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a caminho; estava aqui ontem

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a caminho; estava aqui ontem
bárbara baron


a caminho; estava aqui ontem
bárbara baron
prelúdio 05

prefácio 29

“a caminho; estava aqui ontem” 35

haviklaan, 4 43

quintessencial 53

hic et nunc 61

posfácio 69

bibliografia 74

agradecimentos 77
prelúdio
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prelúdio
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AVALIAÇÃO DESCRITIVA

Bárbara Vandresen Baron


Centro Educacional Menino Jesus
Data de Nascimento: 04/05/1995
Série: B-1-B
Ano: 1995

2º bimestre:
[...] dorme tranquila. gosta muito de escu-
tar historinhas de livros que a tia conta.
compreende o que se conversa com ela.

3º bimestre:
[...] bárbara está muito bem, gosta muito de
ficar no colégio. quando chega atira-se para
o colo da tia e brinca todo o tempo. brinca
com bonecas, mas prefere historinhas.

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bárbara ditou o texto abaixo em 1999

joão e maria que cuidam de ovelhinhas


num sítio:

era uma vez um menino chamado joão. um dia


deu uma trovoada e ele chamou a maria.
daí, no dia seguinte deu um sol maravi-
lhoso e eles ficaram com calor e brincaram
de pula-pula. só que no dia seguinte deu
uma trovoada com sol de arco-íris do espaço
sideral. eles ficaram com medo que fosse
um lobo, mas eram alienígenas do espaço
sideral. os alienígenas eram do mau. o joão
se apaixonou pela maria. eles casaram e os
alienígenas apareceram, só que eram do bem.

bárbara ditou o texto abaixo em 12/07/00

eu tenho esperança. esperança é uma palavra


bem bonita. gosto muito do meu pai e da
minha mãe, adoro eduarda e thaízinha,
curtir e brincar, pokémon. roupa eu gosto
de saia e vestido. adoramos catar folhas e
colocar no nosso cabelo. amor e esperança.
peço uma irmãzinha logo!

o céu dos gatos é no espaço sideral. o céu


dos cachorros é no céu do planeta marte.
o céu da gente é nas nuvens. no céu a
gente não sente saudades porque tem muito
trabalho. pode trabalhar de raio, de chuva
de pedra ou “chuva normal”.

bárbara
maio de 2001

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AVALIAÇÃO DESCRITIVA
CENTRO EDUCACIONAL MENINO JESUS
1º SEMESTRE LETIVO – 2003

“é uma menina meiga, educada, carinhosa e


tranquila. tem um bom relacionamento com os
amigos e professores. participa das aulas
com disposição informando fatos interes-
santes ao grupo. completa suas atividades
quase sempre com a professora, pois se
dispersa com facilidade conversando com os
amigos, ou mexendo com pequenos objetos.
seu trabalho é deixado de lado e o resultado
nem sempre é o melhor. na redação, precisa
realizar exercícios que ajudem a organizar
melhor suas ideias e assim estruturar
melhor seus textos.”

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excertos de diário
2012-2013

meus devaneios [...] a mim entregues,


cuidadosamente colocados numa caixinha de
presente. poderia o pequeno lúcifer apostar
as próprias asas em troca de um cânvas
vazio? anjo caído, pobre criança. caiu de
uma nuvem enquanto amarrava os sapatos.

[...]

excertos de diário
2012-2013

numa manhã de outono, sem pressa observarei


as folhas secas das alinhadas árvores de
bordo caírem no chão. gole por gole, com a
visão turva e calma, a imagem do meu passado
recente criará para si uma moldura, e então
poderei dizer que o show por fim acabou.

[...]

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excertos de diário
2012-2013

eu desejo muitas coisas.

que algumas coisas fossem eternas, por exemplo.

eu penso que, cada momento na vida deve ser guardado.

porque, em alguns anos, será apenas memória.

e memória conforta, em algumas ocasiões… sim.

mas quando olha-se para o céu, todas as noites,

percebe-se que o cotidiano se trata apenas de um


há também, um homem discutindo com o atendente
torturante suicídio.
do metrô em londres. ele acaba de perder a hora
do trem.
são 23 horas e 24 minutos.

uma senhora está tomando seus remédios e indo


eu estou encostando a ponta dos meus dedos nas
pra cama, neste exato momento.
telhas do telhado.

uma menininha chamada ndali está agoniando a


um homem atarefado está dirigindo com pressa
beira da morte, na áfrica, depois de uma semana
para um edifício no centro da cidade.
sem sua mãe conseguir algo para comer.

uma criança está nascendo em vancouver, no canadá.


uma estrela cadente passa no céu.

ana acaba de receber seu primeiro beijo, e por


algum motivo, sai correndo.

o último ônibus da linha chega ao ponto final.

há alguém nele.

ninguém se importa quem é.

o silêncio profundo invade nossas almas e nos


mata da pior maneira:

lenta e dolorosamente.

neste exato momento.

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25/07/2017

desde muito cedo consigo recordar momentos


prenunciais desta minha conexão com coisas
ligadas ao passado. isso não significa neces-
sariamente anseio por melhores momentos a
minha vida, embora isso aconteça com muita
frequência. começou como um medo intenso da
morte da minha mãe – certa vez, lembro de
quando pequena ter passado por sua cama à
noite. removi suas mãos entrelaçadas junto
ao peito, pois relacionei a cena à posição
das mãos em que cadáveres frequentemente
descansam em seus funerais. em outra ocasião,
ela me disse que acordou no meio da noite
para pegar um copo de água e me encontrou
sentada à porta da garagem, soluçando, certa
de que os dois haviam partido. esse medo pode
ter passado, mas a saudade de alguma forma
permanece. acordei hoje chorando incontro-
lavelmente, e não consigo me lembrar exata-
mente de todos os eventos que aconteceram
durante meu sonho, mas as casas que vivi
e tenho guardadas em minha memória foram
todas fundidas em uma só, e um medo incon-
trolável de que elas estavam prestes a
serem demolidas se alastrou. por fim, acabei
aos prantos, paralisada em uma poltrona de
pelúcia. da janela pude ver meu pai abrindo
o portão enquanto olhava e acenava, memória
exata de quando tinha 5 anos e durante o
verão finalmente me trouxe um jogo de compu-
tador que acabou sendo um dos meus favoritos
ao longo da minha infância e adolescência.

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uma coisa semelhante aconteceu cerca de embora às vezes eu me sinta presa no passado,
oito ou nove anos atrás, eu provavelmente eu também anseio por um futuro diferente em
tinha uns treze anos. sonhei que estava em algum lugar novo. e me pergunto: se nunca
uma das minhas festas de aniversário num houvesse mudança, se o mundo permanecesse
local específico onde tenho muitas memórias estático, haveria algo tão único como o
de infância. enquanto convidados pulavam sentimento de saudade? será que existe um
no trampolim eu conversava comigo mesma, ponto de equilíbrio? se heimweh for passado,
com o meu eu de cinco anos de idade ela e fernweh for futuro, talvez o presente seja
não conseguia parar de chorar. eu acordei uma combinação de ambos? talvez o passado
soluçando naquela noite também. cheirando a pão quentinho e café fresco,
e seu pai segurando um jornal tão grande
heimweh e fernweh são palavras alemãs que quanto você mesma; e acordar em sua cama
têm significados opostos, a primeira significa estampada com estrelas brilhantes às 10 da
nostalgia e a segunda significa “wanderlust”, manhã de um sábado com sua mãe rindo enquanto
desejo de partir, de viajar. fernweh é o assiste sua sitcom favorita (nunca mais
desejo de sair e heimweh é o desejo de ficar. encontrei jeito tão agradável de acordar,
heimweh, quando foi cunhado como termo, foi se não com risadas da minha mãe); ou até
considerado efetivamente uma doença mental. mesmo quando anseia por eras passadas onde
a nostalgia podia ser referida como mal du você sequer era nascido... tudo isso seria,
pays ou the swiss illness, por causa de sua possivelmente, apenas distintos mecanismos
frequente ocorrência com soldados suíços na de auto-sabotagem geradas pelo cérebro com
frança por volta do ano de 1688. eles eram intuito de evitar que cavemos mais fundo.
até proibidos de cantar suas velhas canções em conclusão, eu não sei. mas me recuso
suíças como forma de punição. a deixar de lado as nostalgias; quaisquer
que sejam - passadas ou futuras, reais ou
imaginárias - porque, neste ponto do tempo
onde me encontro agora, três da manhã com as
bochechas fervendo com lágrimas salgadas,
elas já conseguiram se embutir na construção
social que é o que chamo de identidade, na
minha identidade. outras discussões perma-
necem, e eu posso ou não olhar mais profun-
damente para isso. me deseje sorte.

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02/08/2018

há algumas semanas estava no estacionamento do


ceisa-center, em florianópolis, e comecei a encarar
uma parede de vidro. me peguei pensando: o enqua-
dramento do que eu estava vendo naquele momento
era provavelmente o mesmo desde 1978, ano em que
o prédio havia sido inaugurado. isso me trouxe um
questionamento: havia importância, naquela fração
de segundo, se o tempo era 2018, ou 1983, ou 1978?
a imagem que eu via, claro, não era envelhecida
como as fotografias ou vídeos, mas o que eu via,
naquele momento, era a mesma imagem vista em
qualquer período de tempo entre a construção do
prédio e aquela fração de segundo. a única coisa
que mudava era o entorno da moldura que eu via,
mas o que havia dentro dela, era igual. parece que
quero dizer algo muito complexo, com um vocabu-
lário inocente de uma criança. na verdade eu já
fui muito mais sábia do que sou hoje...

prelúdio prelúdio
prefácio
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para quem possa ser de interesse,

meu afeto, ou melhor – meu apego; por todas


as coisas marcadas pelo passado - “isso”,
seja o que for, cavou tanto em meus olhos
que agora conseguiu embutir-se em algum
canto da minha alma. a identidade, você
sabe, está sempre acorrentada ao nosso
conceito de tempo, e se você pensar a
respeito, todos nós estamos. somos todos
escravos do tempo - alguns, como eu, mais
que outros - e não há como fugir disso.

“o tempo é linear, ele se expande”. aprendi


isso quando tinha 13 anos. estava na sétima
série e era obcecada com filmes cujo tema
principal era viagem no tempo. naquela
época, o sonho máximo, um ideal desejoso
e infelizmente, irrealista, era voltar no
tempo. não para um tempo específico, com
intuito de corrigir algum erro, mas sim para
qualquer “lugar”, desde que este “espaço”
existisse no século xx. a ideia de fechar
os olhos e acordar em algum tempo que não
o que eu vivia me parecia muito atraente.
em alguma tarde de algum verão entre 2006
e 2008, pus à prova um método fictício –
claro – aproveitado de um filme chamado “em
algum lugar do passado”. no filme, o prota-
gonista, em meio a uma crise existencial
se apaixona por uma mulher numa fotografia
datada do início dos anos 1900. ele então
compra roupas da época e tenta convencer a
própria mente de que está lá, no mesmo ano
que ela, o que por fim acontece, e os dois
acabam realmente se conhecendo. na minha
tentativa, claro, não funcionou. mas se a
tentativa tivesse obtido êxito, bárbara
pré-adolescente estaria preparada: estava
na casa de seus avós na praia da daniela,

prefácio
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em florianópolis, que existia desde a manipuláveis à minha vontade. tais bolsões
segunda metade da década de 1970. além do tempo, ou bolsões temporais, seriam
disso, havia preparado uma mochila com envergaduras do tempo linear, curvaturas
algumas notas de cruzeiros reais, uma muda que criam um ou mais bolsões que comprimem
de roupa e alguns chocolates. o que quero e acolhem um tempo específico escolhido e
dizer com isso é que, naquela tarde aprendi manipulado de acordo com alguma neces-
uma coisa que já havia lido na internet a sidade e preferência artística/senti-
respeito de viagem no tempo, mas que me mental. a profundidade de um tempo e de
recusava aceitar. que o tempo é linear, um espaço específicos seriam manipulados
ele apenas se expande, e muito prova- de modo que o espaço, neste caso a mídia
velmente, se algum dia cientistas conse- (tv, internet, vídeo, fotografias, áudios e
guissem finalmente descobrir uma maneira de todo tipo de registro de acontecimentos) e
viajar no tempo, não seria possível voltar o tempo, os bolsões, seriam infinitamente
para trás. provavelmente só seria possível intercambiáveis! arquivamentos de extra-
ir pra frente, para nunca mais voltar. -realidades disponíveis para visitação por
mas tudo dá-se um jeito. tempo indeterminado.

pensando nisso tudo, e tentando aplicar esse finalmente, uma notícia boa.
anseio à minha realidade, me interessou a
possibilidade da captura, apropriação e com um certo tom melodramático, e com a
manipulação de um tempo-passado. à medida esperança de ter calhado a hipótese duma
que a tal captura fiel de determinada espécie de máquina de reprodução infinita
realidade provou-se impossível – já que, de um passado-presente representado com
claramente, a marcha do tempo é inexorável, memória capaz de estocar o tornar-se
e a cópia acaba-se abstendo de aura –, a arquivo sem limite; gostaria de finalizar
hipótese de uma espécie de simulação-tem- esta carta com um excerto do livro “pequeno
poral demonstrou-se a única alternativa discurso sobre proust” de walter benjamin:
para minha incapacidade de efetivamente
“Seria possível dizer que nossos momentos mais pro-
viajar ao passado. ah, capturar, desace-
fundos foram dotados – como os maços de cigarro – de
lerar e deter o tempo – a ilusão do mundo.1
uma pequena imagem, uma fotografia de nós mesmos. E
agora, finalmente, posso tentar captar e
a tal “vida inteira” que, segundo dizem, passa pela
manipular o passado. desde que, claro,
cabeça das pessoas quando elas estão agonizando ou
exista registro do mesmo. uma tentativa de
correndo um perigo mortal, é composta dessas peque-
um quadro máximo, sem duração: um verda-
nas imagens. Elas piscam numa sequência tão rápida
deiro protótipo de átomo do tempo, que
quanto a dos livrinhos da nossa infância, precur-
não é verdadeiramente nem passado, nem
sores do cinema, nos quais admirávamos um boxeador,
presente, e nem futuro. tal quadro não
um nadador ou um tenista.”
poderia existir no tempo, já que, por
(Pequeno discurso sobre Proust, Walter Benjamin, 1932)
definição, sem haver duração sua existência
é impossível. por isso, imagine que possam
existir bolhas paralelas à linha natural esperançosamente,
do tempo, a inflexível flecha temporal se
multiplicaria em infinitos espaços-tempo, bárbara baron [versão 21/09/18 às 18:52]

prefácio prefácio
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bárbara baron
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“a caminho; estava aqui ontem”

– foi o que hreinn friðfinnsson respondeu a hans


ulrich obrist quando lhe foi perguntado qual seria
o futuro da arte.

o que é o presente, senão um ponto sobre a linha


do tempo, onde o infinito futuro é separado do
infinito passado?¹ a experiência psicológica do
tempo faz com o que o futuro se torne, constante-
mente, no passado. quase como um cachorro que
corre atrás da própria cauda, ou uma cobra que
engole o próprio rabo.

o futuro realmente esteve aqui. é verdade! eu não


sou louca! posso provar! tenho tudo documentado
em vídeo! indo além das afirmações sontaguianas
em a fotografia, posso afirmar: videografar é
apropriar-se da coisa videografada. imagens

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videografadas são pedaços do mundo, minia- o vídeo, imutável pelo resto da eternidade. se
turas da realidade que qualquer um pode fazer, observarmos as coisas à nossa volta, percebemos
adquirir... e manipular. que tudo compreende memórias em seu próprio
contexto. todas as coisas, todos os objetos são
– quem sou eu? assim. principalmente aqueles feitos pela mão
humana, estes tem vida própria; estão vivos.
– porque estou aqui?
a tentativa da materialização e arquivamento do
– porque eu sou eu, e não outra pessoa em artista, como uma captura metafísica, se dá pela
qualquer outro lugar em qualquer outro tempo? captura do registro do passado; já que somos
todos, irremediavelmente, produtos do passado
todos ansiamos por significado, é inegável, e que culmina na eterna construção do presente. a
disso as imagens estão cheias até a borda. tela de um monitor de televisão (e todos os seus
quando nada mais faz sentido, e a vida parece subsequentes formatos) representa a materiali-
uma loteria arbitrária de tragédias sem sentido zação de um espaço-tempo específico. o vídeo,
e uma limitada série de fugas bem sucedidas, assim como a pintura, e posteriormente a fotografia,
as imagens assumem o poder reconfortante modifica o tempo, o capturando e o manipulando.
de agarrar o que resta da existência de algum
propósito. hoje nós temos um meio – o vídeo – no texto “o tempo deve ter um fim”, de kenneth
que permeia o mundo baseando-se no movimento anger, ele descreve a edição dos quadros cinema-
da informação na velocidade da luz. as imagens tográficos da seguinte maneira: “[...] no visor de
cinematográficas são uma reflexão do comporta- minha mesa de edição eu poderia parar o tempo
mento humano: podem tanto manipular a verdade e isolar um quadro representando a essência do
quanto cruzar o espaço e o tempo, mantendo, evento em movimento.” portanto, o vídeo, assim
de alguma forma, por exemplo, a existência de como o cinema, além de estar atrelado ao tempo,
algum parente falecido preservado dentro de uma na imagem em movimento, está atrelado à
caixa mágica que emite luz. o vídeo tem o poder fantasia, graças a seu caráter ilusionista.
de transcender a existência humana, assim como
a pintura, a fotografia e a música. como uma criança, que acredita que a televisão
se trata de uma caixa com marionetes perfor-
a característica mais poderosa de um objeto mando eternamente a seu dispor, realizo uma
artístico produzido pelas próprias mãos de um curadoria de um tempo que, mesmo que de
ser humano é a captura de sua essência. é uma certa forma inventado, leva o espectador a se
das primeiras coisas que aprendemos quando posicionar frente à minha vida até então. meus
pequenos, segundo a teoria do apego, na psico- momentos quintessenciais, enroscados em uma
logia. isso acontece devido à rapidez com a montagem melodramática ou compilados numa
qual identificamos quem somos e os objetos que colagem audiovisual sentimental máxima, tentam
consideramos nossos. mas o vídeo vai mais além refletir sobre o passado, o manipulando para
desse conceito. como certa vez disse o artista tentar seguir o caminho do aqui e agora.
bill viola, câmeras são “guardiãs da alma”. esta
máquina que captura e emite luz tem vida própria desenvolvido em formato de instalação, o trabalho
e, portanto, tem o poder da captura e preservação é uma tentativa de materialização de um “eu”
de vidas. uma parte de mim permanece e adentra metafísico, um estudo de identidade, uma experi-

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ência desenvolvida a partir do momento espacial-


-temporal – o qual tenta examinar o tempo e suas
possíveis distorções. a qualidade dramática,
quase teatral do trabalho cria a situação, constan-
temente retorcida entre a realidade e a ficção;
esmagada pela pilha eterna das incontáveis
linhas do tempo utilizadas no trabalho. a experi-
ência central é desenvolvida a partir do princípio
fugidio das constantes experiências de uma
vida, que estão atreladas à concepção de quem
somos como indivíduos. a instalação, ao todo,
demonstra a percepção do tempo experienciada
pelo indivíduo submetido ao bolsão temporal: as
três projeções (os cara-tevês) formam um fac

∞’’, 1440 x 1080, 4:3, cor, sem áudio


símile da essência criadora do projeto, exibem

projeção de vídeo em três canais


um paradoxo. uma tentativa de materialização
de um “eu” metafísico, provido de curadoria. a
natureza arquivológica do projeto acaba gerando

(parte de instalação)
uma pseudo-imortalidade e onipresença da artista

cara tevê, 2018


– “eu” removida de mim mesma, um pouco de mim
depositada no espaço e disponível para visitação.

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haviklaan, 4
bárbara baron
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a qualidade familiar da imagem vhs é inerente à
utilidade documental do próprio equipamento, o
video home system (sistema doméstico de vídeo),
que se popularizou no final da década de 1970 e
em pouco tempo se tornou comum nas famílias
de classe média. as câmeras vhs substituíam toda
a complexidade da película: pois mesmo em seu
formato mais amador, o “super 8”, demandava-se
um cuidado e conhecimento só encontrados entre
os amadores mais avançados. o vhs era, além de
acessível economicamente e tecnicamente, uma
tecnologia analógica: a imagem ainda existia sobre
um suporte – a fita magnética – guardando assim
uma certa analogia com os filmes e fotografias. a
imagem digital, por outro lado, é meramente uma
representação numérica, geralmente binária, de
uma imagem bidimensional e pode até, em algumas
situações, salvar imagens fílmicas e eletrônicas
da destruição. mas não deixa de ser só isso: um
conjunto de números. as imagens vhs – ainda que
eletrônicas – são imagens analógicas: quando

haviklaan, 4
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se passa a fita ainda é possível ver o resquício – o sinal analógico é humano
da realidade, a luz refletiu sobre algo e foi regis-
trada na fita magnética. não existe mais imagem – por favor – – –
no sistema digital. a imagem propriamente dita se
perdeu, afinal, só podemos vê-la através de uma – perdoem o sinal analógico.
tela. em seu texto “anamorfoses cronotópicas ou
a quarta dimensão da imagem”, arlindo machado
afirma que, na realidade, “as câmeras eletrônicas
constituem os primeiros dispositivos enunciadores
realmente capazes de anotar o tempo em imagens
sequências, uma vez que o cinema apenas simula
um efeito de duração através de uma sucessão
de fotogramas fixos”. isso se dá pois a imagem
eletrônica não é mais, como eram todas as
imagens anteriores, ocupações da topografia de
um quadro, mas a síntese temporal de um conjunto

melodrama analógico, 2018

0’13’’, dimensões variadas


de formas de mutação²⁰.

vídeo-performance
no dia 31 de janeiro de 2018, realizei uma video-
-performance chamada “melodrama analógico”. o
sinal analógico havia sido desligado das televisões
de florianópolis, e era planejado que até o final do
ano estivesse desligado em todo o brasil. neste
melodrama analógico, me encontrava em pleno
estado neurótico. parcialmente desconectada da
realidade, tentava desesperadamente me agarrar em seu livro simulacros e simulações, jean
a tecnologias obsoletas, algumas as quais sequer baudrillard explica tal irracionalidade nostálgica,
pertenceram à minha vivência diária. em meio a que ocorre quando o real já não é mais o que
uma espécie de surto desencadeado pela simbo- era. o que acaba desencadeando na sobreva-
logia do iminente desligamento, perguntava lorização dos mitos de origem, dos signos de
a todos se sabiam da mudança. o fim do sinal realidade e de autenticidade¹⁴.
analógico declarava em alto e bom tom, não era
só o fim do sinal, era também o fim da imagem, quando sonhamos nossos sonhos nostálgicos, nós
que havia se tornado uma equação matemática. não “retornamos” ao passado como ele realmente
era. estamos em eterna contaminação do presen-
– a última perda da imagem. te-futuro. assim, a lembrança do passado não é
necessariamente a lembrança das coisas como
ninguém parecia ter entendido o que estava elas realmente eram. mas esse reconhecimento
prestes a acontecer. o sinal analógico é “humano”, não remove o apelo do passado. na verdade, ele
tem defeitos e erra. o sinal digital nada mais é acaba aumentando ainda mais o seu fator je ne
do que uma cópia binária: é perfeita, porém sais quoi: o fato do sujeito experienciar um intenso
desprovida de qualquer essência. sentimento de saudade de algo, algo de que ele

haviklaan, 4 haviklaan, 4
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tenha perdido ou da qual tenha sido separado. -tempo que ocorrem devido a saturação e conta-
mesmo que não se possa compreender exata- minação da essência emocional de determinado
mente seu pretexto. afinal, a nostalgia – como momento. manipulados, esticados ou encolhidos,
sugere svetlana boym, professora de literatura se tratam de construções de um outro tempo,
eslava comparada em harvard – “é um sentimento que se contraem paralelamente ao tempo crono-
de perda e deslocamento, mas também é um lógico, assemelhando-se a duplicatas curvilíneas,
romance da pessoa com sua própria fantasia”⁴. anexadas sobre a flecha do tempo onde perten-
ceriam se existissem no mundo real.
parecemos ser parte de uma linhagem que nunca
para. e, no entanto, sempre há quebras, inter- “haviklaan, número 4” era o endereço da minha
rupções, turnos e becos sem saída. objetos na mãe no ano de 1993. no ano anterior ela havia
maioria dos casos não são para sempre, tudo tem deixado o brasil para fazer seu mestrado em
um tempo de vida limitado⁴. assim como o tempo, den haag, na holanda, onde morou por um ano
a identidade é sempre algo muito evasivo e escor- e meio. meu pai juntaria-se à ela na segunda
regadio, quase sempre uma mistura ambígua de metade desta estadia. os dois se casaram lá, em
fatores predefinidos e propósitos futuros. cerimônia pequena, em julho do mesmo ano. há
alguns meses, tive a oportunidade de visitar a
o tempo pode ser comprimido ou expandido, europa pela primeira vez, para visitar um amigo
acelerado ou retardado; permanecer no presente que estava morando na cidadezinha de enschede,
ou ir para o passado ou para o futuro; ou também na holanda. por coincidência, exatamente
até mesmo ser congelado pelo período que uma semana antes do meu embarque, meus avós
se desejar. o espaço pode ser diminuído ou encontraram a fita do casamento, gravada, claro,
ampliado; deslocado para perto ou para longe; em vhs. a fita estava perdida há mais de uma
apresentado numa perspectiva verdadeira ou década, e a última – e única – vez que a havia
falsa; ou ser completamente recriado num lugar assistido, deveria ter por volta de 7 anos (tenho
que só exista no filme². após a fase de acúmulo de quase certeza de que foi no mesmo dia em que
fatos, objetos, imagens e outros materiais como tirei a foto abraçando minha mãe, incluída nesta
parte de um processo de arquivamento, olhando publicação na página 17)
em retrospecto, a cada vez que se depara com
registros audiovisuais documentais, acaba se por obrigação do acaso, visitei den haag. com
tornando senso comum que cada visualização nenhum intuito turístico, fui até lá com apenas
se torna distinta. afinal, nos conhecemos no um objetivo: comparecer ao casamento de meus
presente, constantemente arrastando o passado. pais. a contaminação do presente se deu instan-
cada sequência de imagens, experiências e taneamente: eles não estavam registrados no
informações recebidas pelos nossos olhos se papel. o ministro encarregado da igreja, que foi
tornam parte de quem somos. por esse motivo muito simpático, ofereceu-se para registrá-los ali
a ideia de identidade é indivisível do passar do mesmo. dei um riso sem graça. afinal, eles não
tempo. portanto, se a contaminação do presente estão mais casados. ele também me disse que
é inevitável, porque não exacerbá-la ao ponto de a maioria dos casamentos realizados pelo tal
saturação mais extrema? padre, “father david”, não haviam sido registrados
corretamente: ele era alcóolatra – problema que
pode-se dizer que os bolsões temporais são aparentemente o tirou a vida – e muito desor-
como espinhas, cistos sebácios do espaço- ganizado. anos antes ele também tinha sido

haviklaan, 4 haviklaan, 4
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“aposentado” pela igreja, em função de um envol-
vimento em um caso de pedofilia.

a paróquia onde a cerimônia aconteceu, o jardim


da casa onde os convidados foram recebidos, tudo
havia mudado. mas há de pensar-se quadridimen-
sionalmente. na vida quadridimensional, tudo se
empilha, todos os tempos, todas as experiências,
todos os monumentos, todas as pessoas; cabe
ao artista, devidamente equipado, de selecionar
cada elemento, para então materializar o bolsão
temporal adequadamente.

19’19’’, 1440 x 1080, 4:3, cor, estéreo


assim surge “haviklaan, 4”: o primeiro vídeo da
tríade que compõe a instalação, e talvez uma das
experiências mais importantes deste trabalho,
afinal é nele em que efetivamente viajo pelo

haviklaan, 4 (2018)

parte da instalação
tempo e espaço.

vídeo #1

19’19’’, 1440 x 1080, 4:3, cor, estéreo


haviklaan, 4 (2018)

parte da instalação
vídeo #2
haviklaan, 4 haviklaan, 4
quintessencial
bárbara baron
a caminho; estava aqui ontem

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a “quintessência” (quinta essência) se trata de
uma alusão à aristóteles, que considerava que
o universo era composto de quatro elementos
principais - terra, água, ar e fogo-, e mais um
quinto elemento, uma substância etérea que
permeava tudo e impedia os corpos celestes de
caírem sobre a terra³. típico, prototípico, arque-
típico. clássico, modelo, representativo, ideal,
consumado, exemplar, definitivo. sequências,
compilações, álbuns de música e programas de
televisão retrospectivos juntam seus nomes à
palavra “quintessencial” em tentativas de materia-
lizar uma curadoria do essencial de determinado
tópico ou sujeito. desde discos “the best of...”
até cenas de filme onde o personagem se depara
com uma sequência fílmica de nostálgicas cenas-
-memória, tais coletâneas separam momentos
específicos do habitat onde pertenciam natural-
mente: os desfragmentam, os reconstituindo com
a percepção do presente.

quintessencial
a caminho; estava aqui ontem a caminho; estava aqui ontem
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assim, aponto minha câmera imaginária em diferentes podem se dar no mesmo espaço, mas
direção à qualidade onírica do cinema e a natureza separadas pelo tempo, não deixam de ser cenas
fragmentada da memória quando se reflete a distintas. numa cena, existe ritmo – ou cadência,
quintessencialidade de determinado momento. como é chamado – que move a 24 quadros
como sequências múltiplas de flashback, as por segundo. o ritmo é o movimento regular e
memórias são coleções resumidas de uma periódico no curso de qualquer processo, isso
extensão de um corpo de trabalho, resumos de vale para a cadência de projeção de um filme mas
uma vida inteira. a qualidade dramática destas também para as ondas eletromagnéticas digitais
“quintessências” nos leva à criação da cena ou analógicas emitidas de um transmissor a um
teatral, descrita perfeitamente por roland barthes receptor, como o rádio, a televisão ou o telefone
em fragmentos de um discurso amoroso: celular. em meu trabalho de vídeo-performance
“melodrama analógico”, a noção de ritmo da
“cena nenhuma tem um sentido, nenhuma avança para cena fílmica se confunde com a cena dramática.
um esclarecimento ou uma transformação. a cena não nesta performance melodramática, com evidente
é nem prática nem dialética; ela é luxuosa, ociosa: tão contaminação de mágoa do luto, penso nas ondas
inconsequente quanto um orgasmo perverso: ela não do sinal analógico como humanas, pois captam
marca, não suja. paradoxo: em sade a violência tam- erros e barulhos: são imperfeitas. já o sinal digital
bém não marca: o corpo é restaurado instantaneamente capta perfeitamente o que está sendo emitido, é
– para novos gastos: constantemente maltratada, alte- uma cópia exata, e sua onda é “quadrada”, não é
rada, dilacerada, justine está sempre fresca, íntegra, orgânica e imperfeita como a onda analógica.
repousada: assim é o parceiro da cena: ele renasce da
cena passada como se nada houvesse acontecido. pela
me interessa todas as tecnologias analógicas,
insignificância do seu tumulto, a cena lembra um vômito
pelo seu aspecto “hoarder”, acumulador. de
à moda romana: ponho o dedo na garganta (me exci-
guardar memórias e coisas do tipo, já que as
to até a contestação), vomito (um jorro de argumentos
tecnologias digitais hoje possuem vida útil muito
ferinos) e depois, tranquilamente, continuo a comer.”⁹.
curta. as tecnologias obsoletas me parecem muito
mais físicas, e isso também me interessa. acho
a memória do momento quintessencial é, por
que elas possuem um aspecto muito mais sincero.
essência, um melodrama. manipula, cinematogra-
outro aspecto desta vídeo-performance foi o uso
ficamente, os filmes que carregamos no cérebro.
da tela azul, apropriado do trabalho “television
dissociando-os do acontecimento real, os conta-
delivers people”, do artista richard serra. tive
minando com sentimentalismo, a imagem-memória
a impressão de se assemelhar à uma sala de
acaba, geralmente, sendo completamente diferente
espera, onde o espectador pode permanecer por
para dois sujeitos envolvidos numa mesma situação
toda a eternidade.
a ser recordada. assim como a memória, que exclui
a sequencialidade de fatos sem importância que
após a realização deste trabalho, para todos os
servem como moldura ao momento quintessencial,
lados a única coisa que eu via eram telas azuis,
as compilações se dão a partir de uma espécie de
estavam por todos os lugares, no meu dia-a-dia,
curadoria fílmica, realizada também involuntaria-
como se estivessem me perseguindo. a tela “de
mente pelo cérebro humano.
espera” azul nas televisões, ou “the blue screen
of death” em computadores, é um limbo audio-
a cena, no sentido cinematográfico, é uma unidade
visual. através de pesquisas, descobri que o azul
temporal e espacial. por exemplo: duas cenas
é a cor que a tela reverte também sem entrada

quintessencial quintessencial
a caminho; estava aqui ontem a caminho; estava aqui ontem
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(na televisão), e isso pode ser devido a como a
fiação envia entradas elétricas, sendo que sem
ela, a cor volta a 100% B na escala RGB. além
disso, o azul é a cor mais fácil de se geral em uma
tela, depois de uma imagem em preto e branco.

durante o zapping da televisão, onde o espectador


fica trocando os canais, na fração de segundo
que divide um canal do outro, como uma espécie
de quadro máximo¹, está a tela azul. geralmente
ela é imperceptível ao olho humano, mas, depen-
dendo da velocidade do empilhamento dramático
de acontecimentos, geralmente devido à alguma

5’00’’, 1440 x 1080, 4:3, cor, estéreo


interferência ou desvio de sinal, a sala de espera
azul pode ser exposta.

quintessencial, (2018)
no vídeo “quintessencial”, o bombardeamento

parte da instalação
imagético é proferido por meio do ritmo, um
movimento regular e periódico que demonstra

vídeo #2
a sequencialidade e sobreposição das cenas.
então, o vídeo diverge para a quebra do ritmo – a
tela azul –, emulando a interferência do sinal –
um ápice constante e estendido, que provoca a
própria quintessência – perfeição – que compõe o
conjunto do trabalho.

5’00’’, 1440 x 1080, 4:3, cor, estéreo


quintessencial, (2018)

parte da instalação
vídeo #2
quintessencial quintessencial
hic et nunc
bárbara baron
a caminho; estava aqui ontem

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estamos no futuro: olhando adiante, para variar,
zygmund bauman afirma: “sua hora de ser cruci-
ficado parece estar próxima, depois de ele ter sido
aviltado como algo não confiável e não adminis-
trável – que está inscrito na coluna dos débitos. e
agora é a vez de o passado ser posto na coluna
dos créditos – um crédito merecido (genuína ou
putativamente), por ele ainda ser um local de
livre escolha e um investimento em esperanças
até agora não desacreditadas.”⁴. o mundo “aqui e
agora” nada mais é que um entre infinitos mundos
possíveis – passados, presentes, futuros.

– aqui e agora.

– hic et nunc.

há algum tempo atrás, quase sem querer, acabei


misturando o gênero literário dos romances
“coming of age” com o termo latino “hic et nunc”.
“amadurecimento”, em português simplificado, o

hic et nunc
a caminho; estava aqui ontem a caminho; estava aqui ontem
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coming of age geralmente trata de uma história retrospectivas cinematográficas seria, ao mesmo
de amadurecimento, onde a narrativa enfatiza o tempo um momento coming of age (a coming of
crescimento de um personagem, geralmente o age moment), e um momento quintessencial. um
momento em que passa da juventude para a vida momento que define. um momento que é a maior
adulta. já hic et nunc, do latim “aqui e agora”, experiência. um momento que explica, esclarece
é uma expressão muito utilizada na filosofia tudo. um momento em que a luz é vista.
existencialista, mas a conheci quando li “a obra
de arte na era da reprodutibilidade técnica”, de a verdade é que o aspecto fugidio do presente o
walter benjamin. para ele, o original de uma obra torna, constantemente, no passado. a impossibi-
é sempre dotado de um hic et nunc, que garan- lidade da captura dos presentes quintessenciais
tiria sua autenticidade. ele ainda enfatiza que, acabam os tornando ainda mais valiosos, afinal,
tendo sido produzido apenas um exemplar, num o atrativo de qualquer coisa é justamente a sua
momento específico, em um lugar e ocasião única efemeridade. segundo a física, isso é explicado a
e criado por um indivíduo específico, o público partir do conceito de entropia: que com o passar
atribuiria à obra uma aura, “...a única aparição de do tempo as coisas discorrem da ordem ao caos
uma realidade longínqua, por mais próxima que com o passar do tempo. é por isso que livros
esteja”. tudo isso se misturou na minha cabeça envelhecem, prédios tornam-se ruínas, e seres
com a percepção de captura de um tempo, da humanos envelhecem.
nostalgia, e de zeitgeist, termo alemão que
significa “espírito do tempo”. “hic et nunc” é a tentativa de conclusão de algo
incapturável, uma tentativa de prova da minha
mas, pensando bem, os dois termos (hic et nunc própria existência. se não posso capturá-lo,
e coming of age) têm sim, uma similaridade. numa posso pelo menos tentar simulá-lo, o que poten-
tarde de verão de 2015, nas vésperas da minha cialmente poderia agir como método facilitador
volta ao brasil, ainda em chicago, estava com da minha evidente neurose, se não atingido seu
um amigo na fila de um festival de música. o sol potencial de desfecho. mas se alcançando seu
estava a pino, e a fila estava quilométrica. naquele fim, caminha-se para o aqui e agora, elevando-se
dia o que eu mais queria era assistir uma banda para a conclusão, me permitindo olhar para frente.
chamada perfume genius, e ouvir uma música nesse momento, eu, como artista, sou obrigada a
específica: “fool”. enquanto esperávamos na fila, me colocar frente à lente da câmera, em frente
eu ficava ansiosa, pois o show estava prestes a a um espelho, confrontando a mim mesma. o
começar, e como a música não era a mais famosa novo enfrentamento é aqui e agora. a rapidez
da banda, imaginei que seria uma das primeiras do tiroteio imagético se multiplica de haviklaan
a tocar. então meu amigo disse “acho que isto à quintessencial, e não por isso para em hic et
não é uma fila”, e, de mãos dadas, corremos nunc: ele apenas se agrava, passa a deslocar-se
em direção ao início da fila. de fato, estávamos na velocidade da luz, e só então, como conse-
na fila errada. prosseguimos pela minúscula fila quência de sua saturação extrema, atinge seu
frente aos portões de ferro que dividiam a rua estado de ebulição. a explosão do momento.
e o espaço do festival e, ainda de mãos dadas,
corríamos em direção ao palco: nesse momento,
ao volume máximo, a banda tocava a música “fool”.
este momento específico, registrado na minha
memória com estrutura similar às montagens

hic et nunc hic et nunc


a caminho; estava aqui ontem a caminho; estava aqui ontem
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5’00’’, 1440 x 1080, 4:3, cor, estéreo
hic et nunc, (2018)

parte da instalação
vídeo #3
dá-se um tchau, liberta-se. a corrida continua,
todavia, ininterrupta. ela pode mudar de direção
e até de pista – mas não vai parar.

5’00’’, 1440 x 1080, 4:3, cor, estéreo


hic et nunc, (2018)

parte da instalação
vídeo #3
hic et nunc hic et nunc
posfácio
ivi brasil
a caminho; estava aqui ontem

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eu vejo o futuro repetir o passado
eu vejo um museu de grandes novidades
o tempo não para
não para, não, não para... ... ...
...

bárbara,

nessa segunda-feira da ressaca eleitoral,


lembrei do cazuza, da canção “o tempo não
para”. música antiga pra vc, né? mas daí
vc me chama no messenger e me fala sobre
eternidade - é muito tempo tudo isso! a
gente esquece, deixa de lado, faz de conta
que não aconteceu. depois, algumas coisas
mudam e fatos são reencenados, reperfor-
mados, atualizados (?). às vezes é déjà vu,
às vezes é a realidade se repetindo, cicli-
camente. é a máquina do tempo em nós mesmos.

tô aqui pensando... ... saudade é uma


máquina do tempo potente, sabe? é aquela
mistura de sentimentos... a falta, a perda,
a distância, o tempo que passou. a palavra
saudade vem do latim solitatem, que significa
solidão; e é nesse estar sozinho que nos
vemos por dentro, que tomamos força para
continuar na linha do tempo. marche! 1,
2... quero dizer, a lembrança do passado e

posfácio
a caminho; estava aqui ontem
72

a invencionice do futuro são as chaves para


o presente. a ação aqui-agora é mais forte
que a estática escultura, mais colorida que
a estática pintura, intensa e envolvente
por nos transportar a tempos distantes, ou
bem próximos, é como numa aula de história.
os nossos corpos são máquinas de tempo,
de duração, de acúmulo de informação. ao
mesmo tempo que desdobramos as infor-
mações e as juntamos a milhões de experi-
ências incorremos no desgaste de nossas
peças. meu coração ainda não falhou, meu
cérebro continua a fazer sinapses, e ao
te encontrar já aos vinte e poucos anos
fui transportado para uma tarde que fui
visitar tua mãe e te vi no berço a dormir
tranquilamente. o embate com o outro e com
o dia a dia é a verdadeira máquina que nos
transporta a muitos lugares, e nem precisa
ser via satélite.

avante!
ivi brasil

posfácio
74

75
bibliografia
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vando para o esquecimento. Caderno Sesc
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8. FARGIER, Jean Paul. Video Gratias. In.
Caderno Sesc Videobrasil. São Paulo: SESC SP, 19. SONTAG, Susan. A Fotografia. Lisboa: Publi-
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PARENTE, André. (org.) Imagem-Máquina. Rio de
10. VOSTRY, Jaroslav. VOJTECHOVSKY, Miroslav. Janeiro: Editora 34, 1993.
Image Narrative: On Scenity In The Plastic and
Dramatic Arts. Praga, Republica Checa: Kant
Books, 2011.
a caminho; estava aqui ontem

77
agradecimentos

evandro baron por ser meu pai

cláudio brandão pelas conversas filosóficas acompanhadas de


pizza

gustavo paim pela criação do som utilizado neste trabalho

ivi brasil por aceitar escrever o posfácio desta publicação e vir


de são paulo para participar da banca

maria laura cabral por aceitar fazer o projeto gráfico desta


neurose compilada

monique vandresen por ser minha mãe

raquel stolf por aceitar fazer parte da banca, me orientar como


monitora de vídeo e aceitar escrever o texto curatorial desta
exposição

regina melim por me orientar durante todas as etapas da


concepção deste trabalho de conclusão de curso

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