a existência de muitos diferentes setores sociais e de objetivos
pessoais que potencializam a autoatenção, incluída a automedicação.

A biomedicina como geradora de autoatenção


Há uma intensa e constante relação entre as atividades médicas e as de
autoatenção a partir de processos impulsados sobretudo pelas necessidades,
objetivos e/ou desejos dos sujeitos e grupos sociais. Se bem que cada grupo
inclua em suas atividades de autoatenção explicações e sobretudo práticas e
produtos derivados de diferentes fontes, deve assumir-se que a biomedicina
constitui atualmente uma das principais fontes; segundo alguns autores, a
principal, das atividades de autoatenção.
Temos assinalado, ademais, que a biomedicina questiona e/ou vê
negativamente a automedicação, que considera responsável de toda una serie
de consequências negativas, mas que simultaneamente a biomedicina considera
positivamente o autocuidado e gera toda uma série de atividades que
impulsionam não só o autocuidado senão também a automedicação. E assim
observamos que na maioria dos países da América Latina o setor saúde
desenvolve programas de planejamento familiar, ou se se prefere, de saúde
reprodutiva, que tratam de que o grupo familiar e sobretudo a mulher aprenda
a planejar, utilize vários métodos e especialmente a pílula anticoncepcional, e
que sobretudo os utilize autonomamente.
O setor saúde (SS) e toda uma variedade de organizações não
governamentais (ONGs) tem difundido o uso autônomo da reidratação oral, têm
promovido intensamente o uso do condón [camisinha], não só como técnica
anticonceptiva, mas como prevenção de doenças sexualmente transmissíveis,
que os sujeitos deveriam decidir autônoma e/ou relacionalmente.
O setor Saúde é os médicos estimulam a população possa detectar
determinados problemas, dado que uma detecção oportuna possibilitaria uma
intervenção médica mais eficaz. Para tanto, se sugere exames preventivos, as
mulheres realizem papanicolau ou outros exames.
É a própria biomedicina que tem impulsionado ações autônomas dos
pacientes para determinadas enfermidades crônicas, de tal maneira que
aprendam a ler glicose no sangue através de técnicas simples, assim como a
aprender a auto-injetar-se insulina. Despois de que durante anos a biomedicina
questionara ou ignorara o papel dos grupos de Alcoólicos Anônimos (AA),
atualmente em numerosos contextos o SS tem reconhecido os grupos de AA
como parte central do tratamento contra o alcoolismo, e aconselha aos
"alcoólicos reabilitados" sua permanência nesses grupos como principal
mecanismo de controle desse problema, dada a alta frequência de recaídas que
caracterizam não só o consumo de álcool, senão que o conjunto dos
comportamentos adictivos.
A própria biomedicina é consciente das atividades de articulação que se
geram sobretudo no caso das doenças crônicas. Em consequência, domina na
biomedicina uma espécie de escotomização a respeito do processo de
autoatenção, em termos de clivar a autoatenção considerada "boa" da "má",
não assumindo que ambas são parte de um mesmo processo, e que tem os
mesmos objetivos da perspectiva das decisões e ações dos grupos sociais. Esta
maneira de pensar a autoatenção pelo SS [e pela biomedicina] contribui, por
um lado, para seguir responsabilizando a "vítima" dos problemas que a afligem,
mas neste caso a responsabiliza negativamente [culpabilizando a vítima] pelas
soluções que inventa através das diferentes formas de autoatender-se.
O setor saúde deve assumir que a autoatenção não só é a principal forma
de atenção desenvolvida pelos próprios conjuntos sociais, senão que é através
dela que os sujeitos e grupos se relacionam com as outras formas de atenção,
incluída a biomedicina. É através da autoatenção que os sujeitos se apropriam
das outras formas e as relacionam, e é neste processo que se geram
consequências negativas e positivas para a saúde. Quando nós recuperamos
como básica a autoatenção, não supomos que a mesma é sempre acertada e
eficaz; pelo contrário pensamos que uma parte substantiva dela mesma – não
sabemos quanto por falta de investigações específicas – tem consequências
negativas ou pelo menos resultados ineficazes.
Porém a autoatenção não implica só a possibilidade de consequências
negativas ou positivas para a saúde, senão que é o meio através do qual os
sujeitos e seus grupos evidenciam sua capacidade de ação, de criatividade, de
encontrar soluções, e em consequência, é um mecanismo potencial de
fortalecimento de certos poderes e da autonomia dos sujeitos e grupos, assim
como da validade de seus próprios saberes.
O processo de autoatenção se desenvolve atualmente em grande medida
através da relação direta e indireta com a biomedicina. Este é um processo
dinâmico e cambiante, que permite observar que processos de autoatenção que
durante um tempo foram questionados agora são aceitos como
comportamentos "naturais". Quem se assusta ou questiona atualmente que as
pessoas utilizem o termómetro para medir sua temperatura? Este uso é parte
de um processo de apropiação já esquecido. Sem dúvida, atualmente outras
apropriações tecnológicas pelos sujeitos e grupos são questionadas em nome
da complexidade técnica e científica.
O tipo de relação dinâmica, complementar, mas também
simultaneamente conflitiva e contraditória entre biomedicina e os sujeitos e
grupos sociais, pode observar-se especialmente através de um dos principais
atos médicos, o do tratamento e especialmente o da prescrição de
medicamentos. O que acontece em torno da prescrição médica e o
cumprimento da mesma se constitui em um dos principais campos de crítica da
biomedicina ao comportamento da população, concluindo reiteradamente que a
população não compreende a prescrição, não a cumpre ou a cumpre mal.
Constantemente se assinala que o paciente não completa a totalidade do
tratamento, já que por decisão própria o interrompe frequentemente quando
decide que já foi eficaz, que já se solucionou seu problema.
A maioria desses apontamentos podem ser corretos, e existem varias
explicações a respeito, mas me interessa recuperar um tipo de comportamento
caracterizado pelo não cumprimento da prescrição, o qual tem sido evidenciado
nos últimos anos e que se conhece como o caso do "paciente bem informado"
(Donovan y Blake, 1992). Este se caracteriza por não cumprir a prescrição, mas
não por ignorância das consequencias negativas que podem ter a suspensão ou
modificação do tratamento ou por não entender a prescrição receitada, senão
devido a dois fatos básicos, por uma parte, a quantidade de informação técnica
que possui este tipo de paciente e por outra que sua modificação do tratamento
obedece a experiência de seu próprio corpo com o tratamento receitado. De tal
maneira que o paciente decide aumentar, reduzir a dose ou espaçá-la segundo
seu conhecimento e sua própria experiência; ações que o paciente não oculta
senão que discute com o médico. Este paciente, e ressalto isso, não questiona o
"poder médico" nem a eficácia da biomedicina; pelo contrario, é um partidário
da mesma; a este paciente não lhe interessa discutir o poder na relação
médico/ paciente, e sim melhorar sua saúde, controlar o melhor possível seu
padecimento crônico. Este novo tipo de paciente – que não é tão novo – se
caracteriza por seu saber e não por sua ignorância, mas também por uma
informação que refere a sua própria experiência de enfermidade e atenção.
Atualmente, este tipo de situações constitui uma das melhores
expressões da relação dinâmica que se opera entre a biomedicina e o processo
de autoatenção, a partir das ações realizadas pelos sujeitos e grupos em função
de suas próprias enfermidades, o que está dando lugar ao desenvolvimento de
propostas de co-atenção.

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